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COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS
Sumário
I- Para que a compensação possa operar é necessário que os créditos objeto de compensação existam e que o crédito do compensante seja exigível judicialmente. II- Tal condicionalismo não se verifica nos casos em que o réu visa compensar o crédito do autor com o direito a uma hipotética indemnização. (Sumário do Relator)
Texto Integral
125/22.1T8CTX.E1
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. (…), residente na Rua (…), lote 1, Vila Chã de Ourique, instaurou contra (…), Lda., com sede na Rua (…), ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.
Alegou, em resumo, que no âmbito de um procedimento de injunção por si instaurado conta a Ré celebrou com esta um acordo nos termos do qual a Ré se confessou devedora da quantia de € 8.800,00, a pagar em prestações, que a Ré pagou as primeiras prestações, no montante de € € 3.800,00, mostrando-se em dívida o restante.
Conclui pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 5.000,00, acrescida de juros vencidos e vincendos, bem como no pagamento de € 350,00 referente a despesas administrativas que suportou para receber o crédito.
A Ré contestou; excecionou o erro na forma do processo e a ineptidão da petição inicial [a ação tem causa, argumenta, no reconhecimento de uma dívida e não num contrato como exige a ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e, de qualquer forma, o Autor não alega os factos de que emerge a causa de pedir] e defendeu, no item que intitula de impugnação, que resolveu o acordo que fundamenta a ação por incumprimento do Autor das cláusulas em que se obrigou a guardar sigilo relativamente a informações confidenciais da Ré.
Concluiu, na procedência das exceções, pela absolvição da instância, m qualquer caso, pela absolvição do pedido e pediu a condenação do Autor como litigante de má-fé, por dedução de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.
Respondeu o Autor por forma a concluir pela improcedência das exceções suscitadas pela Ré e a pedir a condenação desta como litigante de má-fé, por dedução de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
2. Foi proferido despacho que julgou improcedentes a exceções da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição e do erro na forma do processo e afirmou, em tudo o mais, a validade e regularidade da instância.
Teve lugar a audiência de discussão o julgamento e depois foi proferida sentença, em cujo dispositivo designadamente se consignou: “I – Em face de todo o exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, decido: a) condenar a Ré (…), Lda. a pagar ao Autor (…) a quantia de € 5.000,00, quantia a que acrescem juros de mora à taxa legal desde 31.03.2021 até integral e efetivo pagamento. b) Absolver a Ré do demais contra si peticionado c) Condenar a Autor e Ré no pagamento das custas processuais, na proporção do respetivo decaimento. II - Julgo improcedente o pedido de condenação do Autor (…) como litigante de má-fé e, em consequência, absolver o mesmo de tal pedido. Condeno a Ré no pagamento das custas do incidente de litigância de má fé, fixando-se a taxa de justiça em 1(uma) UC. III - Julgo improcedente o pedido de condenação da Ré (…), Lda. como litigante de má-fé e, em consequência, absolver a mesma de tal pedido. Condeno o Autor no pagamento das custas do incidente de litigância de má fé, fixando-se a taxa de justiça em 1(uma) UC.”
3. A Ré recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:
“1º Nos termos do artigo 186.º, nºs 1 e 2, alínea a), do C.P.C., faltando a causa de pedir, deverá ser considerado nulo todo o processo e, em consequência verificada a exceção de ineptidão da petição, com todas as consequências legais daí decorrentes, mormente a absolvição da R. da instância – artigo 576.º/2, do C.P.C., o que não se verificou na sentença ora recorrida.
2º Termos em que deveria ter sido considerada inepta, a petição inicial, por falta concreta da causa de pedir, consubstanciando, assim, uma exceção dilatória insuprível, julgando-se procedente a exceção de ineptidão já invocada, com a consequente absolvição da Ré da instância, com os fundamentos invocados em sede de motivação, pra os quais se remete;
II – Da nulidade da sentença: Omissão de pronúncia.
3º A não se considerar desta forma, deverá a sentença recorrida, ser declarada nula, por manifesta falta de fundamentação, no que à matéria atinente à causa, em questão, em relação comercial subjacente, quanto à participação do A. na sociedade.
4º Impunha-se ao Tribunal a quo o dever de explicitar à razão pela qual os recibos juntos aos autos não constituíram elemento que conduziram a decisão diversa. Com efeito, tratava-se de matéria que constituía o cerne do litígio
III – Impugnação:
5º A não se considerar nula a sentença,
6º Da prova produzida, mormente das testemunhas,
7º Deveria ter sido proferida decisão diversa, considerando acordo celebrado entre Autor e Ré além de um valor acordado pagar em Prestações mensais e sucessivas (vide Cláusula Terceira, doc. n.º 1 da P.I.), constituía as partes em outras obrigações.
8º Considerando que com ver apurados em sede e modo próprios,
9º Ver apurados e quantificados todos os prejuízos e acionar os meios legais ao seu dispor para o respetivo ressarcimento.
10º Aliás, a Ré está em crer que o Autor, instaurou primeiramente uma injunção e posteriormente a presente Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos.
11º Com efeito, pelo exposto o Autor que apresenta na presente Ação Especial para o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos uma pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, pois encontra-se numa situação em que se lhe impunha deter esse conhecimento, alterando a verdade dos factos e omitindo factos relevantes para a boa decisão da causa, numa clara atitude de litigância de má-fé.
11º Sempre na tentativa de omitir ou não permitir o Tribunal conhecer que do acordo celebrado, e que quer fazer crer é a relação jurídica subjacente à causa de pedir, resultaram obrigações recíprocas para ambas as partes, pelo que deverá a autora a ser condenado por litigância de má-fé.
IV – DISPOSITIVO:
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, considerando-se:
I - a) A Ré (…). Lda. nada dever ao Autor (…);
b) (…)
c) Que as custas sejam da responsabilidade da A;
II- Litigância de má-fé:
Não havendo litigância de má-fé de nenhumas as partes deverão ser absolvidas nesse sentido, assim se fazendo, JUSTIÇA!”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (arts. 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir: i) se a petição é inepta por falta de causa de pedir, ii) se a sentença é nula, iii) se a obrigação da Ré se mostra extinta por compensação, iv) se o Autor litiga de má-fé.
III. Fundamentação
1. Factos
Sem impugnação, a decisão recorrida julgou assim os factos: Provado:
1 – A Ré é uma sociedade por quotas que se dedica a atividades de programação informática, consultoria informática; gestão e exploração de equipamento informático, outras atividades relacionadas com as tecnologias da informação e informática, formação profissional e acompanhamento das equipas de vendas, marketing e merchandising, publicidade, e outras atividades de serviços de apoio prestados às empresas, bem como comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos,
2 – (…) foi constituída em 2009, tendo como um dos sócio o Autor, que era titular de uma quota de € 1.250,00,
3 – (…) a gerência era exercida pelos quatro sócios, incluindo o Autor, - cf. registo da constituição e designação de órgãos sociais pela Ap. …/20090529.
4 – Em 2014, o Autor, juntamente com outros dois sócios, renunciou à gerência da sociedade Ré – cfr. registo da cessação de funções de membros dos órgãos sociais efetuada pela Ap. …/20140919.
5 – Apesar da renúncia ao cargo de gerente, o Autor continuou como trabalhador da Ré e, mesmo após a cessação da relação laboral, continuou a prestar serviços em representação e por conta da sociedade Ré.
6 – No momento da saída definitiva do Autor da sociedade Ré, as partes celebraram um acordo intitulado “Acordo de reconhecimento de dívida”, datado de 16 de outubro de 2020, no qual declararam: “CLÁUSULA PRIMEIRA A Segunda Outorgante [a sociedade Ré] confessa-se devedora da quantia de € 8.800,00. CLÁUSULA SEGUNDA O Primeiro Outorgante [o aqui Autor] aceita que o pagamento da dívida confessada pela Segunda Outorgante na Cláusula Primeira do presente contrato, seja paga em prestações. CLÁUSULA TERCEIRA 1. A Segunda Outorgante pagará o valor em dívida sobre-referido em 15 prestações mensais e sucessivas após uma entrada inicial de € 2.000,00. 2. A entrada inicial deve ser paga até 30 de Outubro e a primeira prestação vence-se até ao dia 30 de novembro de 2020. As subsequentes prestações vencem-se até ao último dia de cada mês, sendo que as catorze prestações terão o valor de € 450,00 sendo a última no montante de € 500,00. (…) CLÁUSULA SEXTA 1. O Primeiro Outorgante obriga-se a guardar sigilo relativamente a quaisquer informações respeitantes à Segunda Outorgante, sendo-lhe, nomeadamente, vedado efetuar quaisquer reproduções, cópias ou distribuição de documentos que lhe pertençam. 2. O Primeiro Outorgante fica especialmente obrigada a guardar segredo profissional, não podendo nomeadamente e, sem expressa e prévia autorização da Segunda Outorgante, revelar a qualquer pessoa, ou divulgar publicamente, os termos das negociações, as operações, processos, ou negócios de que venha a tomar conhecimento por causa das funções que exerce, nem quaisquer informações que não sejam de domínio público, e que pelo seu conteúdo possam ser usadas em detrimento, ou de forma a causar prejuízo ou lesão de interesses da mesma, de outras sociedades com ela ligadas por relação de grupo ou de domínio, ou de terceiros clientes seus. 3. Em caso de incumprimento da obrigação estabelecida nos números anteriores pela Segunda Outorgante, assiste à segunda o direito de exigir daquele uma indemnização a fixar nos termos legais. CLÁUSULA SÉTIMA Com o recebimento da quantia total indicada na Cláusula primeira do presente acordo, o Primeiro Outorgante considerar-se-á devidamente ressarcida pela cedência de quotas de 2017, dando a respetiva quitação”.
7 – A Ré procedeu ao pagamento da quantia de € 2.000,00 e das prestações relativas a novembro e dezembro de 2020, janeiro e fevereiro de 2021.
8 – A 26 de março de 2021, a Ré, através do seu mandatário comunicou ao Autor que considerava existir incumprimento da cláusula 6.ª, n.º 1 e 2 do acordo referido em 6 e que “irá acionar o mecanismo de compensação, nos termos do artigo 847.º do Código Civil, deixando de proceder aos pagamentos constantes da Cláusula Terceira do Acordo (…) Considerando que o prejuízo causado à (…), Lda. com a violação culposa das obrigações a que estava adstrito é muito superior à compensação que irá operar com a cessação dos pagamentos (…) não prescinde a minha constituinte, de em momento posterior em que estejam apurados e quantificados todos os prejuízos, acionar os meios legais ao seu dispor para o respetivo ressarcimento”,
9 – A 12.01.2021 foi registada a constituição da (…), Sociedade Unipessoal, Lda., cujo objeto é atividade de consultoria financeira, consultoria de sistemas, consultoria informática, formação, programação informática, desenvolvimento de software, design gráfico e de comunicação, Web design, atividades relacionadas com publicidade, comércio a retalho de produtos e serviços, como programas e software, entre outras,
10 – (…) tendo como único sócio o Réu, que assume também a gerência da sociedade – cfr. certidão permanente de onde consta a Ap. …/20210112 relativa à constituição de sociedade e designação de membro de órgão social.
11 – Alguns clientes da Ré foram abordados pelo Autor, propondo-lhes os serviços da sociedade identificada em 9,
12 – (…) o que alguns aceitaram, tendo cessado a relação comercial com a Ré.
13 – O Autor propôs requerimento de injunção contra a Ré, tendo pago a taxa de justiça no valor de € 102,00, o qual foi julgado inepto. Não provado:
i – O Acordo descrito em 6 tenha sido celebrado no âmbito de um procedimento de injunção proposto pelo Autor contra a Ré.
ii – O Autor tenha gasto a quantia de € 350,00 em tentativas de cobrança do remanescente da quantia de que a Ré se declarou devedora.
2. Direito
2.1. Se a petição é inepta por falta de causa de pedir
Considera a Ré que a petição inicial é inepta por falta de causa de pedir [cclªs 1ª e 2ª]; argumenta que “é pedido o reconhecimento de uma dívida, mas em parte alguma a R. conhece o fundamento dessa pretensão, por total ausência de alegação fática nesse sentido”.
Esta questão foi apreciada e julgada em desfavor da Ré em sede de saneamento do processo. Consignou-se, então: “A ineptidão do requerimento inicial é uma exceção dilatória da qual decorre a nulidade do processo, determinante da absolvição do réu da instância – artigos 186.º, n.os 1 e 2, 196.º, 200.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), do Código de Processo Civil. No que aos autos interessa, o artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, que dispõe que é inepta a petição inicial quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir. A causa de pedir, de acordo com o artigo 581.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, constitui o ato ou facto jurídico de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer. Por outro lado, importa ter presente que o reconhecimento de dívida (artigo 458.º, n.º 1, do Código Civil) não configura um negócio jurídico unilateral constitutivo de obrigações, mas um negócio que faz presumir a existência dessa obrigação, invertendo o ónus da prova da existência do crédito. Isto é, o reconhecimento de dívida não constitui uma obrigação, mas tão-somente uma presunção de que esta existe. Daqui decorre que a obrigação de pagar determinado valor não decorre do reconhecimento de dívida, mas da relação subjacente àquele reconhecimento e que justificou o reconhecimento. No caso em apreço, na petição inicial, mais do que fazer referência a um reconhecimento de dívida (o qual seria insuficiente por si só), é concretizada, ainda que em traços largos e a carecer de concretização, a causa de pedir. Com efeito, na petição inicial é referido que a dívida em que assenta o reconhecimento de dívida decorre de uma cessão de quotas realizada a 19 de Maio de 2014, no âmbito da Ré, pessoa coletiva, e na qual o Autor também renunciou à gerência. Diga-se que, questão diferente da falta de indicação da causa de pedir, é a necessidade de a mesma ser aperfeiçoada, o que, de modo mais condizente com a celeridade que deve caracterizar este tipo de ações, pode ser suprido na instrução do processo – artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil. Pelo exposto, improcede a alegada exceção de ineptidão da petição inicial.”
A decisão recorrida considerou que a petição inicial carecia de aperfeiçoamento e que, atenta a natureza da ação, este aperfeiçoamento poderia ocorrer na instrução do processo, mas não era inepta por falta de causa de pedir.
Os recursos visam impugnar as decisões judiciais (artigo 627.º, n.º 1, do CPC, isto é, traduzem “uma contestação concreta contra um ato de vontade jurisdicional que se considera errado”[1]; ora, contestar a decisão é afirmar as razões porque dela se discorda, rebater os fundamentos e razões que constituem os antecedentes lógicos do dispositivo propriamente dito, o que não ocorre, por definição, quando a discordância se cinge meramente ao resultado ou dispositivo, como no caso se verifica.
A Ré coloca no recurso a questão da ineptidão da petição inicial tal como a colocou na contestação e, assim, com total desprendimento do juízo empreendido pela decisão recorrida, como se esta não existisse; numa palavra, a Ré discorda da decisão que julgou improcedente a exceção da nulidade de todo o processo mas não contesta os seus fundamentos o que bastaria para não lhe reconhecer razão quanto a esta questão.
Ainda assim, a ação tem causa no acordo levado aos factos provados sob o n.º 6 e se é certo que as partes o denominaram como “Acordo de reconhecimento de dívida”, ele comporta muito mais do que uma simples declaração unilateral de reconhecimento de dívida (artigo 458.º, n.º 1, do Código Civil), a que falta a alegação da causa como sustenta a Ré; é, por definição, um acordo, assinado pelo Autor e pela Ré e não uma simples declaração unilateral da Ré e se é certo que dele consta a obrigação da Ré pagar a quantia de que se confessou devedora [cláusula 3ª], também resulta, para o Autor, a sujeição de, após o pagamento, se considerar “devidamente ressarcido pela cedência de quotas de 2017, dando a respetiva quitação” [cláusula 7ª] e a obrigação de “guardar sigilo relativamente a quaisquer informações respeitantes” à Ré “sendo-lhe, nomeadamente, vedado efetuar quaisquer reproduções, cópias ou distribuição de documentos que lhe pertençam”, sob pena da obrigação de indemnizar a Ré por perdas e danos [cláusula 6ª].
Trata-se, pois, de um contrato por via do qual as partes, no uso da sua liberdade contratual, ajustaram reciprocamente os seus interesses e, como tal, deverá ser pontualmente cumprido (artigos 405.º e 406.º do Código Civil).
Ora, a ação tem causa no incumprimento deste contrato e, como tal, não se vê, nem se reconhece, que lhe falte causa de pedir.
Aliás, a Ré defende, a um mesmo tempo, que o acordo comporta uma mera declaração unilateral da Ré de “reconhecimento de dívida” e que o Autor violou as obrigações que para ele decorriam do acordo, o que revela bem a ambiguidade da sua construção: negócio unilateral a que falta causa para efeitos de responsabilização da Ré e acordo gerador de obrigações para efeitos de responsabilização do Autor.
A petição não é inepta por falta de causa de pedir.
O recurso improcede quanto a esta questão.
2.2. Se a sentença é nula por falta de fundamentação
A Ré considera nula a sentença por falta de fundamentação; argumenta que a sentença não explica “a razão pela qual os recibos juntos aos autos não constituíram elemento que conduziram a decisão diversa (…) matéria que constituía o cerne do litígio” [cclªs 3ª e 4ª].
A lei considera nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão [artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC)].
Não constitui, no entanto, causa de nulidade da sentença toda e qualquer omissão de fundamentação; a ausência de motivação que determina a nulidade da sentença é a omissão total ou absoluta, como se infere da expressão “não especifique os fundamentos”. “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”[2]. “A falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afeta o valor legal da sentença"[3].
A sentença recorrida especifica os fundamentos de facto que justificam a decisão [como se alcança do registo que deles supra se efetuou – ponto III-1.] e indica as razões de direito pelas quais julgou procedente o pedido do Autor e improcedente a defesa da Ré.
O erro apontado à sentença – “não explica a razão pela qual os recibos juntos aos autos não constituíram elemento que conduziram a decisão diversa” –admitindo para efeitos de raciocínio a sua existência, comportaria uma motivação deficiente da sentença e não uma omissão total ou absoluta de motivação, como é próprio da nulidade suscitada.
Com o fundamento apontado a sentença não é nula, improcedendo o recurso quanto a esta questão.
2.3 Se a obrigação da Ré se mostra extinta por compensação
Considera a Ré que “deveria ter sido proferida decisão diversa, considerando o acordo celebrado entre Autor e Ré além de um valor acordado pagar em Prestações mensais e sucessivas (…) constituía as partes em outras obrigações” [cclª 7ª].
Integrando a conclusão com a motivação do recurso, a Ré defende que a circunstância de o Autor haver violado as cláusulas do contrato em que se obrigou a guardar sigilo relativamente a informações confidenciais, causando-lhe prejuízos patrimoniais com a consequente obrigação de indemnizar, extinguiu, por compensação, o crédito que faz valer nos autos.
A compensação é causa de extinção das obrigações.
Dispõe o artigo 847.º do Código Civil:
“1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos: a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material; b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade. 2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente. 3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.”
O devedor que seja simultaneamente credor da contraparte pode compensar a sua divida, “pois de outro modo correria o risco de não ver o respetivo crédito inteiramente satisfeito, caso se desse, entretanto, a insolvência da contraparte.”[4]
Para que a compensação se verifique é necessário: i) a existência de dois créditos recíprocos; ii) a exigibilidade do crédito do autor da compensação; iii) que as obrigações sejam fungíveis e da mesma espécie e qualidade; iv) a não exclusão da compensação pela lei; v) a declaração da vontade de compensar.[5]
A existência dos créditos ou das duas dívidas, como se estabelece no n.º 2 do preceito em referência, constitui requisito primeiro da compensação de créditos.
No caso, a Ré não alega, nem demonstra, ser credora do Autor; alega a existência de um direito a indemnização – por prejuízos não apurados, nem quantificados – e é esse hipotético crédito decorrente de uma obrigação (ainda) não constituída que pretende opor ao pagamento da dívida que o Autor lhe exige; dito de outro modo, a Ré visa compensar o crédito do Autor com um crédito que não é judicialmente exigível. “I- Para que a compensação possa funcionar é necessário que os créditos objeto de compensação existam e que o crédito do compensante seja exigível judicialmente. II- Tal condicionalismo não existe,quando o executado, opoente à execução, invoca, para compensação, um crédito cujo reconhecimento está dependente de decisão judicial.”[6]
Judicialmente inexigível, o crédito não é compensável.
O recurso improcede quanto a esta questão.
2.4. Se o Autor litiga de má-fé
Argumenta, por último a Ré que o Autor deduz pretensão “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, “alterando a verdade dos factos e omitindo factos relevantes para a boa decisão da causa, numa clara atitude de litigância de má-fé” [conclusão 10ª] e conclui a final no item que denominou de dispositivo: “não havendo litigância de má-fé de nenhumas as partes deverão ser absolvidas nesse sentido, assim se fazendo, JUSTIÇA!”
Dos autos não decorrem quaisquer factos ou ocorrências – nem a Ré o afirma – que permitam concluir pela litigância de má-fé do Autor e a decisão recorrida concluiu pela inexistência da litigância de má-fé de ambas as partes como a Ré, em última análise, defende.
Assim, não há razões para alterar o decidido.
Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.
3. Custas
Vencida no recurso, incumbe à Ré/recorrente o pagamento das custas [artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC].
Sumário da responsabilidade do relator (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)
IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida
Custas pela Recorrente.
Évora, 12/7/2023
Francisco Matos
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Rui Machado e Moura
__________________________________________________
[1] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª ed. pág. 71.
[2] A. Reis, Código Processo Civil anotado, 1952, vol. V, pág. 140.
[3] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 3ª ed., vol. III, pág. 194.
[4] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed. pág. 1099.
[5] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1994, 2º vol., pág. 221.
[6] Ac. STJ de 15/01/2020, (proc. 1135.16.3T8LLE.A.E1.S2), disponível em www.dgsi.pt.