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ABUSO DE DIREITO
GARANTIA DO PAGAMENTO
Sumário
I. Beneficiando a instituição bancária mutuante em contrato de mútuo para aquisição de habitação própria de hipoteca constituída sobre a quota de metade indivisa de cada um dos devedores, tendo sido entretanto instaurada por terceiro execução contra um deles, aí tendo sido penhorada a quota e adjudicada à credora hipotecária, com o consequente cancelamento do ónus, não se verifica diminuição da garantia do crédito justificativa da perda do benefício do prazo prevista em cláusula acordada para os casos de perda ou diminuição de garantia. II. Tendo a instituição credora, sob invocação de que a hipoteca vigente, incidindo sobre a quota da outra co-devedora, é insuficiente para garantir o remanescente do crédito porque as duas quotas têm valor muito inferior ao todo, o que infere do produto da venda alcançado na precedente execução, verificando-se, na prática, uma diminuição da garantia, tendo assim declarado o vencimento antecipado do crédito e instaurado execução contra também o outro devedor quando o contrato se encontrava a ser escrupulosamente cumprido, actua em abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio das posições jurídicas, a determinar a procedência dos embargos deduzidos. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 659/22.8T8BJA-A.E1[1] Tribunal Judicial da Comarca de Beja Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 4
I. Relatório
Por apenso à acção executiva que lhe é movida e a outro pela Caixa Geral de Depósitos, S.A, para cobrança coerciva da quantia de € 52.326,32, veio a executada (…), solteira, residente na Rua (…), lote 1, R/c, Dto., em Ourique, deduzir oposição por meio de embargos, tendo para tanto alegado a inexistência da, pela exequente invocada, diminuição da garantia em ordem a considerar antecipadamente vencidas todas as prestações do mútuo celebrado, pedindo que a execução seja julgada extinta e mantido o contrato nos precisos termos celebrados, com a restituição à embargante da quantia de € 2.119,32 (dois mil, cento e dezanove euros e trinta e dois cêntimos) relativa a juros indevidamente cobrados, acrescida de juros de mora.
Acusando a exequente de litigar com má fé, pediu ainda a condenação desta “nas legais consequências”.
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Recebidos liminarmente os embargos deduzidos, apresentou-se a embargada a contestá-los, aqui tendo defendido que ao abrigo da cláusula 14ª do documento complementar anexo ao contrato de mútuo podia considerar, conforme se verificou, antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento face à diminuição das garantias do crédito. Mais impugnou que a embargante não tenha beneficiado de adequada e atempada informação, concluindo que carecem de fundamento, não só os embargos deduzidos, como também a imputação de litigância de má fé, impondo-se a sua improcedência.
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Tendo o Sr. juiz anunciado o conhecimento antecipado do mérito da causa, veio na devida oportunidade a ser proferido douto saneador sentença, por cujos termos foram os embargos julgados procedentes e, consequentemente, determinada a extinção da execução quanto à embargante, tendo a embargada sido absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé.
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Inconformada, interpôs a exequente/embargada tempestivo recurso e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
A) Devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:
11. A quota de metade indivisa do co executado foi vendida por 28.125,00 euros.
12. A quantia exequenda à data da propositura da execução e após aplicação do produto da venda da quota referida em 11 cifrava-se em 52.326,32 euros.
B) O Tribunal a quo não ponderou devidamente o valor ainda em dívida e as garantias que subsistem após a venda da quota de metade indivisa do co executado.
C) À execução foi atribuído o valor de 52.326,32 euros, já após aplicação do valor recebido da venda daquela quota. Considerando que a quota do co-executado foi vendida por 28.125,00 euros, é perspectivável que a quota que remanesce não tenha valor muito superior e, portanto, torna-se insuficiente para garantir o remanescente em dívida, que é de quase o dobro.
D) Inexistem outras garantias reais ou pessoais, nomeadamente fiança.
E) Nos termos da cláusula 14.ª do documento complementar anexo ao contrato de mútuo, «A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente:
e) Propositura contra a parte devedora de qualquer execução, arresto, arrolamento ou qualquer outra providência judicial ou administrativa que implique limitação da livre disponibilidade dos seus bens;
f) Insolvência de qualquer dos devedores, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias do crédito.
F) A única garantia do empréstimo ficou consideravelmente diminuída, após a venda da quota do co-executado, não se vislumbrando qualquer abuso de direito nessa opção.
G) A responsabilidade dos devedores é solidária e do documento complementar anexo ao mútuo consta como “parte devedora” a identificação dos dois mutuários. Não pode dissociar-se um do outro, até porque consta do mútuo que o imóvel adquirido se destina exclusivamente a habitação própria permanente.
H) A execução contra um dos devedores e o vencimento da dívida quanto a ele terá forçosamente que produzir efeitos quanto aos restantes.
I) Vedando-se à Caixa o direito contratual de declarar vencido o empréstimo, beneficiar-se-ão os mutuários, pois estes continuarão a manter o imóvel por inteiro na sua posse, pagando uma prestação inferior na medida em que viram o seu crédito diminuído. Do lado oposto, a Caixa ficará prejudicada, pois continuará com o valor que despendeu empatado num direito cuja venda será praticamente impossível, pois, por regra de experiência comum, ninguém se prestará a adquirir metade de um imóvel nestas circunstâncias.
J) A hipoteca é um direito real de garantia e confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, com preferência sobre os demais credores (artigo 686.º do Código Civil).
K) A diminuição das garantias do crédito afere-se em função de valores reais e não de uma posição jurídica em abstrato. De nada serve uma hipoteca se o bem hipotecado não tiver valor.
L) A diminuição do valor do bem hipotecado conduz inevitavelmente à diminuição da garantia do crédito.
M) A garantia do credor ficou diminuída no objeto e no valor e, daí, a aplicabilidade da cláusula 14.ª do documento complementar anexo ao contrato de mútuo, inexistindo qualquer abuso de direito no exercício do direito de declarar vencida a totalidade da dívida.
Indicando como violadas as disposições legais constantes dos artigos 334.º, 405.º e 686.º do Código Civil, concluiu pela procedência do recurso, devendo em consequência os embargos deduzidos ser julgados improcedentes.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se à embargada ora recorrente é lícito declarar vencida toda a dívida, avançando com a cobrança coerciva do montante liquidado contra ambos os mutuários.
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A recorrente pretende o aditamento à matéria de facto julgada provada dos dois factos que enuncia, que reputa de relevantes para a decisão, a saber: 11. A quota de metade indivisa do co-executado foi vendida por 28.125,00 euros. 12. A quantia exequenda à data da propositura da execução e após aplicação do produto da venda da quota referida em 11 cifrava-se em 52.326,32 euros.
Trata-se de factualidade adquirida nos autos, resultando designadamente do título de transmissão já mencionado no ponto 6 dos factos provados e da liquidação efectuada no requerimento executivo, que não mereceu oposição por banda da embargante. Deste modo, e reconhecendo que a especificação dos factos indicados clarifica a factualidade com relevância para a decisão, considerando ainda quanto dispõem os artigos 607.º, n.ºs 4 e 5 e n.º 2 do artigo 663.º do CPC, vai deferido o pretendido aditamento.
* II. Fundamentação 2.1 Factos provados
Dos autos resulta comprovada a seguinte factualidade, com relevo para a decisão a proferir:
1. A execução tem como título um contrato de mútuo com hipoteca datado de 13 de Julho de 2007, celebrado entre a Embargada-Exequente, na qualidade de mutuante, e os Embargante-Executada e Co-Executado na qualidade de mutuários, junto ao requerimento executivo como documento n.º 1 e aqui dado por reproduzido.
2. Do contrato consta, entre o mais, a seguinte cláusula décima-quarta: «1- A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente: a) Incumprimento pela parte devedora ou por qualquer dos restantes contratantes de qualquer obrigação decorrente deste contrato; b) Incumprimento pela parte devedora de quaisquer obrigações decorrentes de outros contratos celebrados ou a celebrar com a Caixa ou com empresas que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo; c) Venda, permuta, arrendamento, cedência de exploração ou qualquer outra forma de alienação ou oneração, sem o prévio acordo, escrito, da Caixa, dos bens que sejam ou venham a ser dados em garantia das obrigações emergentes do presente contrato e, bem assim, a sua desvalorização que não resulte de uso corrente; d) Alienação ou oneração pela parte devedora, sem consentimento da Caixa, de quaisquer bens imóveis que integrem ou venham a integrar o seu património; e) Propositura contra a parte devedora de qualquer execução, arresto, arrolamento ou qualquer outra providência judicial ou administrativa que implique limitação da livre disponibilidade dos seus bens; f) Insolvência de qualquer dos devedores, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias do crédito. 2- Caso ocorra qualquer uma das situações referidas no número anterior, a Caixa fica com o direito de considerar imediatamente vencidas e exigíveis quaisquer obrigações da parte devedora emergentes de outros contratos com ela celebrados».
3. O prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique sob a ficha n.º (…), da freguesia de (…), teve registada a aquisição, por compra, a favor do Co-Executado, divorciado, e da Embargante, solteira [Ap. …, de 2007/07/02].
4. Para garantia do mútuo supra aludido foi constituída hipoteca sobre a quota de metade indivisa do Co-Executado e sobre a quota de metade indivisa da Embargante [Ap. …, de 2007/07/02].
5. A metade indivisa do Co-Executado foi penhorada no âmbito do processo executivo n.º 114/12.4TBORQ do Juízo de Competência Genérica de Ourique do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, intentado por (…) – Representação e Comércio de Produtos Alimentares, Lda..
6. A Embargada, credora hipotecária reclamante na ação executiva supra aludida, adquiriu na mesma a quota de metade indivisa do Co-Executado pelo valor de € 28.125,00, nos termos do título de transmissão junto ao requerimento executivo como documento n.º 3, aqui dado por reproduzido.
7. Sobre o prédio supra aludido mostra-se registada a aquisição, por compra, a favor da Embargada, da quota de metade indivisa do Co-Executado [Ap. …, de 2020/03/27].
8. Sobre o prédio supra aludido mostra-se cancelada a hipoteca da Embargada sobre a quota de metade indivisa do Co-Executado [Ap. …, de 2020/03/27].
9. A Embargada declarou vencida a totalidade da dívida do mútuo supra aludido por carta datada de 15 de novembro de 2021, junta ao requerimento executivo como documento n.º 4 e aqui dada como reproduzida, nos termos da qual, entre o mais, consta o seguinte: «(…) face à diminuição das garantias do crédito, a Caixa considera nesta data imediatamente vencida e exigível a totalidade da dívida (…)».
9.a) Tendo por referência a data da propositura da execução, e após aplicação do produto da venda da quota referida em 6, o montante em dívida foi pela exequente liquidado em € 52.326,32.
10. A Embargante nunca deixou de liquidar pontualmente as prestações acordadas.
* De Direito Do vencimento antecipado da dívida e do abuso de direito
Dissentindo do decidido, insiste a exequente/embargada nesta via de recurso que lhe era lícito dar por antecipadamente vencida a totalidade da dívida e exigir contra ambos os mutuários o pagamento do montante apurado por se mostrar preenchida a previsão das alíneas e) e f) da cláusula 14.ª do contrato de mútuo celebrado com os executados.
Vejamos da razão que lhe assiste.
No que respeita ao fundamento previsto na alínea e), considerou-se na sentença recorrida que, atentando no seu teor literal e com apoio no elemento teleológico, a mesma seria de interpretar no sentido de que a execução ali mencionada, enquanto fundamento da resolução do contrato, teria de se correlacionar “com aquela concreta parte devedora, aquele concreto executado”. Acrescentou-se que, a não ser assim entendido, o accionamento da cláusula constituiria um abuso de direito, uma vez que, mantendo-se o cumprimento do contrato, inexistia direito do credor carecido de tutela que justificasse a sua resolução, tal como decidido foi já pelo STJ em caso com semelhanças, no acórdão ali também identificado.
Pois bem, a este propósito, e tendo embora presente que na carta a que se reporta o ponto 9. o fundamento invocado foi especificamente e apenas a diminuição das garantias do crédito da agora apelante, afigura-se que o teor literal da cláusula em apreciação aponta no sentido por esta defendido, uma vez que nela se prevê, verificada qualquer uma das situações elencadas, o vencimento de toda a dívida. E tal interpretação, considerando que não se apurou a vontade real das partes, encontra apoio quando se considerem os critérios interpretativos consagrados nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil[2], sendo o sentido que um declaratário normal, colocado na posição dos executados, declaratários reais, extrairia da cláusula em pauta. Com efeito, estando em causa a responsabilidade solidária dos mutuários e sendo o património dos devedores -de ambos- a garantia do cumprimento das obrigações assumidas (cfr. artigo 601.º), afigura-se que a execução contra um deles, fazendo perigar essa garantia, seria suficiente, na economia da cláusula que se aprecia, para conceder à credora mutuante a faculdade de fazer vencer antecipadamente a dívida – “toda a dívida”, conforme as partes fizeram constar. Daí que a alusão a “parte devedora” abranja um ou ambos os mutuários, sentido com que a cláusula deve valer.
Do exposto não se retira, porém, que o exercício do direito não possa ser abusivo, atendendo às circunstâncias concretas do caso, tendo em conta designadamente o facto essencial do contrato continuar a ser pontualmente cumprido pela embargante. Trata-se, todavia, e em nosso entender, de questão que aqui não assume relevância, uma vez que, tendo a execução prosseguido e nela tendo a ora apelante feito valer a garantia do seu crédito, com o consequente cancelamento da hipoteca que incidia sobre a quota do executado, o que está agora em causa é antes a diminuição da garantia do crédito remanescente, fundamento aliás invocado pela apelante na missiva que dirigiu aos executados e que de seguida apreciaremos.
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Resulta do segundo segmento da alínea f) da dita cláusula 14.ª que as partes previram a diminuição das garantias do crédito como fundamento do vencimento antecipado da totalidade da dívida, assim reproduzindo, ainda que em termos mais latos, o regime do n.º 1 do artigo 780.º.
Conforme correctamente se enunciou na sentença recorrida, a apelante beneficiava de hipoteca constituída sobre a quota de metade indivisa de cada um dos devedores. Tendo sido entretanto instaurada por terceiro acção executiva contra o co-executado, aí foi essa quota penhorada e vendida judicialmente livre de ónus, em conformidade com o que dispõe o artigo 824.º, n.º 2, do CC – sendo adquirente precisamente a apelante, ali credora reclamante – tendo a hipoteca sido expurgada do bem adquirido. E é precisamente da extinção desta hipoteca que a recorrente extrai o fundamento para actuar a cláusula que lhe permite fazer vencer antecipadamente toda a dívida e exigir o seu pagamento aos devedores, face à consideração que daí resultou diminuição da garantia do seu crédito. Trata-se de entendimento, antecipa-se, que não podemos secundar.
Acompanhando também aqui a sentença recorrida, importa esclarecer que, conforme anotam os Profs. Antunes Varela e Pires de Lima em comentário ao artigo 780.º do C.C.[3], que prevê a perda do benefício do prazo no caso de, por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito, não há lugar à aplicação do preceito “(…) na hipótese de a garantia concedida ao credor consistir numa hipoteca constituída por dois devedores sobre as duas metades do mesmo prédio e de uma delas ter sido penhorada em execução movida por terceiro. O credor preferente é, neste caso, chamado à execução, nos termos do artigo 864.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, ainda que o seu crédito não esteja já vencido, nenhum prejuízo sofrendo assim com a penhora.
Tal corresponde precisamente à situação verificada nos autos, ou seja, a credora apelante tinha a garantia da hipoteca sobre a quota do co-executado, que fez valer na execução que contra este foi instaurada, mantendo-se naturalmente aquela que incidia sobre a quota da co-devedora, aqui embargante. Não ocorreu assim diminuição de garantia, nem para efeitos do preenchimento da previsão do n.º 1 do artigo 780.º, nem da mais abrangente cláusula de que nos ocupamos, que prescinde da imputação ao devedor da causa de perda ou diminuição da garantia.
Acrescenta-se ainda que não é a circunstância da quota do executado ter sido vendida na acção executiva por um valor bastante inferior ao crédito garantido que favorece a posição da recorrente, pois nada garante que o bem hipotecado, seja uma quota ou o todo, venha a atingir na venda forçada o preço suficiente para satisfazer a globalidade do crédito garantido.
Mas mesmo que se reconhecesse razão à apelante quando alega que a hipoteca vigente, incidindo sobre a quota da co-devedora ora embargante, é claramente insuficiente para garantir o remanescente do crédito porque as duas quotas têm valor muito inferior ao todo, o que se infere do produto da venda alcançado na precedente execução, verificando-se, na prática, uma diminuição da garantia, a conferir-lhe o direito de declarar antecipadamente vencida a totalidade da dívida e exigir o seu pagamento nos termos da cláusula invocada, ainda assim, secundando o juízo formulado na decisão sob recurso, impunha-se considerar que no concreto circunstancialismo dos autos a recorrente exerce o seu direito em claro abuso.
Vejamos:
Nos termos do artigo 344.º, o exercício de um direito é ilegítimo quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico destes. O abuso, sendo um instituto puramente objectivo, não depende da culpa do agente nem da verificação de qualquer elemento específico subjectivo; surgindo como concretização da boa-fé, apresenta-se afinal como uma “constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima”[4]. “Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa”[5].
Das situações típicas a propósito das quais o abuso de direito tem sido chamado a intervir, e mediante as quais o conceito vem sendo densificado, é possível destacar uma categoria particular -a do desequilíbrio no exercício de posições jurídicas- que “constitui um tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa fé”[6]. Comporta diversos sub-tipos, a saber: i. o exercício danoso inútil; ii. dolo agit qui petit quod statim redditurus est[7]; iii. desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, sendo que em todas as hipóteses se pode considerar que o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente. O desequilíbrio está na origem do abuso[8].
Numa outra formulação, esta figura caracteriza-se “pela ocorrência de circunstâncias extraordinárias que fazem com que o exercício do direito dê origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo)” (do acórdão deste TRE de 24 Maio de 2018, processo n.º 1285/11.2TYLSB-I.E2, subscrito pela ora relatora como 2.ª adjunta).
De referir, por último, que situações não claramente integráveis nas categorias usualmente identificadas mas com zonas de sobreposição, poderão, ainda assim, reconduzir-se a um exercício abusivo do direito invocado pelo seu titular, posto que se verifique violação da boa fé com a intensidade requerida, posto que o reconhecimento do direito, naquela concreta situação, defraude a ordem jurídica, quer na intencionalidade com que o instituiu e reconheceu, quer no que respeita às exigências de lisura e probidade que impõe e constituem limite ao seu exercício.
De volta ao caso dos autos, verifica-se que, tendo a exequente/embargada constituído a garantia das hipotecas sobre as quotas de cada um dos executados sobre o imóvel por estes adquirido em 2007 para garantia do empréstimo então concedido, as prestações foram sendo pontualmente pagas até que a própria apelante se recusou a recebê-las.
Por outro lado e, a nosso ver, relevantemente, importa ter presente que a quota do executado foi adjudicada à exequente/embargada, que é assim a titular de uma quota correspondente a metade do imóvel. A prosseguir a execução de que estes autos são apenso, a quota da embargante, que a própria recorrente vaticina que não atingiria valor superior à por si adquirida na execução anterior, seria muito provavelmente adjudicada à própria – podendo em qualquer caso preferir na venda (cfr. artigo 1409.º) – tornando-se então a titular do direito de propriedade sobre o prédio e, também aqui com elevada probabilidade, ainda credora do remanescente. Ou seja, a recorrente considera legítima a execução instaurada para cobrança da dívida antecipadamente vencida porque a quota da executada, na sua avaliação, não garante o remanescente do crédito, mas olvida convenientemente que adquirindo duas metades ficaria dona do todo, que a própria reconhece ter valor muito superior, e ainda, com elevado grau de probabilidade, credora dos executados mutuários, isto depois de 15 anos de cumprimento pontual do empréstimo concedido.
Tal como se considerou no aresto do STJ de 11 de Outubro de 2022 (processo n.º 3774/19.1T8LSB.L1.S1, em www.dgsi.pt), que versou sobre cláusula de teor idêntico àquela que ora nos ocupa, ainda que o fundamento tenha sido então a declaração de insolvência de um co-devedor, reconhecendo embora que a mesma afasta o regime do artigo 782.º, dada a natureza supletiva da norma, a sua invocação para provocar a perda do benefício do prazo constitui, na situação dos autos, um exercício abusivo do direito concedido ao credor.
Consignou-se no identificado aresto, aqui com directa aplicação, que haveria que atender “à disparidade de poder entre as partes na fixação do conteúdo do contrato, à circunstância de a cláusula em litígio não ter sido objeto de uma negociação individualizada, pois fazia parte de um contrato de adesão, que os mutuários se limitaram a subscrever, e, ainda, que da matéria de facto fixada não consta que tenham sido cumpridos os especiais deveres de informação (artigo 6.º do DL n.º 486/85, de 25-10, em torno do significado e das implicações desta cláusula para os co-devedores, que pedem empréstimo para aquisição de casa de morada de família, como sucedeu no caso vertente.
Para além do enquadramento jurídico referido, que permite fundamentar a inferioridade situacional da autora e do seu companheiro como consumidores de um bem essencial, importa ter em conta que a autora, ora co-devedora, (…), nunca deixou de pagar as prestações do empréstimo a que estava vinculada (…). Pelo contrário, foi a ré que deixou de cobrar as prestações a partir do momento em que, unilateralmente, entendeu estar vencida antecipadamente a totalidade das prestações (…).
Por outro lado, é manifesto que o Banco não sofreu qualquer prejuízo decorrente da insolvência do co-devedor, não se vislumbrando qual a utilidade para a caixa de fazer cessar o benefício do prazo”.
Pese embora no caso que nos ocupa o crédito não esteja provido de garantias pessoais, como ocorria na situação sobre que versou o acórdão vindo de citar, a verdade é que, conforme se fez notar, o empréstimo foi sendo pontualmente cumprido e a exequente é a titular do direito de propriedade sobre a quota adquirida na execução precedente, inexistindo diminuição de garantia que permita fazer actuar a cláusula, exercício que, no assinalado contexto, sempre seria abusivo. Com efeito, permitir que a recorrente viesse exigir à embargante o cumprimento imediato da totalidade da dívida, cujo vencimento antecipado provocou, resultaria num sacrifício injustificado para esta, contraente fiel, e num injusto benefício para aquela, conforme se crê ter demonstrado, acentuando o desequilíbrio das posições das partes contraentes e resultando num abuso da posição da recorrente que a ordem jurídica não autoriza.
Apenas num ponto se reconhece razão à exequente: quando argumenta que, tendo adquirido a quota de metade do prédio, este se encontra ocupado pelos executados. Trata-se, no entanto, de questão a resolver noutra sede, tendo eventualmente direito a uma compensação por essa ocupação, mas que não constitui fundamento para accionar a cláusula de perda do benefício do prazo em relação à aqui embargante.
Em suma, conforme com acerto se sintetizou na sentença apelada: “(…) sempre haveria, na apreciação do enquadramento geral da relação entre as partes, Embargante e Embargada, chamando novamente à colação o critério de decisão exposto no acórdão supracitado, abuso da posição jurídica do credor que (i) se faz valer da hipoteca, (ii) é pago em conformidade e (iii) o remanescente do crédito continua a ser oportunamente liquidado pela co-devedora, (iv) mantendo-se a hipoteca sobre a sua quota parte de compropriedade. Enfim, não se vislumbra, da factualidade alegada, como fique o credor prejudicado. Mas, por outro lado, já é notória a fragilidade iníqua da posição da Embargante: assiste à cessação contratual não obstante o seu pontual cumprimento. Principalmente, quando o credor não tinha o dever de cessar o contrato [a cláusula simplesmente legitimava-o a poder declarar o vencimento antecipado], não havendo qualquer efeito automático nesse sentido. Portanto, seguindo-se por esta via, a devedora continua a cumprir, o credor a receber e, se e quando quiser, pode colocar termo ao contrato, ficando a devedora numa verdadeira e injustificada sujeição ao direito potestativo do credor. Não poderia, também por esta razão, de desequilíbrio injustificado no sinalagma jurídico, o direito deixar de censurar a invocação de perda do benefício do prazo. E, não o podendo invocar, a dívida exequenda carece de exigibilidade perante a Embargante.”
Improcedendo todos os fundamentos do recurso, resta confirmar a douta sentença recorrida.
* III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida. Custas a cargo da apelante, que decaiu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). * Sumário: (…)
Évora, 12 de Julho de 2023
Maria Domingas Simões
Maria Rosa Barroso
Ana Margarida Leite
__________________________________________________
[1] Sr.ªs Juízas Desembargadoras Adjuntas:
1.ª Adjunta: Dr.ª Rosa Barroso;
2.ª Adjunta: Dr.ª Ana Margarida Leite.
[2] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[3] In Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição revista e atualizada, 1986, Coimbra Editora, pág. 31.
[4] Na síntese do Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/
[5] Idem.
[6] Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso…”.
[7] Age contra a boa fé o credor que exige uma prestação que deve restituir imediatamente ao devedor.
[8] Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso…”.