Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
COMPETÊNCIA MATERIAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
Sumário
- São os tribunais comuns, e não os tribunais administrativos, os materialmente competentes para apreciar os pedidos formulados nestes autos pelas AA., uma vez que a hipótese dos autos não se enquadra, de todo em todo, na previsão ou no âmbito de uma relação jurídica administrativa. - Com efeito, analisando a petição inicial constata-se que aquilo que está em discussão nestes autos não é a apreciação de actos praticados por sujeitos no exercício de poderes administrativos, mas, tão só, estamos perante um evidente litígio entre particulares e uma alegada violação do direito de propriedade dos AA., por parte da R., com todas as implicações jurídicas que isso possa acarretar, nomeadamente, as devidas correções registrais. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Relator: Rui Machado e Moura 1ª Adjunta: Ana Margarida Leite 2ª Adjunta: Maria Domingas Simões
P. 1755/22.7T8STB-B.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:
(…) e (…) vieram instaurar acção declarativa comum contra (…) alegando diversa factualidade tendente a demonstrar a sua propriedade sobre imóveis que identificam e a sua restituição aos AA. e, por via disso, pedindo a condenação da R.:
a) a reconhecer que o prédio, ora, identificado com o artigo (…), da freguesia de (…), Setúbal, actualmente, correspondente à descrição n.º (…), da freguesia de (…), Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial, faz parte do acervo patrimonial das heranças indivisas abertas por óbito de (…) e (…);
b) a restituir tal prédio totalmente livre e devoluto aos acervos hereditários referenciados, de molde a que o mesmo seja partilhado;
c) na abstenção da prática de qualquer acto próprio de um proprietário e, nomeadamente, que impeça ou diminua a disponibilidade de tal prédio; e ainda
d) seja ordenada a actualização registral do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), da freguesia de (…), concelho de Setúbal, com a inclusão da inscrição matricial n.º (…), em face da efectiva correspondência;
e) seja ordenado o cancelamento da inscrição a favor da R. do prédio correspondente ao artigo matricial n.º (…) e, concomitantemente, ordenada a devida correcção do artigo matricial do prédio propriedade da R., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), da freguesia de (…), concelho de Setúbal, anteriormente, correspondente ao artigo … (rústico).
Devidamente citada para o efeito a R. veio contestar, tendo suscitado, nomeadamente a incompetência em razão da matéria do tribunal a quo e sustentando que aquilo que os AA. pretendem com a presente ação é alterar a titularidade das cadernetas prediais relativas aos artigos (…) e (…), prédios ambos inscritos a favor da R., por este último artigo ter derivado de destaque daquele, sendo que a titularidade de artigos matriciais consubstancia relação jurídica com órgãos administrativos da administração central do Estado, designadamente, com a Autoridade Tributária, cujas decisões são passíveis de impugnação administrativa ou judicial, esta junto dos tribunais administrativos e fiscais, pelo que se verifica a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, cuja procedência determina a absolvição da R. da instância, nos termos do disposto no artigo 278.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C..
No despacho saneador a M.ma Juiz a quo julgou improcedente a excepção dilatória supra referida e, em consequência, declarou a competência do tribunal em razão da matéria.
Inconformada com tal decisão dela apelou a R., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões.
1.ª No âmbito dos presentes autos, vieram os AA. pedir a condenação da R. a:
a) “Reconhecer que o prédio identificado com o artigo (…), da freguesia de (…), Setúbal, atualmente correspondente à descrição n.º (…), da freguesia de (…), Setúbal, da 1.º Conservatória do Registo Predial, faz parte do acervo patrimonial das heranças indivisas abertas por óbito de (…) e (…);
b) Restituir tal prédio totalmente livre e devoluto aos acervos hereditários referenciados de molde a que o mesmo seja partilhado;
c) A R. condenada na abstenção da prática de qualquer ato próprio de um proprietário e, nomeadamente, que impeça ou diminua a disponibilidade de tal prédio;
d) Ordenada a atualização registral do prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), da freguesia de (…), concelho de Setúbal, com a inclusão da inscrição matricial n.º (…), em face da efetiva correspondência;
e) Ordenado o cancelamento da inscrição a favor da R. do prédio correspondente ao artigo matricial n.º (…) e, concomitantemente, ordenada a devida correção do artigo matricial do prédio propriedade da R., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º (…), da freguesia de (…), concelho de Setúbal, anteriormente correspondente ao artigo … (rústico)”.
2.ª Da análise dos pedidos formulados, resulta que o que os AA. pretendem é ver reconhecido que o artigo matricial (…) corresponde ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), sua propriedade.
3.ª Os AA. não pedem que lhes seja reconhecida a propriedade sobre o prédio da R., descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º (…), antes querem que o artigo matricial inscrito neste prédio passe a constar no seu prédio.
4.ª Do ponto de vista registral, não existe qualquer litígio, porquanto, cada parte é dona do seu prédio: os AA. são donos do prédio descrito com o n.º (…) e a R. é dona do prédio descrito com o n.º (…), ambos da freguesia de (…), concelho de Setúbal – cfr. Docs. 6 e 31 juntos com a petição inicial.
5.ª De onde se conclui que o que os AA. verdadeiramente pretendem, de forma travestida, é alterar a titularidade dos artigos matriciais, legitimamente inscritos a favor da R..
6.ª As matrizes prediais encontram-se reguladas nos artigos 12.º e seguintes do CIMI, de onde resulta consistirem num mero registo da Autoridade Tributária para efeitos puramente fiscais e que a competência para a inscrição pertence ao chefe de finanças.
7.ª Desta forma e nos termos do disposto no artigo 148.º do Código de Procedimento Administrativo, a inscrição e alteração de matrizes prediais é um verdadeiro e próprio acto administrativo, praticado pela administração directa do Estado no âmbito de poderes jurídico-administrativos.
8.ª Por sua vez, o artigo 4.º, n.º 1, al. b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos estabelece a competência destes para fiscalizar a legalidade de actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de Direito administrativo ou fiscal.
9.ª Sendo certo que, conforme supra alegado, a inscrição e alteração de matrizes é um acto jurídico emanado pela Autoridade Tributária ao abrigo das disposições constantes do Código de Procedimento Administrativo.
10.ª Com efeito, não estando em causa nada mais que não o reconhecimento da titularidade de artigos matriciais, o tribunal competente é o administrativo e fiscal e não o judicial.
11.ª Nestes termos e nos demais de Direito que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente, ser a decisão que julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal ser revogada e substituída por outra que declare a competência do tribunal administrativo.
Pelos AA. não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Foram colhidos os vistos junto das Ex.mas Juízes Adjuntas – cfr. artigo 657.º, n.º 2, do C.P.C..
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1][2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3][4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso. No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela R., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se o tribunal a quo deve ser considerado materialmente incompetente para apreciar os pedidos formulados pelos AA. na presente acção, sendo competentes para o fazer os tribunais administrativos e fiscais, devendo, por isso, revogar-se a decisão recorrida.
Apreciando, de imediato, a questão acima referida importa, desde já, dizer a tal respeito que, face ao estipulado no artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República, os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens jurídicas.
Por sua vez, estatui o artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – cfr., no mesmo sentido, o artigo 64.º do C.P.C..
Acresce que no artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República é afirmado que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Também o artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) estabelece que os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais.
E, a este propósito, importa citar Vieira de Andrade, o qual afirmou que a nossa ordem jurídica optou claramente por uma jurisdicionalização plena, especializada e global da resolução das questões jurídicas decorrentes das relações administrativas de autoridade, no contexto de um sistema de administração executiva, pois que os tribunais administrativos são verdadeiros tribunais (artigo 209.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República), são tribunais comuns em matéria administrativa (artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República) – cfr. A Justiça Administrativa, 1998, pág. 16.
Nos termos da legislação ordinária incumbe-lhes uma função caracteristicamente jurisdicional: a de, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (artigo 3.º do ETAF).
É constitucionalmente garantida aos administrados a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (artigos 268.º, n.º 4 e 20.º da Constituição da República e artigo 12.º do Código do Procedimento Administrativo).
Para aferir da competência em razão da matéria, no caso dos autos, devemos lançar mão, também, dos já citados artigos 40.º da LOSJ e 64.º do C.P.C., e ter em conta as palavras do Prof. Alberto dos Reis quando, a dado passo, refere que: “a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição de lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial” – cfr. CPC Anotado, vol. I, pág. 201.
Por isso, face às normas legais supra referidas, fácil é concluir que a fixação da competência para o conhecimento da presente acção depende da natureza da relação jurídica que na mesma se discute. Se essa relação jurídica for uma relação jurídica administrativa, o conhecimento da acção pertencerá à jurisdição administrativa. Se for uma relação jurídica privada, o conhecimento pertencerá à jurisdição comum.
E, a distinção entre relações jurídicas administrativas e relações jurídicas privadas decorre, grosso modo, dessa relação provir da prática de actos de gestão pública ou, então, de actos de gestão privada.
Deste modo, a existência de várias categorias de tribunais pressupõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.
Ora, tem sido reafirmado pelo Tribunal de Conflitos, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Por isso, tal como foi referido, designadamente, no Acórdão do Tribunal de Conflitos, Proc. 8/14, datado de 1/10/2015, disponível in www.dgsi.pt, a competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo.
Ora, tal como os AA. a configuram, estamos perante uma causa no âmbito dos direitos reais, pois aqueles alegam factos que visam acautelar o seu direito de propriedade sobre os imóveis identificados nos autos, e salvaguardar os direitos àqueles inerentes, com a sua restituição aos AA. por parte da R..
Com efeito, no caso em apreço, constata-se que a relação jurídica litigada não é de direito administrativo, mas de direito privado, ou seja, trata-se de uma acção de reivindicação, fundamentada na violação do direito de propriedade privada sobre imóveis e na sua restituição aos AA., a qual é merecedora de tutela jurídica, decorrente da conduta da R., pelo que materialmente competente é, indubitavelmente, o tribunal comum.
Na verdade, o que está em discussão nestes autos não é a apreciação de actos praticados por sujeitos no exercício de poderes administrativos, mas, tão só, estamos perante um evidente litígio entre particulares e uma alegada violação do direito de propriedade dos AA., por parte da R., com todas as implicações jurídicas que isso possa acarretar, nomeadamente, as devidas correções registrais.
Deste modo, atentas as razões e fundamentos supra elencados, forçoso é concluir que a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo – sendo, por isso, de manter – pelo que, nos termos do disposto no artigo 64.º do CPC, a competência material para conhecer da presente acção de reivindicação cabe, indubitavelmente, à jurisdição comum, in casu, ao Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Central Cível de Setúbal - Juiz 2.
Em consequência, improcedem in totum as conclusões do recurso apresentadas pela R., ora apelante, não tendo sido violados quaisquer preceitos legais.
***
Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário: (…)
Decisão:
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pela R., confirmando-se inteiramente a decisão proferida pela Julgadora a quo.
Custas pela R., ora apelante.
Évora, 12 de Julho de 2023
Rui Machado e Moura
Ana Margarida Leite
Maria Domingas Simões
__________________________________________________
[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, n.ºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, págs. 286 e 299).