I- Quando nos reportamos a deliberações nulas ou anuláveis, importa atender à espécie de vício de que enfermam, mas também a natureza do normativo em causa que possa ter sido violado.
II- Os vícios a atender são de procedimentos a observar, quer pelo modo como a deliberação se formou, necessariamente tendo em causa a convocação da assembleia que a produziu, e também aos termos como se decidiu, mas ainda do conteúdo, que se perceciona do decidido, considerando o devido enquadramento, maxime, legal, e respetiva disciplina para a deliberação em si, por sua vez, quanto ao normativo que possa ter sido violado pelo conteúdo do que foi deliberado, tanto se pode referir a disposições legais imperativas ou não, mas também a estipulações estatutárias.
III- A convocatória em sede de sociedades anónimas, enquanto chamamento para a assembleia, deverá ser realizada por anúncio publicado em sítio de acesso público, sem prejuízo de, estatutariamente, serem estipuladas outras exigências, caso de carta registada ou por meio de correio eletrónico.
IV- As deliberações abusivas configuram-se como aquelas que não violando disposições específicas da lei ou dos estatutos, se mostrem apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios, de obter uma vantagem especial para si ou para outrem em prejuízo da sociedade, ou de outros sócios, ou mais simplesmente prejudicar aquela ou estes, a não ser que se prove que a deliberação teria sido tomada sem os votos abusivos.
V- Existem duas espécies de deliberações abusivas, as apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios e as apropriadas para satisfazer o propósito tão só de prejudicar a sociedade ou os sócios, as chamadas deliberações emulativas
VI- Ambas as espécies têm pressupostos subjetivos, na 1.ª espécie, o propósito é o de alcançar vantagens especiais, e, na 2.ª espécie, o de causar prejuízos, e objetivos, isto é, que sejam objetivamente apropriadas a satisfazer os referidos propósitos.
VII- Estando o nosso sistema processual civil marcado pela teoria da substanciação, exige-se ao autor a indicação específica ou concretos dos factos constitutivos do direito que pretende fazer valer em juízo, procedendo aí à respetiva demonstração.
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I - Relatório
1. AA veio intentar ação declarativa de condenação com processo comum contra QUINTA DO PAÇO – EMPREENDIMENTOS TURÍSTICOS E IMOBILIÁRIOS, S.A. pedindo que seja decretada a invalidade da(s) deliberação(s) tomada(s) no dia 26 de julho de 2019 e, desse modo a autorizar a extinção do inerente registo comercial que determinou a citada alteração do pacto social.
2. Alega para tanto que é acionista da Ré e titular de metade das ações, correspondendo a 50% do capital social dessa sociedade comercial, tendo tomado conhecimento que na sequência de uma alegada Assembleia-Geral havida em 26 de julho de 2019 foi alterado o objeto da sociedade, o capital e a forma de obrigar, desconhecendo a existência de tal Assembleia-Geral pois não foi notificado para a mesma nem recebeu qualquer convocatória, tendo as alterações referidas passado a constar do registo relativo à sociedade.
Tomou conhecimento destes factos pela consulta à certidão permanente comercial da sociedade solicitada em 18 de janeiro de 2022, não tendo sido notificado da respetiva ata.
Mais alega que é um cidadão ... com fraco domínio da língua portuguesa, e a R. uma sociedade anónima, com um número diminuto de acionistas, no caso dois, tendo comprado a participação social ao pai, que esteve na génese da sociedade e dos projetos para a mesma, e outro indivíduo português, igualmente com 50% do capital.
As deliberações registadas na sequência da aludida Assembleia-Geral são inválidas, contrárias à lei e acarretam-lhe um dano apreciável devido às alterações realizadas, tendo o filho do outro acionista sido nomeado administrador único, e alterada a forma de obrigar a sociedade, havendo rumores que a “Quinta do Paço” está a ser transacionada sem que disso tenha conhecimento.
Menciona ainda que antes da propositura da presente ação requereu procedimento cautelar que foi julgado improcedente.
3. Citada, a Ré não veio contestar, e em conformidade, foram considerados confessados os factos articulados pelo Autor.
4. Foi proferida sentença que julgando a ação procedente, declarou nulas as deliberações tomadas na Assembleia-Geral da Ré, no dia 26 de julho de 2019, registadas e convertidas nos termos das apresentações indicadas.
5. A Ré veio interpor recurso de apelação. O Autor não apresentou contra-alegações. Por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora foi julgado procedente o recurso, revogando decisão da sentença.
6. Vem ora o Autor interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações, as seguintes conclusões: (transcritas)
1 – Preliminarmente entende o recorrente que o acórdão não transitou em julgado pois que não estamos perante processo urgente nem perante quaisquer dos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º do C.P.C, contrariamente à indicação contida na certidão de trânsito em julgado datada de 9 de janeiro de 2023.
2 - A violação do art.º 638.º, n.º 1, do C.P.C determina violação do princípio constitucional da igualdade e dos princípios da imparcialidade, legalidade e contraditório, e, nestes termos a violação do princípio do contraditório gera nulidade processual prevista no art.º 195º nº 1 do C.P.C., pois manifestamente influiu na decisão proferida.
3 - Matéria esta da competência e uso de poder do Supremo Tribunal de Justiça que desde já se requer intervenção (art.º 674.º, n. º1, al. b), do C.P.C), aliás e cuja apreciação afigura-se claramente necessária para uma melhor aplicação do direito nesta matéria.
4 - O presente recurso centra-se na invalidade da deliberação social tomada em Assembleia sem a presença e conhecimento do aqui recorrente que alterou a forma de obrigar da sociedade de dois para apenas um administrador numa sociedade de apenas dois sócios.
5 - As deliberações que decorrem da lei não são colocadas em causa pelo recorrente apenas aquela deliberação que depende da vontade e voto informado, livre e esclarecido de ambos os sócios.
6 – Deste modo, a revista tem por fundamento as normas conjugadas dos artigos 671.º, 1, 3 (1.ª parte), 674.º, n. º1, al. b) e c), 676.º, n.º 3, 682.º, 683.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (adiante C.P.C.) e, alternativamente, revista excecional com fundamento o art.º 672.º, n.º 1, al. a), 2, al. b) do C.P.C.
7-No dispositivo do acórdão refere-se que “tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto”.
8 - Se bem se compreende a Relação ao referir o “enquadramento fáctico envolvente” só poderia estar a referir-se à matéria de facto provada, pois não estamos em crer que a Relação se estivesse a referir às alegações de recurso da ré, alegações essas que não foram sujeitas a contraditório - pois que, se a Relação ao referir o “enquadramento fáctico envolvente”, se quer referir aos argumentos da ré no recurso interposto, estamos perante uma violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art.º 3º, nº3, do C.P.C, geradora da nulidade processual prevista no art.º 195º nº 1 do CP.C., pois influiu na decisão proferida.
9 - Contudo, se a Relação se estivesse a referir à matéria provada nos autos, forçosamente teria de julgar o recurso improcedente não pelo facto de, tratando-se de uma sociedade anónima não se aplicarem as regras próprias desta figura comercial, mas pelo facto de ter ficado provado que a ré, sociedade anónima, é apenas constituída por dois acionistas (recorrente e o administrador autonomeado através da deliberação que o recorrente impugnou), que o recorrente não esteve presente na referida Assembleia-Geral, que tem um fraco domínio da língua portuguesa e que ficou surpreendido com o conhecimento da deliberação societária aprovada na referida Assembleia-Geral, a qual, só por esta factualidade teria de ser forçosamente inválida, por nulidade ou anulabilidade ou por configurar deliberação abusiva tendo em conta o enquadramento factual e matéria provada em primeira instância.
10 - Particularmente, o recorrente ficou surpreendido com a “autonomeação” para administrador único do outro acionista quando a sociedade anónima em causa tem apenas dois acionistas e quando o recorrente teve o cuidado de, na petição inicial, fornecer o “enquadramento fáctico envolvente” tendo a ré a oportunidade de ir ao processo contestar e apresentar o seu enquadramento fáctico e ambos os enquadramentos terem sido levados a audiência de discussão de julgamento - todavia, a ré optou estrategicamente por não comparecer no processo em primeira instância e apresentar o seu “enquadramento fáctico” no tribunal de recurso por forma a obter uma decisão que compreendesse tanto a matéria de facto como a de direito.
11 - Atendendo à factualidade provada nos autos, bem andou o tribunal em primeira instância que tendo presente que estamos perante uma sociedade com apenas dois sócios e aplicando-se o art.º 248.º do CSC igualmente às sociedade anónimas, bem decidiu em anular as deliberações, particularmente, a que diz respeito à “autonomeação” para administrador único do outro acionista quando a sociedade anónima em causa tem apenas dois acionistas, pois que quanto às restantes deliberações, por decorrerem da lei (a redenominação do capital social, o aumento de ambos os acionistas, em igual, do capital social para o mínimo legal de 50,000.00€ e conversão obrigatória das ações ao portador em nominativas) e “essenciais à subsistência da sociedade”, como bem refere o acórdão, não estariam em causa por decorrerem da lei e pelo facto do aumento do capital social para o mínimo legal ter sido realizado por igual (e repartido) entre ambos os acionistas.
12 - E tendo em conta a particularidade e sensibilidade da matéria alegada pelo recorrente mais se compreende a importância e relevância que reveste uma deliberação tomada numa sociedade anónima constituída apenas por dois acionistas.
13 - Repare-se que não estamos a falar de uma sociedade anónima comum onde existem vários acionistas, por vezes dezenas de acionistas e em certos casos mesmo para cima de uma centena de acionistas –vejam-se os casos das grandes instituições financeiras, de energia, da indústria, da banca, dos seguros, etc. – nestas compreende-se que as convocatórias sejam efetuadas mediante anúncio e conforme dispõe a lei nos termos dos artigos 377.º, 167.º e 375.º do Código das Sociedades Comerciais, adiante designado apenas por C.S.C.
14-Razões estas pelas quais se requer a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça pois constata-se ser claramente necessária para uma melhor aplicação do direito tendo em conta a especificidade factual dos presentes autos.
15 - Aliás, o processo de formação de uma decisão das pessoas coletivas só se concretiza através da deliberação, sendo esta, segundo PAULO OLAVO CUNHA, “um ato que exprime a confluência do maior número de vontades num certo sentido ou de um número de vontades igual ou superior à maioria que corresponda a mínimo predeterminado” - e, repare-se, no presente caso eram necessárias a confluência de duas vontades no mesmo sentido, ou seja, era necessária a participação dos dois únicos acionistas da sociedade comercial.
16 - A deliberação que o recorrente considera ser inválida é precisamente aquela que depende da confluência da vontade de ambos os acionistas, ou seja, a alteração da forma de obrigar de dois para um acionista - tal deliberação ao ter sido tomada sem a presença, aceitação, votação e consentimento do recorrente, é manifestamente inválida; e é inválida por duas ordens de razão: por um lado, não foi regularmente submetida à votação e deliberação de ambos os acionistas não tendo o processo formativo deliberativo ter sido devidamente formado e, por outro lado, perante a deliberação operada apenas com a vontade de um dos acionistas, tal deliberação é manifestamente abusiva atendendo à existência apenas de dois acionistas na sociedade comercial em causa e ao facto da referida “autonomeação para administrador único” de um dos acionistas ir contra o interesse social da sociedade e beneficiar apenas um dos sócios.
17 - E manifestamente aquela deliberação tomada por apenas um dos acionistas que não decorre da lei, nomeadamente, a autonomeação de administrador único, a não ser inválida pela forma da convocatória, é-o, forçosamente, pelo conteúdo pois visa apenas satisfazer o propósito do sócio que, através do voto, retirou para si a vantagem social da sua autonomeação como administrador único pois que por força dessa deliberação, foi alterada a forma de obrigar da sociedade passando da assinatura conjunta de dois administradores para apenas a assinatura de um administrador único.
18 - Manifestamente, tal deliberação é inválida também por ser abusiva, considerando-se uma deliberação social abusiva como “toda a deliberação, formal e objetivamente correta, desarmónica com o fim social, que causa um prejuízo à sociedade ou aos acionistas nessa qualidade de acionistas”.
19 – O abuso do direito ocorre no âmbito das deliberações sociais quando estas não visem a prossecução do interesse social e/ou violem os limites da boa-fé, dos bons costumes ou o fim social e económico do direito, ofendendo expressamente o sentido ético-jurídico.
20-Essas deliberações, abusivas, por serem perturbadoras do normal funcionamento de uma sociedade, inserem-se no regime da anulabilidade, nos termos definidos no art.º 58º, n. 1, b) do C.S.C, o qual foi claramente pensado para os abusos praticados pelos sócios maioritários sobre os minoritários.
21 – Para que uma deliberação social não seja considerada abusiva, deve ter-se em conta o direito de voto dos sócios e a conclusão de que a deliberação tomada se manteria, mesmo sem os votos abusivos - e manifestamente se o aqui recorrente tivesse exercido o direito de voto, a alteração da forma de obrigar da sociedade para apenas um administrador único (a saber, para o outro sócio) não teria sido tomada.
7. Não foram apresentadas contra-alegações.
8. Cumpre apreciar e decidir, verificando-se que a questão da tempestividade da interposição do recurso se mostra ultrapassada.
*
II – Enquadramento facto-jurídico
1. da factualidade
O Tribunal da Relação, no Acórdão sob recurso, considerou como provada, (A restante matéria alegada e confessada não assume relevo para a apreciação do objeto da causa) a seguinte factualidade:
1 – O Autor é acionista da sociedade Ré, detentor e titular de metade das ações correspondentes a 50% do capital social da sociedade comercial.
2 – O Autor tomou agora conhecimento que, na sequência de uma Assembleia-Geral havida em 26/07/2019, foi alterado o objeto da sociedade, o aumento do capital, a forma de obrigar, a mudança de sede e a designação de membros de órgãos sociais.
3 – O Autor não foi notificado para a mesma por intermédio de carta registada com aviso de receção nem recebeu qualquer convocatória.
4 – O Autor não esteve presente na referida Assembleia-Geral.
5 – O Autor tomou conhecimento destes factos através da consulta à certidão permanente comercial da sociedade solicitada em 18/01/2022.
6 – O Autor é ... e distribui o seu tempo entre Portugal, nomeadamente no ... onde reside em ..., ... e ....
7 – O Autor tem um fraco domínio da língua portuguesa, compreendendo algumas palavras e expressões e inclusive fala o português de uma forma muito rudimentar, necessitando de tradução e apoio quando se trata de compreender na sua plenitude a língua portuguesa.
8 – A sociedade Ré tem o capital social repartido igualmente entre dois sócios.
9 – Correm rumores em que a “Quinta do Paço” está a ser transacionada sem que o Autor tenha disso conhecimento e tal poderá implicar um prejuízo para o Autor, pois todo o projeto foi idealizado e custeado pelo seu pai.
10 – O Autor ficou surpreendido quando tomou conhecimento das alterações societárias aprovadas na referida Assembleia-Geral.
2. do direito
1. O objeto do presente recurso, delimitado pelas respetivas conclusões, prende-se em aferir da (in)validade das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da Ré, ora recorrida, em 26 de julho de 2019.
Com efeito, as Instâncias divergiram no entendimento prosseguido.
Em sede de sentença, com reporte ao artigo 248, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), considerou-se que a Ré não tinha demonstrado, como lhe competia, que procedera à convocação do Autor para a Assembleia de 26 de Julho, através de carta registada remetida para a sua morada, determinando a nulidade das deliberações tomadas, nos termos do art.º 56, n.º1, do CSC.
O Tribunal da Relação de Évora no Acórdão, ora recorrido, considerou que a disciplina jurídica aplicada na Sentença respeitava às assembleias gerais das sociedades por quotas não sendo o caso dos autos, porquanto em causa estava a convocação de assembleia de uma sociedade anónima, não tendo o Autor, em termos de facto constitutivo do seu direito, logrado demonstrar que não fora observado o legal ou estatutariamente estipulado, enquanto no plano substantivo não tinha, de igual modo, invocado argumentação que permitisse concluir pela existência de vícios de conteúdo de tais deliberações, que importassem na respetiva invalidade.
O Autor/recorrente insurge-se contra tal apreciação, reiterando que a convocação não se mostrou devidamente realizada, mas mesmo que assim se entendesse, sempre a deliberação seria inválida pelo seu conteúdo por se configurar, de forma manifesta, uma deliberação abusiva, inserida no regime de anulabilidade, conforme o art.º 58, n.º1, b), do CSC, perturbando o normal funcionamento da sociedade, e em termos claros, pensada para os abusos praticados pelos sócios maioritários sobre os minoritários.
2. Debruçando-nos mais pormenorizadamente sobre o argumentário do Recorrente, por se mencionar no Acórdão recorrido o “enquadramento fáctico envolvente”, questiona o Autor se com tal aceção se estava a reportar aos argumentos trazidos pela Ré ao processo, em sede das alegações do recurso de apelação, sob pena da violação do princípio do contraditório, geradora de nulidade influindo na decisão proferida.
Para além do Autor não ter utilizado a prorrogativa de apresentar contra-alegações, mais relevante, sem dúvida, é a resposta encontrada no próprio Acórdão recorrido, que em sede de “fundamentação” da decisão sobre a matéria de facto consignou: “O recorrente reputa de falsa diversa matéria alegada. No entanto, face à situação de revelia, por aplicabilidade do disposto no artigo 567.º do Código Civil, têm de se considerar confessados os factos articulados pelo Autor, mostrando-se assim consolidada a matéria de facto”[1].
Deste modo, como aliás menciona o Recorrente, cumpre a este Tribunal aplicar, definitivamente, o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo Tribunal da Relação, conforme dispõe o art.º 682, do Código Processo Civil (CPC), inexistindo quaisquer das exceções previstas nesta última disposição legal.
2.1. Face ao quadro legal assim delimitado, entende o Recorrente que embora sendo a Ré, recorrida, uma sociedade anónima, não lhe devem ser aplicadas as regras que regem tal tipo de sociedades, tendo em conta que a Ré é apenas constituída pelo Autor e outro acionista, em paridade diga-se, que aquele tem fraco domínio da língua portuguesa, ficando surpreendido com o conhecimento das deliberações aqui em causa, principalmente a autonomeação para administrador único do outro acionista, o que por si só, ditaria a nulidade ou anulabilidade de tais deliberações.
Deveria, assim, haver uma especial sensibilidade, porquanto se está perante um modelo diferente ao comum das sociedades anónimas com múltiplos acionistas, que determina a convocação das assembleias nos termos legalmente consagrados, inexistindo deste modo, aqui, a confluência de vontades caracterizando a deliberação e a correspondente vinculação do acionista.
No que concerne ao conteúdo das deliberações, com a afirmação de vontade de apenas um acionista, face à aludida autonomeação de administrador único, verifica-se que foi retirada para o mesmo uma vantagem social, que não visando a prossecução do interesse social, ofende o sentido ético-jurídico, por violação dos limites da boa fé e dos bons costumes, e desse modo sendo tais deliberações abusivas, sujeitas ao regime da anulabilidade, art.º 58, n.º1, b), do CSC.
2.1.1. Em traços breves, quando nos reportamos a deliberações nulas ou anuláveis importa atender à espécie de vício de que enfermam, mas também a natureza do normativo em causa que possa ter sido violado, e assim tem-se como bom o entendimento[2] que os vícios a atender são de procedimentos a observar, quer pelo modo como a deliberação se formou necessariamente tendo em causa a convocação da assembleia que a produziu e também aos termos como se decidiu, mas ainda do conteúdo que se perceciona do decidido, considerando o devido enquadramento, maxime, legal, e respetiva disciplina para a deliberação em si, por sua vez quanto ao normativo que possa ter sido violado pelo conteúdo do que foi deliberado, tanto se pode referir a disposições legais imperativas ou não, mas também a estipulações estatutárias.
No que concerne à convocatória em sede de sociedades anónimas, decorre do disposto no art.º 377, n.º 2 e 167, do CSC, que enquanto chamamento para a assembleia, deverá ser realizada por anúncio publicado em sítio de acesso público, sem prejuízo de estatutariamente serem estipuladas outras exigências, caso de carta registada ou por meio de correio eletrónico, n.º 3, do aludido art.º 377, do CSC, não se questionando quanto ao sócio/acionista que entre os direitos que lhe assiste, está o de participar nas deliberações dos sócios, para além das restrições previstas na lei, art.º 21, n.º1, b), do CSC, estabelecendo-se quanto às sociedades anónimas que, por regra, cada ação corresponde um voto, art.º 384, nº1, do CSC.
Com relevância para os autos, em curta nota, no reporte ao teor do deliberado, e agora em crise, no que respeita às designadas deliberações abusivas, previstas no art.º 58, n.º1, b) do CSC, são aquelas que não violando disposições específicas da lei ou dos estatutos, se mostrem apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios, de obter uma vantagem especial para si ou para outrem em prejuízo da sociedade, ou de outros sócios, ou mais simplesmente prejudicar aquela ou estes, a não ser que se prove que a deliberação teria sido tomada sem os votos abusivos.
Resulta do enunciado legal “duas espécies de deliberações abusivas: as apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios e as apropriadas para satisfazer o propósito tão só de prejudicar a sociedade ou os sócios (as chamadas deliberações emulativas); tendo ambas pressupostos subjetivos, (na 1.ª espécie, o propósito é o de alcançar vantagens especiais; e, na 2.ª espécie, o propósito é o de causar prejuízos) e objetivos (têm que ser objetivamente apropriadas a satisfazer os referidos propósitos)[3].
Ressalta do aludido, essencialmente, que os sócios não devem atuar de forma incompatível com o interesse social ou com os interesses de outros sócios também relacionados com a sociedade, e se evidencia uma proibição de causar danos, em termos negativos, no afloramento de um dever de lealdade, assumindo também uma vertente positiva, quando em certas situações se prendem com a prossecução do fim social, podendo-se dizer que releva sobretudo no que concerne aos direitos das minorias, face à atuação da maioria[4].
Por último, retenha-se que estando o nosso sistema processual civil marcado pela teoria da substanciação, exige-se ao autor a indicação específica ou concretos dos factos constitutivos do direito que pretende fazer valer em juízo, procedendo aí à respetiva demonstração, “É da correspondência entre o quadro factual apurado nos autos e o quadro fáctico previsto numa ou mais normas substantivas que resultará o reconhecimento do direito invocado”[5], não olvidando as regras em termos de ónus da prova, art.º 342, do CC.
2.2. Revertendo para o caso sob análise os diminutos considerandos realizados, no que concerne à convocação para a assembleia-geral onde foram tomadas as deliberações questionadas, inexiste qualquer fundamento para, tendo os sócios optado por configurar a sociedade como anónima, lhe devam ser aplicadas disposições legais relativas a outro tipo de sociedades como as por quotas, sendo certo que o facto de apenas haver dois acionistas, numa situação de paridade, inculca tal conclusão.
Necessariamente importa que sejam observadas as disposições legais que configuram o regime legal desenhado para as sociedades anónimas, sem prejuízo que no âmbito da respetiva autorregulação, através dos seus estatutos possam adequar tal regime às características próprias de cada uma das sociedades em concreto, desde que não contrariem aquelas disposições imperativas.
Ora, o Recorrente na formulação da fundamentação do pedido efetuado em juízo reportou não ter sido notificado para a assembleia-geral por intermédio de carta registada com aviso de receção nem recebeu qualquer convocatória, pelo que não sendo esses os termos previstos legalmente para a convocatória nas sociedades anónimas, que reafirme-se foi a opção feita pelos sócios para conformarem a sociedade comercial constituída, importava que tivesse sido alegado que para além dos termos legalmente previstos para a convocação, outros resultavam dos estatutos, ou até, em última análise, dos usos aceites pelos dois acionistas, o que não se mostra realizado.
De igual modo, não releva para os fins pretendidos pelo Autor, as circunstâncias pessoais alegadas, numa sociedade com apenas dois acionistas, com participações sociais iguais, diferentemente do que aconteceria no caso da existência de múltiplos acionistas, pelo que na concordância com o decidido o Autor/recorrente não alegou o factualismo que permitisse demonstrar algum vício ou irregularidade na convocação da assembleia-geral, como lhe competia, enquanto constitutivo do direito invocado à anulação das deliberações sociais, em termos da convocatória, funcionamento da assembleia e mesmo na formação de tais deliberações, tendo em conta, repise-se que a sociedade tem apenas dois acionistas, em paridade.
O Recorrente/autor sublinha a natureza abusiva do deliberado, com a alteração da forma de obrigar de dois, para um acionista, salientando a sua surpresa com a autonomeação do outro acionista como administrador único, havendo apenas dois acionistas, já que quanto às demais deliberações decorriam da lei (redenominação do capital social, aumento de ambos os acionistas, em igual, do capital social para o mínimo legal de 50.000,00€ e conversão obrigatória das ações ao portador em nominativas), enquanto essenciais à subsistência da sociedade, e não estariam em causa por decorrerem da lei e pelo facto do aumento do capital social para o mínimo legal ter sido realizado por igual e repartido por ambos os acionistas.
Ora, do factualismo trazido ao processo pelo Autor, não se mostra devidamente delineado que se configure que o deliberado perturbe o normal funcionamento da sociedade, bem como as alterações produzidas acarretem especiais vantagens ou evidenciem um efetivo prejuízo, em termos da relação dos dois acionistas, novamente considerando a sua igualdade de participação social, sendo manifestamente insuficiente para tanto a menção a “correrem rumores” que possam implicar um prejuízo, concretizado, para o Autor, que inquine as deliberações em causa, nos termos pretendidos.
3. Improcedem, assim, as conclusões formuladas pelo Recorrente.
*
III – DECISÃO
Nestes termos, decide-se negar a revista, mantendo o decidido no Acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 11 de julho de 2023.
Ana Resende (Relatora)
Maria José Mouro
Graça Amaral
*
Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.
____________________________________________________
[1] Na decisão que não admitiu os documentos apresentados pela Ré nas alegações do recurso de apelação, consignou-se: “Aquilo que se pretendia era contornar os efeitos preclusivos associados à falta de contestação e assim garantir uma segunda oportunidade para alterar a matéria de facto e aduzir argumentação jurídica que foi proferida quando a parte optou por uma situação de revelia.”
[2] Cf. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Das Sociedades, Volume II, 6.ª edição, 2019, fls. 472/473, entre outos Autores, referindo tal classificação como tradicional e generalizada.
[3] Cf. Acórdão do STJ, de 18.04.2023, processo n.º 9333/21.1T8SNT-L1.S1, in www.dgsi.pt,
[4] Numa alusão feita por Ana Perestrelo de Oliveira, in Manual do Governo das Sociedades, pág. 145, apud Acórdão do STJ, acima mencionado, também subscrito pela ora relatora.
[5] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, fls. 629