CESSÃO DE CRÉDITOS
ESCRITURA PÚBLICA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA PLENA
ADMISSIBILIDADE DE PROVA TESTEMUNHAL
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
DECLARAÇÃO
FIM CONTRATUAL
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário


I - O artigo 371º, n.º 1, do Código Civil abrange, em termos de força probatória plena, o que foi percepcionado pelo oficial público que presidiu à escritura e aquilo que os outorgantes perante ele formalmente declararam (conteúdo extrínseco das declarações), não cobrindo, não obstante, a veracidade, sinceridade ou autenticidade do afirmado, bem como toda a restante realidade que subjaz à concretização do negócio (conteúdo intrínseco das declarações).
II - O nº 3 do artigo 394º do Código Civil afasta a regra da inadmissibilidade da prova testemunhal relativamente ao acordo simulatório desde que seja invocado por terceiros, neste caso os restantes credores da falida prejudicados com os efeitos do acto simulado, nada obstando ainda a que se faça prova testemunhal sobre o motivo ou fim do negócio em causa.
III -  A força probatória plena associada à escritura da cessão de créditos não impede as partes interessadas de poderem alegar e provar que os fundos monetários que serviram para solver a dívida respeitante ao financiamento concedido à sociedade entretanto declarada falida foram movimentados à custa do património da própria sociedade mutuária, a qual suportou o esforço económico que permitiu a restituição do mútuo, com benefício para o cessionário formal (que não realizou materialmente tal pagamento).
IV – Provando-se nos autos que a reclamante, ora recorrente, veio ao processo de falência exigir o reconhecimento de um crédito por força da realização de um pagamento à entidade bancária que afinal não fez, servindo-se do património da devedora para engenhosamente assumir as vestes formais de sua credora, condição essa que bem sabia não ser materialmente verdadeira, com o fito de beneficiar assim das inerentes garantias reais constituídas a favor da entidade bancária cedente, pondo os bens hipotecados a salvo e afectos exclusivamente à satisfação do seu particular interesse e ficando os restantes credores prejudicados por este estratagema, tal crédito não pode ser reconhecido e graduado, procedendo as impugnações que contra ele foram dirigidas.

Texto Integral




Processo nº 176/14.0T8OAZ-A.P1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
A credora Fiat – Distribuidora Automóvel, Lda. (agora LEASYS Portugal, S.A.), requereu a declaração de falência da Amave, S.A., em 14 de Julho de 1999, tendo esta sociedade sido declarada falida por decisão, já transitada em julgado, datada de 13 de Julho de 2000.
Os credores da falida foram citados por editais, nos termos do disposto no art.º 20.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e da Falência, para deduzirem oposição ou justificarem os seus créditos, publicados em jornal da localidade e no Diário da República, não tendo sido deduzida qualquer oposição.
Foram reclamados os créditos, nos termos do disposto no artigo 188º, nº 1 do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e da Falência, no artigo 188º, nº 4 do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência e nos termos do disposto no artigo 191, nº 2 do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, foram reclamados os seguintes créditos, bem como ainda nos termos do disposto no artigo 205º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência.
O Liquidatário deu cumprimento ao disposto no artigo 191º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência.
O crédito reclamado pelo credor Kevindale, Limited foi impugnado por alguns dos credores e não foi reconhecido pelo Liquidatário Judicial.
Realizou-se a tentativa de conciliação a que alude o n.º 2 do art.º 196.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, mantendo-se a impugnação do crédito reclamado.
Foi junto o parecer a que alude o art.º 195.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência.
Com excepção do crédito reclamado pelo credor Kevindale, Limited, todos os demais foram declarados reconhecidos, porque não impugnados – cfr. art.º 196.º, n.º 4 e 200.º, ambos do Código de Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência.
Em 7 de Maio de 2010 elaborou-se despacho saneador com a indicação dos factos assentes e com a enumeração dos factos controvertidos (base instrutória).
A instrução da causa estendeu-se por mais de dez anos.
Renovados os requerimentos probatórios (dado o tempo decorrido) e efectuadas as diligências necessárias à notificação das testemunhas, o julgamento iniciou-se no dia 1 de Julho de 2021 (após terem sido levantadas as medidas restritivas impostas pela SARS-COV2).
Foi proferida sentença que julgou procedentes as impugnações deduzidas pelos credores CCAM e IVECO ao crédito da Kelvindale, não o reconhecendo, tal como o fez o Exmo. Liquidatário Judicial.
Apresentou o reclamante Kelvindale recurso de apelação que veio a ser julgado improcedente por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18 de Abril de 2023.
O reclamante Kelvindale interpôs recurso de revista excepcional, que foi convolada para a revista normal, apresentando as seguintes conclusões:
I. O presente recurso advém da sentença do Juízo do Comércio ... e do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, sobre a reclamação de créditos no processo de falência da Amave, SA apresentada pela Recorrente, Kelvindale Limited, em 2000, e que durou nada menos de 22 anos a ser objecto de uma decisão em primeira instância, e que a final recusou tal reconhecimento por considerar simuladas as escrituras de concessão do crédito garantido por hipotecas e a de cessão de créditos, por terem sido realizadas em prejuízo dos credores, por o empréstimo tersido pago pela falida e os dinheiros quea cessionária pagou, afinal terem sido empréstimos à falida. O liquidatário que não reconheceu os créditos em 2000, justificou, por escrito e no processo, o não reconhecimento do crédito porque tal prejudicaria os credores comuns. O acórdão recorrido manteve a sentença, no essencial, porque a mesma resultou das presunções judiciais do juiz do processo a partir, crê-se, das regras de experiência.
II. A Recorrente no presente processo de Recurso de Revista Excecional poderia ter fundamentado o mesmo, cumprindo com todos os requisitos exigidos pelos números 1 e 2 do artigo 672º do CPC, apoiando-se em várias questões de direito relevantes e sobre as quais é necessária uma apreciação para a melhor aplicação do direito, de particular relevância social e em contradição de acórdãos proferidos pelos tribunais superiores em outras casos semelhantes.
III. Como seriam as questões: - Da preterição da regras da legitimidade passiva necessária em situações de anulação de escrituras por simulação sem que todos os simuladores tenham sido chamados aos autos, no que se ofende as regras do litisconsórcio necessário; -Dasubstituição do requisito da declaração de nulidade de escrituras por simulação, do intuito de enganar terceiros por a intenção de prejudicar terceiros; do desprezo do valor de prova de escrituras públicas como documento autêntico, com base em testemunhos que sobre o conteúdo das declarações não existiram; - Sobre o excesso do livre arbítrio auto definido pelo julgador que levou: - a alegadas presunções jurídicas com base em testemunhos inexistentes e contrário à mais elementares regras de experiência, como a de uma instituição financeira então reputada de ceder um crédito já pago, - ou a de um mandatário judicial emprestou mais de 300 mil euros ( em valores de 2000 ) a uma cliente falida para esta pagar um crédito hipotecário em benefício dos credores comuns,; -Da existência dedecisões surpresapor ultrapassar a sentença os limites do e das exceções formuladas, sem que seja dado o direito do exercício ao contraditório.
III. Porque tais vícios da sentença e do acórdão que a confirmou decorreram contudo de um vício formal fundamental, a da falta de quaisquer limites prévios estabelecidos quer as partes na fase da produção de prova, quer ao julgador no proferir da sentença, por ter sido revogado o questionário elaborado doze anos antes e por não ter sido definido qualquer tema de prova antes do julgamento, mas apenas na própria sentença, ter criado as condições, o excesso de livre arbítrio do julgador para que tais outros vícios tivessem sido cometidos.
IV. Pelo que é tal vício o optado para justificar a eleição da questão fundamental sobre que requerer a reapreciação do STJ em Recurso de Revista Excecional. Porque tendo um tribunal de primeira instância e um tribunal de recurso decidido pela desnecessidade do estabelecimento de quaisquer limites quer às partes na produção de prova quer ao Juiz na apreciação do litigio que lhe competia julgar, quer seja pela total desconsideração do questionário pelo mesmo tribunal e no mesmo caso estabelecido doze anos antes, quer pela falta de definição prévia ao julgamento e não comunicada às partes de qualquer tema de prova, de que estas apenas vieram a ter conhecimento com a sentença.
V.Aquestão fundamental sendo a de se a definição e existência de temas de prova, (tal como anteriormente a de estabelecimento de um saneamento e o correspondente questionário) que delimite as partes na fase instrutória de julgamento do processo, que balizem as partes em tal fase de instrução e o Juiz na sua decisão, é uma exigência essencial, ou se pelo contrário é um acto inútil e inócuo, isto é, sem qualquer utilidade e inconsequente.
VI. Porque o acórdão recorrido, bem como a sentença confirmada respondem, claramente, pela negativa e o acórdão fundamento optado, o do mesmo Tribunal da Relação do Porto, proc.8994/19.6.T8VNG.P1 de 23.11.2021, expressamente e em conteúdo pugna pelo contrário, aliás crê-se na linha da melhor interpretação da lei quer da jurisprudência e pela doutrina (vide outras decisões referenciadasnas alegações ) ao dizer que:
“Aindicação dos temas de prova não éum acto inócuo e desprovido de utilidade.”.
E logo:
“O NCPC adotou uma solução que passa, já não pela concretização de factos, mas por uma indicação genérica e eventualmente conclusiva da matéria controvertida sobre a qual há-de incidir a instrução da causa, que apenas deve ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das exceções invocadas.” Sublinhado nosso.
VII. Não foi o que aconteceu no caso dos autos, que trata de uma reclamação de créditos hipotecários, instruído com duas escrituras públicas de concessão de mútuo com garantia real, e de aquisição de tais créditos e garantias, respetivamente em 1997 e 1999, apresentada em processos de falência da devedora, e que não foram reconhecidos pelo liquidatário dos autos, por tal implicar um prejuízo para os credores comuns (confissão escrita do mesmo nos próprios autos).
VIII. Face a tal razão do não reconhecimento dos créditos reclamados, promoveram os credores comuns (alguns e reunidos na Comissão de Credores) dez anos de diligências probatórias, que levou, em 2010, ao estabelecimento no despacho saneador e com presença das partes, da seleção das matérias a serem instruídas na fase de julgamento, um questionário.
IX. Mais uma dúzia de anos passados em putativas diligências de prova e, a pretexto de que tal procedimento de sanear o exposto no processo, em especificação e questionário, ser ineficiente e ter sido revogado pelo legislador, e mais a pretexto de que era já antigo e não preparado pelo actual julgador, o mesmo foi substituído pelo moderno procedimento. Moderno e inovador procedimento que consiste na não definição de um balizante tema(s) de prova, prévio e comunicado às partes, mas o da inexistência de qualquer limite quer ao que as partes poderiam discutir, que elementos novos trazer aos autos; que novas testemunhas poderiam alegar e ao que estas poderiam ser questionadas, e quais as exceções e pedidos que as partes poderiam trazer ao julgamento e recusando-se o julgador aautoimpor-se qualquerlimite, muito menos as que resultem dos pedidos e das exceções da parte, e no complemento de quais as provas que possam existir para fundamentar as suas conclusões, e até, no caso qualquer juízo baseado nas regras de experiência.
X. E no seguimento foi uma confusão, a Recorrente a discutir o que estava no questionário do despacho saneador e inclusive a dispensar testemunhas arroladas e admitidas, por desnecessárias, e alguns dos demais credores a pugnarem pelos interesses dos credores comuns a discutirem o que bem entenderam e foi admitido pelojulgadorsemqualquerlimite.Peloqueumsimplesreconhecimentode crédito que já tinha levado 22 anos de diligências de prova à posteriori, demorou mais um ano de sessões de julgamento, seis, em que foram analisadas questões sem qualquer cabimento, tais como as razões pelas quais a falida teria falido, da qualificação da insolvência, de relatórios das finanças (que não resultaram em qualquer imposto liquidado ); de relatórios da Polícia Judiciária; da colação aos autos do processo de inquérito de qualificação da falência ( mais de 2000 páginas, coligidas durante mais de cinco anos ) e em que nenhuma acusação foi proferida; e que contudo foram de novo as questões já apreciadas reapreciadas; relatórios de pretensos auditores, que todos não sabiam sobre o que tinham escrito ou o que deles constava; e em que o que verdadeiramente relevava, caiu desrelevando, no meio de tanto ruído e inutilidade probatória. Seis meses findas as sessões de julgamento e sai finalmente a sentença, que começa por esclarecer aquilo que as partes não sabiam, qual era o tema de prova.
XI. Vício de forma processual que além de conduzir a um autêntico arrazoado de julgamento, sem ordem, sem limites e sem utilidade aparente, resultam a sentença plena de erros de aplicação do direito e da seleção dos factos relevantes, das quais, mas não únicas são as seguintes:
XII.Ade declararnulas, por simulação e da irrelevância como elementos de prova as escrituras de mútuo com concessão de garantias hipotecárias, e a da cessão de créditos, por a primeirapor ter sido realizada para prejudicar credores; ea segunda por não existir qualquer crédito que pudesse ser cedido pela mutuante, o Banco Banque Espirito Santo et de laVénétie, por a própria falidater pago o empréstimo.
XIII.As partes, desde logo alguns dos credores comuns, nem sequer alegaram ou invocaram, e muito menos provaram a existência de qualquer simulação, ou a de que teria sido a falida, então sim e em 1999, já em plena agonia, que teria pago o financiamento hipotecário apenas para libertar as garantias em favor dos credores comuns, e muito menos conseguiram dar uma explicação cabal do porquê de tal pagamento, como e com quê, e do porquê de uma instituição de crédito ter declarado formalmente e perante notário ter realizado negócio com a aqui Recorrente, cedendo e recebendo dinheiro, quando já não teria qualquer crédito para ceder, por o mesmo se ter extinto por pagamento do devedor.
XIV. Pretendendo o tribunal declarar a nulidade dos contratos celebrados por escritura pública, por ter acontecido simulação, obrigatoriamente, e tempo de dezenas de anos teve para isso, deveria ter dado cumprimento às regras da legitimidade e chamado aos autos o pretenso simulador, a instituição bancária mutuante e cedente, o BESV.Atal o obrigavam as regras do litisconsórcio passivo necessário, nos termos do artigo 33º do CPC, porque simplesmente esta interveio em ambos os negócios, em ambas as relações que foram colocadas em causa pela anulação por simulação.
XV: Naturalmente tal chamada aos autos seria na delimitação da prova a produzir, fosse por questionário fosse por tema de prova, seria previsível na sua necessidade e certamente exigida, na ausência de qualquer âmbito de provam e na ausência de qualquer limitação aos poderes de cognição e decisão do julgador, autoatribuída pela não existência de quaisquer limitações ao seu julgamento, ao não definir previamente qualquer tema de prova tal não aconteceu Tivesse tal exceção sido levantada pelas partes e certamente e perante tal preceito e obrigatoriedade de chamar aos autos o putativo simulador, tivesse tal solução estado presente na limitação do Juiz e certamente este teria promovido tal chamada ou reconhecido a impossibilidade processual de declarar as simulações.
XVI. E de erro de julgamento acontece quando o julgador e o digno tribunal superior reconhece como verificados os requisitos necessários para a declaração de existência de simulação, que como resulta da síntese do Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins. ATJ de 14.9.2021, processo 1307/16.0T8BRG.G1.S, “para que se possa falar de negócio simulado impõe-se a verificação simultânea de três requisitos: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar)”.
XVII. E no caso tivesse sido o julgamento focalizado em temas conhecidos, ou no próprio questionário e por este balizado, a conclusão de declaração de invalidade da prova e nulidade do negócio por simulação não poderia ter acontecido com respeito da lei substancial, pois que nem a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração pode ser determinada pela falta de um dos simuladores e a inexistência de confissão por parte do outro, como a existência do pacto simulatório igualmente não pode ser presumido nem resultar de regras de experiência; nem, mesmo que tudo o demais se tivesse verificado, a intenção de prejudicar terceiros com o negócio é irrelevante, necessário sendo que o objetivo fosseo de enganar, induzirem erroterceiro, o que nãofoi certamentenem arguido, nem demonstrado e muito menos até objeto de qualquer testemunho.
XVIII. E considerar como simulado um negócio de concessão de crédito com garantia hipotecária, que se demonstrou amplamente e consta dos factos assentes de que o dinheiro entrou na sociedade mutuária e por esta foi utilizado, para pagar dívidas à banca, a fornecedores, e aos trabalhadores, falta em poder concluir-se que afinal aconteceu foi uma simulação de empréstimo, é excesso de liberdade de julgamento, é contrário ao inferir de um facto a partir de qualquer outro definido como provado, simplesmente sendo uma presunção judicial simplesmente arbitrada.
XIX. Tal como carece de regra da experiência e não pode resultar de quaisquer factos julgados provados, de que uma instituição financeira venha perante notário publico declarar ceder um crédito que afinal não existe, porque contrariamente ao que declarou, este já teria sido pago pelo mutuário.
XX. Como é contrário às regras de experiência, às regras de inferição de factos dados como conhecidos e assentes, que um mutuário então e já em vias de falência, em 1999, (e não em 1997 quando o contrato de mútuo foi celebrado) viesse pagar um financiamento hipotecário apenas para favorecimento dos credores comuns. Não resulta de qualquer prova, por muita que se quisesse que esta tivesse sido feita.
XXI. Sendo muito estranho, no mínimo, uma instituição financeira viesse celebrar uma escritura pública de cessão de créditos, e declarando ter recebido o preço, nada menos de mais de 1.2 milhões de euros, quando bem saberia que o crédito não existisse. Tal não pode resultar da invocação de uma simples regra de experiência, de uma lógica resultante de factos dados como provados.
XXII. Igualmente sendo contrário a um mero raciocínio lógico inferido de um qualquer facto coerente dado como provado, ou simplesmente discutido, ou resultante de qualquer documento, que o mandatário judicial da falida, o consultor acusado de o ser da falida em negociações, o ex-revisor oficial de contas que é dito bem acompanhou toda a fase final da falida, em 1999 emprestou dinheiro seu a esta, de mais de mais de 61 mil contos, em 1999, apenas com o objetivo de que esta pagasse o empréstimo hipotecário e libertasse os imóveis dados como garantia, e viesse de seguida adquirir, através de sociedade de que era sócio fundador, a Recorrente, apenas para benefício dos credores comuns. E que nos mais de vinte e dois anos seguintes ainda viesse defender que afinal os créditos são da sociedade recorrente. Tal não inferição segundo regras de experiência, é lirismo, é abuso do poder que o Julgador se autoatribui, ao reservar para si uma liberadade de julgar sem quaisquer limitações, de pedido, dealegaçõesdeexceções, de prova, documental ou outra que não seja espírito justiceiro insufragável.
XXIII Questões que são de direito e não de facto, mas que mesmo que o fossem, apenas resultaria da falta de exercício do poder de revisão da matéria de facto, pedida mas não realizada pelo tribunal da Relação do Porto e expressa no acórdão de que se recorre, como será até já óbvio até.
XXIV. Mas que sendo consideradas como de facto, sempre será em tal caso, tantas as obtusidades de julgamento de tal situação, de arguir a respeito da competência do STJ, o que este superior tribunal decidiu em Acórdão de 14 de Setembro de 2021, no processo 1307/16.0T8BRG.G1.S1, de que foi relator o Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins que sentenciou:
“Os poderes do STJ são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excecionais (artigo 674º nº 3, in fine, e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias ( 682º nº1 CPC ), e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto….. Contudo, o STJ, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do CPC, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte no julgamento de direito.”
XXV. Bem podem os tribunais recorridos basear-se na liberdade do Juiz para a formulação dos pressupostos judiciais baseados nas regras de experiência para dar como verificados factos que resultem por tais regras de outros dados como provados, não poderia nunca, segundo juízo de mera lógica, qualquer que seja a forma destas, chegar a tais conclusões de que um banco não cumpre contratos de mútuoeapenassimulaaentregadoscapitaismutuados,ouquesimulaumcontrato de cessão de créditos quando estes não existem, ou que um mandatário judicial que é ou deverá considerar-se informado da situação desta, vem emprestar centenas de milhares de euros à falida para esta pagar empréstimo garantido por hipotecas, apenas para favorecer bens comuns de credores da falida. E que depois e durante mais de vinte anos ainda vem defender que os créditos resultantes de tal empréstimo lhe pertencem. De inferições lógicas não tem nada, de puros arbítrios sim.
XXVI. Que mesmo que encontram fundamento no facto de os créditos serem detidos por uma sociedade offshore, como insultuosamente e ao longo de 20 anos a Recorrente é depreciativamente chamada; de ser pertença do mandatário da Recorrente; de os credores comuns reunidos na comissão de credores, e o liquidatário, alegarem que são prejudicados pelo reconhecimento dos créditos garantidos pela hipoteca; dos mais de vinte anos de protelamento da tomada de uma simples decisão de reclamação de créditos com base em escrituras notariais, e de vinte anos de diligências judiciais meramente dilatórias e sem qualquer efeito provatório, tais argumentos não é pelo facto de terem sido usados, que devem ser mantidos pelos tribunais superiores que de tal não têm responsabilidade ou interesse.
XXVII. Não sabe a Recorrente se a afirmação de que um empréstimo realizado por uma instituição financeira e cujo valor foi transferido para as contas da mutuária e por ela gastas em seu beneficio, pagando aos seus credores, mais não é do que o aumento do seu passivo a fim de prejudicar os credores, é uma questão de facto ou uma reinterpretação das regras de registo contabilístico com intenções de modificação do quadro legal destas. Em qualquer caso tal conclusão tem falta de rigor científico, já que em contabilidade não há operações financeiras que não resultem obrigatoriamente em aumentos ou diminuições simultâneas do ativo e do passivo, e no caso e para a falida e mutuária um empréstimo é uma simples operação financeira, pelo que é um erro afirmar-se que uma operação nas condições descritas apenas teve por efeito, e por intenção, valha tal o que valer, apenas aumentar o passivo da sociedade.
XXVIII. Nunca nenhum oponente às pretensões da Recorrente veio alegar, nunca a Recorrente reconheceu, e nunca o mandatário desta e beneficiário efetivo da Kelvindale como há mais de uma dezena de anos deu a conhecer ao tribunal explicitamente, nenhuma das testemunhas comentou sequer, e nenhuma prova foi feita, de que afinal quando este pagou de conta sua o crédito adquirido pela Recorrente, o que estava a fazer era emprestar dinheiro à falida em 1999, e a fim de esta beneficiar os credores comuns.
XXIX. Pelo que afinal a Recorrente não teria pago os créditos adquiridos, concluindo-se, em grande paradigma de premonição injustificada, que afinal teria sido a falida, que usando fundos que a sua contabilidade não demonstra existirem na altura, que as suas contas bancárias não suportavam então, através de ordens ou documentos que não se provaram que tivessem sido emitidos, que resultariam de atividade que se diz inexistir, (nada mais do que um lapso de registo do BESV prontamente na altura e sempre depois mantido como o fez por escrito e nos autos, e inclusive por um seu antigo funcionário superior) que foi a falida, repete-se que pagou o empréstimo eliminando as garantias reais para favorecer os credores comuns. Dize-lo é um erro de direito, é uma ofensa às regras de formação de presunções judiciais.
XXX. Concluir que tais conclusões são possíveis face à liberdade do juiz em inferir factos a partir de outros factos dados como conhecidos e estabelecidos recorrendo a raciocínios lógicos baseados em regras de experiência, é levar o instituto ao extremo, sem justificação legal mínima, é em si, um erro de direito.
XXXI. Tudo baseado no desprezo pelas regras de definição prévia dos temas de prova, ou do respeito a um questionário que vinculava as partes e vinculava o Juiz recorrido, que face a uma qualquer situação levada a juízo permite elaborar tanto ruído e tanta confusão, que as regras da delimitação do poder do juiz em decidir sobre dentro dos limites dos pedidos das partes, das suas exceções e da prova produzida simplesmente são ignoradas.
XXXII. Faltou ao julgamento, faltou ao juiz limites de julgamento, permitiu-se o espírito justiceiro do juiz vaguear por onde entendeu, e o resultado foram os sucessivos erros de direito e de definição dos factos que neste julgamento se cometeram, e que a Relação decidiu ignorar em violação do seu dever de revisão da matéria de facto e de direito.
XXXIII. Afinal o que tendo acontecido foi uma decisão que não se baseou em pedidos, em alegações de exceções, em prova produzida, seja documental ou testemunhal, ou que destas resultem segundo raciocínios lógicos baseados em regras de experiência, pelo que a decisão final recorrida, e o acórdão que a confirmou, deve ser considerada o que é, uma decisão surpresa, proibida pelo artigo 3º do CPC nº 3, já que sobre os pressupostos das mesmas as partes afetadas não foram ouvidas, não exerceram o contraditório, e por consequência a decisão e o acórdão recorrido sofrem da nulidade que se invoca.
XXXIV.ARecorrente adquiriu e pagou, na íntegra e com fundos seus, os créditos que o BESV detinha sobre a falida resultantes de empréstimo garantido com hipotecas sobre bens que esta podia livremente onerar, ambos os negócios celebrados por escrituras públicas, cujo poder de prova plena sobre tais factos não foi afastada por prova testemunhal produzida e cuja anulação não pode resultar de presunções judiciais infundadas. E sendo tais escrituras perfeitas, reais e não simuladas, devem levar ao reconhecimento do crédito reclamado, sendo revogadas a decisão original e o acórdão do TRP que a confirma.
Foram apresentadas contra-alegações com as seguintes conclusões:
A) A Recorrente veio interpor recurso de revista excecional do Acórdão recorrido que confirmou in totum a sentença proferida em 1,ª instância tendo apenas suprimidodoelencodos fatosprovados os n.ºs15 e16, poros terconsiderado conclusões;
B) Conclusões que, no entanto, considerou legítimas e coerentes com a factualidade dada como provada;
C) Verificada a dupla conforme a Recorrente pretende ver admitido o seu recurso como revista excecional, nos termos das a), b) e c), do n.º 1 do art.º 672.º do CPC;
D) Para isso ficciona e treslê quer a sentença proferida em 1.ª instância, quer o Acórdão recorrido, dizendo que nelas está dito o que não está, para assim ficcionar questões que não existem e uma putativa contradição de acórdãos, de modo a tentar fazer admitir um recurso de revista, que sabe que não pode interpor, por isso lhe estar vedado pelo n.º 3, do art.º 671.º do CPC;
E) Consequentemente o recurso de revista excecional interposto pela Recorrente deve ser liminarmente rejeitado, por não estarem verificados os requisitos para a sua interposição, nos termos de qualquer das alíneas do n.º 1 do art.º 672.º do CPC;
F) Isto é, o Acórdão recorrido ao decidir como decidiu não suscita qualquer questão cuja apreciação pela sua relevância jurídica seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; não colide com interesses de particular relevância social; e não está em contradição com o Acórdão proferidopeloTribunalda RelaçãodoPorto, nos autos quealicorreramtermos sob o n.º 8994/19.6T8VNG.P1 (Acórdão Fundamento);
G) Mas ainda que assim não se entendesse, no que não se concede, o recurso da Recorrente continuaria a não merecer provimento, devendo ser mantido o Acórdão recorrido.

II – FACTOS PROVADOS.  
Encontrava-se provado que:
  1 – A sociedade Amave – Amaral Veículos, SA., foi declarada falida por sentença, já transitada em julgado, proferida em 13 de Julho de 2000, tendo a acção falimentar sido instaurada em 14 de Julho de 1999 a pedido do credor Fiat – Distribuidora Automóvel, Lda. (agora LEASYS Portugal, S.A.).
2 – No dia 23 de Dezembro de 1997 a Amave abriu no Banque Espírito Santo Et de La Vénétie (BESV) uma conta à ordem a que foi atribuída o nº ...01, conta essa que fechou em Outubro de 1999.
3 – No dia 29 de Dezembro de 1997, em ..., a falida e a sociedade Société Bancaire de Paris, S.A. outorgaram um escrito que denominaram de “Contrato de Empréstimo Multi-Divisas”, nos termos do qual acordaram que:
“Ficando previamente exposto que
1. O Mutuário (a falida) deseja obter um empréstimo de PTE 230.000.000,00 (…) destinado a reescalonar alguns dos seus empréstimos bancários.
2. O empréstimo de PTE 230.000.000,00 (…) que o Banco está disposto a conceder será, conquanto a afectação de fundos adiante explicitada seja estritamente respeitada, posto à disposição do Mutuário, em conformidade com as presentes e mediante:
I. A constituição de uma hipoteca de primeiro grau sobre um terreno para construção sito em .../..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...18... e inscrito na respectiva matriz pelo artigo ...76, assim como sobre um imóvel sito em .../... descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...54... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...51.
II. A caução solidária do Sr. AA e de sua esposa Sra. BB.
III. O depósito, na Companhia Financeira Espírito Santo, SA de USD 500.000,00 com penhor a favor da Société Bancaire de Paris.
Foi acordado o que se segue: Artigo 1 Definições.
(…)
Data da exigibilidade dos juros: os juros são pagáveis semestralmente a partir da data do saque, qualquer que seja a divisa de utilização no vencimento da prestação.
(…)
Período de juros: período de 6 meses contado a partir da data de saque e para o qual foi fixada uma taxa.
(…)
Artigo 2 Contrato de Empréstimo
2.1. Empréstimo.
O BANCO concede ao Mutuário que o aceita, nas condições abaixo enunciadas, um empréstimo com as
seguintes características:
Montante principal: PTE 230.000.000,00 (…) (…)
Duração máxima: cinco (5) anos contados a partir da data de saque ou seja 10 de Janeiro de 1996, o mais tardar.
(…)
Pagamento dos Juros: Semestral e na data de vencimento de cada período de juros, qualquer que seja a divisa utilizada.
Reembolsos do capital: Período de carência de reembolso de capital de três (3) anos contados a partir da data de efectivação. O reembolso do capital far-se-á seguidamente segundo o seguinte calendário:
 


Dezembro de 2000 amortizaçãoPTE 32.000.000,00
Junho de 2001 amortizaçãoPTE 32.000.000,00
Dezembro de 2001 amortizaçãoPTE 32.000.000,00
Junho de 2002 amortizaçãoPTE 32.000.000,00
Dezembro de 2002 amortizaçãoPTE 102.000.000,00

(…)
Artigo 8 Declarações e compromissos do mutuário (…)
8.2. compromissos do mutuário.
8.2.1. Enquanto for devedor de uma qualquer soma a título do presente contrato, o Mutuário deverá comunicar ao Banco:
a) no prazo máximo de 3 meses após cada trimestre civil, um estado provisório, incluindo o seu balanço intermediário e a sua conta de resultados relativos ao trimestre e estabelecidos pelo Mutuário segundo os princípios contabilísticos internacionalmente reconhecidos;
b) no prazo máximo de 6 meses após o termo de cada exercício fiscal, qualquer acta ou documentos anexos das suas Assembleias Gerais Extraordinárias referentes a eventuais modificações dos seus estatutos.
8.2.2. Enquanto for devedor de qualquer soma a titulo das presentes, o Mutuário deve imediatamente e logo que disso ele próprio tome conhecimento, informar o Banco:
da ocorrência de qualquer acto ou acontecimento que tenha por objecto, ou possa ter como resultado, a diminuição sensível do seu activo ou o aumento sensível dos seus compromissos.
(…)
Feito em ..., a 29 de Dezembro de 1997
Em três exemplares originais, dos quais um para cada parte

Société Bancaire de Paris
Sr. CC
Presidente Director Geral
AMAVE Veículos, S.A.
Carimbo da sociedade A Administração.
Sob o carimbo da sociedade Amave Veículos, SA consta o nome manuscrito de AA.


4 – Mediante escritura pública de constituição de hipoteca outorgada em 29 de Dezembro de 1997, no Cartório Notarial ..., a sociedade Société Bancaire de Paris, representada por DD e a falida, representada pelo seu administrador AA, declararam que:
“(…) em caução e garantia de bom pagamento:
a) de todas e quaisquer dívidas ou responsabilidades, sejam de que natureza forem, nomeadamente financiamentos por conta empréstimo rendas certas, por conta corrente ou livrança, descobertos em conta de depósitos à ordem, descobertos em conta corrente, descontos de letras, descontos de remessas de estrangeiro, financiamento externo e garantias bancárias que existam ou venham a existir perante a Société Bancaire de Paris vencidas e ou vincendas, que tenham sido ou venham a ser assumidas pela representada do segundo outorgante até ao montante de duzentos e trinta milhões de escudos.
(…)
c) (…). O montante máximo garantido é de trezentos e quinze milhões e cem mil escudos.
O segundo outorgante em nome da sua representada, HIPOTECA, com a máxima amplitude legal, com todas as suas construções, benfeitorias e acessões, presentes e futuras, os seguintes imóveis:
N.º 1 Terreno para construção urbana, sito no lugar ..., da freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., de ... e registada a favor da sociedade, pela inscrição ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...76.
N.º 2 Prédio urbano composto por edifício de sub-cave, cave, rés-do-chão e andar, bombas automedidoras de combustíveis, logradouro e parque situado no Lugar ..., da dita freguesia e concelho ..., descrito na citada Conservatória sob o número mil quinhentos e cinquenta e quatro, de ..., e registado a favor da sociedade, pela inscrição ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...51.
Que, enquanto durar esta hipoteca, a representada do segundo outorgante obriga-se a trazer pontualmente pagos os encargos dos imóveis hipotecados, assim como os respectivos prémios de seguro contra incêndio (…).
Mais se obriga a representada do segundo outorgante a não constituir hipotecas e a não fazer arrendamentos ou consignações de rendimentos sobre os imóveis hipotecados sem prédio acordo, por escrito,
do Banco Credor, bem como em geral a não realizar ou permitir actos ou contratos que, de algum modo, importem a desvalorização dos mesmos imóveis, sob pena de nulidade dos respectivos contratos e actos.”.
5 – No dia 6 de Janeiro de 1998 o BESV creditou a conta nº ...01 da Amave pelo valor do empréstimo. Porém, nesta conta estavam já debitados os montantes de 120.000.000$00 e 100.000.000$00 que haviam sido transferidos por ordem do administrador da Amave (AA).
O montante de 120.000.000$00 foi transferido por ordem de AA no dia 30 de Dezembro de 1997 para a conta da Amave do BES ....
O montante de 100.000.000$00 foi transferido por ordem de AA no dia 5 de Janeiro de 1998, para conta por si titulada no BCP.
6 – No dia 8 de Junho de 1999 a BESV comunicou à Amave que considerava o crédito vencido e exigível por ter sido penhorado um dos imóveis dados de garantia (penhora à ordem do processo nº ...8, ... secção, ... Juízo Cível de ...)
7 – No dia 22 de Junho de 1999 a BESV recebeu da Kelvindale proposta para aquisição da totalidade do crédito sobre a Amave, com todas as garantias e posições assumidas no processo referido, pelo seu valor nominal, acrescido de juros em dívida, a liquidar imediatamente, por transferência interna.
8 – O BESV, por comunicação de 5 de Julho de 1999 dirigida ao Dr. EE, aceitou a proposta da Kelvindale contra o pagamento da quantia de 236.422.945$00 (230.000.000 de capital, 6.130.445 de juros desde 06/07/1999, 292.500 de despesas) a efectuar até ao dia 6 de Julho de 1999.
9 - Por escritura pública de cessão de créditos outorgada no ... Cartório Notarial ... em 14 de Julho de 1999 a sociedade Société Bancaire de Paris, S.A., na qualidade de primeiro outorgante e a Kevindale, Limited, na qualidade de segunda outorgante declararam:
“Declarou a primeira outorgante:
Que a sua representada “SOCIÉTÉ BANCAIRE DE PARIS, SA” é credora hipotecária da sociedade comercial anónima sob a firma “AMAVE AMARAL VEÍCULOS, SA” (…), com sede em ..., concelho ..., do montante de duzentos e trinta e sete milhões, cento e quarenta e quatro mil e quarenta e cinco escudos.
Declara, ainda, que o supra citado crédito encontra-se reclamado no processo executivo que corre termos, sob a forma ordinária, na ... Secção, do ... Juízo Cível, do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o número duzentos e dezasseis barra noventa e oito.
Pela presente escritura, a representada do primeiro outorgante cede o seu crédito, com todas as garantias e acessórios, nomeadamente transferindo a hipoteca que, a seu favor foi constituída por escritura notarial de vinte e nove de Dezembro de mil novecentos e noventa e sete, outorgada no Cartório Notarial ..., sobre os seguintes imóveis:
a) Prédio urbano, composto por edifício de sub cave, cave, rés-do-chão e andar, bombas auto-medidoras de combustíveis, logradouro e parque, situado no Lugar ..., freguesia e concelho ... sob o número mil quinhentos e cinquenta e quatro, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo mil duzentos e cinquenta e um, com excepção das construções objecto do direito de superfície constituído a favor da P..., SA e que ocupam a área de setecentos e onze vírgula oitenta e quatro metros quadrados; e
b) Terreno destinado a construção urbana sito no Lugar ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo mil quatrocentos e setenta e seis.
Declarou, ainda, que as aludidas hipotecas encontram-se registadas a favor do Banco, aqui cedente, na competente Conservatória do Registo Predial ..., sob as inscrições C-um.
Pela presente escritura, o representante do Banco, cede o seu crédito pelo presente de Duzentos e trinta e sete milhões cento e quarenta e quatro mil e quarenta e cinco escudos, quantia esta que se encontra liquidada e da qual o representante do Banco integral quitação, colocando a representada do segundo outorgante no lugar do representado do primeiro outorgante, ora cedente, para todos os efeitos legais.
O representante do Banco garante a existência e exigibilidade do crédito, mas não garante a solvabilidade da devedora “AMAVE AMARAL VEÍCULOS, SA” (…).
Declara a segunda outorgante:
Que, para a sua representada, aceita a presente cessão de crédito (…).”.
10 - A conta da Amave no Banque Espírito Santo Et de La Vénétie (BESV) com o nº ...01 foi creditada, em Julho de 1999, com os seguintes montantes, num total de 238.272.433$00:
     No dia 16 de Julho de 1999 (data/valor 19 de Julho de 1999) pelo montante de 78.283.522$00;
     No dia 14 de Julho de 1999 (data/valor 22 de Julho de 1999) pelo montante de 61.484.664$00, transferido pela Kelvindale;
     No dia 21 de Julho de 1999 (data/valor 19 de Julho de 1999) pelo montante de 98.504.247$00 correspondente ao contravalor do depósito de 500.000USD, por débito na conta ...01.
11 – Da mesma conta saiu o montante de 230.000.000$00 no dia 22 de Julho de 1999 (data valor de 14 de Julho de 1999) com o qual se liquidou a responsabilidade da Amave junto do BESV.
12 – O negócio de cessão de créditos foi celebrado com o único intuito, por parte da falida e da reclamante Kevindale, de prejudicar os credores da primeira.
13 – O crédito referido não teve reflexos no aumento do activo da falida nem no seu giro comercial, tendo-se destinado apenas a aumentar o passivo a reclamar.
14 – A falida, por referência à data do empréstimo, estava sem actividade.
Considerou como Factos Não Provados:
a) Que tenha sido a Kelvindale a pagar ao BESV o montante relativo ao contrato de cessão.
b) Que a falida Amave não utilizou, para a sua actividade comercial, qualquer quantia do montante referido como tendo sido emprestado pela Societé Bancaire de Paris, S.A. (actualmente Banque Espírito Santo e de la Vénétie).
c) Que a falta de actividade da Amave já se registasse em Janeiro de 1997.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 – Admissibilidade da presente revista (normal e não excepcional)
2 – Vícios processuais relativos à tramitação e julgamento da causa.
3 – Ausência do chamamento do pretenso simulador, com fundamento nas regras do litisconsórcio necessário passivo.
4 – Prova de que o crédito devido à entidade bancária e objecto de cessão foi satisfeito com fundos pertencentes à própria mutuária e não através do esforço financeiro da cessionária. Limites da força probatória plena relativa ao teor da escritura de cessão de créditos. Aplicação do regime consignado no artigo 394º do Código Civil. 
Passemos à sua análise:
1 – Admissibilidade da presente revista (normal e não excepcional)
O processo de falência principal, bem como a reclamação de créditos apresentada pela ora recorrente e que se encontra apensa, entraram em juízo em data muito anterior à vigência do Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que introduziu no regime recursório português a figura da dupla conforme.
Assim, na interpretação do artigo 7º, nº 1, do Decreto-lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que perfilhamos não é aplicável aos recursos de revista interpostos nas acções instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008 (como sucede in casu) o regime da dupla conforme, impeditiva da interposição da revista normal, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Com efeito, o artigo 7º, nº 1, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, ao ressalvar da aplicação do novo regime em matéria de recursos o disposto no nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, ou seja, a impossibilidade do acesso ao terceiro grau de jurisdição por via da dupla conforme, deve logicamente abranger todas as acções instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008, sem o que se geraria contradições lógicas de todo incompreensíveis e insanáveis (a não aplicação da dupla conforme a acções entradas em juízo depois de 1 de Janeiro de 2008 em confronto directo com a imposição desse obstáculo processual às acções entradas antes dessa data, quando o Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, no seu artigo 11º permitia a admissibilidade da revista nos casos configuráveis como dupla conforme, em acções entradas antes da sua vigência, sendo que o novo regime tornou menos rígida e mais favorável à admissibilidade da revista os contornos técnicos dessa figura processual).
Conforme refere, com toda a clarividência, Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2022, 7ª edição, a página 16:
“(…) passou a vigorar um único regime processual para todos os recursos, independentemente da data do início da instância, com ressalva apenas para o valor das alçadas, que continuou a guiar-se pelas normas em vigor à data da instauração da acção, e do obstáculo colocado pela dupla conforme que não se aplica aos recursos de revista interpostos em acções instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008”.
(Desenvolvendo as razões que fundamentam tal posição vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em Conferência, datado de 1 de Março de 2023 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 12927/94.2TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, e para as quais remetemos – havendo sido 1º adjunto nesse mesmo acórdão o ora relator).
Por esse motivo a presente revista foi admitida como revista normal, nos termos gerais do artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil, não se justificando a revista excepcional concretamente interposta pela recorrente, nem a subsequente remessa dos autos à Formação nos termos e para os efeitos do artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Acresce ainda que, contrariamente ao pretendido nas contra-alegações, não é aplicável neste caso o disposto no artigo 14º, nº 1, do CIRE (que não vigorava ao tempo da instauração da acção), sendo entendimento firme e consolidado desta 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, à qual se encontra deferido o conhecimento dos recursos em matéria insolvencial, que aos apensos ao processo de insolvência (incluindo o apenso de reclamação de créditos) é aplicável o disposto no artigo 17º, nº 1, do CIRE, que remete para as regras gerais em matéria de recursos.
2 – Vícios processuais relativos à tramitação e julgamento da causa.
Foram suscitadas pela recorrente diversas questões reportando-se todas elas, exclusivamente, à impugnação de decisões meramente interlocutórias (não finais) proferidas em 1ª instância, de natureza estritamente processual, de que o Tribunal da Relação do Porto conheceu no acórdão recorrido, pronunciando-se no sentido do seu desatendimento.
Concretamente refere-se no acórdão recorrido a este propósito que:
“Assim, as questões a resolver consistem em saber se:
- houve violação do disposto no artigo 3º nº 3 do CPC, proferindo-se uma decisão surpresa, bem como o vício de nulidade, nos termos do artigo 195º nº 1do CPC;
(…)
Expressa, em primeiro lugar, a recorrente que no despacho saneador o Tribunal fixou o questionário, a base instrutória que seria objecto de prova posterior.
Que no início das audiências de julgamento a base instrutória foi substituída pelo tema de prova, só tomando conhecimento da sua definição na própria sentença: “a questão a decidir (e que foi objecto da discussão da causa) é a de saber se os contratos de empréstimo e cessão de crédito a que se refere a reclamante Kelvindale não passaram de um acordo para prejudicar os credores desta falência, esvaziando o património da falida e avolumando artificialmente o seu passivo”. Que a sujeição de todo o processo ao novo regime processual viola o artigo 5º da Lei 41/2013 de 26.6 e criou as condições para se proferir uma decisão surpresa, violando-se, assim, o disposto no artigo 3º, nº 3 do CPC, quer do novo, quer do antigo. Que a decisão surpresa, sem fundamento em qualquer prova produzida, faz enfermar a sentença do vício de nulidade nos termos do artigo 195º nº 1do CPC, e como igualmente resultaria do artigo 200º do anterior Código. Ponderemos.
Como consta da sentença o despacho saneador foi proferido em 2010, com indicação dos factos assentes e elaboração da base instrutória (os factos controvertidos) mas o julgamento decorreu sob as regras estabelecidas no Novo Código de Processo Civil.
Portanto, constata-se que já depois do despacho saneador entrou em vigor o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013 de 26.6.
(…)  De todo o modo, entende-se que o problema de saber se uma concreta norma ou instituto jurídico pertence ao direito substantivo ou ao direito processual civil, não assume, no que concerne ao problema do âmbito de aplicação temporal da lei, importância de maior pois que a regra é a mesma que vale na teoria geral do direito: a lei nova é de aplicação imediata aos processos pendentes, mas não possui qualquer eficácia retroactiva, sem se descurar que a lei processual, por ser de ordem pública e instrumental, reclama em especial o princípio da aplicação imediata. Estamos em face de um processo de reclamação de créditos no âmbito de um processo de execução universal (falência/insolvência), o qual corre por apenso a esta.
O concurso de credores é uma fase da execução (singular ou universal) que se estrutura numa acção declarativa de carácter incidental.
Constitui, pois, um apenso, sendo caracterizado como um processo declarativo de estrutura autónoma, mas funcionalmente subordinado ao processo executivo.
A Lei 41/2013 de 26.6 compreende um conjunto de normas transitórias que se não afastam do estatuído nas aludidas normas dos artigos.  
Importa aqui atentar no seu artigo 5º, 1, que:
“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, é imediatamente aplicável.
2 – As normas relativas à determinação da forma do processo declarativa só são aplicáveis às ações instauradas após a entrada em vigor do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei.
3 – As normas reguladoras dos atos processuais da fase dos articulados não são aplicáveis às ações pendentes na data da entrada em vigor do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei.
4 – Nas ações que, na data da entrada em vigor da presente lei, se encontrem na fase dos articulados, devem as partes, terminada esta fase, ser notificadas para, em 15 dias, apresentarem os requerimentos probatórios ou alterarem os que hajam apresentado, seguindo-se os demais termos previstos no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente.”
Tratando-se, pois, de uma acção declarativa que se encontrava já na fase de instrução quando em 1 de Setembro de 2013 entrou em vigor o novo CPC, este é-lhe imediatamente aplicável, como decorre das aludidas normas transitórias. Significa que deviam ter sido aplicadas, como foram, as regras do novo CPC.
Acontece que o novo CPC adoptou uma estratégia que dispensa uma esquematização formal de questionação e respostas sobre factos.
A elaboração da base instrutória e anteriormente do questionário correspondia a uma forma de disciplinar a instrução, diferenciando a matéria carecida de prova daquela que já estava assente em vista à obtenção de um efectivo e concreto quadro factual para uma adequada e uma justa composição do litígio.
No novo CPC nada de substancial se alterou, sendo que a principal mudança se centra no disposto no artigo 596º, nº 1, do C.P.C., que, derrogando o artigo 511º do diploma anterior, passou a estipular que, “proferido o despacho saneador, quando a acção houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova”. Já no código anterior se definia que “o juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.”
(…)
A instrução da causa tem, nos termos do disposto no artigo 410º do C.P.C., por objecto os “temas da prova enunciados”, devendo a prova testemunhal incidir sobre a “matéria dos temas da prova” de modo preciso e com a indicação da razão de ciência, nos termos do disposto no artigo 516º.
A grande diferença é de método, de táctica para obter o resultado que é sempre o mesmo: a justa composição do litígio.
Agora o método a empregar é mais fluído, deixando-se o rigor formal do questionário e mesmo da base instrutória.
O conceito de temas da prova é dotado de uma flexibilidade que permite que a respectiva enunciação seja ora mais vaga ou difusa, ora mais concreta ou precisa, conforme as características da causa.
O que interessa é que a instrução decorra sem limites artificiais, balizada apenas pelos termos que resultam da causa de pedir e das excepções deduzidas, estabelecendo-se no artigo 5º, do actual C.P.C. que o ónus de alegação que impende sobre as partes se restringe aos factos essenciais que constituem a causa de pedir e àqueles em que se baseiam as excepções invocadas e que os poderes de cognição do tribunal não se circunscrevem aos factos originariamente alegados pelas partes, já que também devem ser considerados pelo juiz os factos que resultem da instrução da causa, quer sejam instrumentais, quer sejam complemento ou concretização dos alegados, exigindo-se, quanto aos últimos, que as partes hajam tido oportunidade de pronúncia.
Importante é, pois, que a enunciação dos temas da prova se contenha nos marcos que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas”.
Com base nestes fundamentos o acórdão recorrido julgou improcedente o recurso de apelação quanto a tais questões de natureza processual e interlocutória.
Ora, tratando-se unicamente da resolução de decisões judiciais interlocutórias (não finais) proferidas durante a tramitação dos autos (concretamente na fase da audiência de julgamento), de natureza estritamente processual, e que se encontram, em termos lógicos, separadas e perfeitamente autonomizadas em relação à questão jurídica principal de fundo (o mérito da impugnação da reclamação de créditos da ora recorrente), o regime aplicável em termos da admissibilidade de revista para o Supremo Tribunal de Justiça é o previsto no artigo 671º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Ora, a recorrente não indicou verdadeiramente qualquer acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que suportasse a indispensável contradição de julgados – que igualmente não justificou - que habilitaria então o seu conhecimento.
Pelo que a decisão proferida no acórdão recorrido sobre esta matéria se tornou definitiva e nessa medida imodificável.
Sempre se dirá de todo o modo que, seguindo o processo – com total conhecimento e anuência das partes – o regime previsto no actual Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho), não se vislumbra que tenha sido cometida qualquer irregularidade processual, tendo sido observada a tramitação relativa a este figurino processual e inexistindo motivo sério e razoável para o espanto e aparente revolta do ilustre mandatário judicial da recorrente.
Conforme consta da sentença proferida em 1ª instância, a questão a decidir (e que foi objecto da discussão da causa) era a de saber se os contratos de empréstimo e cessão de crédito a que se refere a reclamante Kelvindale não passaram de um acordo para prejudicar os credores desta falência, esvaziando o património da falida e avolumando artificialmente o seu passivo.
O julgamento da causa versou assim sobre o único tema que verdadeiramente interessava, ou seja, saber se a reclamante havia efcetivamente procedido ao pagamento ao banco mutuante o preço da cessão de créditos, assim justificando esse seu crédito sobre a devedora, entretanto declarada falida.
Conforme se observou na sentença de 1ª instância:
“(…) a indicação dos factos provados e não provados na presente sentença deve obedecer ao que actualmente se estabelece no Código de Processo Civil, não devendo tal factualidade ficar “resumida” e “limitada” pela base instrutória há muito indicada, antes se analisando os articulados de reclamação de créditos da credora cujo crédito foi impugnado e os articulados de impugnação apresentados pelas credoras CCAM e IVECO e vertendo como provados ou não provados os factos que foram alegados e que foram objecto da discussão da causa”.
Não poderia ser de outra forma, atenta a complexidade da matéria em discussão – bem revelada pelo tempo de duração da produção de prova e pela minuciosa explicação constante da fundamentação da decisão de facto proferida – e o objecto da impugnação apresentada contra o crédito da ora recorrente.
Não aconteceu, portanto, atropelo às disposições processuais aplicáveis, nem qualquer tipo de violação ao direito ao contraditório, livremente exercido pela ora recorrente.
No mesmo sentido não foi cometida qualquer decisão surpresa, proibida nos termos gerais do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, circunscrevendo-se o acórdão recorrido apenas aos temas que foram suscitados nos autos e que tinham a ver com o mérito da reclamação de créditos, bem como da impugnação que lhe foi oposta por diversos credores e que se fundava precisamente em que a cessão de créditos invocada não tinha correspondência em qualquer efectivo pagamento realizado pela ora recorrente, com o intuito de os prejudicar.
3 – Ausência do chamamento do pretenso simulador, com fundamento nas regras do litisconsórcio necessário passivo.
Estando em causa tão somente a apreciação do mérito da reclamação de créditos apresentada pela recorrente não há outrossim fundamento legal para a pretendida intervenção processual, como parte, do dito “pretenso simulador”.
Acresce que se trata aqui, igualmente, de uma decisão interlocutória de cariz estritamente processual que nem sequer foi discutida no âmbito do acórdão recorrido, não competindo a este Supremo Tribunal de Justiça conhecer da mesma, desse logo face ao regime previsto no artigo 671º, nº 2, do Código de Processo Civil.
De resto, trata-se de uma questão nova que não foi sequer objecto de conhecimento por parte do acórdão recorrido, pelo que não poderia em qualquer circunstância, ser objecto de apreciação, em primeira mão, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Por outro lado, estando unicamente em causa o reconhecimento, ou não, da existência de determinado crédito em processo de insolvência, seria sempre totalmente descabida a intervenção nos autos de uma terceira entidade (o banco cedente) que nada tem a ver com a discussão da temática travada nesta instância, não fazendo assim o menor sentido a avocação da figura do litisconsórcio passivo necessário nos termos do artigo 33º do Código de Processo Civil (nada interessando à mesma entidade bancária a questão da proveniência dos fundos que terão servido para o pagamento do financiamento por si concedido à sociedade que veio a ser declarada falida).
Soçobra nestes termos a pretensão formulada pela recorrente.
4 – Prova de que o crédito devido à entidade bancária e objecto de cessão foi satisfeito com fundos pertencentes à própria mutuária e não através do esforço financeiro da cessionária. Limites da força probatória plena relativa ao teor da escritura de cessão de créditos. Aplicação do regime consignado no artigo 394º do Código Civil.
A Kelvindale Limited reclamou um crédito no montante de 265.601.330$00 fundado no pagamento do empréstimo que a Societé Bancaire de Paris, S.A., (com ligações muito próximas ao ex-Banco Espírito Santo, SA) concedera à falida, em 29 de Dezembro de 1997, no valor de 230.000.000$00 (com hipoteca sobre dois prédios) e que teria sido realizado em 1999.
O Liquidatário afirmou que este crédito seria de duvidosa existência uma vez que, pese embora a hipoteca, não vislumbram os movimentos financeiros associados ao empréstimo cujo crédito foi cedido ainda antes do vencimento da primeira prestação e, por outro lado, logo no ano seguinte a falida adquiriu acções próprias no valor de 350.000.000$00 (demonstrando ter feito investimentos e não usando o crédito concedido para pagar aos seus credores).
A comissão de credores acompanhou o Liquidatário afirmando não haver prova dos fluxos financeiros a que se refere o empréstimo e ser esta situação em tudo idêntica a uma outra que foi objecto do processo nº ...98 e que o STJ decidiu de forma favorável.
A comissão de credores apresentou, a este propósito, articulado em que referiu:
Tendo o contrato de empréstimo do qual emerge o crédito reclamado pela Kelvindale Limited sido celebrado em 29 de Dezembro de 1997 e tendo a petição inicial de falência entrado em juízo em 14 de Julho de 1999, não foram identificados movimentos de crédito do montante mutuado nas contas da falida, concluindo-se que tal empréstimo não serviu para financiar o giro comercial da falida, mas sim para aumentar o seu passivo.
 O contrato de financiamento e a escritura de hipoteca aparecem assinados no mesmo dia, pela mesma pessoa – AA – mas o contrato de financiamento surge como tendo sido assinado em ... e a escritura de hipoteca outorgada em ....
Acresce que a falida iniciou a dissipação do seu património em 1997 com a transmissão de um imóvel a favor de uma sociedade constituída no final do ano de 1996 e que tinha como administrador único o TOC da falida e seu advogado; onerou património imobiliário com arrendamentos a favor da Rodasa (em 1997) e negociou o empréstimo aqui em causa.
O montante financiado tinha de ser movimentado até 28 de Janeiro de 1998, mas não há um único credor que tenha sido pago com os montantes mutuados, assim como inexiste prova de que a falida tenha solicitado a utilização dos referidos € 230.000.000,00 ou tenha amortizado os juros do empréstimo concedido, sendo o objectivo deste empréstimo foi tão só o de onerar os imóveis por forma a não poderem os credores da falida receber o que quer que fosse.
Para dificultar tal percepção pelos credores do destino dos montantes aqui em causa, foi o crédito cedido à Kelvindale, constituída e vendida por uma sociedade com sede na ..., e cujo capital social está na posse de trustees que “escondem” a verdadeira identidade dos beneficial owners desse capital.
A cessão do crédito ocorre no dia em que entra em juízo o pedido de declaração de falência da Amave.
Vejamos: 
A reclamante Kevindale Limited veio exigir nestes autos de reclamação de créditos respeitante à falência da Amave, SA, o reconhecimento e graduação deste seu crédito sobre a devedora, o qual assenta fundamentalmente na circunstância de, segundo afirmou, ter procedido ao pagamento do financiamento que fora concedido por uma entidade bancária, a Societé Bancaire de Paris, S.A. (com forte ligação ao ex-Banco Espírito Santo, SA), à dita sociedade Amave, SA, que veio entretanto a ser declarada falida, operando-se por esse motivo, através da respectiva escritura, a correspondente cessão de créditos, acompanhada da transmissão das inerentes garantias reais já oportunamente constituídas em favor da entidade mutuante.
Ora, esse mesmo crédito foi frontalmente impugnado pela comissão de credores e por credores individualmente considerados, com o fundamento essencial que tais pagamentos não foram efectuados, não servindo para extinguir a dívida da Amave, SA., mas apenas para aumentar o seu passivo num momento em que esta já nem desenvolvia a sua actividade, aproximando-se rapidamente a inevitável declaração da sua falência.
 Realizada audiência de julgamento, com a longa e intensa produção das provas apresentadas, a 1ª instância explicou, na fundamentação da sua convicção, os contornos reais da discussão que se travou na presente lide, referindo e concluindo de forma clarividente que:
“(…) se o que foi declarado na escritura pública pela qual o crédito alegadamente foi cedido à Kelvindale não tivesse sido atacado, tais declarações constantes da escritura teriam força probatória suficiente para a prova dos factos constitutivos do direito da Kelvindale.
Porém, tendo sido impugnado o que da escritura consta – designadamente a declaração do pagamento do preço – o que da escritura consta só poderia ser aceite pelo Tribunal se os credores impugnantes (e o Liquidatário) não conseguissem demonstrar o que alegaram.
Tendo sido provado pela prova requerida em juízo pelos credores impugnantes e pela MF que o pagamento da quantia mutuada ocorreu em 22/07/2019 (e não antes de 14/07/1999) através da conta da Amave que havia sido aberta para aí ser creditado o capital mutuado (e não pela Kelvindale), cai por terra a base de sustentação do crédito reclamado pala Kelvindale que afirmava ter sido ela quem havia pago ao Banco Francês o montante que em 14/07/1999 lhe era devido.
E perante a prova do contrário obtida com sucesso pelos credores impugnantes e MF fica esvaziado o alegado crédito da Kelvindale, que deixa de existir.
Deixando de existir o crédito, caem as garantias que serviam ao bom pagamento do crédito – artigo 730º al. a) do Código Civil.
O Tribunal não ignora que foi feita prova de que parte dos montantes com que foi aprovisionada a conta da Amave antes do pagamento ao Banco Francês advieram de uma conta da Kelvindale (cfr. facto nº 10 relativamente à quantia de 61.484.664$00).
Porém, em face do que havia sido alegado pela Kelvindale – de que havia adquirido e pago ao banco o crédito hipotecário de que este era detentor sobre a Amave – não se tornou possível concluir que a Kelvindale tenha pago, com a transferência de 61.484.664$00, o preço da cessão. E por duas razões muito simples: A primeira e óbvia é a de que o preço da cessão não foi estabelecido 61.484.664$00, mas sim em 236.422.945$00, quantia que o Banco exigiu que a Kelvindale pagasse até ao dia 06/07/1999.
E a segunda prende-se com esta relação entre o Dr. EE e AA (e que acima já se referiu) e pela qual temos o ROC da Amave a assumir, aquando da citação para o processo de falência, a pasta de advogado da falida para depois se terminar com a descoberta de que o Dr. EE é, afinal, através da Electrocarro, o dono e beneficial owner da Kelvindale e que havia sido em seu nome que a Kelvindale havia negociado a compra deste crédito.
E assim, cremos que, no limite, a Kelvindale teria sobre a falida um crédito comum de 61.484.664$00 que eventualmente lhe teria emprestado para que a Amave liquidasse junto do Banco francês as suas responsabilidades, crédito esse que, a ter existido, não foi reclamado e, por isso, não será objecto de qualquer decisão nestes autos.
E assim, porque a MF e os credores impugnantes lograram demonstrar que o pagamento do montante mutuado à Amave foi pago pela própria Amave, é forçoso declarar procedente a impugnação deduzida e manter como não reconhecido o crédito reclamado pela Amave”.
Com base nesta motivação (essencial e decisiva) – para a qual concorreu a inquirição dos diversos depoimentos testemunhais referidos na fundamentação e a análise cuidadosa da prova documental junta – foi dada como não provada a realização do pagamento alegadamente feito pela reclamante e que justificava precisamente, enquanto pressuposto essencial, o crédito reclamado.
Ou seja, através da análise dos diversos movimentos bancários/transferências que discriminou, acabou o tribunal por chegar à conclusão de que o dispêndio financeiro relacionado com a restituição do mútuo em apreço foi realizado à custa da própria mutuária Amave, SA, e não da ora reclamante Kevindale Limited.
Logo, por essa razão fundamental, o mesmo não foi reconhecido.
Por sua vez, o acórdão recorrido, no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto apresentada pela reclamante, ora recorrente, apenas procedeu à eliminação dos pontos 15 e 16 dos factos dados como provados por versarem sobre matéria de índole conclusiva e que constituía o cerne do thema decidendum.
Não obstante isso, concordou no essencial com a fundamentação de facto que foi expressa em 1ª instância e concretamente com o sentido da decisão nesse tocante (mantendo a resposta dada quanto ausência de demonstração dos pressupostos de facto do crédito reclamado, mormente a realização do pagamento por parte da reclamante que estaria na origem da alegada cessão de créditos).
Assim sendo, o conjunto dos factos dados como provados e não provados tornou-se a partir daí insindicável, e nessa medida definitivo e intocável, não competindo ao Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre tal matéria, nos termos gerais dos artigos 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil.
(Note-se ainda que, contrariamente ao alegado nas alegações de revista, não existe rigorosamente motivo algum para censurar o uso dos poderes exercidos pelo Tribunal da Relação do Porto ao abrigo do disposto no artigo 662º do Código de Processo Civil.
No acórdão recorrido foi devidamente apreciada a impugnação de facto apresentada pela recorrente, com a análise meticulosa dos depoimentos prestadas e do teor dos documentos juntos, feita em termos particularmente rigorosos e críticos, encontrando-se ainda as ilações e presunções retiradas pelo tribunal devidamente justificadas e não se encontrando inquinadas por qualquer tipo de ilogicidade ou erro manifesto, não padecendo assim do menor vício, independentemente da natural insatisfação da impugnante, ora recorrente, a quem não agradou o juízo de facto que foi legítima e fundadamente extraído).
O que significa que o estratagema encontrado pela reclamante – segundo os factos dados como provados e não provados e agora não susceptíveis de modificação – ao utilizar fundos da própria devedora/falida para alicerçar aparente e ilusoriamente a sua posição credora, beneficiando assim das garantias reais do seu suposto crédito resultante da cessão de créditos (desde modo artificialmente fabricada), impõe forçosamente o total fracasso da sua reclamação de créditos, sendo de conferir toda a razão aos credores que oportunamente se lhe opuseram.
Logo, sendo intocável e imodificável a convicção assumida pelas instâncias que resultou na fixação do elenco dos factos que consideraram provados e não provados (independentemente da patente insatisfação da recorrente e do seu advogado, o Exmo. Sr. Dr. EE, que, segundo o que consta da sentença, começou por ser o ROC da Amave, SA, transitando depois para advogado da falida e descobrindo-se pela produção da prova que era afinal, através da Electrocarro, o dono e beneficial owner da reclamante Kelvindale Limited, havendo em nome desta negociado precisamente a aquisição do crédito em discussão), a procedência da presente revista apenas poderá fundar-se no eventual cometimento no acórdão recorrido de qualquer violação de regras do direito probatório material.
Nessas excepcionais circunstâncias competiria ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer do erro cometido que se traduziria materialmente numa verdadeira questão de direito e não de facto.
Neste particular, afigura-se-nos, contudo, não existir fundamento para a afirmação de qualquer violação das regras de direito probatório material.
Conforme acertadamente se enfatizou no acórdão recorrido:
“Interessa aqui consignar que a cessão do crédito foi efectuada mediante escritura publica, no ... Cartório Notarial ..., ficando aí a constar que o banco cede o seu crédito pelo preço de duzentos e trinta e sete milhões cento e quarenta e quatro mil e quarenta e cinco escudos, quantia esta que já se encontra liquidada e da qual o representante do banco dá integral quitação.
O artigo 371.º, n.º 1, do CC que prescreve que: “fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora”.
Portanto, estão cobertos pela força probatória plena:
i) Os factos praticados pela entidade documentadora, ou seja, a parte em que no final da escritura o notário menciona que a leu e explicou.
ii)- Os factos atestados pelo documentador com base nas suas percepções, ou seja, a parte em que na escritura um outorgante declara perante o notário comprar, receber o que quer que seja identificado nos precisos termos que da escritura constam e em que o outro outorgante declara vender, ceder o bem em causa; e a parte em que um outorgante declara que pagou o preço e em que o outro diz que o recebeu.
Tem-se entendido que quanto a esta categoria de factos, a força probatória plena só alcança as percepções do notário propriamente ditas, ou seja, apenas fica plenamente provado que os outorgantes declararam o que do documento consta, mas já não se tem como plenamente provado que um outorgante quis realmente comprar, receber e o outro quis realmente vender ou ceder e que um pagou mesmo e o outro recebeu mesmo.
Portanto, as declarações negociais constantes da escritura, na sua sinceridade e veracidade, não ficam, com a mera apresentação da escritura, automática e plenamente provadas.
Outra questão é a de estes factos, possam ser destruídos por qualquer meio de prova.
Tal remete-nos para o disposto no artigo 394º, nº do C. Civil que estatui ser inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto “convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou autenticados”.
O nº 2 deste preceito adianta que “A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.”
E o nº 3 completa que:” O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.”
Nesta senda a neutralização dos efeitos jurídicos destes factos, as declarações negociais dos outorgantes, tem necessariamente que passar pela alegação de algum dos vícios de vontade ou divergências entre a vontade e a declaração.
Mas atentando no referido nº 3 verifica-se que que a restrição probatória prevista no preceito não se aplica a terceiros. Quer dizer, o terceiro não é abrangido pelas limitações de prova dos nºs 1 e 2.
É precisamente um acordo simulatório que os credores vêm invocar.
Tem-se considerado que terceiro, para estes efeitos, é todo aquele que não interveio no acordo simulatório, nem representa por sucessão quem nele participou.
Portanto, os credores detendo a posição de terceiros não estão sujeitos a esta contingência probatória”.
Concorda-se inteiramente com as considerações transcritas e que traduzem aliás a jurisprudência firme e consolidada sobre esta mesma questão jurídica.
(Vide, neste tocante e entre outros, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à possibilidade de impugnação da veracidade e autenticidade do que é afirmado pelos celebrantes em acto notarial presidido por oficial público:
 - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2022 (relator Lima Gonçalves), proferido no processo nº 549/19.1T8PUL.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2017 (relatora Graça Amaral), proferido no processo nº 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2016 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 893/05.5TBPCV.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2012 (relator Granja da Fonseca), proferido no processo nº 180/2000.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Setembro de 2016 (relator Silva Gonçalves), proferido no processo nº 165/12.9TBSJP.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 2018 (relator José Rainho), proferido no processo nº 3057/11.5TBPUL-C.P1.S3, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Abril de 2015 (relator Pires da Rosa), proferido no processo nº 28247/10.4TLSNT.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2019 (relator Acácio das Neves), proferido no processo nº 113/17.0T8CNF.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2022 (relator José Rainho), proferido no processo nº 359/16.8T8PTG-B.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
No mesmo sentido e quanto à possibilidade de invocação dos acordos simulatórios por terceiros, vide, entre outros:
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2009 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), proferido no processo com a referência nº 08P1170, publicado in www.dgsi.pt
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Abril de 2021 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 2359/13.0TBVCD.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt.
 - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2014 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 5944/07.6TBVNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
 Assim sendo, o artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil abrange, em termos da força probatória plena, o que foi percepcionado pelo oficial público que presidiu à escritura e aquilo que os outorgantes perante ele declararam.
 Reporta-se, portanto, ao conteúdo extrínseco das declarações prestadas pelas partes perante o oficial público.
Tal força probatória não cobre, não obstante, a restante realidade que subjaz à concretização do negócio, bem como todas as diversas vicissitudes que o envolveram (se houve efectivo pagamento; se o mesmo foi economicamente suportado pelo outorgante que afirmou tê-lo feito ou, ao invés, por outrem; se se tratou, ou não, de um deliberado estratagema para alcançar outras finalidades não assumidas nem reveladas no acto, etc.).
O que significa que tal força probatória plena não é assim extensível ao conteúdo intrínseco das declarações prestadas pelas partes perante o oficial público, não servindo para a atestar a veracidade, autenticidade e validade do que nessa oportunidade foi aí formalmente declarado.
 Assim, estes últimos factos podem ser naturalmente afastados, desmontados ou prejudicados através de qualquer meio de prova pelos interessados em fazê-lo.
Ou seja, a força probatória plena associada à escritura da cessão de créditos em causa não impede de forma alguma as partes interessadas de poderem alegar e provar que os fundos monetários que serviram para solver a dívida respeitante ao financiamento concedido pela entidade bancária, a Societé Bancaire de Paris, S.A., à sociedade Amave, SA, foram feitos à custa do património da própria sociedade mutuária (e logo depois declarada falida) que suportou, no fundo, a restituição do mútuo, com benefício para o aparente cessionário (que não realizou para efeito o necessário esforço económico), tudo com o fito de permitir que este visse o seu aparente crédito protegido pelas garantias reais que foram constituídas sobre bens imóveis da falida, com o inerente prejuízo para os restantes credores.
Com efeito, nem o banco mutuante Societé Bancaire de Paris, S.A.  saberia (nem teria necessariamente de saber), em princípio e em termos de normalidade, à custa de que património foi satisfeito o crédito resultante da celebração do contrato de mútuo, nem na escritura foi de algum modo certificada a concreta proveniência dos fundos monetários que serviram para determinar a mesma entidade bancária à celebração da escritura de cessão de créditos, considerando nada mais ter a receber da sua devedora mutuária e transferindo a sua posição credora, com a inerentes garantias reais, para a dita Kevindale Limited.
Por outro lado, conforme foi salientado no acórdão recorrido, o nº 3 do artigo 394º do Código Civil, afasta a regra da inadmissibilidade da prova testemunhal relativamente ao acordo simulatório desde que seja invocado por terceiros, neste caso os restantes credores da falida, prejudicados com os efeitos do acto simulado.
 Como referem ainda Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1987, 4ª edição, a página 343:
“Advirta-se, em todo o caso, que o artigo 394º se refere apenas às convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento, não excluindo, por conseguinte, a possibilidade de se prova por testemunhas qualquer elemento, como o fito ou motivo por que a dívida documentada foi contraída, que nem é contrário ao conteúdo do documento, nem constitui uma cláusula adicional à declaração”.
(sobre este ponto, vide Luís Pires de Sousa in “Direito Probatório Material”, Almedina, 2023, 3ª edição, a página 231, onde se refere que “o regime do artigo 394º, nº 1, não obsta a que se faça prova testemunhal que tenha por objecto o motivo ou fim do negócio; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1997 (relator Pais de Sousa), publicado in Colectêna de Jurisprudência, Ano 1997, Tomo I, páginas 121 a 125; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2019 (relator Raimundo Queiróz, proferido no processo 955/13.4TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se: “ (…) mesmo não tendo sido impugnado o contrato junto pela Autora, nada impedia o tribunal de conhecer da veracidade do teor, nomeadamente através da prova testemunhal produzida, tanto mais que o contrato não refere qual o destino da quantia mutuada. E, por isso, impunha-se apurar, através dos meios de prova legalmente permitidos, se a quantia mutuada se destinou ou não à prática de actos de comércio objectivos ou subjectivos, nomeadamente no âmbito da constituição e exploração do estabelecimento comercial da Ré. E nada impedia o recurso a prova extrínseca (neste caso testemunhal) para a interpretação do documento particular (contrato).
Assim, não violou as normas do direito probatório a decisão do tribunal da Relação que, na reapreciação da decisão da matéria de facto, em cumprimento do dever de avaliação/valoração/interpretação/apreciação ou fixação da prova, lançou mão de todos os meios probatórios à sua disposição no processo para obter congruência factual com a verdade judicial e histórica do processo”; o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de Janeiro de 2015 (relator Henriques Antunes), proferido no processo nº 2996/12.0TBFIG.C1, publicado in www.dgsi.pt, onde se alude a que: “Uma vez estabelecida a autenticidade do documento – a da assinatura e do contexto – está provado que a apelante emitiu aquelas declarações e, como o facto compreendido nessa declaração é evidentemente contrária aos seus interesses, tem de se dar como plenamente provado que o apelante estava em incumprimento e solicitou a apontada restruturação do passivo (artº 376 nºs 1 e 2 do Código Civil).
É claro que a força probatória material que se atribuir ao documento não obsta a que as declarações nele insertas sejam impugnadas com fundamento em qualquer vício a que a lei associe a ineficácia lato sensu do negócio – v.g., erro, dolo, coacção, etc. Qualquer de tais vícios pode ser provado por qualquer meio, incluindo a prova testemunhal”.
Ora, perante o elenco dos factos dados como provados (e não provados), a bondade e o fundamento jurídico da decisão quanto ao não reconhecimento do crédito da reclamante, ora recorrente, assumida uniformemente pelas instâncias, torna-se evidente, indiscutível e insofismável, nada havendo a alterar quanto ao decidido no acórdão recorrido.
Em suma, provou-se nos autos que a reclamante Kevindale, Limited, veio ao processo de falência exigir o reconhecimento de um crédito por força e a pretexto da realização de um pagamento à entidade bancária Societé Bancaire de Paris, S.A., que afinal não realizou, servindo-se ardilosamente do património da devedora para engenhosamente assumir as vestes formais de credora da falida, condição essa que bem sabia não ser materialmente verdadeira.
A dita transmissão desse crédito só aconteceu – segundo os factos dados como provados e não provados – porque a própria devedora, ulteriormente declarada falida, suportou ela o correspondente esforço financeiro, através das inerentes operações bancárias, com o fito de vir a alcandorar a dita sociedade Kevindale Limited à artificial posição de credora e beneficiar assim das inerentes garantias reais constituídas a favor da entidade bancária, colocando os bens hipotecados a salvo e afectos exclusivamente à satisfação do seu particular interesse, ficando os restantes credores gravemente prejudicados por este estratagema entabulado com tal censurável desiderato.
Pelo que tal crédito não foi – e muito bem – reconhecido.
Negar-se-á assim a revista.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 11 de Julho de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Graça Amaral

Ricardo Costa (vencido conforme declaração junta)

 
V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.

     


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Processo n.º 176/14.0T8OAZ-A.P1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, ... Secção


DECLARAÇÃO DE VOTO


Votei vencido, pelas razões que exponho.

1. Não conheceria do objecto do recurso como revista normal, à luz do art. 671º, 1, do CPC (questão jurídica 1.), no que respeita ao mérito da impugnação do crédito reclamado pela Recorrente (questão jurídica 4.), em acção, a que o apenso autónomo da reclamação, verificação e graduação de créditos respeita, instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008, uma vez aplicável o art. 721º, 3, do CPC 1961, na versão introduzida pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto – “dupla conformidade” por coincidência de julgados sem atender à fundamentação –, por força da interpretação que sustento para o pertinente art. 7º, 1, da Lei 41/2013, de 26 de Junho (v. a minha Declaração de Voto, parte A), no acórdão proferido no processo n.º 12927/94.2TVLSB.L1.S1, de 1/3/2023, in www.dgsi.pt).
Logo, remeteria prioritariamente para a Formação Especial do STJ a que alude o art. 672º, 3, do CPC para ser apreciada a admissão ou não da revista como excepcional (tal como interposta pelo Recorrente) nesse segmento, ao abrigo do regime do art. 672º do CPC, normativo este que não foi de todo ressalvado pelo referido art. 7º, 1; sem prejuízo da superveniente apreciação (art. 672º, 5, CPC) dos segmentos recursivos relativos ao (i) uso dos poderes exercidos pela Relação ao abrigo do art. 662º do CPC, que descaracteriza a “dupla conforme” para efeitos de revista normal, e à (ii) pronúncia (originária e a título próprio) pela Relação da nulidade arguida na apelação em virtude de prolação de “decisão-surpresa”, também sem dupla conformidade (arts. 615º, 1, d), 2ª parte, 195º, 1, 615º, 4, 2ª parte, 671º, 1, 674º, 1, c), CPC), que são objecto de pronúncia no presente acórdão (e sem prejuízo ainda da bondade do decidido quanto à questão jurídica 3.).

2. Não conheceria do objecto do recurso no que respeita à revista “continuada” das decisões interlocutórias processuais de 1.ª instância, especificadas e reapreciadas pela Relação (questão jurídica 2.), em conexão com a referida nulidade, tendo em conta o regime do art. 671º, 2, do CPC (com remissão para o art. 629º, 2), e não sendo aqui líquida a verificação da “dupla conformidade” impeditiva tendo em conta a apreciação em primeira mão de tais questões pela Relação, uma vez verificado que a Recorrente não alega nem fundamenta essa impugnação em qualquer das hipóteses taxativamente contempladas pelo n.º 2 desse art. 671º.

STJ/Lisboa, 11/7/2023

O 1.º Adjunto

Ricardo Costa