I - Sempre que o caso julgado imponha (na mesma ou em outra acção), entre as mesmas partes, o sentido da decisão que lhe é inerente, entra nos fundamentos da nova decisão e mostra-se dimensionado na sua característica de força e autoridade dentro do processo e fora dele.
II –A decisão, transitada em julgado, proferida em acção especial de acompanhamento de maior (em que foi beneficiário o Requerente de inventário facultativo para partilha da herança aberta por falecimento de seus pais), é vinculativa para, nestes autos de inventário, obstar a que a representação processual do Requerente possa ser definida, de modo diverso, do consignado na medida de acompanhamento decretada.
III - Determinar se a decisão recorrida respeitou o âmbito e conteúdo do acompanhamento decidido impõe uma tarefa interpretativa quanto à decisão que decretou a medida, que passa, necessariamente, pela interpretação da sua fundamentação em função do contexto dos seus antecedentes e dos demais elementos constantes do processo que se revelem pertinentes, sempre garantindo que o sentido apurado tenha a devida tradução no respectivo texto.
IV - A medida de acompanhamento decretada consubstanciada na representação especial no que concerne aos actos de administração dos seus rendimentos terá de ser entendida como abarcando os actos de tutela de património (como o de propor acções) e não apenas os actos de gestão ordinária, por resultar da fundamentação fáctica da sentença que a medida aplicada não foi alicerçada apenas na (in)capacidade física do beneficiário (tetraplégico), sendo mais abrangente, respeitando ainda a falta de cabal compreensão de certos actos, uma vez que consta da sentença (relatório) não ter sido possível citar o beneficiário por este não compreender o alcance do acto; e não ser o mesmo capaz de tomar decisões (motivação da fundamentação de facto).
V - Mostrando-se vinculativa a medida de representação especial, não podia o Requerente permanecer no processo de inventário facultativo sem se encontrar processualmente representado, o que imporia a intervenção da acompanhante nomeada nos termos determinados (citação do cônjuge do Requerente e ratificação do processado).
I – Relatório
1. AA, Requerente nos autos de inventário facultativo para partilha da herança aberta por falecimento de seus pais, BB e CC, veio recorrer (invocando os artigos 629.º, n.º2, alínea a), 674 n.º 1, a), 675 n.º 2 e 676.º, do Código de Processo Civil) do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que entendeu não merecer censura o despacho de 1.ª instância[1] que declarou extinta a instância por ilegitimidade do Requerente (por não se encontrar representado nos termos da medida de acompanhamento decretada) e caducidade do apoio judiciário
Concluiu o Recorrente nas suas alegações (transcrição):
1 - O Recorrente entende que o Acórdão recorrido ofende o caso julgado, em suma porque aprecia a capacidade de exercício do recorrente, á revelia de sentença proferida em processo de acompanhamento de maior, já transitada em julgado e que instruiu o recurso de Apelação apresentado, violando assim o disposto nos art. 619º nº 1 e 621º do CPC.;
2- Concluindo que este não tinha capacidade para se representar nos presentes autos, sustentando para o efeito que o Recorrente beneficiava de uma medida de acompanhamento de mais alargada e limitativa da capacidade de exercício livre e autónoma, ao invés de uma medida de acompanhamento de representação especial, tal qual resulta da sentença proferida naquele processo de acompanhamento.;
3 - O Acórdão, concluindo pela incapacidade mais alargada, sustentou toda a apreciação da restante matéria o que invariavelmente conduziu á improcedência das questões apreciadas.;
4- Veja-se a propósito da autoridade do caso julgado Ac. do TRP de 11.10.2018.;
5 – Considerou-se improcedente o recurso, desde logo porque se entendia efectivamente haver falta de capacidade do Recorrente e em segundo lugar por não ter sido violado o principio do contraditório na tomada de decisão que considerou haver falta de capacidade judiciária do recorrente.;
6 - Não se conformando com tais decisões pelo que recorre das mesmas, o que faz.;
7 – deve ainda ser apreciada a questão da caducidade do Apoio Judiciário, uma vez que o douto Acórdão de que se recorre, entendeu estar dispensado de se pronunciar.;
8 - O Acórdão proferido, deve ser reformado, nos termos do disposto nos art.s 666º nº 1, 685º e 616º nº al. b) do CPC, por constarem do processo documentos com força provatória plena, que implicam decisão diversa da tomada no Acórdão recorrido
Ofensa do caso julgado:
9 - O Acórdão, quanto á incapacidade do Recorrente, aquilata da incapacidade do Recorrente para se representar nos presentes autos, pela analise quer da certidão de sentença proferida no processo de acompanhamento, quer da certidão de nascimento.
10 - Entendendo-se que, a questão da capacidade do Recorrente revelava tal simplicidade, que havia de ter sido notada pelo advogado oficioso e que não carecia de contraditório (art. 3º CPC) aquando decidida, como foi no despacho de 30-06-2022.;
11 – Tal questão revelaria esta simplicidade de colhimento, se na verdade houvesse sido determinada a representação geral do Recorrente, impõe-se nos presentes autos, para que não se incorra em lapsos manifestos, a leitura da sentença proferida no processo de acompanhamento, que ipsis verbis, depois de reconhecer a incapacidade motora e a capacidade intelectual plena do Recorrente, dispôs, “ No caso atento o que se demonstrou quanto á falta de capacidade do beneficiário, entendemos que ao acompanhante deve atribuir-se a representação especial, no que concerne aos actos de administração dos seus rendimentos, bem como, na gestão diária do seu bem estar.”
12 – Nunca foi cerceada ao Recorrente administração do património;
13 – a respeito do âmbito do acompanhamento, veja-se aAc TR Guimarães 19-05-2022 (www.dgsi.pt)
14 – Não pode colher o argumentário, tanto da obrigatoriedade do conhecimento da incapacidade de exercício, bem como da simplicidade da questão, uma vez que se demonstra claramente existir desconformidade entre o averbamento na certidão de nascimento e a sentença proferida.;
15 – Pelo que se demonstra que o Acórdão da qual se recorre aprecia a capacidade do Recorrente se representar nos presentes autos, de uma forma que conflitua directamente com a prévia apreciação da capacidade de exercício do Recorrente, levada a cabo no processo de acompanhamento que correu termos no Juízo Local Cível ... sob processo n.º 212/20.....;
16 -Sendo a medida de acompanhamento a determinada efectivamente pela sentença proferida no processo de acompanhamento que correu termos no Juízo Local Cível ... sob processo n.º 212/20...., o Recorrente mantém plena capacidade para se representar em juízo e ainda seria sempre surpreendente decisão que o considerasse incapaz., pelo que sempre que se chamasse á colação o art. 145º nº 4 do CC, impunha-se que se acautela-se que ali se determina que a aplicação nomeadamente do art 1938º do CC, seria sempre com as necessárias aplicações, nomeadamente, atentando á especificas medidas de acompanhamento determinadas.;
17 - O acompanhamento determina medidas de acompanhamento especial que se traduzem representação especial para actos de administração dos seus rendimentos bem como na gestão diária do seu bem estar, por força da incapacidade física do Recorrente e não cerceiam nem especial nem em abstrato o livre de qualquer outro direito, não pode o Acórdão recorrido ignorar este facto e forçar a aplicação do art. 1938º do CC, como se existisse de facto um acompanhamento com representação geral, porque não é isso que dispõe o nº 4 do 145º do CC.
18 - O Acompanhamento, só determina em especial quais os actos que a Acompanhante passa a poder fazer pelo Recorrente, mas não limita o Recorrente na faculdade de propor ações e cuidar do seu património, salvo a devida vénia por entendimento diferente, não será aceitável defender-se um regime de tutela que vai para alem do acompanhamento determinado.
19 - O acompanhamento determinado, impôs-se não pela incapacidade mental do Recorrente, mas pela sua incapacidade física e a medida de representação especial reflecte isso de forma evidente, medida em que não se traduz unicamente em actos de gestão ordinária e não abarcam actos de tutela de património. Pelo que não será admissível atentando á medida especial determinada, a aplicação do art. 1938 nº 1 c) do CC, isto conflitua de frontalmente com o determinado na sentença proferida no processo de acompanhamento, na medida em que se considera haver uma representação mais ampla do que aquela que existe na realidade.
20 - Assim, a decisão impugnada que fixa a incapacidade do Recorrente, não pode fixar limitações de exercício para alem das determinados no acompanhamento e muito menos se pode considerar que esta seria expectável para o Recorrente ou que revestia especial simplicidade para que se decida da mesma sem admitir o exercício do contraditório, nos termos do art, 3º do CPC.;
21 - Ao Recorrente foi determinada a representação especial para administração dos rendimentos e não do património devido a uma impossibilidade motora do Recorrente, nos termos do disposto no art. 138º, e 145º nº 1 e nº 2 al. b) do CC e é isto que a sentença especifica expressamente, pelo que, destituir de capacidade de exercício o Recorrente por aplicação sem reservas o regime do art. 1938º do CC, é ofender o caso julgado, que expressamente determinou as medidas e os fundamentos do acompanhamento do Recorrente. No fundo o tribunal ao determinara aplicação do art. 1938º do CC, esta a ir alem do que o acompanhamento determina e coarcta direitos que o acompanhamento não limitou. Veja-se aAc TR Guimarães 02-06-2022 (www.dgsi.pt)”
22- Pelo que se entende que o Acórdão recorrido ofende o caso julgado, nos termos do 619º, do CPC, devendo ser revogado e por conseguinte julgada procedente a revogação do despacho de 30-06-2022 de que se apelou, por se verificar que o Recorrente mantém plena capacidade para se representar nos presente autos, caso assim não se entenda deve ser julgada procedente a invocada nulidade do despacho, pelo não exercício do contraditório, acerca de uma decisão que não reveste simplicidade nem era espectável e nessa medida não admitia a dispensa do contraditório nos termos do art. 3º do CPC.;
23 - Ao decidir de forma contraria á sentença transitada em julgado, que não podia ignorar, o tribunal decidiu erroneamente todas as questões a apreciar na apelação, quais sejam como supra se expôs, a imperatividade do exercício do contraditório e a plena capacidade do Recorrente em se representar em juízo na ação de Inventário.;
24 - Face ao exposto impõe-se salvo a devida vénia por entendimento diferente a revogação do acórdão, recorrido por ofensa ao caso julgado, por violador dos disposto no art. 619º CPC e concomitantemente, a procedência da invocada revogação despacho de 30-06-2022 despacho por se verificar que o Recorrente mantém plena capacidade para se representar nos presente autos, dado que só foi determinada a representação especial para administração dos rendimentos e não do património, pela concretas razões de mobilidade supra aduzidas.;
25 - Deve sempre ser ainda considerada a nulidade do mesmo despacho, pelo não exercício do contraditório, por não haver conhecimento prévio da decisão e por não se pode extrair da medida de acompanhamento a incapacidade do Reclamante para propor a presente ação, e assim sendo a excepção da incapacidade, não reveste simplicidade nem é espectável e nessa medida não admitia a dispensa do contraditório nos termos do art. 3º do CPC.;
26 - No que ao apoio judiciário deve ser ordenada a apreciação da questão que a Relação se julgou a questão prejudicada pelas decisões que acolhiam a incapacidade do Recorrente, considerando a desnecessidade na apreciação do mérito, pelo que se pugna ainda para que nesta parte se julgue recurso procedente, primeiro por não se ter admitido o exercício do contraditório quando se apreciou a validade do apoio judiciário do Reclamante e segundo por o juiz do tribunal ad quo e ter decidido sobre matéria que não era da sua competência, quando determinou a caducidade do apoio judiciário.;
27 - o Acórdão recorrido enuncia que o Recorrente queria na verdade recorrer sentença que julgou extinta a instancia, mas que o terá feito de forma antecipada, sucede que ao fazê-lo, a Relação, inquinou a correcta apreciação da possibilidade de exercício do contraditório.;
28 - O Recorrente não Apelou da sentença que extingue a instancia, o recorrente recorre da decisão que apreciou o mérito da questão e declarou a incapacidade deste em se representar nos autos e que julgou verificar-se a caducidade do apoio judiciário. Entendimento este sufragado pelo tribunal ad quo, que nesse seguimento, admitiu o recurso interposto, fixou o efeito devolutivo do mesmo e a sua subida em separado, facto que embora não vincule a relação a verdade é que o Acórdão recorrido não censura concreta e objectivamente o mesmo.;
29 - Recorrente, notificado do Despacho de 30-06-2022, não tinha já como exercer o contraditório quanto ás questões ali decididas, o que aquele despacho determinava era que, face ao decidido, quais os comportamentos a adoptar por terceiro, para que a instancia não fosse extinta, era esta a estatuição daquele despacho.
30 - O Recorrente não tinha que recorrer da decisão que viesse a determinar a extinção da instancia, na medida em que no caso de ter que recorrer da mesma, o objecto desse recurso só poderia ser o de demonstrar cumpridas ou não as injunções impostas pelo despacho de 30- 06-2022, que no caso se reportavam à intervenção da esposa deste, na qualidade de representante legal, no sentido de esta, naquela qualidade, declarar ratificar o processado e pagar a respectiva taxa de justiça ou juntar comprovativo de pedido de apoio judiciário.
31 - Em suma, o despacho julga a incapacidade e a caducidade do apoio, a sentença de extinção de instancia julga o cumprimento do estatuído naquele despacho, sob pena de extinção da instancia.;
32 - O despacho de 30-06-2022, não difere no tempo a solução definitiva no que respeita á capacidade do Recorrente e á caducidade do apoio judiciário, aquele despacho decide definitivamente as questões, deixando as mesma de ser sindicáveis pelo mero exercício do contraditório naqueles autos, no caso de discordância impunha-se o recurso e foi o que o Recorrente fez.
33 - O Tribunal ad quo, antes de decidir a Incapacidade do Recorrente e a Caducidade do Apoio Judiciário nunca permitiu a este que se pronunciasse sobre as questões que veio a decidir, o que não podia ter acontecido considerando o principio do contraditório.;
34 - O único acto jurisdicional que aprecia e decide a capacidade do Recorrente e a caducidade do apoio judiciário é o despacho de 30-06-2022, e foi deste que se apresentou recurso pelo que não faz sentido afirmar-se que o contraditório poderia exercer-se no momento posterior ao mesmo, nomeadamente no espaço que medeia aquele despacho e a sentença de extinção da instância.”
2. Não foram apresentadas contra-alegações.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO
De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), tendo presente o valor da acção [2] e o facto do Requerente indicar, como um dos fundamentos em que sustenta a sua pretensão recursória, a ofensa de caso julgado, porque a admissibilidade do recurso se encontra fundada no artigo 629.º, n.º2, alínea a), do CPC, o conhecimento do respectivo objecto encontra-se restrito à apreciação da questão da ofensa do caso julgado[3]:
1. Os factos
O tribunal a quo fixou as seguintes ocorrências processuais com relevância para o conhecimento do objecto do recurso:
1. AA veio requerer que se proceda a Inventário Facultativo para Partilha da Herança Aberta por falecimento de seus pais, BB e CC.
2. A presente acção foi instaurada em 12-11-2021.
3. Na sua certidão de nascimento consta o seguinte averbamento: Averbamento n.º2, de 2020-06-30 Ao registado foi aplicada a medida de acompanhamento de representação geral e designada como sua acompanhante DD, mulher do beneficiário com poderes de representação geral da beneficiária, por sentença de 29 de maio de 2020 e transitada em julgado em 19 de junho de 2020, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível .... Documento n.º ...63, maço n.º 2, ano 2020 da Conservatória do Registo Civil .... Oficial de registos (a) EE, Conservatória do Registo Civil ....
4. Em 30-06-22 foi proferido despacho que determinou a junção aos autos da sentença que determinou a medida de acompanhamento aplicada ao apelante, nos seguintes termos; “julgo a acção procedente por provada, decretando a medida de representação especial no que concerne aos actos de administração dos seus rendimentos, bem como, na gestão diária do seu bem-estar”.
5. Essa decisão foi proferida em 28-05-2020 e transitou em julgado.
6. Foi concedido apoio judiciário ao Autor no dia 18-06-2020.
7. Em 30-06-2022 foi proferido o seguinte despacho: “Dispõe o art. 11.º da Lei n.º 34/2004, de 29.07 (Acesso ao Direito e aos Tribunais), sob a epígrafe “Caducidade” que: “1- A proteção jurídica caduca nas seguintes situações: (…) b) Pelo decurso do prazo de um ano após a sua concessão sem que tenha sido prestada consulta ou instaurada ação em juízo, por razão imputável ao requerente. (…)”. A caducidade é de conhecimento oficioso – cf. art. 333.º, n.º1, do Código Civil. O benefício de apoio judiciário concedido ao Autor já caducou. Considerando que a cônjuge do Requerente, DD, foi nomeada para o exercício de funções de acompanhante, tendo-lhe sido conferidos poderes de representação especial no que concerne aos atos de administração dos rendimentos, gestão diária do bem-estar de AA, e estando em causa, no presente processo, a aceitação e administração do património que advém da herança por óbito deste, determino a citação da cônjuge do Requerente, DD, na qualidade de representante legal do Requerente, AA, nomeadamente para, no prazo de 10 (dez) dias, proceder: a) À ratificação do processado; e b) Proceder à junção de comprovativo do apoio judiciário ou do pagamento da taxa de justiça devida, sob pena de desentranhamento do requerimento inicial e consequente extinção da instância - cf. art. 558.º, n.º1, alínea f), do Código de Processo Civil.
8. Essa citação ocorreu em 11-07-2022.
9. Até à data do despacho de 04-10-22 DD não interveio nos autos.
2. O direito
Da ofensa ao caso julgado
1. Conforme referido, o objecto do presente recurso prende-se, unicamente, com a questão de saber se a decisão proferida pelo tribunal a quo, ao considerar que o Recorrente, necessitava de ser representado pela acompanhante (nomeada em acção especial de acompanhamento) para requerer inventário facultativo para partilha da herança aberta por falecimento de seus pais, violou o caso julgado constituído pela sentença proferida naquela acção, que decretou ao aqui Recorrente, na qualidade de beneficiário, a medida de representação especial no que concerne aos actos de administração dos seus rendimentos, bem como, na gestão diária do seu bem-estar.
Isto porque o tribunal a quo, na esteira da 1.ª instância, considerou que a instauração da acção visava a prática de um acto de administração não corrente que impunha a representação do Requerente. Justifica o acórdão recorrido:
- “Decorre dos factos provados que o apelante está sujeito a uma medida de acompanhamento. O artigo 138º do Código Civil dispõe que “o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento, de exercer plena, pessoal conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia de medidas de acompanhamento previstas neste Código”. Nos termos do art. 147º do Código Civil “O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário”. Mas, os restantes actos de administração (como por exemplo contrair empréstimos ou aceitar herança) precisam de ser autorizados. Basicamente o acompanhamento visa evitar que este tome decisões que afetem irreversivelmente a sua vida ou o seu património.
Acresce que existe uma norma expressa constante do art 19º, do CPC que determina “1-Os maiores acompanhados que não estejam sujeitos a representação podem intervir em todas as ações em que sejam partes e devem ser citados quando tiverem a posição de réus, sob pena de se verificar a nulidade correspondente à falta de citação, ainda que tenha sido citado o acompanhante. (Mas) 2 - A intervenção do maior acompanhado quanto a atos sujeitos a autorização fica subordinada à orientação do acompanhante, que prevalece em caso de divergência. (nosso sublinhado). Ora, in caso o apelante é autor e o objecto da acção é a aceitação da herança a qual é um acto de administração não corrente. Por isso, a Acompanhante deverá, até para intentar ações em nome daquela, obter a prévia autorização do tribunal, salvo se a ação se destinar à cobrança de prestações periódicas ou se a demora da ação puder causar prejuízo ao representado – cf. art. 1938.º, n.º 1, al. e), aplicável ex vi do art. 145.º, n.º 4, ambos do CC.1 Nestes termos, “o representante nomeado no processo de proteção através de acompanhamento é citado para o processo (art. 20, do CPC). E, nos termos do artigo 27.º, do mesmo diploma: “1 - A incapacidade judiciária e a irregularidade de representação são sanadas mediante a intervenção ou a citação do representante legítimo do incapaz. Note-se aliás que a aceitação da herança até depende de autorização (art. 1938º, al c), do CC).”
Entendimento diverso tem o Recorrente defendendo que o acórdão apreciou inadequadamente a sua capacidade de exercício, não tendo em conta a sentença proferida em processo de acompanhamento. Considera, assim, que na sentença o acompanhamento foi determinado pela sua capacidade física diminuída (dado ser tetraplégico) e, não, por incapacidade mental, pelo que a medida de representação especial, reporta-se, unicamente, em actos de gestão ordinária, não abarcando actos de tutela de património, não tendo aplicação o artigo 1938, n.º 1, alínea c), do Código Civil.
Conclui o Recorrente que tendo sido determinada na sentença a representação especial para administração dos rendimentos (e não do património) face à sua impossibilidade motora, o acórdão ao destituí-lo de capacidade de exercício por aplicação, sem reservas, do regime do artigo 1938.º, do Código Civil, ofende o caso julgado, que expressamente determinou as medidas e os fundamentos do acompanhamento do Recorrente.
Vejamos.
2. O caso julgado pode funcionar como obstáculo ao conhecimento de mérito (é a sua característica de excepção dilatória - artigos 576.º, n.º2, 577.º, alínea i), 580.º, do CPC) ou impor na mesma ou noutra acção, entre as mesmas partes, o sentido da decisão que lhe é inerente, entrando, neste caso e desse modo, nos fundamentos da nova decisão. Neste sentido se consubstancia a sua característica de força e autoridade dentro do processo e fora dele, reconhecida e regulamentada nos artigos 619.º e ss., do CPC[4].
A função do caso julgado é a de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir decisão anterior – artigo 580.º, n.º2, do CPC.
Na situação sob apreciação interessa perspectivar o caso julgado material sob o seu efeito positivo, ou seja, no dizer do STJ de 30.03.2017, em termos de implicar “o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção ulterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.”.[5]
A tal respeito refere Miguel Teixeira de Sousa “o caso julgado material pode valer como autoridade de caso julgado, quando o objecto da acção subsequente é dependente do objecto da acção anterior como excepção do caso julgado, quando o objecto da acção posterior é idêntico ao objecto da acção antecedente” e representa “o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente” Assim, “quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente (…). Ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalecente um efeito vinculativo. [6]
Mostra-se o instituto da autoridade de caso julgado caracterizado em termos de uma diversidade entre os objectos dos dois processos (o que não ocorre na excepção que tem subjacente uma identidade entre esses objectos) em que o decidido na primeira acção surge como condição, como pressuposto necessário para apreciação do objecto processual da segunda acção.[7]
Nesta especificidade - uma relação de prejudicialidade ou dependência entre as causas - não permite que se ultrapasse a exigência de identidade subjectiva.
Como refere a este propósito o acórdão do STJ de 14-05-2019 “A vinculação à anterior decisão pressupõe o trânsito desta e, diferentemente da excepção do caso julgado, depende apenas da verificação da identidade subjectiva dos litigantes, da existência de uma evidente conexão entre os objectos de cada uma das acções, havendo ainda que apurar se o conteúdo daquela decisão se deve ter como prejudicial em relação à decisão a tomar na acção sequente”. [8]
Esta exigência reportada aos sujeitos enquanto destinatários da decisão assume cabimento numa estreita correlação com o princípio do contraditório e com o imperativo constitucional previsto no artigo 20.º, n.º4, da Constituição da República Portuguesa, e, por isso, os limites subjetivos do caso julgado coincidem com os limites subjetivos do próprio objecto da decisão[9].
Consequentemente, a autoridade de caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tida como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica, como definido pelo artigo 581.º, n.º 2[10].
3. Perante as considerações expostas, não há dúvida de que, tendo transitado em julgado a decisão proferida na acção especial de acompanhamento (Processo n.º 212/20....) em que foi beneficiário o aqui Recorrente, os seus efeitos não podem deixar de ter aceitação no caso dos autos, obstando a que possa ser definida, de modo diverso do consignado naquela decisão[11].
Determinar se a decisão recorrida respeitou o âmbito e conteúdo do acompanhamento decidido impõe uma tarefa interpretativa quanto à decisão que decretou a medida.
Nesse propósito, a determinação do alcance da referida decisão judicial[12] passa, necessariamente, pela interpretação da sua fundamentação em função do contexto dos seus antecedentes e dos demais elementos constantes do processo que se revelem pertinentes, sempre garantindo que o sentido apurado tenha a devida tradução no respectivo texto.[13].
Vejamos.
Consta do dispositivo da sentença: “Nos termos expostos, julgo a acção procedente por provada, decretando a medida de representação especial ao que concerne aos actos de administração dos seus rendimentos, bem como, na gestão diária do seu bem-estar”.
Defende o Recorrente que o acórdão recorrido fez interpretação díspar do segmento representação especial ao que concerne aos actos de administração dos seus rendimentos, entendendo-o como limitativa de cuidar do seu património (e, por isso, de propor acções). Segundo o Recorrente, a medida de acompanhamento que foi decretada impôs-se apenas pela sua capacidade física diminuída (dado ser tetraplégico), nada tendo a ver com qualquer incapacidade mental; daí que se tenha circunscrito a uma representação especial reportada aos actos de gestão ordinária, não abarcando actos de tutela de património.
Na sequência do referido, a interpretação da expressão “actos de administração dos seus rendimentos” ínsita na decisão não se pode cingir aos termos do dispositivo em desconexão da fundamentação que a alicerça, designadamente, os fundamentos fácticos e a motivação constantes da sentença, impondo, pois, atender as antecedentes estruturais da sentença.
Na verdade, resulta provado que AA, com 57 de idade, sofreu um acidente que o deixou tetraplégico e que necessita de supervisão em termos de cuidados de higiene, bem como, para tomar medicação, gerir o seu património, etc. a qual é dada pela esposa (factos 1 a 3). Mostra-se ainda apurado que o mesmo não é capaz de fazer compras de modo autónomo, que se orienta no tempo e no espaço, sabe quantas horas tem um dia, consegue classificar os objectos por classes é capaz de fazer cálculo mental simples e sabe ler e escrever (factos 5 a 10).
O tribunal fez constar na motivação do factualismo provado que o mesmo resulta “da certidão de assento de nascimento junto aos autos, documentação clínica que acompanhou a petição inicial e, bem assim, atendendo ao resultado da diligência de audição do beneficiário, onde pudemos constatar a veracidade dos factos supra elencados, tendo, também, a mulher do beneficiário confirmado que este depende de si para todas as tarefas do dia-a-dia, e que não é capaz de tomar decisões.” (sublinhado nosso).
Importa igualmente ter em conta que no relatório da sentença consta “Anunciada a propositura da acção e não tendo sido possível citar o beneficiário por este não compreender o alcance do acto. Foi nomeado defensor, sendo o mesmo citado, não ofereceu contestação.” (sublinhado nosso).
Na referida sentença e na integração jurídica dos factos, para justificar a aplicação de medida de acompanhamento, o tribunal referiu:
“Ora, a declaração médica que acompanhou a petição inicial e, bem assim, o teor da certidão negativa e citação junta, e o contacto que tivemos com o beneficiário aquando da sua audição, fornecem prova a cabal da sua incapacidade e sustentam a aplicação de uma medida de acompanhamento.
(…) No caso, atento o que se demonstrou quanto à falta de capacidade do beneficiário, para, entendemos que ao acompanhante deve atribuir-se a representação especial no que concerne aos actos de administração dos seus rendimentos, bem como, a gestão diária do seu bem-estar.”
Neste quadro, não há dúvida de que o que está em causa nos autos – inventário facultativo para partilha de herança, que pressupõe a aceitação e administração do património que advém da herança - sai do âmbito de actos de administração corrente e não pode deixar de estar integrado naquilo que a sentença refere de “actos de administração dos seus rendimentos”; consequentemente, tal como decidido pelas instâncias, encontra-se abrangido pela medida de representação especial, o que imporia a intervenção da acompanhante nomeada nos termos determinados (citação do cônjuge do Requerente e ratificação do processado).
Não ocorre, por isso, a alegada violação do caso julgado anterior consubstanciado pela sentença que decretou a medida de acompanhamento de representação especial relativamente ao Recorrente.
Improcedem, assim, as conclusões do recurso.
IV – DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 11 de Julho de 2023
Graça Amaral (Relatora)
Maria Olinda Garcia
Ricardo Costa
Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC
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[1] O acórdão recorrido entendeu ser de alargar o âmbito do objecto da apelação fazendo incluir o despacho de extinção da instância (que foi proferido posteriormente à interposição do recurso relativamente ao despacho recorrido - de 30-06-2022 -, que havia determinado a citação da cônjuge do Requerente, enquanto representante legal, para, em prazo, ratificar o processado e juntar comprovativo do apoio judiciário ou do pagamento da taxa de justiça devida, sob pena de desentranhamento do requerimento inicial e consequente extinção da instância). Justificou o tribunal a quo tal abrangência nos seguintes termos: “Em rigor essa decisão foi proferida depois da admissão do recurso, não faz parte do despacho recorrido e, por isso, não poderia ser apreciada. Todavia é manifesta a intenção da parte a impugnar, pelo consideramos que o fez antecipadamente.”.
[2] Que excluiria a admissibilidade da revista por ausência de um pressuposto geral – valor da acção superior à alçada do tribunal de que se recorre.
[3] Conforme tem vindo a ser entendido neste tribunal, tendo sido interposto recurso para o STJ com fundamento em violação do caso julgado, em acção cujo valor é inferior ao da alçada da Relação, não pode o recorrente suscitar outras questões que se não inscrevam no âmbito daquele fundamento – cfr. entre outros acórdão de 15-02-17 e de 22-11-2018 (respectivamente proferidos nos Processos n.ºs 56/13.6TBTMC.G1.S1, 408/16.0T8CTB.C1.S1), disponíveis nas Bases Documentais do IGFEJ.
[4] De acordo com o disposto no n.º1 do artigo 619 do CPC, a decisão (transitada em julgado) sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro e fora do processo, constituindo assim o caso julgado material.
[5] Processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1 – disponível nas Bases Documentais do ITIJ.
[6] O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ, nº 325, pp. 171, 172.
[7] Cfr. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354.
[8] Processo n.º 1204/12.9TVLSB.L1.S3, disponível nas Bases Documentais do ITIJ. Também nesse sentido e entre outros os acórdãos do STJ de 6/11/2018, Processo n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1, de 27-02-2018, Processo n.º 2472/05.8TBSTR.E1 e de 07-03-2017, Processo n.º 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1, todos disponíveis nas Bases Documentais do ITIJ.
[9] Rui Pinto, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Julgar Online, Novembro de 2018.
[10] No sentido de ser contrária à proibição de indefesa, prevista no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição e violadora do princípio do contraditório a decisão que vinculasse quem foi terceiro à causa, cfr. também acórdão do STJ de 18-06-2014, processo n.º 209/09.1TBPTL.G1.S1, disponível nas Bases Documentais do ITIJ.
[11] Verifica-se a denominada condição objetiva positiva consiste na existência de uma relação entre os objetos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor (Rui Pinto, obra citada, p.27).
[12] A decisão judicial (sentença/acórdão) deverá ser entendida como um acto jurídico a que aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (artigo 295.º do Código Civil), designadamente as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial.
[13] Cfr. Acórdão do STJ de 26-04-2012, Proc. n.º 289/10.7TBPTB.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.