ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
PARTIDO POLÍTICO
INDEFERIMENTO
Sumário


I- Não pode tomar-se a cobertura mediática das vicissitudes processuais em tribunal como o reflexo do sentir da generalidade dos cidadãos sobre as mesmas, não podendo dizer-se que a voz popular [fala] pela pena da comunicação social.
II- A mera relação institucional/profissional entre o … da requerente e o senhor deputado suspeito, não se configura como sendo suscetível de gerar suspeitas de parcialidade sobre a intervenção da senhora juíza desembargadora, sendo certo que, como destaca o Cons. Henriques Gaspar, «A formulação da norma, usando noções indeterminadas com expressão de forte carga semântica - «suspeita», «sérias e graves» - transmite indicações sobre a natureza dos fundamentos e aponta o grau de exigência e a consistência que são necessárias para o julgamento quanto ao risco de afetar a imparcialidade do juiz». (Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed., p. 126).
III- A ligação feita na comunicação social em 2015 entre a senhora Juíza Desembargadora e o … não é de molde a colocar suficientemente em crise o estatuto e a imagem da senhora Juíza Desembargadora como magistrada judicial e, portanto, matricialmente independente, não podendo atribuir-se àquelas notícia significado de tal forma relevante que permitisse afastar a intervenção da senhora Desembargadora sempre que causa pendente em tribunal tenha ligação relevante com o …, postergando assim o princípio do juiz legal e os valores que lhe estão subjacentes.

Texto Integral



Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de justiça



I


Relatório


A. A Senhora Juíza Desembargadora AA, a exercer funções no Tribunal da Relação ... (... Secção ...) vem, ao abrigo do disposto no artigo 43.°, n.°s 1 e 4, do Código de Processo Penal, apresentar pedido de escusa com os fundamentos seguintes:


1. O processo n.° 8136/19.8T9LSB-A.L1, «… foi distribuído no Tribunal da Relação, vindo do Juízo de Instrução Criminal ..., no dia 26 de Junho e concluso pela primeira vez à requerente no dia 3 de Julho de 2023.


2.Em virtude de a última sessão antes de férias judiciais ser no dia 13 de Julho e terem sido conclusos à requerente três recursos urgentes, nos dias 7/07 e 10/07, para irem a essa sessão do dia 13 (procesos 55/23.0..., 54/22.9... e 15/22.8...) e de a mesma ser ainda relatora num acórdão complexo cuja publicação estava prevista para o mesmo dia 13 de julho, não pôde a requerente debruçar-se sobre o processo em referência, que não é um recurso em processo com natureza urgente.


3.Ao debruçar-se agora sobre o processo em causa para fazer o respectivo projeto de acórdão e o levar à 1ª sessão após ferias judiciais, a requerente constatou existir motivo para apresentar pedido de escusa, razão pela qual só agora, e não na data em que o processo foi concluso, vem apresentar esse pedido de escusa, lamentando o facto de o lazer em plenas férias judiciais.


4. Está em causa um recurso do Ministério Público de um despacho do Sr. Juiz de instrução que indeferiu a realização de buscas domiciliárias a vários suspeitos, ainda não constituídos arguidos, um dos quais BB que era, ao tempo dos factos sob investigação, Vice-Presidente do Governo ..., então do partido ..., a quem incumbia a tutela do Grupo ....


5. A requerente não conhece pessoalmente nenhum dos suspeitos relativamente aos quais é pedida a realização de buscas domiciliárias, nem sente nenhum tipo de impedimento ou constrangimento para propor um projeto de decisão quanto à questão colocada no recurso, de forma isenta c imparcial.


6. Acontece, porém, que, um dos suspeitos - BB – é actualmente deputado na Assembleia Legislativa pelo Grupo Parlamentar ..., eleito pelo círculo eleitoral ..., e colega de bancada do ... da requerente, que é também deputado eleito pelo mesmo partido, pelo circulo eleitoral de ..., e ambos convivem e se relacionam no âmbito dos trabalhos político-partidários.


7. Aquando da publicação do acórdão do tribunal da Relação ..., de 01.12.2015, no processo 3405/08.5..., relatado pela signatária, que absolveu a arguida CC, que foi Ministra da ... de um governo do partido ..., foram feitas referências na imprensa ao facto de a ora requerente "ter sido sancionada pelo CSM por ler andado a fazer campanha ao lado do … ..." c afirmado ser a mesma "uma juíza ligada ao Partido ...", colocando dessa forma em causa a idoneidade e imparcialidade da ora requerente, na forma como a mesma relatou essa decisão (cf. recortes de notícias juntos).


8. Essas mesmas notícias foram divulgadas na televisão e aí objecto de comentários.


9. A requerente não é, nem nunca foi, militante de qualquer partido, apesar de o seu … e de um dos seus … serem ambos militantes do Partido ..., e está, como sempre esteve, de consciência tranquila e bem ciente dos seus deveres estatutários, nunca tendo participado de qualquer campanha partidária ao lado do seu … ou qualquer outra, como então esclareceu junto do Conselho Superior da Magistratura.


10. A requerente sempre procurou desempenhar as suas funções de forma isenta e imparcial, completamente indiferente à ideologia política dos sujeitos e dos intervenientes processuais.


11. Porem, através daquelas notícias veículou-se na imprensa, perante a comunidade, a ideia de que a requerente decidiu de forma não isenta e não imparcial devidos às suas ligações familiares com o partido ..., o que na altura constituiu uma forte humilhação para a requerente, que apenas foi a relatora de uma decisão colectiva do Tribunal da Relação, que não teve qualquer voto de vencido nem declaração de voto por parte dos demais juízes desembargadores que nela intervieram.


12. A imparcialidade do juiz, imanente ao acto de julgar c pressuposto de uma decisão justa, é essencial à confiança pública na administração da justiça e é "um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais, um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental" (artigo 6.°, §1, da CKDII e artigo 14.°, n.° 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos).


13. Nos termos do disposto nos n.°s 1, 2 e 4 do artigo 43.° do Código de Processo Penal o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando correr o risco de a sua intervenção ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


14. Conforme se escreveu no acórdão do STJ de 6 de Julho de 2005 (CJ, Acs. STJ, XIII, II, 236) «os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, "sérios" e "graves". (...) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (...) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade. ».


15. Está em causa um recurso numa investigação sensível, que envolve a gestão de uma empresa pública, num tempo em que a sua tutela incumbia a um governo … c cm que são pedidas buscas domiciliárias a um membro desse governo, que hoje é deputado … no grupo parlamantar em que o … da requerente também é deputado pelo mesmo partido.


16. Os factos acima apontados, não afectam a capacidade da signatária de apreciar e decidir as questões colocadas no indicado recurso de uma forma imparcial. O mesmo já não irá , certamente, dizer, a voz popular pela pena da comunicação social, se a decisão proposta pela requerente, ainda que sufragada pelos restantes juizes desembargadores que integram a conferência for, eventualmente, a de não dar provimento ao recurso e manter o despacho recorrido.


17. A requerente não deixa, assim, de sentir-se de algum modo constrangida e de considerar que, no plano das representações sociais possa existir motivo serio de a sua intervenção poder ser considerada suspeita e susceptível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à sua imparcialidade e quanto ao sistema de justiça.


18. Com os mesmos fundamentos a requerente já anteriormente suscitou a V. Exas., Colendos Conselheiros, escusa no âmbito dos processos 122/13.8TELSB e 184/12.5TELSB-AD.L1.


Termos em que, se requer a Vossas Excelências, Colendos Conselheiros, que seja concedida escusa à requerente de intervir na apreciação do indicado processo.»


B. Do teor do pedido de Escusa e da certidão de 25.07.23 junta aos presentes autos de apenso, resulta essencialmente o seguinte quadro factual:


- O processo n.° 8136/19.8T9LSB-A.L1, «… foi distribuído no Tribunal da Relação, vindo do Juízo de Instrução Criminal ..., no dia 26 de Junho e concluso pela primeira vez à requerente no dia 3 de Julho de 2023. Está em causa um recurso do Ministério Público de um despacho do Sr. Juiz de instrução que indeferiu a realização de buscas domiciliárias a vários suspeitos, ainda não constituídos arguidos, um dos quais BB que era, ao tempo dos factos sob investigação, Vice-Presidente do Governo ..., então do partido ..., a quem incumbia a tutela do Grupo ....


- Um dos suspeitos - BB – é atualmente deputado na Assembleia Legislativa pelo Grupo Parlamentar ..., eleito pelo círculo eleitoral ..., e colega de bancada do … da requerente, que é também deputado eleito pelo mesmo partido, pelo circulo eleitoral de ..., e ambos convivem e se relacionam no âmbito dos trabalhos político-partidários.


- Aquando da publicação do acórdão do tribunal da Relação ..., de 01.12.2015, no processo 3405/08.5..., relatado pela signatária, que absolveu a arguida CC, que foi Ministra da ... de um governo do partido ..., foram feitas referências na imprensa ao facto de a ora requerente "ter sido sancionada pelo CSM por ler andado a fazer campanha ao lado do … ..." e afirmado ser a mesma "uma juíza ligada ao Partido ...", colocando dessa forma em causa a idoneidade e imparcialidade da ora requerente, na forma como a mesma relatou essa decisão (cf. recortes de notícias, que integram a certidão referida);


- Essas mesmas notícias foram divulgadas na televisão e aí objeto de comentários.


- A requerente não é, nem nunca foi, militante de qualquer partido, apesar de o seu … e de um dos seus … serem ambos militantes do Partido ...;


- Está em causa recurso em Inquérito que corporiza investigação que envolve a gestão de uma empresa pública, num tempo em que a sua tutela incumbia a um governo … e cm que são pedidas buscas domiciliárias a um membro desse governo, que hoje é deputado ... no grupo parlamentar em que o … da requerente também é deputado pelo mesmo partido;


- A requerente já anteriormente suscitou escusa no âmbito dos processos 122/13.8TELSB e 184/12.5TELSB-AD.L1, cuja decisão, por acórdão, pode consultar-se em www.dgsi.pt (STJ) que pode pesquisar-se também pelos nomes dos seus relatores. Respetivamente, Ernesto Vaz Pereira e Leonor Furtado;


C. Não há que proceder a quaisquer diligências, mostrando-se devidamente instruído o pedido de escusa em causa, pelo que, abertos vistos no processo e realizada a conferência, foi proferida decisão.


II


Decidindo


1.A questão a decidir é a de saber se em face do quadro factual apurado se verifica “motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade” da senhora Juíza Desembargadora, que justifique a sua escusa de intervir na decisão do recurso interposto pelo Ministério Público de um despacho do Sr. Juiz de instrução que indeferiu a realização de buscas domiciliárias a vários suspeitos, ainda não constituídos arguidos, um dos quais é BB, ..., que era, ao tempo dos factos sob investigação, Vice-Presidente do Governo ..., a quem incumbia a tutela do Grupo ..., e que, sendo atualmente deputado na Assembleia da República pelo Grupo Parlamentar ..., eleito pelo círculo eleitoral ..., é colega de bancada do … da requerente, que é também deputado eleito pelo mesmo partido, pelo circulo eleitoral de ..., convivendo e relacionando-se ambos no âmbito dos trabalhos político-partidários.


2. Considerações de ordem geral


2.1. O presente incidente de escusa convoca o tema da imparcialidade do tribunal que, através de referência autónoma ou enquanto elemento necessário de um conteúdo mínimo do conceito de processo equitativo ou due process1, é mencionada no art. 10º da DUDH de 1958, no art. 6º nº1 da CEDH, de 1950, art. 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000 ou no art. 20º nº4 da CRP, após a revisão constitucional de 1997, e é inerente à própria noção de tribunal, enquanto órgão de administração da justiça, constituindo uma garantia dos cidadãos.


Definida a imparcialidade como a ausência de qualquer pré juízo, interesse ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afetadas pela decisão, pode esta perspetivar-se na sua dimensão subjetiva e objetiva. Como refere Ireneu Cabral Barreto, “na perspetiva subjetiva, importa conhecer o que o juiz pensa no seu foro íntimo em certa circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário.”2


Na abordagem objetiva, em que são relevantes as aparências, intervêm por regra, considerações de caráter orgânico e funcional (vg a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as situações com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer nascer dúvidas, provocando o receio, objetivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si.”3


Em qualquer daquelas dimensões, está em causa a preservação da confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos, pelo que deve ser impedido, recusado ou escusado todo o juiz impossibilitado de garantir uma total imparcialidade, ou seja, uma total equidistância em relação aos envolvidos no litígio e ao objeto do processo, aqui incluindo a tutela das aparências, de acordo com o adágio inglês justice must not only be done; it also be seen to be done.4


2.2. Diferentemente do que se verifica relativamente aos impedimentos, previstos nos artigos 39º e 40º, CPP, que constituem um conjunto de «proibições» absolutas5 de o juiz exercer determinada função, de funcionamento automático, limitando-se o juiz a declarar-se impedido no processo, o CPP acolhe no artigo 43º nº1 cláusula geral que permite avaliar em concreto se os motivos invocados pelo requerente do incidente, seja ele o MP, arguido, assistente ou partes civis, justificam a recusa, ou, sendo requerente o próprio juiz, se há fundamento para a sua escusa, acautelando desse modo as situações concretas que podem afetar a imparcialidade do juiz, mas não a afetam necessariamente, funcionando ope judicis.


O artigo 43º nº1 determina, pois, como fundamento do incidente de recusa ou escusa de juiz, enquanto garantia da sua imparcialidade, que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, à luz do qual, independentemente de outras considerações, a recusa ou escusa será justificada se do ponto de vista do cidadão comum, enquanto critério de decisão essencialmente normativo que pode não coincidir com a perspetiva do queixoso ou do juiz escusando, a intervenção do juiz no processo puder gerar a referida desconfiança.


3. Conforme aludido, o presente pedido de escusa reporta-se ao julgamento de recurso interposto de despacho proferido por juiz de instrução que indeferiu a realização de buscas domiciliárias, a decidir por um coletivo de três juízes desembargadores da Secção ... da Relação ..., incluindo a senhora juíza desembargadora requerente. Entre os suspeitos abrangidos por aquele despacho de indeferimento, conta-se BB, ex-Vice Presidente do Governo ... e atualmente deputado da AR pelo ..., onde um … da Senhora Juíza requerente é igualmente deputado eleito pelo mesmo partido, pelo circulo eleitoral de ..., convivendo e relacionando-se ambos no âmbito dos trabalhos político-partidários.


Por outro lado, a Senhora Juíza Desembargadora invoca notícias de 2015 que aludiam a acórdão por si relatado que, decidindo recurso que revogou decisão de 1º instância, absolveu a ex-Ministra da ..., CC, fazendo-se aí alusões a supostas ligações com o Partido .... Conclui que embora aqueles factos não afetem a sua capacidade de apreciar e decidir as questões colocadas no indicado recurso de uma forma imparcial, o mesmo já não irá , certamente, dizer, a voz popular pela pena da comunicação social, se a decisão proposta pela requerente, ainda que sufragada pelos restantes juizes desembargadores que integram a conferência for, eventualmente, a de não dar provimento ao recurso e manter o despacho recorrido, pelo que, não deixa, assim, de sentir-se de algum modo constrangida e de considerar que, no plano das representações sociais possa existir motivo serio de a sua intervenção poder ser considerada suspeita e suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à sua imparcialidade e quanto ao sistema de justiça.


4. Vejamos.


4.1. Como referido antes, está em causa decidir se as circunstâncias de facto ora em causa determinam que a intervenção da senhora Desembargadora requerente como relatora do recurso que concretamente lhe foi distribuído, corre o risco de ser considerada suspeita, por constituir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, a aferir objetivamente, de acordo com o critério normativo do homem médio, conforme é pacificamente entendido.


Ora, embora o conjunto de circunstâncias ora em causa permita compreender bem a preocupação da senhora juíza Desembargadora em deixar clara a sua posição sobre as dúvidas que, no seu entender, aquelas circunstâncias poderão suscitar, publicitando a relação institucional/profissional entre o suspeito e o seu … igualmente deputado, bem como o seu receio de que possa vir a ocorrer eco mediático semelhante ao verificado em 2015, entendemos que, objetivamente, não estamos perante motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da sua intervenção na decisão do recurso que lhe foi distribuído como relatora.


Por um lado, não pode tomar-se a cobertura mediática das vicissitudes processuais em tribunal como o reflexo do sentir da generalidade dos cidadãos sobre as mesmas, não podendo dizer-se que a voz popular [fala] pela pena da comunicação social.


Por outro lado, a mera relação institucional/profissional entre o … da requerente e o senhor deputado suspeito, não se configura como sendo suscetível de gerar suspeitas de parcialidade sobre a intervenção da senhora juíza desembargadora, sendo certo que, como destaca o Cons. Henriques Gaspar em anotação ao artº 43º do CPP «A formulação da norma, usando noções indeterminadas com expressão de forte carga semântica - «suspeita», «sérias e graves» - transmite indicações sobre a natureza dos fundamentos e aponta o grau de exigência e a consistência que são necessárias para o julgamento quanto ao risco de afetar a imparcialidade do juiz». (Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed., p. 126).


Por outro lado, ainda, a ligação feita na comunicação social em 2015 entre a senhora Juíza Desembargadora e o … não é de molde a colocar suficientemente em crise o estatuto e a imagem da senhora Juíza Desembargadora como magistrada judicial e, portanto, matricialmente independente, não podendo atribuir-se àquelas notícia significado de tal forma relevante que permitisse afastar a intervenção da senhora Desembargadora sempre que causa pendente em tribunal tenha ligação relevante com o …, postergando assim o princípio do juiz legal e os valores que lhe estão subjacentes.


Como se diz no Ac STJ de 1.03.2023 (rel. Ernesto Vaz Pereira), « …. o juiz natural, garantido constitucionalmente no art. 32º, nº 9, da CRP, só deve ser afastado quando a imparcialidade e a isenção do juiz, também garantidos constitucionalmente no art. 203º, o impuserem, isto é, quando ficarem em risco, ou seja, quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido (de modo aleatório) como competente deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção…».E de modo idêntico no Ac STJ de 08.02.2023, (rel. Sénio Alves), onde pode ler-se, « Críticas infundadas, juízos precipitados motivados por má-fé ou ignorância, existirão sempre. Porém, o arredar do princípio do juiz natural, de consagração constitucional, só deve ocorrer … perante motivos que, face à sua seriedade e gravidade, sejam objetivamente aptos a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz».


Concluímos, pois, que as circunstâncias invocadas pela senhora juíza desembargadora requerente não são de molde a constituir risco sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, pelo que se decide não conceder a escusa peticionada.


III


dispositivo


Por todo o exposto e tendo especialmente em conta o preceituado no artigo 43º nº1 do CPP, acordam os Juízes em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir o pedido de escusa formulado pela senhora Juíza Desembargadora AA para intervir como relatora no recurso interposto pelo MP para o TR... no processo com o nuipc 8136/19.8T9LSB-A.L1.


2.08.2023


Os juízes conselheiros, de turno,


António Latas – relator


José Eduardo Sapateiro – adjunto


Ana Barata Brito – adjunta

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1. Vd algumas referências à estreita relação entre a imparcialidade do juiz e o direito a um processo justo em José Mouraz Lopes, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual No Processo Penal Português, STVDIA IVRIDICA-83, Coimbra Editora-2005, pp 178-183 .↩︎

2. Cfr CEDH Anotada, 3ª ed. Coimbra Editora-2005, p. 155.↩︎

3. Cfr Ac STJ de 06-07-2005, CJ STJ/II p. 237 (relator H. Gaspar)..↩︎

4. Cfr Ireneu Cabral Barreto, ob e loc cit..↩︎

5. Vd Mouraz Lopes, ob. . cit. p. 96.↩︎