HABEAS CORPUS
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
DETENÇÃO
PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
MEDIDAS DE COAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
PODERES DE COGNIÇÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


I- O conceito de prisão para efeitos da previsão do art. 222º nº al. c) CPP, deverá abranger todas as situações de privação de liberdade, em que existe confinamento num espaço físico delimitado, por um período temporal mais ou menos alongado. Não releva aqui o nomens júris – prisão – mas a intensidade de um confinamento equiparável a um “aprisionamento”.
II- Não subsistindo no momento da apreciação e decisão do habeas corpus a situação de privação ilegal da liberdade em que, segundo o requerente, antes se encontrava o arguido, mostra-se ultrapassada a finalidade exclusiva do pedido de habeas corpus, ou seja, a libertação do arguido com fundamento naquela mesma prisão que o requerente tem por ilegal.
III- Conforme é pacificamente entendido, o acesso direto e expedito ao STJ através da providência, excecional, de habeas corpus justifica-se pelo propósito de fazer cessar rapidamente estados ilegais de privação da liberdade nas hipóteses, taxativas e manifestas, previstas nas três alíneas do artigo n.º 222º CPP, não constituindo o habeas corpus meio processual próprio para reapreciar de per si outros aspetos ou consequências da situação processual do arguido. Para o que, aliás, sempre faltaria legitimidade ao terceiro requerente nos casos, como o presente, em que a petição é apresentada por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

Texto Integral



Processo n.º 405/18.0TELSB


Habeas Corpus


ACÓRDÃO


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I


Relatório


1. AA, solteiro, nascido em ........1984, de nacionalidade portuguesa, vem ao abrigo do artigo 31º nºs 1 e 2 da CRP e, ainda, do artigo 222º nºs 1 e 2 al. c) do CPP, requerer a concessão da providência de habeas corpus a favor de BB, 69 anos, casado, arguido no processo penal que, com n.º 405/18.0TELSB, corre termos na fase de Inquérito perante o MP, DIAP de ..., alegando que o arguido se encontra detido nesse processo no EP anexo à PJ de .... Aduz ainda os seguintes fundamentos, que parcialmente se transcrevem da sua petição de habeas corpus, sem os sublinhados:


- «Diz-nos o Código Processo Penal, por referência ao artigo 276º do C.P.P. que os prazos de duração máxima do inquérito são de 18 meses (alínea c) do n.º 3 do art.º 276º).


Mesmo que se contem os prazos mais largos para a duração máxima do inquérito e os seus alargamentos por leitura do n.º 5 do mesmo art.º 276º, esses alargamentos são, por cada processo, em metade do prazo máximo.


Ora, metade dos 18 meses são 9, 9+18 dá 27 meses, pelo que, matematicamente correndo o inquérito há 5 anos, os prazos máximos de duração do inquérito estão ultrapassados no dobro.


Sei, como cidadão informado e com frequência académica [em Direito], que esses prazos são indicativos e não imperativos, mas mesmo sendo indicativos há reflexões e consequências a retirar deles no seguimento daquilo que se vai expor e da posição de uma Exma. Senhores Juíza do Tribunal Constitucional.


Isto é, são indicativos para a duração máxima do inquérito mas poderão ter consequências ao nível de outras circunstâncias processuais, porque o Ministério Público está bem preparado para lidar com as detenções (face ao seu Know How ao longo dos 5 anos de investigação) e o Sr. Juiz de Instrução, que também tem autorizado, lido e validado escutas telefónicas e demais diligências investigatórias que têm de ser por si autorizadas e fundamentadas, também está [o JIC] por dentro do objeto do processo e munido de informação bastante que lhe permite estar inteirado da factualidade, dos seus autores e dos indícios (fortes ou fracos) que contra aqueles existem ou não.


Ou seja, ao contrário de muitos dos juízes de instrução, muitas vezes de turno nos nossos Tribunais espalhados por Portugal, em que as autoridades policiais têm um arguido detido e o Sr. Juiz de Instrução ainda vai ter que se inteirar do processo todo, neste caso em concreto (Processo Picoas) estamos perante um MP e um JIC que, ao longo dos últimos anos têm promovido e deferido diligências processuais.


Quer isto dizer que não se pode argumentar que o Sr. Juiz de Instrução foi apanhado de surpresa com estas detenções e que ainda se está a inteirar da factualidade e criminalidade indiciada aos suspeitos.


Vejamos, pois, o que ocorre e tem ocorrido e tem vindo a público e até tem merecido (e muito bem) críticas de toda a sociedade e de alguns advogados:


O Exmo. Sr. Juiz de Direito (agora Desembargador) Dr. CC, conhecido vulgarmente por “Super Juiz” tem vindo a interromper os interrogatórios dos arguidos detidos no presente processo 405/18.0TELSB porque no âmbito de outro processo sobre imigração ilegal teve que interrogar, nos outros autos, aqueles arguidos e que, não sendo aquele Juiz, como não é (nem ele nem ninguém) omnipresente para poder estar nos dois processos “ao mesmo tempo” e garantir o cumprimento dos prazos em todos os processos, os arguidos, mais concretamente o BB, tem sofrido consequências com todas essas paragens para o Sr. Dr. Juiz De Instrução poder auscultar nos outros processos os restantes arguidos, também detidos noutras operações policiais.


(…)


Nos termos da lei a detenção tem como limite máximo as 48 horas – art.º 254º n.º 1 alínea a) e 141º n.º 1 do C.P.P.


A Jurisprudência tem entendido, não totalmente unificada, que o prazo máximo de 48 horas é o prazo limite para as autoridades policiais apresentarem o detido ao Juiz.


E, tanto quanto parece, a lei faz silêncio sobre o prazo máximo que o Juiz de Instrução tem para decidir sobre as medidas de coação bem como faz-se silêncio sobre o tempo que o MP tem para promover ao Juiz de Instrução aquilo que entende serem as medidas de coação a serem aplicadas.


Mas será que a lei faz mesmo silêncio absoluto ou será que, das normas legais em vigor consegue-se perceber aquilo que o legislador quis dizer ou que dali deve ser interpretado em razão dos direitos dos cidadãos detidos, como teto máximo e absoluto, para serem conhecidas as medidas de coação e os cidadãos em causa saberem, dentro de tal prazo máximo, se são libertados ou se ficam em prisão preventiva?


E que prazo máximo será esse então? Não pode ser um prazo “ad eternum”, em que se prolongue tanto tempo. Basta pensar-se no seguinte exemplo: se agora aparecer um outro processo com arguidos detidos e o Sr. Dr. CC estiver de turno, teremos mais umas paragens para interrogatório naqueloutro processo. Imaginem que naquele outro processo são 30 arguidos detidos para primeiro interrogatório.


Quando dermos conta, os 10 dias de detenção transforma-se em 20 ou 30 dias, e desta maneira vão-se criando exceções aos timings dos prazos máximos de detenção sem que exista uma decisão judicial que fixe as medidas de coação.


8 dias não é aceitável? 10? 20? 50 dias? Até que dias então quis o legislador dizer?


Por um lado o legislador falou em “horas” no prazo máximo de detenção, nós já falamos em dias, depois semanas, quinzenas, e com jeito passados a falar em “mês”?


(…)


Este Habeas Corpus existe agora porque entendo, e é a minha opinião cimentada em razoabilidade (prazos)e proporcionalidade (tipo de criminalidade) de que, uma injustiça para um é uma injustiça para todos. Logo não posso conceber que o BB esteja detido há 10 dias sem decisão judicial e nada fazer.


Isto é o exercício de cidadania ativa. Caberá ao Supremo Tribunal de Justiça decidir se a detenção que se mantém ao fim de 10 dias sem decisão judicial que fixe as medidas de coação é ou não violadora dos princípios gerais que norteiam a atividade judiciária no que diz respeito a esta matéria. Que é motivo bastante para Habeas Corpus, isso é, porque não se trata de umas pequenas horas de “atraso” nem de um dia ou dois. Nada disso, já vamos em 10 dias após a detenção.


O Tribunal Constitucional, já em 2005 (há 18 anos, portanto), teve uma declaração de voto vencido da Conselheira Maria Fernanda Palma, que aqui se transcreve, onde se pode ler o seguinte, com total pertinência para os presentes autos de Habeas Corpus:


“Votei vencida o presente Acórdão por duas razões fundamentais:


A primeira razão é o facto de a interpretação do artigo 28º, nº 1, da Constituição, não me permitir concluir com segurança, como faz o Acórdão, que o prazo máximo de detenção sem decisão judicial possa exceder 48 horas, correspondendo tão‑só a um prazo máximo de restrição não validada judicialmente do direito à liberdade.


Tal interpretação é, na realidade, algo criativa, em face dos elementos
literal, histórico, sistemático e até teleológico da Constituição. Com efeito, antes da 4ª Revisão Constitucional, o artigo 28º referia‑se, expressamente, a um prazo máximo de 48 horas para decisão judicial de validação ou manutenção da detenção da “prisão sem culpa formada” e o sentido da alteração da letra do preceito, como reconhece a doutrina, foi apenas o de incluir também os casos de detenção já com “culpa formada” para aplicar, igualmente, medidas de coacção (cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Processual Penal, II, 2002, p. 229 e ss. e pp. 234 e 235). Não há qualquer clareza quanto a uma mudança essencial de sentido do preceito no que se refere à inclusão da decisão judicial no prazo das 48 horas.


Por outro lado, considerar‑se que um prazo até à apreciação judicial possa não incluir o momento fundamental da mesma – a decisão – é uma interpretação complacente e em caso algum “in dubio pro libertate”. A descrição no texto constitucional da acção de apreciação não terá de incluir a sua plena realização?


Também a razão substancial de que o prazo de 48 horas seria justificado como limitação a uma detenção meramente administrativa (policial) não tem muita plausibilidade, porque a detenção não pode deixar de manter a sua natureza jurídica até à respectiva validação judicial.


Finalmente, a argumentação que queira basear‑se em hipotéticos argumentos sistemáticos em torno do artigo 31º da Constituição , nomeadamente por se pretender a partir daquele preceito concluir que a Constituição não visou estabelecer um prazo de decisão judicial, é desviada do sentido fundamental do artigo 28º, nº 1, da Constituição. Neste preceito, estabeleceu‑se, muito claramente, um prazo máximo para uma privação da liberdade não validada judicialmente – essa é a sua ratio. Não é, na verdade, o tema do prazo necessário e razoável para a polícia e os tribunais validarem uma detenção o ponto de vista a partir do qual se constrói o texto constitucional, mas antes o do prazo máximo para se estar detido sem validação judicial. A lógica do preceito está construída a partir do direito à liberdade e não como expressão de um prazo para qualquer tipo de autoridade (administrativa ou judicial).


A segunda ordem de razões que me levou a votar vencida, sem hesitação, é o facto de que a interpretação do artigo 28º, nº 1, levada a cabo pelo Tribunal Constitucional, embora prudentemente não chegue a admitir prazos desproporcionados de decisão judicial e, por isso, reconheça, implicitamente, um certo direito a um prazo razoável (que no caso concreto, porém, não terá sido excedido), admite que não tenha de caber ao legislador estabelecer esse prazo de garantia.


Ora, a meu ver, se há matéria em que não é aceitável que vigorem meras razões de proporcionalidade e uma apreciação caso a caso é esta matéria do prazo máximo de detenção sem validação judicial. Poder-se‑á mesmo falar aqui de um direito a um prazo legal máximo de garantia que está intimamente associado ao direito à liberdade num Estado de Direito. Aliás, numa primeira análise, o Direito Processual Penal de vários países da União Europeia não só estabelece, por vezes, um prazo de detenção policial mais restrito como não deixa, em geral, de prever prazos para a validação judicial (cf. MIREILLE DELMAS‑MARTY, Procédures Pénales d’Europe, 1995).


A análise da questão que motivou o presente Acórdão revela bem como há muito a fazer na articulação do sistema do Processo Penal com os direitos fundamentais, papel que cabe ao legislador. No entanto o facto de a prática levar a descobrir distorções várias do Processo Penal em matéria de coordenação dos direitos fundamentais com a realização da Justiça não deve impedir o Tribunal Constitucional de reconhecer violações da Constituição que o legislador democrático deve superar.


(…)


Lê-se na parte final daquele acórdão, o seguinte:


Não pode, pois, dizer-se que a circunstância de a detenção da arguida só ter sido objecto de validação judicial no final de todos os interrogatórios dos arguidos detidos, que decorreram sem interrupções, mas menos de 72 horas depois da apresentação ao juiz e conjuntamente com a decisão sobre a aplicação de medidas de coacção relativamente a todos os 33 arguidos, tenha violado o disposto nos artigos 27.º, n.º 1, e 28.º, n.º 1, da Constituição da República. A solução normativa em causa não é, assim, inconstitucional(…)


Naqueles autos não ocorreram interrupções (segundo ficou dito no acórdão do T.C.), havia 33 arguidos e os tempos foram de 72 horas “a mais”.


O cidadão BB, casado, 69 anos de idade, empresário de profissão, cidadão que não conheço mas que se encontra detido desde o dia 13 de Julho de 2023 pelo menos até ao dia de hoje, 23.07.2023 (10 dias de detenção), estando programada a sua audição, segundo notícias da comunicação social que estão acompanhar, a par e passo, o processo “picoas”, para o dia 24/07/2023 só será interrogado pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz de Instrução no dia 24 de Julho, e após isso, mediante ocorram mais interrupções ou não, serão proferidas as medidas de coação por decisão judicial do Juiz Titular do processo ou o Juiz que preside aos interrogatórios.


No meu entendimento, e este entendimento é, pelo menos, em grande parte, geral no meio da sociedade portuguesa – independentemente de quem está/estej preso, seja ele um arguido “de milhões” ou “de tostões” – importa analisar esta problemática não pelos “milhões” mas sim pelos direitos fundamentais de cada cidadão, pois a leis são feitas para uma sociedade e não (devem ser feitas) para um grupo limitado de pessoas/ou empresas.


Nesta esteira interpretativa (artigos 6º e 9 do Código Civil), parece-me excessivo, irrazoável e desproporcional que, 10 dias após a detenção ( de 13.07.2023 até 23.07.2023) o cidadão arguido BB continue em detenção sem existir uma decisão judicial que tenha decretado, de forma efetiva, a sua prisão preventiva.


Dito por outras palavras, “a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo” [art.º 9, n.º 1 do Código Civil] e uma vez que o art.º 10º n.º 3 do mesmo Código refere “ a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” parece-me que, para casos de especial complexidade, em que hajam muitos arguidos detidos (superiores a 10 detidos) o prazo máximo de detenção deve ser contado, quando muito, da seguinte forma:


48 horas para as autoridades policiais entregarem o arguido detido ao Sr. Juiz de Instrução, mais 48 horas máximas para o Sr. Juiz de Instrução proceder aos interrogatórios dos arguidos detidos, seguidas de mais 24 horas para o Ministério Público promover as medidas de coação e outras 24 horas máximas para o Sr. Juiz de Instrução, após a promoção do MP, decidir as medidas de coação, sendo que a partir da 145ª hora a prisão passa a ser ilegal.


Ponderadas todas as circunstâncias legislativas, 48 horas + 48 horas + 24 horas + 24 horas perfaz um total de 144 horas, o equivalente a 6 dias.


Estes 6 dias deverão ser o considerado como limite máximo, até porque, se um Habeas Corpus está constitucionalmente definido que tem como prazo 8 dias (máximos, pois pode ser decidido antes), tenho para mim que, se a mais alta instância nacional tem um prazo de 8 dias, um Tribunal de Instrução Criminal, que tem o processo todo, tem os arguidos à sua frente, tem o procurador do MP ao seu lado, não pode ter um prazo igual ao do STJ, mas sim inferior (por dispor do processo ali mesmo), mas mesmo que por excesso de interpretação se viesse ou se venha a entender que o prazo máximo poderia ser, quando muito, os 8 dias de detenção sem que exista uma decisão judicial que defina as medidas de coação, mesmo esses 8 dias descritos na Constituição estão ultrapassados à data da apresentação do pedido de Habeas Corpus, motivo pelo qual deve ser decretada a libertação imediata do cidadão BB, por não ter existido decisão judicial desde a data da sua detenção em 13.07.2023 até ao dia 23.07.2023 ( 10 dias).


Estamos em 2023, um milénio em que se vive na Era Moderna e da tecnologia, em que os processos judiciais sobem eletronicamente, em que os processos não precisam de ser transportados de “carrinhos” para o MP promover a sua posição, em que o Sr. Juiz de Instrução dispõe de avançados meios tecnológicos para emitir e comunicar as suas decisões judiciais, em que, por exemplo, o presente pedido de Habeas Corpus é tramitado informaticamente e as informações são prestadas ao Supremo Tribunal por parte do Sr. Juiz de Instrução de forma eletrónica, não existe justificação aos olhos constitucionais para um qualquer cidadão se encontrar detido desde o dia 13.07.2023 até ao dia 23.07.2023 sem saber, por decisão judicial, quais são as suas medidas de coação.


Claro que, como já vimos, as justificações de todos estes atrasos aqui ocorridos prendem-se com os motivos acima detalhados, são eles: interrupções por parte do Sr. Juiz para poder interrogar mais 6 arguidos noutro processo diferente deste porque também foram detidos e àqueles também havia prazos para cumprir (que prazos?)


Depois porque ocorrem as interrupções naturais, para pausas, descanso, almoço, lanche, enfim, as necessidades mais básicas inerentes à condição do ser humano, E por último, nas palavras do Advogado Dr. DD, as férias judiciais e por fim, como disse outro ilustre, as greves dos senhores funcionários judiciais também não ajudam ao cumprimento dos prazos.


Então a questão que se coloca é esta: sejam quais forem as razões dos atrasos, os arguidos continuarão detidos sem decisão judicial e “tudo vale” como justificação para a manutenção da detenção?


Ou chegamos a um limite em que temos de assumir que, de facto, não é mais aceitável que, ultrapassados todos esses limites razoáveis, a prisão/detenção é ilegal e o mesmo tem que ser restituído à liberdade?


Ocorreu assim uma violação dos artigos 27º n.º 1 e 2 e 28º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.


Na minha opinião e no uso do meu direito de petição constitucionalmente consagrado no art.º 52º da CRP, à liberdade de expressão, de informação e participação na vida pública, conforme artigos 37º n.º 1, 45º n.º 2 “direito de manifestação” e 48º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, invoco a seguinte inconstitucionalidade:


Os artigos 141º n.º 1 e 254º n.º 1 alínea a) do Código Processo Penal, na interpretação segundo a qual a detenção de um cidadão para ser presente a primeiro interrogatório judicial pode prolongar-se por mais do que 8 dias sem que dentro desses 8 dias exista uma decisão judicial proferida pelo Juiz de Instrução Criminal que procede ao primeiro interrogatório judicial que lhe aplique, em concreto, uma medida de coação detentiva da liberdade é inconstitucional por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático (art.º 2º), da legalidade (art.º 3), proporcionalidade (art.º 9 alíneas b) e d)), proibição do excesso (art.º 18º n.ºs 1 a 3) e da liberdade (art.ºs 27º n.º 1 e 28º n.º 1 ) todos da Constituição da República Portuguesa.


Face a todo o exposto, deve o Supremo Tribunal de Justiça deliberar no sentido de ser ordenada a libertação do cidadão BB, por se encontrar em prisão/detenção ilegal, na medida em que, tendo sido detido no dia 13.07.2023 e depois de 10 dias percorridos sem existir uma decisão judicial proferida pelo Sr. Juiz de Instrução Criminal que procede ao primeiro interrogatório judicial, a sua prisão/detenção viola o seu direito à liberdade, mesmo sendo suspeito de diversos crimes, sejam eles quais forem, num processo de inquérito que corre desde o ano de 2018, devendo ser emitida ordem de libertação a dar cumprimento pelo Estabelecimento Prisional onde se encontre detido à data de decisão do presente Habeas Corpus, mesmo que na data dessa decisão possa já existir uma decisão judicial que tenha aplicado medida de coação de prisão preventiva, porquanto o Acórdão decisório do Supremo Tribunal de Justiça prevalece sobre qualquer decisão de uma instância inferior, nomeadamente porque o mesmo Habeas Corpus é analisado e decidido à luz da detenção ao fim de 10 dias sem a existência de decisão judicial.».


1.2. No Tribunal Central de Instrução Criminal – J1 - foi prestada informação nos termos do art. 223.º, n.º 1, do CPP, pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal a quem foi apresentado o arguido para 1º interrogatório judicial, do seguinte teor:


« Atenta a providência de Habeas Corpus, interposta pelo cidadão Sr. AA, natural de ... e residente na mesma cidade, a favor do cidadão BB, de 69 anos de idade, casado, nos termos do disposto no art. º 222.º do CPP, cumpre-me informar, ao abrigo do disposto no art.º 223.º - 1 do CPP, o seguinte:


O Mº P.º , promoveu o seguinte:


«O cidadão AA, veio, ao abrigo dos arts. 31º , n.ºs 1 e 2 CRP e 222º, n.ºs 1 e 2, al. c) CPP, requerer o Habeas Corpus a favor do arguido BB, resumidamente, pelos seguintes motivos;

• Porque não gosta "do sistema de justiça que estamos a viver";

• Porque o arguido BB está detido há 10 dias sem decisão judicial;

• Porque nos casos de "especial complexidade" e em que hajam vários arguidos detidos, o prazo de 48 horas legalmente previsto, deve ser interpretado, no sentido de que as Autoridades Policiais deverão "entregar o arguido ao Sr. Juiz de Instrução" e "mais 48 horas máximas para o Sr. Juiz de Instrução proceder aos interrogatórios dos arguidos detidos, seguidas de mais 24 horas para o Ministério Público promover as medidas de coacção e outras 24 horas máximas para o Sr. Juiz de Instrução, após a promoção do MP, decidir as medidas de coacção";

• Porque a interpretação do disposto nos arts. 141º, n.º 1, conjugado com o art. 254º, n.º 1, al. a CPP, de que o "interrogatório judicial pode prolongar-se por mais do 8 dias sem que dentro desses 8 dias exista uma decisão judicial proferida pelo Juiz de Instrução Criminal .. ) que lhe aplique, em concreto, uma medida de coacção detentiva da liberdade é inconstitucional por violação dos arts. 2º, 3º, 9º, als. b) e d), 18º, n.ºs 1 a 3, 27º, n.º 1 e 28º, n.ºs 1, todos da Constituição da República Portuguesa".


Em face do requerimento de Habeas Corpus, o Ministério Público pronuncia-se da seguinte forma:


O arguido BB foi detido no dia 13 de Julho de 2023, pelas 22.00 horas.

• O arguido BB foi apresentado para primeiro interrogatório judicial de arguido detido ao Mmo. Juiz de Instrução no dia 15 de Julho de 2023, pelas 10:05:34 horas, onde se procedeu à sua identificação e dos demais arguidos que à data se encontravam detidos, se deu a conhecer os factos que lhe são imputados e onde foi questionado se pretendia prestar declarações sobre os mesmos, tendo o mesmo respondido afirmativamente.

• Com o arguido BB, foram ainda apresentados para primeiro interrogatório judicial de arguido detido ao Mmo. Juiz de Instrução os arguidos EE e FF e, posteriormente, no dia 17 de Julho de 2023, também o arguido GG que, no dia 15 de Julho de 2023, se havia entregado na esquadra da PSP de ....

• Também estes três arguidos declararam pretender prestar declarações.

• O arguido BB foi, pois, apresentado ao Mmo. Juiz de Instrução para primeiro interrogatório de arguido detido no prazo de 48 horas após a sua detenção, tal como previsto no art. 141º, n.º 1 CPP.

• Na referida norma legal não se prevê que o interrogatório tenha que ser terminado no mesmo prazo (o que sempre seria, aliás, imprevisível a priori), até porque, tal podia até, no limite, pôr em causa, a possibilidade de o arguido prestar livremente as declarações que bem entender sem qualquer pressão temporal.

• A imputação factual a cada um dos arguidos é extensa, tal como é elevado o número de crimes que são imputados a cada um deles, pelo que, os interrogatórios foram, necessariamente, demorados, prolongando-se, inclusivamente, por vários dias cada um.

• Aos arguidos são imputados crimes em co-autoria, pelo que, não é possível apreciar o estatuto coactivo a impor a cada um dos arguidos sem que todos tenham prestado as declarações que entenderem como está legalmente previsto. Apenas nessa altura, estará o Juiz de Instrução capacitado para produzir uma decisão relativa ao estatuto coactivo de cada um dos arguidos.

• Os arguidos foram interrogados individualmente, tendo o último dos interrogatórios terminado apenas no dia de hoje, dia 24-07-2023.

• Os prazos "propostos" pelo cidadão requerente não têm, salvo o devido respeito, qualquer respaldo legal.

• Ou seja, cumprido que foi o prazo de 48 horas legalmente previsto no art. 141º, n.º 1 CPP, não se verifica, pois, qualquer detenção ilegal do arguido BB, devendo, em consequência, ser indeferido o presente requerimento de Habeas Corpus.» (sic).


Corrobora-se a posição do detentor da acção penal supra transcrita, à qual nos arrimamos, não por falta de ponderação própria da questão, mas por simples economia processual.


Assim


Por despacho de 11/07/23, foi proferido, nos autos em epigrafe, despacho onde entre outras apreciações se autorizaram buscas domiciliárias e em escritórios de Advogados, bem como autorizações de pesquisa em equipamentos de telecomunicações, quer nas buscas domiciliárias, quer nas ordenadas pelo Mº Pº


Do mesmo passo e a requerimento do M.º P.º foi ordenada a detenção dos quatro cidadãos que se encontram presentes neste TCIC (hoje a partir das 08:30 horas).


A Operação que é publicamente conhecida por "Operação Picoas" teve lugar no dia 13 de Julho/2023


O "visado" no Habeas Corpus saiu de sua casa, às cinco da madrugada, de 13/07/23, em viatura proporcionada pela DGAJ, acompanhado por elementos do CSP, tendo presidido em ... à realização de várias Buscas de Presidência obrigatória de JIC, a última das quais terminou cerca das 22 horas, tendo regressado à sua residência, no ..., onde chegou após a uma da madrugada de 14/07/23.


Às 9:00 horas de 14/07/23, o "visado" apresentou-se de novo no TCIC, tendo constatado, após percorrer a ... e as ... não haver qualquer Oficial de Justiça, por todos terem aderido à greve nacional e/ou se encontrarem em gozo de férias.


No parque não havia viaturas automóveis, à excepção da conduzida pela colega Dr. a HH.


O "visado" informou o M.º P.º na pessoa do Exmº PGA Dr. II, de que podendo embora receber em mão os presentes autos, (de que se farão presentes os primeiros 26 volumes de processado, digitalizado, aliás já entregues às defesas dos quatro detidos, no momento das respectivas identificações); mas que não poderia o "visado" dar-lhes andamento por não haver ninguém que o secretariasse,


Conviu com o Mº Pº que a apresentação se faria, no sábado dia 15 a partir das 8:00 horas


O "visado" diligenciou junto do Exm.º Presidente da Comarca de ... e conseguiu obter a disponibilidade da Sr.a Escrivã-Auxiliar JJ para tramitar os autos, o que efectivamente aconteceu, juntamente com a Sr.a Escrivã-Adjunta KK.


Os três cidadãos então detidos, foram identificados a partir das 9:00 horas da manhã, tendo-se constatado o seguinte:

• LL, com os sinais dos autos, foi detido em 13/07/23, pelas 22:00 horas (cfr. certidão mandado de detenção de fls. 1 1352);

• EE, com os sinais dos autos, foi detida em 13/07/23, pelas


17:25 horas (cfr. certidão mandado de detenção de fls. 1 1339);

• BB, com os sinais dos autos, foi detido em 13/07/23, pelas


22:50 horas (cfr. certidão mandado de detenção de fls. 11345);


Depois da identificação e apresentação efectuada conjuntamente foi concedido tempo às Defesas para consultarem os elementos do processo.


Os autos têm actualmente mais de onze mil folhas de processado principal e centenas de Apensos,


Às Defesas (ao JIC ainda não, porque não o solicitou sequer), foram entregues PEN's com 26 volumes digitalizados conforme consta da Acta de 15/07/23.


Informalmente os arguidos fizeram saber que pretendiam exercer o direito a prestar declarações.


O "visado" iniciou a audição de EE, pelas 11:29 horas, por ter sido a primeira a referir estar, de imediato, em condições de o fazer.


A audição foi interrompida às 16:47 horas, pelos motivos que constavam da respectiva acta.


Conforme vem sendo prática neste TCIC, maximé após a fusão ocorrida em 01/01/22, não há trabalhos ao domingo, nem continuações ao sábado / domingo, havendo, isso sim, pessoas que esperam vários dias após a sua identificação para serem ouvidas, depois de identificadas.


A Lei, conforme vem entendendo o STJ, apenas exige a apresentação no prazo máximo de 48 horas.


Foi isso que, invariavelmente, aconteceu.


Acresce que, há longos meses está decretada e vem tendo adesão neste TCIC, a greve dos Sr.s Oficiais de Justiça ao trabalho após as 17:00 horas, incluindo interrogatório de detidos.


O "visado" pelo incidente (atento o seu texto) deixou, ante as circunstâncias, de fazer, como fazia até 2022, maratonas até às quatro ou cinco da madrugada, por indisponibilidade própria e dos Sr.s Oficias de Justiça que protestam não serem remunerados por tal trabalho extraordinário.


O interrogatório de EE prosseguiu durante o dia 17/07/23, tendo terminado às 17:52 horas.


Às 08:50 horas de segunda-feira, 17/07/23, o TCIC e correspondentemente o signatário, tomou conhecimento de que o Sr. GG foi detido em 14/07/23, cerca das 21:40 horas (cfr. certidão de detenção), interrompeu, por instantes, a tomada de declarações à arguida EE e levou a cabo a identificação e esclarecimento a GG, das razões da sua detenção, facultando à sua defesa "PEN" com 26 volumes digitalizados.


O signatário estava de serviço à cidade de ..., tendo proferido, fora das horas de expediente, 128 despachos em outros tantos processos em inquéritos e instruções, após as horas de interrogatórios.


No âmbito da repartição de trabalho com a outra magistrada judicial de turno nos dias 17 e 18, coube-lhe presidir a interrogatórios de oito arguidos detidos nos NUIPC's 12/22.3...; 133/23.5... e 1183/23.7...


No dia 18 de manhã não ocorreu interrogatório nos presentes autos, por motivos de força maior do M.º P.º a que o JIC aquiesceu aproveitando para despachar o serviço de turno, para que fora escalado em setembro de 2022


Ao interrogatório da Sr.a EE seguiu-se o de FF que ocorreu nos dias 18 e 19 de julho de 2023.


Seguiu-se BB, nos dias 19 e 20 de julho de 2023


Por último GG, nos dias 20 (à tarde), 21 e 24 de manhã.


Foi uma decisão do signatário não levar a cabo interrogatório no sábado 22 e domingo 23, por razões de exaustão física, a avaliar por quem de direito.


No tocante às denunciadas observações e anotações do cidadão AA, que invoca ser um cidadão informado e com frequência académica de direito constantes das fls. 1 a 4, nada temos a informar.


Remetemos para a certidão dos autos.


Sobre o que "ocorreu e tem ocorrido" (cfr. fls. 5 dos parágrafos em apreciação):


O signatário não é Desembargador.


Submeteu candidatura à promoção, foi graduado em Abril de 2023


Concorreu às vagas avisadas nos Tribunais da Relação. Foi colocado no movimento judicial aprovado em 11 de Julho e, nada ocorrendo em contrário, tomará posse em 4 de Setembro de 2023, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Só então poderá ser apelidado profissionalmente de Desembargador.


Sobre o "sofrimento" do arguido BB, devo significar a Vossa Excelência que, sem desprimor para os outros trinta e cinco mil causídicos, o referido Senhor está patrocinado pelos Dr.s MM e DD que estão ao corrente da evolução dos interrogatórios.


Tem razão o peticionante, o signatário não é omnipresente


Está na função pública desde .../.../84 e na Magistratura desde .../.../85 (data da entrada no CEJ).


Embora esteja, ao momento, um pouco exausto, ainda não tem um único dia de baixa médica nestes 39 anos de serviço no Estado Português.


O signatário não atentou no que diz a ... ou qualquer outro meio de comunicação social, neste particular.


Na cidade de ..., em férias judiciais, os processos e diligências que vão ao turno (já que o signatário não está em gozo de férias pessoais ainda, até 31 de Julho) são divididos entre dois Juízes escalados no TCIC.


Não houve atraso que justificasse pedir ao Sr. Presidente da Comarca a intervenção do suplente (cfr. cópia das actas dos interrogatórios presididos).


Quanto às condições de detenção no ... os arguidos ficaram ali alguns dias, por razões de operacionalidade.


Logo que foram conhecidas algumas dificuldades foi ordenada a sua condução ao EP anexo à Polícia Judiciária.


O signatário confirma que a ocorrência verberada a fls. 9 quanto às interrupções de interrogatórios, inclusivamente ao fim de semana, mesmo fora do actual quadro de greve dos Srs. Oficiais de Justiça, acontece, ao que é do conhecimento funcional do signatário, em múltiplas ocasiões pelo país fora, onde não há mais do que cinquenta Juízes de Instrução.


O STJ decidirá se há infracção e ordenará o que tiver por adequado


Se o raciocínio do académico peticionante for para valer e todo o arguido tiver de ser ouvido dentro das 48 horas (cfr. fls. 11/§2.º) então há milhares de actos judiciais irregulares neste país.


O Supremo Tribunal de Justiça aclarará.


O signatário tem presente o voto de vencido da Sr.a Conselheira do Tribunal Constitucional Fernanda Palma no AC. 135/05 que, com o devido respeito, não sufraga.


O signatário nada tem a informar ante as considerações, aliás doutas, exaradas nas fls. 17, 18 e 19, da subnumeração.


Cumpre-me informar que os interrogatórios terminaram às 10:30 horas de hoje, dia 24/07/23.


A promoção de estatuto coactivo foi apresentada pelo M.º P.º cerca das doze horas.


As Defesas pronunciaram-se entre as 14:00 e as 15:49 horas


O signatário proferiu, então, o despacho de que junta cópia e que deu a conhecer às Defesas na presença dos arguidos, cerca das 20:00 horas, de 24/07/2023.


É quanto tenho a honra de informar,


Por conseguinte, entende-se não assistir razão ao requerente, inexistindo qualquer vício ou violação legal ou constitucional que implique a ilegalidade da detenção do arguido Sr. BB e demais arguidos aqui presentes.


É quanto me cumpre informar, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º


223.º do CPP, entendendo que as detenções não são ilegais.


Mas, Vossa Excelência melhor decidirá.


Remeta-se, com a máxima urgência, o apenso de habeas corpus, instruído com cópias (ainda que digitalizadas) dos elementos supra referidos, ao Supremo Tribunal de Justiça.


Junte cópia da petição de habeas corpus e da presente informação, aos autos principais.


..., 25 de Julho de 2023. »


1.3. Foi convocada a Secção Criminal, notificando-se o Ministério Público, o requerente e o mandatário do arguido, e houve lugar a audiência, tendo a Secção reunido para deliberação.


II


Fundamentação


1. O instituto do habeas corpus constitui garantia privilegiada do direito à liberdade física ou de locomoção reconhecido no art. 31º da CRP e regulado no CPP por referência às duas fontes de abuso de poder versadas no preceito constitucional: habeas corpus em virtude de detenção ilegal (artigos 220º e 221º, CPP) e habeas corpus em virtude de prisão ilegal (arts 22º e 223º, CPP), que aqui está em causa.


A presente providência foi requerida “por cidadão no gozo dos seus direitos políticos a favor de terceiro, o arguido BB por requerimento apresentado em 24.07.2023, nos termos do art. 222º nº2 c) CPP, com fundamento em que este arguido se encontra preso para além do “prazo fixado da lei” por ter sido detido para 1º interrogatório judicial em 13.07.23, sem que, porém, depois de identificado perante o juiz de instrução (JI) e por este informado do essencial dos factos que lhe são imputados pelo MP, tenha tido lugar, pelo menos até ao dia 23.07.23, aquele mesmo interrogatório judicial e a consequente decisão sobre aplicação de medida de coação.


2. Ora, tendo em conta a informação prestada pelo senhor juiz de instrução criminal, os termos da certidão junta aos autos de processo principal e do apenso constituído pela presente providência, o arguido foi efetivamente detido em 13.07.23 em cumprimento de mandado de detenção (para aplicação de medida de coação), emitido pelo senhor juiz de instrução criminal, a quem foi presente, aguardando desde então a realização de 1ª interrogatório judicial que veio a ter lugar no dia 24.07.23, situação que corresponde a prisão para efeitos da previsão do art. 222º nº2 c) CPP, pois “… este conceito não deve ser objeto de uma leitura literal e/ou restritiva. Numa interpretação integrada, harmoniosa e conjugada , com os artigos 27º, 31º,CRP, 5º CEDH, … deverá abranger todas as situações de privação de liberdade, em que existe confinamento num espaço físico delimitado, por um período temporal mais ou menos alongado. Não releva aqui o nomens júris – prisão – mas a intensidade de um confinamento equiparável a um “aprisionamento” – Vd, nestes termos, por todos, Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do CPP, 2ª ed. p. 581).


No entanto, foram-lhe aplicadas, cerca das 20h do mesmo dia 24.07.23, as seguintes medidas de coação:


- Proibição de contactos entre si e com todos os cidadãos e empresas mencionados no despacho de apresentação, do qual têm conhecimento, com exceção respetivamente de NN e OO e no tocante a PP, com relação a BB;


- Obrigação de Permanência na Habitação».


Verifica-se, pois, que o requerimento de habeas corpus foi apresentado em juízo em 24.07.2023 e que nessa mesma data, o arguido BB foi sujeito à medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação prevista no artigo 201º do CPP, por despacho do senhor JI, situação processual em que se encontra atualmente.


3. Constatamos, assim, que aquando da realização da audiência de habeas corpus e da apreciação do requerimento respetivo (2.08.23), o arguido BB encontrava-se já em cumprimento da medida de coação aplicada e não na situação de detido à ordem do JI, a quem foi apresentado na sequência dos mandados judiciais de detenção, para ser ouvido em 1º interrogatório judicial e ter lugar decisão judicial sobre a medida de coação requerida pelo MP (arts 141º e 194º nºs 1 e 4, CPP).


Assim, sendo, uma vez que findou já a situação de detenção ordenada e mantida pelo JI, com vista à realização de interrogatório judicial e subsequente decisão sobre medida de coação, em que se encontrava o arguido à data do requerimento de habeas corpus, por ter sido entretanto realizado o 1º interrogatório judicial e proferida decisão judicial sobre medida de coação, que lhe aplicou a medida de Obrigação de Permanência na Habitação, não tem a apreciação dos fundamentos da petição de habeas corpus com base na situação pessoal e processual do arguido anterior àquela decisão judicial, tal como invocados no requerimento de habeas corpus.


4. Com efeito, sendo entendimento reiterado do STJ que a providência de habeas corpus, enquanto meio excecional destinado a assegurar o direito à liberdade, pressupõe uma situação de privação de liberdade ilegal que perdure no momento da decisão da providência, o que se traduz no requisito da atualidade da providência, nada há a decidir no âmbito da providência de habeas corpus quando o arguido foi entretanto colocado em liberdade ou quando, como no caso presente, o arguido se encontra já na situação processual reclamada pelo requerente; i.e., ser ouvido em 1º interrogatório judicial e ver decidida a aplicação de medida de coação pelo JI, a quem o arguido fora apresentado e à ordem de quem se encontrava privado da liberdade.


Não subsistindo no momento da apreciação e decisão do habeas corpus a situação de privação ilegal da liberdade em que, segundo o requerente, antes se encontrava o arguido, mostra-se ultrapassada a finalidade exclusiva do pedido de habeas corpus, ou seja, a libertação do arguido com fundamento naquela mesma prisão que o requerente tem por ilegal, não cabendo na decisão da providência a apreciação de quaisquer outras questões eventualmente suscitadas pela situação processual descrita pelo requerente, pois importa tão só determinar se algum dos fundamentos ocorre no momento da apreciação e decisão da providência


5. É esta a consequência inelutável da natureza do habeas corpus enquanto providência teleologicamente vinculada à cessação de situação de privação ilegal da liberdade do arguido. Como constava do relatório do DL 35 043, citado por Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 5ª edição, pp. 419-20, « O habeas corpus não é um processo de reparação dos direitos individuais ofendidos, nem de repressão das infrações cometidas por quem exerce o poder público, pois que umas e outras são realizadas por meios civis e penais ordinários. É antes um remédio excecional para proteger a liberdade individual. Com a cessação da ilegalidade da ofensa fica realizado o fim próprio do habeas corpus».


6. Conforme é pacificamente entendido, o acesso direto e expedito ao STJ através da providência, excecional, de habeas corpus justifica-se pelo propósito de fazer cessar rapidamente estados ilegais de privação da liberdade nas hipóteses, taxativas e manifestas, previstas nas três alíneas do artigo n.º 222º CPP, não constituindo o habeas corpus meio processual próprio para reapreciar de per si outros aspetos ou consequências da situação processual do arguido. Para o que, aliás, sempre faltaria legitimidade ao terceiro requerente nos casos, como o presente, em que a petição é apresentada por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.


7. Mostrando-se ultrapassada a situação em que se encontrava o arguido enquanto aguardava a realização do 1º interrogatório judicial de arguido detido e a apreciação da medida de coação requerida pelo MP, encontram-se esgotados os poderes de cognição do Supremo no âmbito da presente providência e, consequentemente, não pode deixar de considerar-se que o pedido apresentado por AA carece de base factual e legal que o suporte.


III


Dispositivo


Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o presente pedido de habeas corpus por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, al. a), do CPP).


Custas pelo requerente, fixando-se em 4 Uca a taxa de justiça.


Lisboa, 02.08.2023


Os juízes conselheiros, de turno


António Latas, relator.


José Eduardo Sapateiro, adjunto


Ana Barata Brito, adjunto


Paulo Rijo Ferreira, presidente da secção