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LEIS TEMPORÁRIAS COVID19
MORATÓRIA
DATA DA MORA
COMUNICAÇÃO POR WHATSAPP
ABUSO DE PREENCHIMENTO DE LIVRANÇA
Sumário
I. Na sequência da emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19, foi declarado o estado de emergência em Portugal e aprovado um conjunto de medidas excepcionais e extraordinárias, nomeadamente o previsto no Decreto Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, que prevê a possibilidade e as empresas beneficiarem de moratórias junto das instituições financeiras de que são mutuárias. II. Resulta expressamente da previsão da al. c) do n.º 1 do art.º 2.º daquele Decreto Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, que a data relevante, para aferir da antiguidade da mora necessárias, para a sociedade executada beneficiar da moratória será o dia 18 de março de 2020, e não a data da entrega dos documentos comprovativos da situação contributiva, quer relativo à Segurança Social, quer da Autoridade Tributária e Aduaneira. III. Actuando o gerente bancário como preposto, ou seja, surgindo pública e estavelmente à frente da mesma, a sua actuação opera uma automática e inconsciente confiança na representação, pelo que perante os executados essa pessoa é o Banco exequente. IV. Mantendo o executado contacto com o gerente da exequente, através de emails e de mensagens WhatsApp, no sentido de ultrapassar os obstáculos que tinham impedido o preenchimento das condições de que dependia a adesão à moratória pedida pela executada sociedade, aceitando a exequente a junção da documentação por essa via, não pode pretender que tal adesão não pode ser atendida pelo facto de não ter sido remetida “através de correio electrónico ou por meio físico”. V. Actua a exequente em violação dos ditames da boa fé ao socorrer-se de uma desconformidade formal para considerar válida a antecipação do vencimento de todas as prestações devidas e, logo, a possibilidade de preencher as livranças dadas de garantia e intentar a execução, actuando em manifesto abuso de direito na categoria de inalegabilidade formal. Pois, a eventual desconformidade formal na utilização dos meios foi fomentada pela exequente, que aceitou o meio que agora entende ser o menos próprio e desconforme à lei. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
B…, S.A. – Sucursal Em Portugal intentou a execução ordinária a que os presentes autos se mostram apensos contra C…, Unipessoal, Lda. e contra A…, dando à execução duas livranças subscritas pela sociedade executada e avalizadas pelo segundo executado, com vista a obter a cobrança das quantias de €14.666,17 e de €27.974,41, apostas nesses documentos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, e respectivo imposto de selo, até integral e efectivo pagamento.
Regularmente citado, deduziu A...oposição à execução, mediante embargos, para tanto alegando, em síntese, que não subscreveu as livranças em seu nome individual nem nelas prestou aval, e que a sociedade executada solicitou à exequente, em momento em que ainda não tinha dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e em que apenas devia €962,16 à Segurança Social, a adesão às moratórias previstas no art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, mas que nunca foi notificada de qualquer recusa a esse pedido, pelo que é abusivo o preenchimento daquelas livranças.
A Clínica Dr. A…, Unipessoal, Lda. deduziu também oposição à execução com o mesmo fundamento de que solicitou à exequente a adesão às moratórias previstas no art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, em momento em que ainda não tinha dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e em que apenas devia €962,16 à Segurança Social, mas que nunca foi notificada de qualquer recusa a esse pedido, pelo que é abusivo o preenchimento das livranças dadas à execução.
Recebidos os embargos, contestou o exequente, mas as contestações apresentadas foram desentranhadas por terem sido apresentadas para além do prazo de que dispunha para o efeito. Determinada a apensação substancial das oposições, a fim de a sua tramitação passar a ser feita conjuntamente no âmbito do presente apenso, foi realizada audiência prévia, identificando-se o objecto do litígio, enunciando-se os temas da prova e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que se realizou a audiência final, com observância do formalismo legal. Nessa sequência, veio o executado A... retirar a alegação de que não tinha prestado aval nas livranças, considerando-se por isso prejudicada a necessidade de produção de prova quanto ao tema de prova que havia sido fixado relativamente a essa matéria.
Foi proferida sentença que julgou os presentes embargos procedentes, por provados e, em consequência, julgou extinta a execução, ordenando o levantamento de todas as penhoras efectuadas.
Inconformada veio a exequente recorrer formulando as seguintes conclusões:
«A) Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida a fls._, cujo conteúdo foi notificado à ora Recorrente em 28/02/2023, pelo douto Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Execução de Sintra, Juiz 4, o qual julgou procedente os Embargos do Executado A... e, em consequência, determinou a extinção da execução e levantamento das penhoras realizadas no âmbito da presente ação.
B) Fundamenta a decisão proferida por entender que o Recorrente ao invés de ter considerado os contratos incumpridos e de ter procedido ao preenchimento das livranças, deveria ter reconhecido à sociedade executada o direito a aceder à moratória criada pelo Estado, porquanto todos os requisitos se mostravam para o efeito verificados.
C) Desde logo, cumpre esclarecer que, resulta provado que o Recorrente em 05 de maio de 2020, comunicou através de carta enviada à sociedade executada, a rejeição do pedido de adesão à moratória, uma vez que, não se encontravam preenchidos os requisitos previstos na alínea d), do n. º1, do artigo 2.º, do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março.
D) Atente-se que, o Decreto-Lei nº 10-J/2020, de 26 de março, exigia às Instituições Bancárias que as validações dos pedidos de adesão às moratórias tivessem como requisito a verificação da situação contributiva regularizada dos seus potenciais beneficiários, quer junto da Segurança Social quer da Autoridade Tributária.
E) Ora, aquando do pedido de adesão, em 08 de abril de 2020, a sociedade executada juntou ao seu pedido de adesão, a declaração da Segurança Social e Certidão da Autoridade Tributária, da qual resultava que, a sociedade não tinha a sua situação tributária regularizada.
F) O Decreto-Lei foi depois alterado pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, introduzindo no seu artigo 2.º, alínea d), a aceitação dos pedidos de adesão, ainda que tenham uma situação irregular junto Segurança Social ou Autoridade Tributária, desde que a divida seja inferior a € 5000 (cinco mil euros).
G) Sucede que, esta alteração legislativa é posterior ao pedido de adesão (apresentado em 22 de abril de 2020) e à carta de recusa da concessão da moratória (remetida em maio de 2020), sendo que, àquela data os beneficiários não poderiam ter qualquer divida junto da Segurança Social e Autoridade Tributária.
H) Portanto, a recusa da concessão da moratória, assentou nos critérios e condições exigidas, pela legislação em vigor àquela data.
I) Por outro lado, tal como resulta da matéria dada como provada, após a recusa do pedido de adesão à moratória, o Recorrido apenas estabeleceu comunicações com o Diretor da Agência do Recorrente, em T..., via aplicação “WhatsApp”.
J) Aliás, conforme resulta da prova documental e testemunhal, foi única e exclusivamente apresentado um pedido de adesão em 20 de abril de 2020.
K) O facto de o Recorrido ter procedido ao envio – através da aplicação “WhatsApp” - da certidão de não divida à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 31 de julho de 2020, não o desvincula de ter de apresentar um novo pedido de adesão às moratórias, cumprindo as formalidades legais previstas no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020.
L) Os contatos estabelecidos – através de WhatsApp – foi no sentido de auxiliar o Recorrido, na obtenção de documentação que lhe permitisse novamente submeter um novo pedido de adesão.
M) Pelo que, e com o devido respeito pelo douto Tribunal a quo, o seu entendimento não pode proceder, uma vez que, o Recorrente não recusou a concessão da moratória por estar em mora há mais de 90 (noventa) dias.
N) Pelo contrário, o Recorrente procedeu à resolução do contrato e preenchimento da livrança, porque o Recorrido, não remeteu, através de correio electrónico ou por meio físico, a declaração de adesão à aplicação da moratória, acompanhada de toda a documentação (certidão da Autoridade Tributária e declaração da Segurança Social).
O) Assim, no entendimento do Recorrente, não houve qualquer abuso no preenchimento das livranças em face da resolução dos contratos.
P) Por conseguinte, considera o Recorrente que a decisão padece de erro de julgamento quanto à matéria de facto.
Q) Em face do supra exposto e, salvo douto e melhor entendimento, deveria o Tribunal a quo ter decidido pela improcedência dos embargos, porquanto, a decisão proferida consubstancia um manifesto erro de julgamento.
Nestes termos e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença ora recorrida por outra que determine o prosseguimento dos autos, devendo os embargos de executado serem declarados extintos, seguindo-se os ulteriores termos da instância executiva.».
Não foram apresentadas contra alegações.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- Os factos a considerar determinam a existência de incumprimento dos contratos e consequentemente, possibilidade de se proceder ao preenchimento das livranças, pelo facto de a sociedade executada não ter solicitado validamente o direito a aceder à moratória criada pelo Estado.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1- Em 08.08.2018, o exequente e os executados celebraram o acordo escrito designado por “Contrato de Empréstimo Sob A Forma de Mútuo Com Aval”, a que foi atribuído o n.º … (junto com o requerimento executivo como Doc. 1, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), através do qual o exequente concedeu à sociedade executada um financiamento de €20.000,00 destinado a “apoio à tesouraria”;
2- Nos termos do acordo celebrado, obrigou-se a sociedade executada a reembolsar ao exequente o montante mutuado, acrescido de juros e demais encargos, em 60 prestações postecipadas, mensais, constantes e sucessivas, de capital, juros e encargos associados, vencendo-se a primeira prestação em 09.09.2018 e as restantes no dia 9 de cada um dos meses subsequentes;
3- O executado A…, legal representante da sociedade executada, outorgou nesse acordo escrito, constituindo-se solidariamente responsável pelo integral cumprimento de qualquer uma das obrigações dele emergentes;
4- Para garantia do cumprimento das obrigações a que os executados se vincularam através desse acordo, foi entregue ao exequente a livrança com o n.º …, subscrita pela sociedade executada, convencionando-se no aludido acordo escrito que “A livrança entregue ao B…, não integralmente preenchida mas devidamente subscrita e avalizada, poderá ser livremente preenchida pelo B…, designadamente no que se refere às datas de emissão e de vencimento, local de pagamento e montante correspondente aos créditos de que, ao momento, o B… seja titular por força do presente Contrato ou de encargos dele resultantes, não lhe sendo atribuído efeito novatório.”;
5- No verso posterior da livrança entregue, apôs o executado A... a sua assinatura, por baixo da expressão “Bom por aval ao subscritor”;
6- Em 16.11.2018, o exequente e os executados celebraram o acordo escrito designado por “Contrato de Empréstimo Sob A Forma de Mútuo Com Aval”, a que foi atribuído o n.º … (junto com o requerimento executivo como Doc. 6, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), através do qual o exequente concedeu à sociedade executada um financiamento de €35.000,00 destinado ao “prosseguimento da política de investimentos”;
7- Nos termos do acordo celebrado, obrigou-se a sociedade executada a reembolsar ao exequente o montante mutuado, acrescido de juros e demais encargos, em 60 prestações postecipadas, mensais, constantes e sucessivas, de capital, juros e encargos associados, vencendo-se a primeira prestação em 21.12.2018 e as restantes no dia 21 de cada um dos meses subsequentes;
8- O executado A... outorgou nesse acordo escrito, constituindo-se solidariamente responsável pelo integral cumprimento de qualquer uma das obrigações dele emergentes;
9- Para garantia do cumprimento das obrigações a que os executados se vincularam através desse acordo, foi entregue ao exequente a livrança com o n.º …, subscrita pela sociedade executada, convencionando-se no aludido acordo escrito que “A livrança entregue ao B…, não integralmente preenchida mas devidamente subscrita e avalizada, poderá ser livremente preenchida pelo B…, designadamente no que se refere às datas de emissão e de vencimento, local de pagamento e montante correspondente aos créditos de que, ao momento, o B… seja titular por força do presente Contrato ou de encargos dele resultantes, não lhe sendo atribuído efeito novatório.”;
10- No verso posterior da livrança entregue, apôs o executado A... a sua assinatura, por baixo da expressão “Bom por aval ao subscritor”;
11- A sociedade executada não pagou a prestação que se vencia em 21.03.2020 relativamente ao empréstimo a que foi atribuído o n.º ... nem liquidou nenhuma das subsequentes;
12- E também não pagou a prestação que se vencia em 09.04.2020 relativamente ao empréstimo a que foi atribuído o n.º 1… nem liquidou nenhuma das subsequentes;
13- Em 13.03.2020, o executado A... comunicou a N…, director da agência de T... do exequente, que tinha a intenção de requerer a aplicação da moratória prevista no Decreto Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, solicitando instruções de como devia proceder;
14- Após N... ter prestado a informação solicitada, a sociedade executada formalizou em 22.04.2020 o pedido de aplicação da moratória, com suspensão (carência) de capital e juros, com capitalização destes últimos, até 30.09.2020 e prorrogação, por um período igual ao prazo de vigência da medida, remetendo para o efeito ao exequente, por meio físico, declaração de adesão devidamente preenchida e assinada pelo seu legal representante;
15- Fez acompanhar esse pedido de declaração emitida pela Segurança Social, datada de 08.04.2020, da qual resultava que tinha em dívida contribuições no valor de €1.099,09, acrescidas de juros de mora, a calcular à taxa legal em vigor, e de certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, datada de 08.04.2020, da qual resultava que, em face dos elementos disponíveis no sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira, não tinha a sua situação tributária regularizada;
16- Em 05.05.2020, o exequente remeteu escrito à sociedade executada, com o assunto em epígrafe “Moratória do Estado – Decreto - Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março”, através do qual lhe comunicou que:
17- Não obstante o teor da comunicação do exequente, o executado A... manteve-se em contacto com N…, através de troca de e-mails e de mensagens de WhatsApp, no sentido de ultrapassar os obstáculos que tinham impedido o preenchimento das condições de que dependia a adesão à moratória;
18- Assim, em 21.05.2020, N... enviou mensagem ao executado A...com o seguinte teor: “Boa tarde Dr. A…. Os meus colegas perguntam se ainda tem dívidas fiscais por regularizar?”;
19- Em 05.06.2020, o executado A... comunicou a N... que “segunda-feira já temos tudo pronto, inclusivamente as cartas de não divida da segurança social e das Finanças. Segunda-feira ligo ou passo por aí para falarmos um pouco. Obrigado.”;
20- Em resposta, N...informou que estaria ausente na semana seguinte
21- Em 25.06.2020, o executado A... comunicou a N... que “falei já finalmente com as finanças já me disseram vai estar disponível na nossa página dentro em breve a declaração de não divida que faltava.”;
22- Em 28.07.2020, não tendo sido ainda entregue a declaração de não dívida para com a Autoridade Tributária e Aduaneira, N... comunicou a A...que “Falta declaração de não divida da AT em nome da empresa.”;
23- Em 31.07.2020, A... enviou a N…, também por WhatsApp, certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, datada de 31.07.2020, da qual resultava que, em face dos elementos disponíveis no sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira, a sociedade executada tinha nessa data a sua situação tributária regularizada;
24- Não obstante, o exequente não concedeu à sociedade executada a moratória por, entretanto, esta já estar em mora para consigo há mais de 90 dias;
25-O exequente procedeu ao preenchimento da livrança n.º 504227114170285251 com data de emissão em 08.08.2018, vencimento em 11.12.2020 e na importância de €14.666,17;
26- E procedeu ao preenchimento da livrança n.º 504227114170285421 com data de emissão em 16.11.2018, vencimento em 11.12.2020 e na importância de €27.974,41; 27- Após o que remeteu aos executados os escritos juntos com o requerimento executivo como Docs. 3, 4, 8 e 9 (cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos), datados de 21.12.2020, através dos quais referiu ter considerado todas as prestações devidas antecipadamente vencidas, nos termos e para os efeitos do art.º 781.º do Código Civil, através de carta registada com aviso de recepção enviada em 23.10.2020, e lhes comunicou ter procedido ao preenchimento das livranças, interpelando-os a proceder ao respectivo pagamento até ao dia 28.12.2020.
*
III. O Direito:
A questão essencial a decidir prende-se apenas com a verificação ou não dos pressupostos que nos levem a considerar que a executada sociedade solicitou o direito a aceder à moratória criada pelo Estado, tornando, assim, o preenchimento das livranças dadas à execução abusivas, com a consequente extinção da execução.
Com efeito, defende a recorrente que ao invés do considerado na sentença recorrida, não reunindo a executada condições para que fosse concedido o direito a aceder à moratória no momento da primeira solicitação e existindo tais condições decorrente de uma alteração legislativa posterior, tal implicaria um novo pedido. Sustentando que após a recusa do pedido de adesão à moratória, o Recorrido apenas estabeleceu comunicações com o Director da Agência do Recorrente, em T…, via aplicação “WhatsApp”. Defende que, neste âmbito, o facto de terem sido trocadas “mensagens” com vista a ultrapassar os obstáculos que tinham impedido o preenchimento das condições de que dependia a adesão à moratória, não tem como consequência, a aceitação posterior da moratória, com o mero envio desta documentação, através da aplicação “WhatsApp”. Nem, defende, pode ser considerado o envio – através da aplicação “WhatsApp” - da certidão de não divida à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 31 de julho de 2020, pois tal não o desvincula de ter de apresentar um novo pedido de adesão às moratórias, cumprindo as formalidades legais previstas no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020.
Conclui assim, que apenas procedeu à resolução do contrato e preenchimento da livrança, porque o Recorrido, não remeteu, através de correio electrónico ou por meio físico, a declaração de adesão à aplicação da moratória, acompanhada de toda a documentação (certidão da Autoridade Tributária e declaração da Segurança Social), sendo que a troca de mensagens via “WhatsApp” não desonerava o Recorrido de apresentar formalmente o seu pedido junto do Recorrente, existindo desta forma um erro de julgamento.
O Tribunal recorrido depois de tecer considerações sobre os títulos executivos em causa – as livranças – o carácter de as mesmas terem sido subscritas e avalizadas em branco, ocorrendo o preenchimento e vicissitudes do mesmo, expõe o seguinte:« No caso, os executados deduziram a presente oposição à execução alegando que o preenchimento das livranças foi abusivo, porquanto tendo a sociedade executada requerido o acesso à moratória que foi criada pelo Estado através do Decreto Lei n.º 10- J/2020, de 26 de março, e reunindo todos os pressupostos de facto e de direito para dela beneficiar, o exequente estava proibido de “revogar total ou parcialmente os empréstimos contratados enquanto aquelas medidas estivessem em vigor” (sic) e, consequentemente, não podia ter procedido ao preenchimento das livranças. A invocação do preenchimento abusivo constitui excepção material, pelo que era sobre os executados que recaía o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos da mesma, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil. Vejamos então se os executados lograram fazer essa prova. Na sequência da emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19, foi declarado o estado de emergência em Portugal e aprovado um conjunto de medidas excepcionais e extraordinárias. O Governo, através do Decreto Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, que entrou em vigor no dia seguinte, veio estabelecer uma série de medidas excepcionais tendo em vista, designadamente, a proteção dos créditos das empresas nacionais para assegurar o reforço da sua tesouraria e liquidez, tendo como finalidade o diferimento do cumprimento de obrigações dos beneficiários perante o sistema financeiro até 30.09.2020. Dispunha o art.º 2.º, n.º 1, desse diploma, que “Beneficiam das medidas previstas no presente decreto-lei as empresas que preencham cumulativamente as seguintes condições a) Tenham sede e exerçam a sua actividade económica em Portugal; b) Sejam classificadas como microempresas, pequenas ou médias empresas de acordo com a Recomendação 2003/361/CE da Comissão Europeia, de 6 de maio de 2003; c) Não estejam, a 18 de março de 2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto das instituições, ou estando não cumpram o critério de materialidade previsto no Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019 e no Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018, e não se encontrem em situação de insolvência, ou suspensão ou cessão de pagamentos, ou naquela data estejam já em execução por qualquer uma das instituições; d) Tenham a situação regularizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social, na acepção, respectivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não relevando até ao dia 30 de abril de 2020, para este efeito, as dívidas constituídas no mês de março de 2020.”. A sociedade executada requereu ao exequente a adesão à moratória em 22.04.2020, através do meio previsto no art.º 5.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Com o pedido juntou declaração emitida pela Segurança Social e certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, ambas datadas de 08.04.2020. Do teor desses documentos resultava, porém, a existência de contribuições em dívida à Segurança Social no valor de €1.099,09, acrescidas de juros de mora, e a certificação de que também perante a Autoridade Tributária e Aduaneira a sociedade executada não tinha a sua situação regularizada. Não podia por isso beneficiar da moratória pretendida, uma vez que naquela data a adesão à mesma dependia, para além do mais, da absoluta ausência de dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e à Segurança Social respeitantes a período anterior a 01.03.2020. O Decreto Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, viria, contudo, a ser objecto de diversas alterações, designadamente através do Decreto-Lei n.º 26/2020, de 16 de junho, que prorrogou o prazo de vigência da moratória de forma genérica até 31.03.2021. O mesmo Decreto Lei foi depois alterado pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, passando o seu art.º 2.º a ter a seguinte redação: “1- Beneficiam das medidas previstas no presente decreto-lei as empresas que preencham cumulativamente as seguintes condições: a) Tenham sede e exerçam a sua actividade económica em Portugal; b) Sejam classificadas como microempresas, pequenas ou médias empresas de acordo com a Recomendação 2003/361/CE da Comissão Europeia, de 6 de maio de 2003; c) Não estejam, a 18 de março de 2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto das instituições, ou estando não cumpram o critério de materialidade previsto no Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2019 e no Regulamento (UE) 2018/1845 do Banco Central Europeu, de 21 de novembro de 2018, e não se encontrem em situação de insolvência, ou suspensão ou cessão de pagamentos, ou naquela data estejam já em execução por qualquer uma das instituições; d) Relativamente à situação perante a Autoridade Tributária e Aduaneira e a segurança social: i) Tenham a situação regularizada na acepção, respectivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, não relevando até ao dia 30 de abril de 2020, para este efeito, as dívidas constituídas no mês de março de 2020; ou ii) Tenham uma situação irregular cuja dívida seja um montante inferior a 5000 (euro); ou iii) Tenham em curso processo negocial de regularização do incumprimento; ou iv) Realizem pedido de regularização da situação até 30 de setembro de 2020. A partir da entrada em vigor desta alteração, ocorrida em 25.07.2020, o acesso à moratória passou, assim, a ser possível mesmo para as pequenas e médias empresas nacionais que tivessem dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e à Segurança Social de montante não superior a €5.000,00, desde que não estivessem, em 18.03.2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto da instituição bancária a quem a moratória era requerida. Ora, no caso, a dívida da sociedade executada à Segurança Social era por contribuições em falta no valor de €1.099,09, acrescidas de juros de mora, sendo, portanto, a dívida inferior a €5.000,00, conforme declaração que já havia sido entregue com o pedido de adesão, formalizado em 22.04.2020. Tal dívida, com a nova redação conferida ao art.º 2.º do Decreto Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, pela Lei n.º 27- A/2020, de 24 de julho, deixou, portanto, de constituir obstáculo à concessão da moratória. E, em 31.07.2020, foi entregue certidão comprovativa de que a sociedade executada já nada devia à Autoridade Tributária e Aduaneira. Passou, assim, a sociedade executada a cumprir todos os requisitos necessários para beneficiar da moratória.».
Nada nos permite alterar o juízo efectuado pelo tribunal, porém, insurge-se a recorrente quanto ao segmento da decisão que fundamenta a decisão de não ter sido concedida a moratória pelo facto de, entretanto, a executada já estar em mora para consigo há mais de 90 dias, dizendo sim, que tal circunstância advém sim da falta de cumprimento dos requisitos (formais) tendo em vista tal concessão. Com efeito, entende a recorrente que o erro de julgamento ocorre pela circunstância de o Tribunal ter considerado o preenchimento abusivo pelo facto de a ausência do benefício da moratória advir do período de mora, quando tal decorre da falta de entrega de novo pedido com toda a documentação necessária e exigível à data. Tal argumentário não acompanhou a pretensão de alteração dos factos a considerar, mormente o ponto 24. dos factos provados, do qual resulta que a exequente não concedeu à sociedade executada a moratória por, na data da entrega da certidão da Autoridade Tributária e Aduaneira a 31/07/2020, a executada já estaria em mora há mais de 90 dias.
Logo, revela-se acertada a decisão do tribunal recorrido que ao concluir que a data relevante para aferir da antiguidade da mora não podia ser aquela em que a certidão de não dívida foi entregue, mas sim a data de 18/03/2020, conforme resulta expressamente da previsão da al. c) do n.º 1 do art.º 2.º daquele Decreto Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março.
Pois, uma das condições necessárias para beneficiar da moratória era que a empresa não estivesse, “a 18 de março de 2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto das instituições”, sendo que nessa data a executada não estava sequer em mora.
Mas que dizer da ausência de cumprimento dos demais requisitos, ou a exigência de novo pedido por parte da executada com os paradigmas legais entretanto exigidos?
Antecipando, entendemos que razão não assiste à exequente quando afirma que seria exigível à executada formular um novo pedido na data em que obteve a documentação necessária, pois caso assim se entendesse, nessa data, ou seja a 31/07/2020, já a mora decorria há mais de 90 dias, pelo que o “novo” pedido poderia ser objecto de indeferimento com esse fundamento, tal como resultou do ponto 24. Ainda que tal interpretação da exequente também não se revele adequada. Ou seja, ou se considera que o pedido de concessão de moratória é apenas um, complementado com os documentos necessários em cada momento, ou a exigência de pedidos diferenciados em cada momento a par dos requisitos específicos e documentação determinará, necessariamente, que na contagem da mora possa fazer-se o raciocínio que preside ao provado no ponto 24.
No entanto, mesmo a considerar a eventual exigência de um novo pedido, reunidos os requisitos e documentação exigida pela Lei à data, haverá que no caso concreto considerar a actuação da exequente e saber se esta implica ou não que se considere que os executados não cumpriram as exigências previstas na Lei por forma a beneficiarem da moratória, com o consequente incumprimento dos contratos e, logo, a possibilidade de preenchimento das livranças dadas à execução.
Entende a recorrente que para poderem beneficiar da moratória o pedido da executada teria de ser feito através de correio electrónico ou por meio físico, juntando a declaração de adesão à aplicação da moratória, acompanhada de toda a documentação (certidão da Autoridade Tributária e declaração da Segurança Social), logo, pretende que se considere que não foi utilizado o meio e forma própria.
Tal entendimento não tem em conta a actuação do director da agência de T... do exequente, N…, e associado a esta os ditames da boa fé.
Com efeito, ficou demonstrado que após a entrada em vigor da Lei nº 10-J/2020, o executado comunicou ao colaborador supra aludido, a 13/03/2020, a intenção de requerer a aplicação da moratória, solicitando instruções de como devia proceder. Foi na sequência desta solicitação que a sociedade executada formalizou tal pedido, a 22/04/2020, mas na data com declarações da Segurança Social e da Autoridade Tributária e Aduaneira que não lhe permitiam beneficiar de tal direito, como veio a exequente confirmar a 5/05/2020.
Importa ter presente que a falta de pagamento das prestações devidas em cada um dos contratos garantidos pelas livranças, só ocorre apenas após aquela data, ou seja, a 21/03/2020 e a 09/04/2020.
Ora, apesar da recusa e não obstante o teor da comunicação da exequente, o executado A... manteve-se em contacto com N...(frise-se, director de uma das agências da exequente), através de troca de e-mails e de mensagens de WhatsApp, no sentido de ultrapassar os obstáculos que tinham impedido o preenchimento das condições de que dependia a adesão à moratória.
Assim, em 21.05.2020, N... enviou mensagem ao executado A... com o seguinte teor: “Boa tarde Dr. A…. Os meus colegas perguntam se ainda tem dívidas fiscais por regularizar?” Em 05.06.2020, o executado A... comunicou a N...que “segunda-feira já temos tudo pronto, inclusivamente as cartas de não divida da segurança social e das Finanças. Segunda-feira ligo ou passo por aí para falarmos um pouco. Obrigado.”. Em resposta, N... informou que estaria ausente na semana seguinte.
Em 25.06.2020, o executado A... comunicou a N... que “falei já finalmente com as finanças já me disseram vai estar disponível na nossa página dentro em breve a declaração de não divida que faltava.”. Em 28.07.2020, não tendo sido ainda entregue a declaração de não dívida para com a Autoridade Tributária e Aduaneira, N... comunicou a A... que “Falta declaração de não divida da AT em nome da empresa.”.
Sendo que, em 31.07.2020, A... enviou a N…, também por WhatsApp, certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, datada de 31.07.2020, da qual resultava que, em face dos elementos disponíveis no sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira, a sociedade executada tinha nessa data a sua situação tributária regularizada.
Seguindo de perto Pedro Pais de Vasconcelos (in “A Preposição – Representação Comercial”, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 16 e ss.) é preposto a pessoa que surja pública e estavelmente colocada à frente de uma empresa comercial, é o preposto que surge publicamente à frente de parte ou de toda a actividade do comerciante e que é publicamente identificado como sendo quem está à frente dessa actividade. Assim, usando a terminologia do Código Comercial, perante terceiros de boa fé, não faz sentido discutir se o gerente de comércio é trabalhador ou mandatário do comerciante. Perante terceiros de boa fé, apenas interessa saber se o gerente de comércio é um preposto. Sê-lo-á se surgir pública e estavelmente à frente do negócio, caso em que a relação interna (mandato ou contrato de trabalho, por exemplo) deixa de ser oponível ao terceiro e, como tal, torna-se juridicamente irrelevante para saber se o comerciante fica, ou não, vinculado e se é responsável pela actuação do preposto. Ou seja, o preposto nesse sentido mantém uma relação interna (com a entidade que “representa), e uma relação externa (com o cliente). Mas como alude o autor referido “o sistema básico da preposição, no que respeita à relação interna e externa, consiste no seguinte: existe uma relação interna, que provoca a preposição. Mas na relação externa, a Lei impede, em regra, a oponibilidade a terceiros de questões relativas à relação interna, sendo os actos do preposto imputáveis ao preponente” (cf. art.º 248º e ss. do Cód. Comercial). A única coisa que o terceiro sabe, é que está a interagir com uma pessoa que surge pública e estavelmente à frente da empresa.
A partir deste facto, opera-se uma automática e inconsciente confiança na representação. Para o terceiro, essa pessoa é a empresa ou, pelo menos, é uma parte da empresa. Essa pessoa deixa de ser uma qualquer pessoa, para se transmutar na empresa. O que essa pessoa fizer, é feito pela empresa”. (in ob. e loc. cit.).
É certo que o comerciante pode não ficar vinculado aos actos de quem actua como preposto, mas para tal tem de alegar ou abuso de poderes e o seu conhecimento pelo terceiro, ou eventual usurpação de funções, o que manifestamente não resulta dos autos, pelo que no processo em causa haverá que considerar a actuação do gerente N…, actuação essa imputável à exequente perante os executados.
Escuda-se a recorrente no sentido da improcedência dos embargos no facto de os executados não terem cumprido as exigências previstas no art.º 5º do Decreto-Lei nº 10-J/2020, de 26/03/2020, prevendo tal artigo que para acederem às medidas previstas no diploma, as entidades beneficiárias remetem, por meio físico ou por meio electrónico, à instituição mutuante uma declaração de adesão à aplicação da moratória, no caso das pessoas singulares e dos empresários em nome individual, assinada pelo mutuário e, no caso das empresas e das instituições particulares de solidariedade social, bem como das associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social, assinada pelos seus representantes legais. E nos termos do nº 2 do mesmo preceito a declaração é acompanhada da documentação comprovativa da regularidade da respectiva situação tributária e contributiva, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 2.º.
Não há dúvidas que foi formulado tal pedido, mediante o qual a exequente informou que naquela data a executada não reunia as condições de que dependia a aplicação de tal benefício. Porém, na resposta também afirmou que “caso necessite de algum esclarecimento adicional, o seu Gestor, estará, naturalmente, ao seu dispor”.
Ora, na sequência de tal comunicação o executado manteve contacto com o gerente supra aludido, através de emails e de mensagens WhatsApp, no sentido de ultrapassar os obstáculos que tinham impedido o preenchimento das condições de que dependia a adesão à moratória. Actuando tal gerente em conformidade e aceitando e sugerindo o necessário, até culminar com a entrega de toda a documentação pela mesma via e por tal interposta pessoa, mas como deixámos referido quanto à figura do preposto como se fosse a exequente, actuando como tal perante os executados. Em momento algum foi afirmado pela exequente a necessidade de formular novo pedido de adesão em obediência ao art.º 5º nos termos sobreditos, aceitando sim a documentação entregue, sem fazer menção da ineficácia da entrega pela via utilizada até então pelas pessoas envolvidas - A…, por banda dos executados e N…, por banda da exequente.
O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e directrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos. Actuar violando os ditames da boa fé caracteriza-se por uma actuação em abuso de direito. Tendo por base os ensinamentos do prof. Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, págs. 249-269) podem ser sintetizados seis tipologias as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, sendo que estas tipologias nos permitem, igualmente, enquadrar parâmetros de actuação aptos a concretizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito. A saber: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
A exceptio doli traduzia-se numa actuação dolosa do titular na formação da sua situação jurídica ou no momento da própria discussão da causa. No venire contra factum proprium está em causa uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado. Trata-se, em suma, de tutelar a confiança gerada numa das partes pelo comportamento anterior da outra. Em terceiro lugar, verifica-se uma quando alguém alega de forma desconforme com a boa-fé, designadamente por lhe ter dado causa, a nulidade formal de um negócio. A supressio e a surrectio que são figuras baseadas nos mesmos fenómenos – decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança – mas de sentido inverso. No primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício. No segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria.
O tu quoque traduz-se na inadmissibilidade do titular do direito aproveitar-se de uma violação de uma norma jurídica exigindo a outrem que actue em consonância com as consequências resultantes dessa violação. Por fim, temos o desequilíbrio, ou seja, o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).
Temos presente que todas estas situações não são mais do que tipologias de comportamento em que historicamente se tem ancorado o raciocínio do abuso do direito, sendo que nem todas têm actual justificação e muitas delas se reconduzem, no fim de contas, a outras figuras, designadamente ao venire contra factum proprium, mas de qualquer forma permitem deixar mais claros os parâmetros em que se move o instituto invocado.
Na verdade, tendo por referência o disposto no art.º 334º do C.Civil, «o abuso do direito pressupõe um excesso ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-materiais, traduzido na violação qualificada do princípio da confiança, sendo que, para que tal aconteça, não se torna necessário que o agente tenha consciência do carácter abusivo do seu procedimento, bastando que este o seja na realidade». (Galvão Telles in “Obrigações”, pág. 6).
Nesta linha de entendimento, sublinha Baptista Machado (in “Tutela de Confiança”, RLJ, Anos 117º e 118º, a págs. 322 e 323 e 171 e 172, respectivamente), que, para se concluir por tal actuação dita abusiva torna-se necessária a verificação cumulativa de três pressupostos: uma situação objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o agente no futuro se comportará coerentemente de determinada maneira; que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada; ou seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou.
No caso dos autos todo o comportamento da exequente foi de molde a criar nos executados confiança em como o pedido de acesso ao beneficio da concessão de moratória estaria validamente a ser atendido pela exequente, pelo que pretender a exequente socorrer-se de uma desconformidade formal em tal pedido para considerar válida a antecipação do vencimento de todas as prestações devidas e, logo, a possibilidade de preencher as livranças dadas de garantia e intentar a execução e que este embargos constituem a oposição, é manifestamente actuar em desconformidade com os ditames da boa fé, nomeadamente em abuso de direito na categoria de inalegabilidade formal, pois a eventual desconformidade formal na utilização dos meios foi fomentada pela exequente, que aceitou o meio que agora entende ser o menos próprio e desconforme à lei. Pois, em momento algum a exequente, ou o gerente com quem os executados interagiam directamente, os informou que haveria necessidade de formular novo pedido, aceitando sim a documentação que lhes foi entregue, sendo que esta aliado à alteração legislativa e data da mora permitiria à executada obter o benefício da moratória conferida pela Lei excepcional.
Com efeito, a 18/03/2020, data prevista no diploma em causa, a sociedade executada nem sequer estava em mora para com o exequente quanto ao pagamento das prestações dos contratos. Resultando das comunicações trocadas entre o executado A... e o director da agência de T... do exequente que os mesmos estiveram sempre em contacto no sentido de ultrapassar os obstáculos que tinham impedido o preenchimento das condições de que dependia a adesão à moratória, e tendo o executado procedido ao envio da certidão de não dívida à Autoridade Tributária e Aduaneira em 31/07/2020, ou seja, escassos três dias volvidos sobre a comunicação que lhe foi dirigida por aquele director de agência para que o fizesse, pelo que não podia o exequente ter recusado o pedido de adesão à moratória quando, finalmente, todos os requisitos necessários para o efeito se mostravam preenchidos, ou caso, entendesse que tal comunicação não seria válida tê-lo-ia transmitido ou pela mesma via, ou por outra, mas que fosse levada ao conhecimento da executada. Ao invés, a exequente entendeu considerar todas as prestações antecipadamente vencidas, e proceder ao preenchimento das livranças. Logo, tal preenchimento das livranças deve ter-se por abusivo.
Donde, razão não assiste à recorrente, confirmando-se o carácter abusivo no preenchimento das livranças dadas à execução também com este fundamento e, logo, a extinção da execução.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela exequente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida de extinção da execução, quer pelos fundamentos da mesma, quer pelos constantes desta decisão.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
Lisboa, 13 de Julho de 2023
Gabriela de Fátima Marques
Eduardo Petersen Silva
Vera Antunes