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CRIMES ECONÓMICOS
RESPONSABILIDADE DA PESSOA COLECTIVA
Sumário
I - A responsabilidade da pessoa singular – dos órgãos ou representantes – é autónoma da responsabilidade das pessoas coletivas. II - Não determinando o n.º 3 do art. 3.º do D.L n.º 28/84, de 20/1, que a responsabilidade da pessoa coletiva implica ou depende da responsabilidade individual dos respetivos agentes (apenas não excluindo a responsabilidade destes) não será requisito legal a cumulação de ambas as responsabilidades pela prática do ilícito. III – Mas a pessoa coletiva não pode ser responsabilizada pelo comportamento negligente de trabalhadores, ainda que não devidamente identificados, se se verifica que estes atuaram em desconformidade com as ordens e instruções veiculadas por quem a representava.
Texto Integral
Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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1 – relatório
Submetida a julgamento em processo comum, com intervenção de tribunal singular, foi a arguida AA condenada[1], por sentença de 04/05/2022, pela autoria material consumada de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.º 1, alínea c) e 2, al. c), com referência aos artigos 30.º e 82.º, n.º 2, alínea c) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro e artigos 13.º e 15.º, alínea a) do Código Penal, numa pena de 10 (dez) dias de multa, correspondente a 1 (um) mês de prisão, a que acrescem outros 20 (vinte) dias de multa, diretamente aplicada e na pena única de 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de 100 (cem) euros perfazendo um total de 3.000 (três mil) euros.
Mais foi condena na publicação da sentença, por extrato, a expensas suas no "Jornal de Notícias da Madeira".
Discordando da condenação, interpôs recurso a arguida, pugnando pela respetiva absolvição ou redução das penas aplicadas, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, pela qual a Recorrente foi condenada na pena única de 30 dias de multa, à razão diária de cem euros, pela prática, a título negligente, de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos, previsto e punido nos termos do. 24.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.
2. Crê-se que incorreu a douta sentença proferida em erro na interpretação e aplicação do Direito, concretamente no art. 3.º do DL 28/84, porquanto a matéria de facto provada importaria, na subsunção às normas legais invocadas, decisão diversa.
3. Dá-se aqui por integralmente reproduzida a factualidade supra transcrita.
4. No enquadramento jurídico-penal considerou o douto Tribunal a quo que a Recorrente cometeu o ilícito a título de negligência porquanto, não obstante não individualmente identificados os factos foram praticados por funcionários, que ao assim agirem perante terceiros assumem-se como representantes da mesma, agindo em seu nome e no seu interesse.
5. Afigura-se ter o douto Tribunal a quo percorrido o iter cognitivo conducente à responsabilização da pessoa colectiva, mesmo sem a identificação das pessoas singulares que terão agido, não obstante, assim justificando a aplicação do n.º 1, no entanto, omitiu qualquer análise à exclusão da responsabilidade colectiva resultante do mesmo normativo, incorrendo assim em erro na interpretação e aplicação do art. 3.º do DL 28/84, concretamente o n.º 2 do mencionado artigo.
6. A factualidade dada por provada importaria a conclusão contrária à alcançada pela douta sentença em crise, porquanto determina o nº 2, a exclusão da culpa da pessoa colectiva quando o agente tiver actuado contra ordens expressas.
7. A douta sentença recorrida deu como provado que a Recorrida dispõe de um departamento específico de controle de segurança, higiene e qualidade alimentar, dotado de formadores, que prestam com regularidade formação, que elaboram e actualizam regulamente instruções de trabalho, que as mesmas instruções de trabalho se mostram afixadas nos estabelecimentos, incluindo aquele em apreço nos autos.
8. Mais deu como provado que a Recorrente determina que qualquer funcionário retire de venda qualquer produto que não corresponda às características de qualidade e que existindo reclamação de cliente, além de retirar o produto de venda de tal informe a gerência a fim de que seja seguidos procedimentos de análise da reclamação e averiguação das causas.
9. Apurou-se ainda que o(s) funcionário(s) não concretamente identificados agiram com negligência não retirando o produto de venda, não informando a gerência, impedindo assim a acção da Recorrente.
10. Mas tal factualidade, afigura-se absolutamente reveladora de desobediência manifesta de ordens expressas da Recorrente face a qualquer situação que importasse eventual infracção ao normativo pelo qual a mesma se mostra condenada.
11. Tal entendimento, encontra ainda fundamento na matéria de facto dada como provada e supra transcrita que reconhece que a Recorrente agiu disciplinarmente contra os funcionários do talho por desobediência expressa e manifesta aos procedimentos, formação e ordens por si dadas e que teriam evitado qualquer situação de facto. E, bem assim, do parágrafo primeiro de fls. 409 dos autos, que aqui se dá por reproduzido.
12. Crê-se assim forçoso reconhecer que se mostravam preenchidos os pressupostos de aplicação do n.º 2, do art. 3.º do DL 28/84, que importariam a exclusão da culpa da Recorrente na prática negligente do ilícito.
13. A correcta interpretação e subsunção da factualidade dada como provada importaria a aplicação do n.º 2 do art. 3.º do DL 28/84, e a consequente exclusão da culpa da Recorrente, com as legais consequências, termos em que a douta sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que assim decidindo absolva a Recorrente.
14. Sem conceder, em face da factualidade dada como provada afigura-se excessivo o valor de condenação da Recorrente e como tal requer-se a sua redução a valores próximos do mínimo legal.
15. A sanção acessória de publicidade não cumpre qualquer função de prevenção que se não mostre acautelada pela condenação na pena principal, termos em que se requer a revogação da condenação em pena acessória.
16. Nos termos do supra exposto, requer-se a revogação da douta sentença proferida com as legais consequências.»
O recurso foi admitido, por tempestivo e legal, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela respetiva improcedência.
Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, onde refere «…na linha do doutamente decidido na sentença recorrida, que quem estava em condições de detetar a anormalidade em que se encontrava o frango, eram os funcionários do talho, pelo que foi deles a incúria penalmente relevante, sendo que a responsabilidade criminal da arguida pode ser fundamentada na responsabilidade imputada a um seu funcionário de talho ao serviço nesse dia, seja ou não concretamente identificado (cfr., neste sentido. Ac. do TRL de 8/3/2017, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador Lee Ferreira, publicado no site da DGSI e que apreciou um caso muito semelhante ao caso dos autos)».
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, tendo a arguida apresentado resposta, na qual reitera as razões adiantadas em recurso.
Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995).
Não se detetam questões de conhecimento oficioso que imponham a intervenção deste Tribunal. Atendendo às conclusões apresentadas, cumpre conhecer:
- Do erro de direito – da alegada exclusão da responsabilidade da pessoa coletiva;
- Da medida e natureza das sanções aplicadas.
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3. DA DECISÃO RECORRIDA
Mostram-se provados os seguintes factos:
«A arguida "AA" tem como objecto social a distribuição, produção e comércio de produtos alimentares e não alimentares, de todos os produtos de grande consumo, a exploração de centro comerciais, a prestação de serviços e importações e exportações.
A arguida "AA" está estruturada como uma sociedade anónima e é representada por um conselho de administração composto, à data dos factos, por ..., ... e ..., sendo elas que tomavam todas as decisões de gestão da sociedade e definiam o rumo dos negócios, designadamente, contratando funcionários e fornecendo-lhes as ordens e orientações necessárias para o exercício da sua actividade de acordo com o seu modelo económico, segundo critérios de normalidade e de modo a prevenir violações de normas legais.
No exercício da sua actividade, a arguida "AA" tem em funcionamento e aberto ao público o estabelecimento comercial de supermercado denominado "BB", sito no ..., Funchal, área desta comarca.
No âmbito da sua actividade profissional, o mencionado conselho de administração decidiu, em data não concretamente apurada, mas anterior ao dia 28 de agosto de 2020, em nome da sociedade arguida e no interesse desta, contratar o arguido CC para exercer as funções de "district manager" da sociedade arguida.
Ao arguido CC, enquanto "district manager" da sociedade arguida, e segundo instruções e ordens do conselho de administração, cabia-lhe a gestão do desempenho operacional e supervisionamento das lojas, competindo-lhe, entre outras funções, dirigir e fiscalizar a actividade exercida pelos gerentes de loja e demais funcionários e a qualidade dos produtos alimentares expostos para venda.
À arguida DD, enquanto directora de loja do estabelecimento comercial denominado "BB", e segundo instruções e ordens do conselho de administração da sociedade comercial "AA", cabia-lhe a gestão do desempenho operacional e supervisionamento da loja "BB", competindo-lhe, entre outras funções, dirigir e fiscalizar a actividade exercida pelos demais funcionários e a qualidade dos produtos alimentares expostos para venda, encontrando-se presente nessa loja no dia subsequentemente mencionado.
No dia 28 de agosto de 2020, cerca das 14 horas e 55 minutos, no decurso de uma acção de fiscalização ao referido estabelecimento comercial "BB", uma "brigada" da Autoridade Regional das Actividades Económicas, no exercício das suas funções de fiscalização, encontrou e apreendeu, expostos e armazenados para venda ao público, na secção de talho daquele estabelecimento, 26,930 kg de pernas de frango a granel.
Submetidos a exame pericial macroscópico directo, os géneros alimentícios referidos foram considerados "anormais avariados", por apresentarem um aspecto brilhante, indicativo da presença de uma serosidade anormal, pegajosas ao tacto, com pequenas superficies, não só nas partes ósseas como na superfície muscular, onde eram visíveis alterações ligeiras de coloração e, porque o cheiro era anormal, pois exalavam um odor ligeiramente ácido.
As alterações apresentadas pelos mencionados géneros alimentícios não eram suficientemente percetíveis para se evidenciarem a quem olhasse tais produtos de relance, mesmo a uma distância relativamente próxima, mormente a quem estivesse a olhá-los ou a cheirá-los nas imediações da vitrina onde estavam colocados, apenas se tornando perceptíveis a quem os manuseasse e cheirasse mais de perto.
Os referidos géneros alimentícios foram adquiridos pela sociedade arguida e colocados para venda nesse estabelecimento, destinando-se a ser vendidos ao público, para consumo.
O arguido CC, ao exercer a sua mencionada profissão, actua em representação e, em regra, no exclusivo interesse da sociedade arguida "AA", o que também era verdade por ocasião da factualidade em causa nos autos, AA cuja vontade é manifestada pelos membros do seu conselho de administração, a quem cabia e cabe tomar as decisões de gestão da sociedade e definir as orientações necessárias para a execução do seu modelo económico, segundo critérios de normalidade e de modo a prevenir violações de normas legais.
A arguida DD, ao exercer a sua mencionada profissão, actua em representação e, em regra, no exclusivo interesse da sociedade arguida "AA, o que também era verdade por ocasião da factualidade em causa nos autos, AA cuja vontade é manifestada pelos membros do seu conselho de administração, a quem cabia tomar as decisões de gestão da sociedade e definir as orientações necessárias para a execução do seu modelo económico, segundo critérios de normalidade e de modo a prevenir violações de normas legais. Os arguidos sabem que a conduta de manter em exposição, para venda ao público, num supermercado, produtos alimentares anormais classificados como "avariados" é proibida e punida criminalmente.
Um funcionário ou vários funcionários da secção de talho da arguida pessoa colectiva, do supermercado em causa, não concretamente identificado(s), mas agindo em sua representação e no seu interesse, permitiu(iram) que os géneros alimentícios estivessem, nessas condições, no mencionado local, para venda ao público em geral, agindo, assim, sem o cuidado devido a que, atentas as circunstâncias, estava(m) obrigado(s) e era(m) capaz(es), sabendo que essa conduta era proibida e punida criminalmente.
O produto alimentar em apreço, por se tratar de um produto acondicionado em vácuo, apresenta, à abertura das embalagens, um odor intenso, que resulta da selagem em vácuo, pelo que há necessidade de permitir que o produto estabilize.
E, só após esse decurso de tempo, é possível diferenciar o que seja odor resultante da forma de acondicionamento e odor resultante de alteração organolética.
Só após uma análise mais aprofundada/detalhada, mormente com manuseamento e aproximação do nariz, para cheirar, foi possível concluir que as unidades do produto pernas de frango se encontravam com alterações.
A arguida sociedade, enquanto agente comercial actuando na área de produtos alimentares, confere especial importância à segurança e higiene alimentar, tendo constituído um departamento, designado de controle e qualidade alimentar, exclusivamente dedicado a esta matéria, o qual elabora planos de segurança e procedimentos, bem como instruções de trabalho dirigidas às lojas para que se cumpram escrupulosamente os normativos legais aplicáveis, sendo também este o departamento responsável pela formação aos colaboradores que actuam em loja e no atendimento ao público, bem como por fiscalizações regulares às lojas e auditorias aos procedimentos implementados.
A mencionada arguida mantém instruções de trabalho destinadas às várias áreas da sua loja, incluindo, naturalmente o talho, instruções essas que actualiza regularmente em função de evolução do conhecimento científico, alterações legislativas ou outras que relevo tenham.
Nas referidas instruções encontram-se procedimentos específicos e rigorosos quanto ao tratamento de carne de aves.
Esta arguida ministra com regularidade formação na área de segurança e higiene alimentar.
Tem ainda formadores específicos da área de talho que se deslocam com frequência à loja para auditoria e acompanhamento da correcta implementação dos procedimentos de segurança e higiene alimentar, os quais, além do mais reforçam as instruções e prestam formação em ambiente de trabalho, bem como um procedimento para tratamento de reclamações de clientes quanto a questões de qualidade dos produtos, que determina que sempre que exista reclamação a qualquer funcionário o mesmo deverá receber a reclamação e relatar à gerência de loja que fará abertura de um incidente para análise do departamento de controle de qualidade.
O produto perna de frango é recepcionado em loja, habitualmente duas vezes por semana, tendo sido recebido o lote em apreço no dia 24 de agosto e havendo nova recepção prevista no dia da acção de fiscalização.
Os arguidos dão ordens e instruções para que sejam cumpridos todos os procedimentos e boas práticas de segurança e higiene alimentar, mormente dando ordens para que sejam imediatamente retirados de venda, por qualquer funcionário, designadamente do talho, e pela própria iniciativa destes, de produtos que não apresentem caraterísticas ideias de frescura e conservação dos alimentos.
O produto em apreço é um produto susceptível de sofrer algumas alterações, motivo pelo qual são frequentemente relembrados os mencionados procedimentos.
Na sequência da acção de fiscalização, os arguidos procuraram perceber o que poderia ter ocorrido, tendo apurado factos que deram origem a acção disciplinar a quatro trabalhadores do talho, designadamente que, no dia 27 de agosto, uma cliente havia reclamado o produto perna de frango no balcão do talho e, no entanto, contrariamente ao procedimento estabelecido, os trabalhadores que se encontravam no atendimento ao público, não deram conhecimento da reclamação à equipa de gerência.
No dia seguinte, 28 de agosto, a arguida DD ao percorrer a loja antes de abertura ao público, questionou os trabalhadores presentes no talho se era necessário algo, e se estava tudo conforme os procedimentos, tendo sido informada que tudo estava conforme.
Apenas foi informada da existência da reclamação do dia anterior pela "brigada" da ARAE que se deslocou à loja porquanto a cliente/reclamante se dirigiu às instalações da ARAE para apresentar reclamação, tendo os arguidos sido surpreendidos por toda a situação aquando da acção de fiscalização, desconhecendo, até esse momento, qualquer desvio às regras e procedimentos de segurança e higiene alimentar por si implementadas.
O arguido CC, no exercício das suas funções, supervisiona a implementação e cumprimento de todas as normas por parte de todas as lojas que a arguida pessoa colectiva mantém na RAM, transmitindo e verificando o cumprimento dos procedimentos instituídos pela arguida AA, não se encontrando em permanência em nenhuma loja, incluindo a em apreço nos autos, sendo que não se encontrava lá no dia em apreço.
A arguida "AA" tem 14 supermercados "BB" abertos ao público na RAM, onde laboram cerca de 1.000 a 1.100 funcionários.
Teve, no exercício transacto, um volume de negócios de cerca de 170 milhões de euros e EBITDA (lucros após juros, impostos depreciação e amortização) de cerca de 2,8 milhões de euros.
Tem como antecedentes criminais as seguintes condenações, pelos seguintes crimes:
Géneros alimentícios ou aditivos alimentares avariados, cometido a 23/06/06 e punido com 150 dias de multa à taxa diária de 50 euros;
Géneros alimentícios ou aditivos alimentares corruptos, cometido a 18/11/08 e punido com 150 dias de multa à taxa diária de 25 euros;
Géneros alimentícios ou aditivos alimentares avariados, cometido a 25/10/11 e punido com 150 dias de multa à taxa diária de 40 euros;
Géneros alimentícios ou aditivos alimentares avariados, cometido a 21/07/11 e punido com 80 dias de multa à taxa diária de 70 euros;
Géneros alimentícios ou aditivos alimentares avariados por negligência, cometido a 05/12/12 e punido com 170 dias de multa à taxa diária de 15 euros;
Géneros alimentícios ou aditivos alimentares avariados, cometido a 10/01/14 e punido com 20 dias de multa à taxa diária de 40 euros.
O arguido CC aufere um vencimento mensal de cerca de 3.800 euros.
Tem um encargo mensal devido a aquisição de habitação de cerca de 400 euros.
Tem cônjuge e dois filhos ao encargo.
Tem como antecedentes criminais as seguintes condenações, pelos seguintes crimes:
Especulação, cometido a 13/08/98 e punido com 6 meses de prisão substituída por 180 dias de multa e ainda em 100 dias de multa, à taxa diária de 2,49 euros;
Especulação, cometido a 09/10/00 e punido com 400 dias de multa, à taxa diária de 5 euros;
Géneros alimentícios ou aditivos alimentares avariados, cometido a 25/10/11 e punido com 240 dias de multa à taxa diária de 10 euros;
Especulação por negligência e géneros alimentícios ou aditivos alimentares avariados por negligência, cometidos em 05/12/12 e punidos com 315 dias de multa, à taxa diária de 10 euros.
A arguida DD aufere um vencimento mensal de cerca de 1.475 euros, auferindo o cônjuge cerca de 675 euros.
Tem um encargo mensal devido a aquisição de habitação de cerca de 520 euros.
Tem dois filhos ao encargo.
Não tem antecedentes criminais.
FACTOS NÃO PROVADOS
Os referidos géneros alimentícios foram colocados para venda com a supervisão do arguido CC, de acordo com as instruções dos membros do conselho de administração.
Considerando apenas a actuação dos seus funcionários CC e DD, a arguida "AA", não podia desconhecer as alterações que o género alimentício em apreço, considerado "anormal avariado", apresentava.
O arguido CC não podia desconhecer, por força do exercício das funções para as quais foi contratado pelos membros do conselho administrativo da sociedade arguida, das alterações que o género alimentício, considerado "anormal avariado", apresentava.
Este arguido permitiu que os géneros alimentícios estivessem, nessas condições, no mencionado local para venda ao público em geral.
A arguida DD não podia desconhecer, por força do exercício das funções para as quais foi contratada pelos membros do Conselho Administrativo da sociedade comercial "AA", das alterações que o género alimentício, considerado "anormal avariado", apresentava.
Esta arguida permitiu que os géneros alimentícios estivessem, nessas condições, no mencionado local, para venda ao público em geral.
Os arguidos CC e DD agiram, assim, sem o cuidado devido que, atentas as circunstâncias, estavam obrigados e eram capazes, resultado que os arguidos representaram como possível, mas actuaram sem se conformar com a sua realização.
Estes arguidos sabiam ainda que a conduta que tiveram era proibida e punida por lei.»
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4. FUNDAMENTAÇÃO
4.1 Do erro de direito – da alegada exclusão da responsabilidade da pessoa coletiva:
A recorrente aceita a factualidade provada nos autos, cingindo o âmbito do recurso à alegada “exclusão da culpa” que resulta do disposto no art. 3.º, n.º 2 do D.L n.º 28/84, de 20/1.
Estatui o art. 3.º deste diploma legal a responsabilidade criminal das pessoas coletivas, prevendo o n.º 1 que estas são responsáveis pelas infrações previstas no referido diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse coletivo.
A responsabilidade é, contudo, excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (n.º 2).
A lei fala em “órgãos” ou “agentes”, considerando-se que se refere às pessoas singulares que compõem os quadros orgânicos da pessoa jurídica, ou que, por qualquer forma, a representam, ainda que não integrem os quadros diretivos. E prevêem-se também as condutas dos meros agentes ou auxiliares (como os empregados), desde que atuem no exercício das respetivas funções e por causa destas[2][3], mesmo na ausência de um vínculo funcional com a pessoa jurídica[4].
A responsabilidade da pessoa coletiva «…só existe quando o facto é praticado:
a) Por quem atua em termos de exprimir ou vincular a vontade da pessoa coletiva, sociedade ou associação de facto;
b) Procurando a satisfação de interesses, embora ilícitos, dessa pessoa coletiva, sociedade ou associação de facto.
É por isso que a responsabilidade criminal se tem por excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (n.º 2 do art. 3.º). Neste caso porque, em boa justiça, não pode pretender que actuou no interesse do ente colectivo, já que o fez contra ordens de quem tem competência para decidir desse interesse.»[5].
De acordo com PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE[6], em comentário a norma de teor equivalente no Código Penal, a responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas está excluída nos seguintes casos:
- a atuação do agente subordinado da pessoa coletiva contra ordens ou instruções expressas (isto é, que exprimam comandos explícitos e específicos) de quem de direito, isto é, de pessoa que ocupa uma posição de liderança;
- no caso de órgão colegial, a atuação do agente em posição de liderança é contrária à vontade expressa da maioria dos membros do órgão;
- atuação da pessoa em posição de liderança sob erro, causa de justificação ou causa de exclusão da culpa cujos pressupostos se verifiquem em relação à própria pessoa em posição de liderança;
- no caso de órgão colegial, a atuação da maioria dos membros do órgão sob erro, causa de justificação ou causa de exclusão da culpa;
- atuação do agente subordinado sob erro, causa de justificação ou causa de exclusão da culpa desde que a situação não tenha sido criada pela pessoa coletiva.
A respeito da relação entre a responsabilidade da pessoa coletiva e a responsabilidade do seu órgão ou representante, refere INÊS FERNANDES GODINHO[7] que a responsabilidade da pessoa singular – dos órgãos ou representantes – é autónoma da responsabilidade das pessoas coletivas. Por isso, atuando a pessoa singular contra ordens expressas de quem de direito da pessoa coletiva, exclui-se a responsabilidade criminal desta.
Mas já a responsabilidade criminal de uma pessoa coletiva depende de se verificar a prática de um ilícito-típico por um seu órgão ou representante, não sendo, por isso, autónoma da responsabilidade individual.
Mas não determinando o n.º 3 do art. 3.º que a responsabilidade da pessoa coletiva implica ou depende da responsabilidade individual dos respetivos agentes (apenas não excluindo a responsabilidade destes) não será requisito legal a cumulação de ambas as responsabilidades pela prática do ilícito.
Refere a mencionada autora «Na verdade, consideramos que a responsabilidade criminal das pessoas coletivas se baseia na responsabilidade dos respetivos órgãos ou representantes, por serem estes que “fisicamente” manifestam a vontade da pessoa coletiva, Mas a censura feita à pessoa coletiva será mera acumulação com aquela feita ao órgão ou representante ou existirá, antes, um elemento diferenciador? É que, se defendermos uma responsabilidade cumulativa na sua pureza conceptual, a pessoa coletiva só poderá ser punida se o órgão ou representante também o for. Perguntamo-nos, contudo, se na responsabilização do órgão ou representante existir alguma circunstância que impeça a concretização desta mesma responsabilização, a pessoa coletiva não poderá, então, ser responsabilizada. Julgamos que sim, a pessoa coletiva poderá ser responsabilizada. Sob pena de retirarmos todo o sentido “útil” à consagração da responsabilidade criminal das pessoas coletivas. Daí apelidarmos a responsabilidade das pessoas coletivas de alicerçada na responsabilidade dos órgãos e representantes e de não a querermos classificar de cumulativa.”.
O artigo 11.º, n.º 7 do Cód. Penal (na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9) veio, aliás, a deixar expresso que a responsabilidade das pessoas coletivas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes, mas também não depende da responsabilização destes.
Mas, como refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE[8], o n.º 7 do art. 11.º deverá ser convenientemente interpretado, no sentido que pode verificar-se a responsabilidade da pessoa coletiva ou entidade equiparada sem que se possa responsabilizar o agente atuante, não dispensando, contudo, a existência de um nexo de imputação do facto a um agente da pessoa coletiva.
Como enunciámos, a questão a resolver nos presentes autos é saber se a atuação dos concretos funcionário do talho (não identificados) contraria ordem ou instrução expressa da recorrente.
A “ordem” traduz-se num comando transmitido a alguém numa situação concreta, ao passo que as “ instruções” assumem natureza mais genérica, de transmissão de conhecimentos ou informações de como agir em determinado contexto. Para este efeito não releva a forma, «mas é necessário que o agente conheça a ordem ou instrução, que necessariamente se há-de dirigir ao conteúdo do acto a praticar, que seja dada por quem de direito e que seja concreta, que represente um comando e não uma mera sugestão ou recomendação e que esse comando seja perfeitamente percetível pelo destinatário»[9].
Estas ordens e instruções são, na verdade, mecanismos de prevenção que deverão ser adotados pela estrutura organizacional, de modo a evitar a prática de atos ilícitos.
Esta exclusão da responsabilidade é «…um afloramento do princípio, válido mesmo no direito penal secundário, de que não existe responsabilidade penal sem culpa.
É de rejeitar a ideia de que “no direito penal económico a condenação deve ter lugar, sempre ou as mais das vezes, independentemente de culpa, ou em função de uma simples censura objectiva do facto, ao estilo da doutrina dos jus deserts”, valendo isto também para as pessoas colectivas pois, “através dum pensamento analógico pode e deve considerar-se as pessoas colectivas (no direito penal económico e diferentemente no que deve suceder no direito penal geral) como capazes de culpa” – Prof. Figueiredo Dias, Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, vol. I, pag.381.
Aliás, já há muito ensinava o Prof. Manuel de Andrade que “se a noção de culpa é inaplicável às pessoas colectivas, quando tomada ao pé da letra, como culpa dessas próprias pessoas, visto lhes faltar a personalidade real ou natural, já se concebe que possa falar-se de culpa de uma pessoa colectiva no sentido de culpa dos seus órgãos ou agentes” – citado no mesmo volume por Lopes Rocha, pag. 441.
Isto é, a pessoa colectiva, sob pena de o seu comportamento poder ser censurado, é obrigada, através dos seus órgãos ou representantes, a organizar as suas actividades económicas (e outras) de modo adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir violações das normas legais. Mas não lhe é exigível que monte uma organização que impeça ou neutralize toda e qualquer possibilidade de os seus agentes ou funcionários, actuando ao arrepio de instruções expressas, violarem normas legais, nomeadamente do direito penal económico. Nesses casos, porque nenhuma culpa lhe pode ser assacada, a sua responsabilidade é excluída. É este o alcance da citada norma do nº 2 do art. 3 do Dec.-Lei 28/84.»[10]
O Tribunal a quo fundamentou a condenação da recorrente com os seguintes considerandos:
« As sociedades comerciais respondem, por isso, pelas acções dos seus órgãos ou representantes. São representantes da pessoa colectiva aqueles que veiculam a terceiros manifestações de vontade daquela, que agem projectando sobre terceiros as decisões e acções da pessoa colectiva na comunidade em que se insere. A questão que imediatamente assoma, é a de saber se os simples funcionários ou trabalhadores podem ser considerados representantes da sociedade, para estes efeitos da responsabilização criminal dela. A resposta deste Tribunal é positiva, em face das definições de representante que se ensaiaram. Considera este Tribunal que esta extensão da norma legal não visa apenas as pessoas a quem a lei ou a administração confiam a sua direcção e controlo (v.g. o encarregado de uma linha de fabrico, o responsável por um estabelecimento, o revisor oficial de contas etc. (neste sentido, Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, Revista do CEJ, 1.º semestre 2008, no 8, Almedina, p. 70-97) mas todos os trabalhadores a quem tenham sido concedidos poderes de tomar singelas decisões dentro do âmbito de protecção da norma violada. Neste caso concreto, qualquer trabalhador do BB tem, conforme provado, o poder de retirar de venda os produtos que não apresentem condições sanitárias para consumo.
Esse é um poder ínsito no âmbito dos seus poderes funcionais e o agente está, ao exercê-Io ou a deixar de o exercer, a comandar os destinos da sociedade nesse particular, está a decidir, pela sociedade, perante o cliente e está, por isso, a representar a sociedade naquela específica acção concreta (neste sentido, o AC. R. L. de 08/03/17, relatado pelo Desembargador Lee Ferreira, de cujo sumário consta "ocupa uma posição de liderança para efeito de imputação dos seus actos à pessoa colectiva, além dos representantes e mandatários, quem exercer o controlo da actividade da sociedade, aqui se incluindo as pessoas a quem a administração da pessoa colectiva delega funções de autoridade, conferindo-lhe poderes de domínio sobre a actividade da pessoa colectiva, englobando-se mesmo os trabalhadores ou quem de algum modo represente o ente colectivo e tenha agido no seu interesse e por sua conta"). Também se assume neste acórdão que o regime de responsabilização das pessoas colectivas previsto no n.º 3 do D. L. no 28/84 tem de ser conciliado com o regime dessa responsabilização previsto no art. 11.º do C. Penal. No entanto, não é demais lembrar que o mencionado artigo 3.º já existia, com este teor, e regia autonomamente a responsabilidade penal das pessoas colectivas nos crimes contra a economia, quando o C. Penal nem sequer ainda previa a responsabilização criminal das pessoas colectivas (excepto, pela sua admissão residual, precisamente, em diplomas penais avulsos, de que o D. L. n 28/84 era exemplo). Assim, mesmo sem a invocação deste art. 11.º do C. Penal é defensável que a interpretação mencionada supra já resulte directamente do art. 3.º, no 1 do D. L. no 28/84, de 20/01, pois que esta norma responsabiliza as pessoas colectivas pelas infracções cometidas, quer pelos seus "órgãos", quer pelos seus "representantes", devendo entender-se "representantes" como todos os subordinados da pessoa colectiva, desde que actuem no seu nome e interesse.
Retomando o exposto supra, não restam dúvidas a este Tribunal que a arguida pode ser criminalmente responsabilizada pela conduta negligente de um seu funcionário subalterno, desde o gerente de loja, até ao chefe ou o funcionário da secção de talho do seu supermercado que tenha agido negligentemente, em seu nome e no interesse colectivo. Isto será assim, ainda que a arguida tenha implementado um sistema funcional adequado à prevenção desse concreto erro. Esta última conclusão assenta no pressuposto de que a culpa não é directamente imputável à organização da pessoa colectiva. Embora se tente procurar, a nível doutrinal, um critério para o estabelecimento de uma culpa autónoma da pessoa colectiva, que poderia assentar num defeito organizacional, o certo é que, como no caso dos autos, muitas situações existem em que nada falha na organização societária: o que falha é uma especifica pessoa, integrada na organização da pessoa colectiva, sendo essa culpa individual que fundamenta, por isso, a culpa da própria pessoa colectiva que não é, deste modo, uma culpa autónoma, mas uma culpa derivada de um funcionário que a representa. Na prática, uma conduta negligente do funcionário fá-lo incorrer — se for identificado, o que, in casu, não aconteceu - em responsabilidade criminal e, derivadamente, também à pessoa colectiva em nome de quem age.
Revertendo estas conclusões para o caso dos autos, temos que nenhum dos funcionários da pessoa colectiva arguida aqui acusados agiram, na perspectiva deste Tribunal, de forma negligente, pelo que não é na perspectiva da conduta deles que a arguida pessoa colectiva poderia ser condenada. Agiram negligentemente, no entanto, o funcionário ou funcionários do talho desse supermercado, não concretamente identificados, que, nesse dia e hora, estavam ao serviço da arguida pessoa colectiva, servindo os seus clientes. A responsabilidade criminal da arguida, que é, como exposto supra, uma responsabilidade derivada da conduta criminalmente ilícita imputável a um seu funcionário, não pode ser fundada na responsabilidade dos arguidos pessoas singulares pronunciadas, que é inexistente, mas pode ser fundamentada na responsabilidade imputada a um seu funcionário de talho ao serviço nesse dia, seja ou não concretamente identificado. Não constando do objecto do processo, mormente do despacho de pronúncia, essa imputação a um funcionário da pessoa colectiva efectivamente responsável pela prática do crime em apreço, não poderia o Tribunal suprir automaticamente tal omissão, pois que estaria a introduzir no objecto do processo factualidade indispensável para a condenação da arguida, ou seja, a proceder a uma alteração factual tendente a introduzir no objecto do processo elementos essenciais à condenação da arguida pessoa colectiva. Assim, sendo, esta alteração só pode ser classificada como uma alteração substancial dos factos, submetida, por isso, ao regime do artigo 359.º do C. P. Penal. Mas, o despacho de pronúncia é também omisso noutra factualidade que se reputa essencial, desta feita a relacionada com as características dos bens alimentares susceptíveis de os tomar anormais avariados. De facto, tal despacho limita-se a aduzir que os bens alimentares em causa foram submetidos a exame pericial e considerados anormais avariados, mas, em lado algum nos descreve as características que tais alimentos apresentassem que permita fundamentar ou mesmo sindicar esse juízo, que dessa forma, é meramente conclusivo, um juízo valorativo e não factual. Como podem os arguidos defender-se da conclusão de que os bens estavam avariados se não existe na pronúncia nenhum suporte factual que possam contrariar? O relatório pericial junto aos autos descreve, de facto, as características que os pedaços de frango patenteavam e que, na perspectiva da perita, justificaram a conclusão de serem considerados anormais avariados. No entanto, nenhum desses factos foi vertido no despacho de pronúncia e esses são factos necessários para integrar o tipo criminal objectivo de que os arguidos vêm pronunciados.
Uma vez constatado o referido no parágrafo anterior, foram comunicadas essas alterações factuais substanciais aos arguidos, no decurso da audiência de julgamento, sendo que o Ministério Público e os arguidos aceitaram que esses novos factos comunicados passassem a integrar o objecto do processo, pelo que, atenta a prova dos mesmos, passou a existir factualidade provada suficiente para a condenação da arguida pessoa colectiva, pelas razões expostas supra.»
Com relevo, verificamos que se encontra provado que:
«As alterações apresentadas pelos mencionados géneros alimentícios não eram suficientemente percetíveis para se evidenciarem a quem olhasse tais produtos de relance, mesmo a uma distância relativamente próxima, mormente a quem estivesse a olhá-los ou a cheirá-los nas imediações da vitrina onde estavam colocados, apenas se tornando percetíveis a quem os manuseasse e cheirasse mais de perto.
O produto alimentar em apreço, por se tratar de um produto acondicionado em vácuo, apresenta, à abertura das embalagens, um odor intenso, que resulta da selagem em vácuo, pelo que há necessidade de permitir que o produto estabilize.
E, só após esse decurso de tempo, é possível diferenciar o que seja odor resultante da forma de acondicionamento e odor resultante de alteração organolética.
Só após uma análise mais aprofundada/detalhada, mormente com manuseamento e aproximação do nariz, para cheirar, foi possível concluir que as unidades do produto pernas de frango se encontravam com alterações.
Um funcionário ou vários funcionários da secção de talho da arguida pessoa colectiva, do supermercado em causa, não concretamente identificado(s), mas agindo em sua representação e no seu interesse, permitiu(iram) que os géneros alimentícios estivessem, nessas condições, no mencionado local, para venda ao público em geral, agindo, assim, sem o cuidado devido a que, atentas as circunstâncias, estava(m) obrigado(s) e era(m) capaz(es), sabendo que essa conduta era proibida e punida criminalmente.
A arguida sociedade, enquanto agente comercial atuando na área de produtos alimentares, confere especial importância à segurança e higiene alimentar, tendo constituído um departamento, designado de controle e qualidade alimentar, exclusivamente dedicado a esta matéria, o qual elabora planos de segurança e procedimentos, bem como instruções de trabalho dirigidas às lojas para que se cumpram escrupulosamente os normativos legais aplicáveis, sendo também este o departamento responsável pela formação aos colaboradores que atuam em loja e no atendimento ao público, bem como por fiscalizações regulares às lojas e auditorias aos procedimentos implementados.
A mencionada arguida mantém instruções de trabalho destinadas às várias áreas da sua loja, incluindo, naturalmente o talho, instruções essas que atualiza regularmente em função de evolução do conhecimento científico, alterações legislativas ou outras que relevo tenham.
Nas referidas instruções encontram-se procedimentos específicos e rigorosos quanto ao tratamento de carne de aves.
Esta arguida ministra com regularidade formação na área de segurança e higiene alimentar.
Tem ainda formadores específicos da área de talho que se deslocam com frequência à loja para auditoria e acompanhamento da correta implementação dos procedimentos de segurança e higiene alimentar, os quais, além do mais reforçam as instruções e prestam formação em ambiente de trabalho, bem como um procedimento para tratamento de reclamações de clientes quanto a questões de qualidade dos produtos, que determina que sempre que exista reclamação a qualquer funcionário o mesmo deverá receber a reclamação e relatar à gerência de loja que fará abertura de um incidente para análise do departamento de controle de qualidade.
Os arguidos[11] dão ordens e instruções para que sejam cumpridos todos os procedimentos e boas práticas de segurança e higiene alimentar, mormente dando ordens para que sejam imediatamente retirados de venda, por qualquer funcionário, designadamente do talho, e pela própria iniciativa destes, de produtos que não apresentem caraterísticas ideias de frescura e conservação dos alimentos.
O produto em apreço é um produto suscetível de sofrer algumas alterações, motivo pelo qual são frequentemente relembrados os mencionados procedimentos.
Na sequência da ação de fiscalização, os arguidos procuraram perceber o que poderia ter ocorrido, tendo apurado factos que deram origem a ação disciplinar a quatro trabalhadores do talho, designadamente que, no dia 27 de agosto, uma cliente havia reclamado o produto perna de frango no balcão do talho e, no entanto, contrariamente ao procedimento estabelecido, os trabalhadores que se encontravam no atendimento ao público, não deram conhecimento da reclamação à equipa de gerência.
No dia seguinte, 28 de agosto, a arguida DD ao percorrer a loja antes de abertura ao público, questionou os trabalhadores presentes no talho se era necessário algo, e se estava tudo conforme os procedimentos, tendo sido informada que tudo estava conforme.
Apenas foi informada da existência da reclamação do dia anterior pela "brigada" da ARAE que se deslocou à loja porquanto a cliente/reclamante se dirigiu às instalações da ARAE para apresentar reclamação, tendo os arguidos sido surpreendidos por toda a situação aquando da acção de fiscalização, desconhecendo, até esse momento, qualquer desvio às regras e procedimentos de segurança e higiene alimentar por si implementadas.»
E, ponderada a factualidade assente, se concordamos que uma pessoa coletiva possa ser responsabilizada pelo comportamento negligente de trabalhadores, ainda que não devidamente identificados, a verdade é que, no caso concreto, se verifica que estes atuaram em desconformidade com as ordens e instruções veiculadas por quem representava a recorrente, o que excluí, em nosso entender, a responsabilidade criminal que lhe poderia ser assacada.
Provou-se que, são veiculadas regularmente instruções referentes à retirada de venda de produtos do talho que se suspeite não estarem nas devidas condições.
Não resulta da factualidade provada que as ordens e instruções da recorrente não tenham sido recebidas pelos concretos funcionários do talho (não identificados). Mas mais, tendo sido reclamada a qualidade do produto por uma consumidora no dia anterior, no mesmo dia da fiscalização, mas antes desta, os funcionários do talho não comunicaram à gerente de loja aquela reclamação, afirmando à mesma, quando interpelados, a conformidade dos procedimentos.
Apurando, à posterior, o ocorrido, a recorrente instaurou procedimentos disciplinares.
Em face da factualidade provada, entendemos que a recorrente teve um comportamento cautelar adequado, não se vislumbrando o que mais, naquela situação concreta, pudesse ter efetuado ou implementado (nem a decisão recorrida o refere). No fundo, não se deteta a violação de dever de cuidado que possa fundar a respetiva responsabilidade (negligente).
Partindo-se, assim, do pressuposto que as ordens e instruções foram regularmente comunicadas (pois que o contrário não ficou comprovado), tanto assim que as pessoas singulares que têm a concreta missão de transmitir, implementar e fiscalizar procedimentos de controlo da qualidade (CC e DD) foram absolvidos da prática do ilícito, os concretos funcionários do talho que retiraram o produto do vácuo e tinham a tarefa de verificar a qualidade do mesmo e que, após reclamação de cliente, não trataram de retirar o produto do expositor para venda, omitindo à gerente de loja o ocorrido, atuaram contra ordens e instruções expressas que receberam dos representantes da arguida.
Entendemos, por isso, que se encontra comprovada nos autos a causa de exclusão da responsabilidade da recorrente prevista no art. 3.º, n.º 2 do D.L. n.º 28/84, de 22/1, o que impõe a respetiva absolvição.
Procedendo, nesta parte, o recurso, mostra-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.
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5. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pela arguida AA, absolvendo a mesma da prática do crime de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.º 1, alínea c) e 2, al. c), com referência aos artigos 30.º e 82.º, n.º 2, alínea c) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro e artigos 13.º e 15.º, alínea a) do Código Penal, por que vinha condenada.
Sem custas (arts. 513º, nº1, do Cód. Proc. Penal).
Notifique.
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Lisboa, 13 de julho de 2023
Mafalda Sequinho dos Santos
Carlos Espírito Santo
Manuel Advínculo Sequeira
_______________________________________________________ [1] Foram também julgados, mas absolvidos, os arguidos CC e DD. [2] Delitos Económicos, CARLOS EMÍLIO CODEÇO, 1986, p. 34. [3] E não apenas por ocasião destas. [4] Responsabilidade Penal das Pessoas Coletivas, MÁRIO PEDRO MEIRELES, Julgar n.º 5, 2008, p. 130. [5]A Responsabilidade Penal das Pessoas Coletivas – Novas Perspetivas, MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA, Ciclos de Estudos de Direito Penal Económicos, CEJ, 1985, p. 164-165. [6] Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, UCE, 5.ª ed. atualizada, p. 153. [7] A Responsabilidade Solidária das Pessoas Coletivas em Direito Penal Económico, Coimbra Editora, p. 178-179. [8] Obr. cit., p. 155. [9] Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, GERMANO MARQUES DA SILVA, Verbo, p. 268. [10] Acórdão TRG de 27/10/2008, proc. n.º 1339/08-1, Relator FERNANDO MONTERROSO, www.dgsi.pt. [11]Pessoas singulares, que foram absolvidos.