NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DE ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL.
USUCAPIÃO
PRESUNÇÃO DE POSSE
Sumário


I - Revestindo a ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1, do CRP e 89.º e 101.º do Código do Notariado a natureza de simples apreciação negativa, incumbe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
II - Tendo os réus afirmado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhe, para além do mais, a prova dos factos que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus”, em que a posse se traduz;
III - Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º, nº 2, do CC), desta presunção se extraindo que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996;

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Proc. n.º 1566/17.1T8BGC.G1

I - AA e marido BB Lopes– titulares dos números de identificação fiscal Singular nº. ...70 e ...88, com residência em ... – ... – ..., intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, casada, nif. ..., residente na Rua ... – ... - ... e marido, DD, casado, nif. ..., residente na Rua ... – ... - ..., pedindo o seguinte:

(a) Se declare absolutamente ineficaz, para efeitos de Inscrição matricial, e Registo Predial, a Escritura Pública de Justificação Notarial, outorgada pelos R.R. em 25 de Outubro de 2017, exarada a fls. 24 e 26 do respetivo livro número duzentos e setenta e três, outorgada no Cartório Notarial, sito na Avenida ..., ..., ... em ..., perante o respetivo Notário Dr.º EE – publicada no Jornal ... a em 31 de Outubro de 2017.
(b) Se declare inexistente o facto da posse e do direito de propriedade justificado pela R. na referida escritura, relativamente ao prédio ali identificado com o artigo matricial ...44.Pº da freguesia ..., do concelho ....
(c) Se declare que as declarações prestadas pelos R.R. e testemunhas nesta escritura de Justificação no que cabe ao prédio rústico, não correspondem à verdade, sendo falsas.
(d) Se declare nula e de nenhum efeito a inscrição matricial de tal artigo, assim como a presente Escritura Pública de Justificação Notarial, por validamente impugnado o seu conteúdo.
(e) Se decrete a falsidade dos factos cuja Justificação se pretendeu através da dita escritura, devendo declarar-se inexistente o pretenso direito dos R.R. sobre o descrito prédio.
(f) Condenação dos R.R. nas custas e condigna procuradoria.

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Os Réus regularmente citados, apresentaram contestação, alegando, em suma, que o falecido FF, pai da Autora mulher, vendeu verbalmente aos aqui Réus uma parcela do seu olival, sito naquele Lugar ..., no ano de 1980.
Depois de comprar o terreno, os Réus começaram a comprar os materiais de construção, colocando-os no terreno (areias, cimentos, tijolos), e logo começaram a construir o estábulo/armazém que ali se encontra hoje.
Pronunciado, assim, pela improcedência da ação, e peticionam a condenação dos AA. como litigantes de má-fé em multa e indemnização a favor dos Réus nunca inferior a €1.000,00.
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Os Autores exerceram o direito ao contraditório quanto à alegada exceção, cfr. fls. 79 e seg..
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O Réu DD faleceu, pelo que, no apenso A, foi julgado procedente o incidente de habilitação de herdeiros, e, em consequência, declararam-se CC, GG e HH, habilitados como herdeiros do Réu, DD, para prosseguir no lugar deste os termos do processo até final

Os autos prosseguiram e, efectuado o julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar a ação totalmente improcedente, e, em consequência:

a) Absolver os Réus do peticionado.
b) Julgar o pedido quanto à litigância de má-fé dos Autores improcedente, e, em consequência, absolvê-los.

Inconformados os autores interpuseram recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:
a) Apesar de dar como provados os factos 1 a 6, 9, 11 a 19, o Tribunal a quo não fundamenta nem produz qualquer análise crítica da prova produzida quanto a estes factos, sendo totalmente omissa nessa matéria quanto aos mesmos, violando o disposto no art. 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC e conduzindo à inevitável nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 615, n.º 1, alínea b) do CPC, com todas as consequências legais.
b) Sem prescindir, sempre se dirá que por essa mesma razão, tais factos não podiam ter sido dados como provados.
c) Tanto mais que, os factos 1 a 6 apenas transcrevem o teor da escritura de justificação que – conforme consta da fundamentação jurídica dessa mesma sentença e como infra melhor se explicará – foi impugnada pelos aqui Recorrentes e, por essa razão, se traduz na impugnação dos factos com base nos quais foi celebrado o registo, impedindo que os aqui Recorridos possam beneficiar da eficácia da presunção legal do registo.
d) Também não se podem manter como factos provados os que vêm indicado como tal nos pontos 2, 3, 5 e 6 uma vez que incluem expressões e palavras que encerram, ora conceitos de direito (ex. posse, direito, donos), ora conclusões (ex. declaram, invocam, de que se arrogam, alegam, concluindo) que não factos, como se impõe, em clara violação do disposto no artigo 607º, n.º 4 do CPC, devendo ser os pontos em causa totalmente desconsiderados cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-04- 2015, Proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16-01- 2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
e) Já quanto aos pontos 11, 13, 14, 15 e 16, a prova produzida nos autos foi em sentido diverso do que ali está representado, devendo ser julgados não provados.
f) Vejam-se, a este propósito, os depoimentos das seguintes testemunhas: II (minutos 06:02 a 06:08, intervalo 16:39:12 a 17:14:37, sessão do dia 08-06-2021); JJ (minutos 11:18 a 11:33, intervalo 14:27:32 a 15:12:00, sessão do dia 30-06-2021); KK (minutos 19:25 a 19:28, intervalo 15:12:53 a 15:44:01, sessão do dia 30-06-2021).
g) Ora, estranha-se que as testemunhas dos aqui Recorridos afirmem perentoriamente e com segurança que a alegada venda e construção do armazém tenha acontecido há mais de trinta anos, mas ainda mais se entranha que nenhuma delas consiga explicar, de forma convincente, o motivo pelo qual refere esse lapso temporal.
h) Será porque é de conhecimento comum que o decurso de um lapso de tempo de 20 ou 30 anos permite adquirir a propriedade por usucapião? Quiçá...
i) Não basta dizer-se “há seguramente mais de 30 anos”, é necessário contextualizar, referir factos concretos, credíveis, coincidentes e que permitam ao Tribunal formar a firme convicção que, efetivamente, tais factos ocorreram nessa data.
j) O que, in casu, não se verificou, não obstante incumbir aos RR. o ónus da prova!
k) Também não percebem os Recorrentes como pode o Tribunal a quo dar como provada a compra de uma parcela de terreno (pontos 11, 13, 14 e 16) quando todas as testemunhas dos Recorridos se referem única e exclusivamente a um armazém/palheiro.
l) É claro que um armazém ou um palheiro não correspondem, nem na gíria, nem a nível técnico-jurídico a um terreno.
m) Veja-se, também, o depoimento das testemunhas LL (minutos 08:20 a 08:29 e 08:37 a 08:42, intervalo 16:20:22 a 16:36:44, sessão do dia 08- 06-2021), MM (minutos 04:37 a 04:40, intervalo 11:39:18 a 12:03:53, sessão do dia 13-01-2021), NN (minutos 18:26 a 18:32, intervalo 12:17:17 a 12:44:02, sessão do dia 13-01-2021) e, ainda, OO (minutos 23:25 a 23:29, intervalo 12:47:04 a 13:21:32 da sessão de 13-01- 2021).
n) Sendo que quanto à factualidade dada como provada no ponto 15 nenhuma prova foi produzida nem carreada para os presentes autos (documental, testemunhal ou outra) que permitisse dar como provado este facto.
o) Por sua vez, devia ter sido dado como provado e, portanto, acrescer à lista de factos, porque essenciais e importantes para o apuramento da verdade material, que:
“O pai da A. mulher, na qualidade de quem gere o património dos filhos, autorizou os RR. a usar parcialmente o prédio, apenas e tão só, o vulgo “palheiro”, por lhes ter sido em tempo exigido, pela junta de freguesia a retirada dos animais do centro das aldeias, para Armazéns e terrenos periféricos, e, em troca os RR., ajudavam os pais da A. Mulher no granjeio das suas hortas e dos filhos”;
“Tal limitado, ao tempo necessário, para que os RR. pudessem construir então um palheiro “seu” deles – O que era normal e usual nas aldeias, a que os AA., não se opuseram, pois, o que o pai da A. mulher decidia, em princípio os AA. não contrariavam”.
p) Isto posto, a ser bem decidida a questão, devem ser alterados, após reapreciação da prova produzida nos termos expostos, os factos provados e enumerados na decisão como 11, 13, 14, 15, 16, para não provados, bem como aditados os factos supra mencionados nos pontos 39 e 40, como factos provados, assim como devem ser expurgados e desconsiderados os factos 1 a 6, 9, 11 a 19, por não estarem fundamentados, conterem meras conclusões e conceitos jurídicos;
q) Sem prescindir, em face dos restantes factos que se aceitam como provados, estes não são adequados a provar a posse e/ou o título e seus contornos, de um qualquer prédio.
r) Sem prescindir, também não se concorda com a fundamentação jurídica da sentença.
s) Na verdade, corroboramos o entendimento do Tribunal a quo quando refere que a justificação notarial não constitui nem documenta um qualquer acto translativo.
t) Sendo que, pelo modo como opera este expediente, a celebração de uma escritura de justificação notarial não oferece cabais garantias de segurança e de genuína correspondência com a realidade, potenciando uma utilização fraudulenta do mecanismo e pode conduzir a que o justificante dele se sirva para conseguir levar ao registo direito de que não é titular.
u) E é exactamente por isto que se tem entendido que enquanto o justificante não efectua o registo com base na escritura outorgada, a acção pela qual se impugna essa escritura corresponde a uma acção de simples apreciação negativa, determinando isso a inevitável inversão do ónus da prova (cfr. artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil).
v) Acontece que, apesar deste enquadramento, o Tribunal a quo acaba por concluir que “atenta a factualidade dada como provada, os Réus lograram provar que, há pelo menos 30 anos, praticam atos materiais sobre o supra referido prédio na qualidade de proprietários, tendo adquirido o direito de propriedade por usucapião”.
w) Não diz, porém, como é que lograram provar que, há pelo menos 30 anos os RR. praticam atos materiais sobre o referido prédio.
x) E não o diz porque, efetivamente, não resultou de qualquer prova produzida, como supra se referiu.
y) Por outro lado, resulta que os aqui Recorridos não são donos de qualquer logradouro, apenas existindo referências a um palheiro/armazém.
z) Donde resulta uma clara desconformidade entre a realidade substantiva e a realidade notarial.
aa) Implicando, direta e necessariamente, que nada do que consta da escritura de justificação notarial sobre o prédio corresponde à realidade substantiva, devendo o referido ato notarial ser declarado totalmente nulo e ineficaz na parte atinente a esse prédio.
bb) Por outro lado, a considerar-se proprietários do referido palheiro/armazém, os RR. deviam ter-se socorrido da figura da acessão industrial prevista no art. 1340º do CC, o que não fizeram.
cc) Com efeito, a acessão industrial dá-se quando, por facto do Homem, se confundem objectos pertencentes a diversos donos ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem confundido o resultado desse trabalho com propriedade alheia (artº 1326º do C. Civil) cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02-10- 2014, disponível em www.dgsi.pt.
dd) Assim, o Tribunal a quo ao julgar a presente ação improcedente violou o disposto nos artigos 341º, 342º, 343º, 364º, 376º, n.º 1, 1ª parte, 1251º, 1252º, 1253º, 1287º a 1297º, 1302º, 1305º, 1316º, 1317º e 1340º todos do Código Civil, bem como nos artigos 6º, 516º, 568º, 607º, n.ºs 3 e 4, e 615º do Código de Processo Civil, os arts.º 7, 116º, n.º 1 todos do Código de Registo Predial e os arts.º 89º e 101º todos do Código do Notariado.
ee) Porquanto, da interpretação e aplicação das normas supra referenciadas o Tribunal a quo só poderia – expurgados os factos 1 a 6, 9, 11 a 19, porque conclusivos e conceitos de direito, impugnados os factos 11, 13, 14, 15, 16, mesmo aceitando-se como provados os factos 7, 8 e 10 – salvo melhor entendimento, concluir pela procedência da referida ação e, nessa sequência:
- declarar absolutamente ineficaz, para efeitos de Inscrição matricial, e Registo Predial, a Escritura Pública de Justificação Notarial, outorgada pelos R.R. em 25 de Outubro de 2017, exarada a fls. 24 e 26 do respetivo livro número duzentos e setenta e três, outorgada no Cartório Notarial, sito na Avenida ..., ..., ... em ..., perante o respetivo Notário Dr.o EE – publicada no Jornal ... a em 31 de Outubro de 2017 :
- declarar inexistente o facto da posse e do direito de propriedade justificado pela R. na referida escritura, relativamente ao prédio ali identificado com o artigo matricial ...44.Po da freguesia ..., do concelho ...;
- declarar que as declarações prestadas pelos R.R. e testemunhas nesta escritura de Justificação no que cabe ao prédio rústico, não correspondem à verdade, sendo falsas;
- declarar nula e de nenhum efeito a inscrição matricial de tal artigo, assim como a presente Escritura Pública de Justificação Notarial, por validamente impugnado o seu conteúdo;
- decretar a falsidade dos factos cuja Justificação se pretendeu através da dita escritura, devendo declarar-se inexistente o pretenso direito dos R.R. sobre o descrito prédio.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 635º e 639º Código de Processo Civil -.

Em 1ª instância foi dada como provada e não provada a seguinte matéria de facto:

1. Em 25 de Outubro de 2017, por escritura de justificação notarial, exarada a fls. 24 e 26 do respetivo livro número duzentos e setenta e três, outorgada no Cartório Notarial, sito na Avenida ..., ..., ... em ..., perante o respetivo Notário Dr.º EE – publicada na edição n.º ... no Jornal ... a em 31 de Outubro de 2017.
2. Os RR. declaram ser donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem do bem imóvel com a seguinte descrição:

a) Prédio Urbano, composto de edifício de um piso e logradouro destinado a arrumos e recolha de animais com a superfície coberta de 182,50 m2 e descoberta, correspondente a logradouro de setenta e quatro m2, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar de Norte com o caminho de ..., Sul, Nascente e Poente com AA, aqui A. não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., mas inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... º–(Provisório) pendente de avaliação a qual atribuem o valor de mil euros.
3. Os RR. invocam na respetiva escritura que “são donos e legítimos possuidores com exclusão de outrem do supra identificado prédio, que esse edifício foi por eles construído a expensas deles usucapientes, em terreno que lhes foi vendido no ano de mil novecentos e oitenta, já no estado de casados, por FF, casado, já falecido (“pai da A.”), residente que foi na aludida freguesia ..., por contrato de compra e venda meramente verbal, nunca tendo chegado a realizar-se a necessária escritura pública. Que assim, não são detentores de qualquer título formal que legitime o domínio do mencionado prédio”.
4. E que, nessa conformidade, “..desde meados desse ano mil novecentos e oitenta, começaram a utilizar o terreno, gozando de todas as utilidades, começando por ocupa-lo, colhendo os frutos ali produzidos, nele efetuando benfeitorias e posteriormente ali depositando os mais diversos materiais de construção, como cimento, areai, ferro e tijolos..”.
5. Quanto ao direito de que se arrogam, os RR. alegam ainda que atuaram da seguinte forma “... sempre com ânimo de quem exerce direito próprio, na convicção de tal terreno lhes pertencer e de serem os seus verdadeiros donos, com tal sendo reconhecidos por toda a gente, fazendo de boa-fé por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente, porque sem violência, contínua e publicamente, à vista e com o conhecimento de todos e sem oposição de ninguém”. 6. Concluindo os RR. que a posse aludida é em nome próprio, pacífica, continua e pública, facto pelo qual consequentemente derivou na aquisição do prédio pelo regime do instituto da usucapião, que invocam para justificar o direito de propriedade para efeito de registo.
7. Os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio Rústico, - ... e centeio com construção de apoio agricultura, inscrito na matriz predial sob o artigo ...57 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número ...16, sito em cancelos, na freguesia ... – ....
8. Em 07 de Setembro de 2017, os AA, por intermédio de Advogado – interpelaram – formalmente os RR. – para a desocupação imediata e retirada de eventuais pertences do dito palheiro.
9. Os RR. instruíram junto do Serviço de Finanças de ... a Criação de Um artigo – declarando a Inexistência do mesmo, e do qual se arrogam proprietários – que deu origem ao artigo Provisório ....
10. Os AA. após conhecimento de tal requereram de imediato Procedimento Cancelamento/Suspensão do dito artigo criação Artigo Matricial ao que atribuído foi o n.º ... no Serviço de Finanças.
11. O falecido FF, pai da Autora mulher, vendeu verbalmente aos aqui RR. uma parcela do seu olival, sito naquele Lugar ..., em data não concretamente apurada, mas há mais de 30 anos.
12. Os RR. precisavam de um local para construir um curral/estábulo para as vacas fora do centro da aldeia.
13. O R. marido entendeu-se com o pai da Autora, entre ambos definiram a área do terreno a vender, cerca de 250/300 m2, e foi pago o competente preço.
14. Depois de comprar o terreno, os RR. começaram a comprar os materiais de construção, colocando-os no terreno (areias, cimentos, tijolos), e logo começaram a construir o estábulo/armazém que ali se encontra hoje.
15. Tal construção foi paga pelos RR., materiais e mão-de-obra, nela tendo trabalhado vários homens e até o R..
16. Os RR. iniciaram a construção do curral/armazém imediatamente após a compra do terreno, e logo que a construção teve condições ali colocaram as suas vacas.
17. Há mais de 30 anos que os Réus utilizam aquele edifício, de forma contínua e pacífica, de boa fé, à vista de todos, publicamente e sem qualquer oposição, seja dos AA., seja do pai da A. mulher ou de qualquer outra pessoa.
18. Ali guardavam os seus animais, designadamente as suas vacas, o feno, as alfaias agrícolas, o trator, fazendo a sua manutenção do imóvel, usufruindo dele de acordo com as necessidades da agricultura e pecuária que sempre praticaram, com o ânimo de estarem a exercer direito próprio e na convicção de o mesmo lhes pertencer e de serem os verdadeiros donos e assim sendo reconhecidos.
19. Há mais de 30 anos que os RR. ali guardam as suas vacas, e tinham marca de exploração atribuída pelo IFAP.
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II. B. FACTOS NÃO PROVADOS

a. Atendendo à condição de emigrantes os AA. apenas tiveram conhecimento do conteúdo e ato ante mencionado, em meados do presente mês de Novembro ano de 2017.
b. O prédio inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... é pertença dos AA., e desde tempos imemoriais que possui artigo matricial próprio, nunca foi omisso, encontra-se devidamente registado em nome dos AA que lhes foi oferecido/dado/doado pelo pai da A. mulher – com descrições matriciais distintas, áreas diferentes – mas à realidade física – corresponde ao mesmo prédio ora justificado pelos RR..
c. O falecido pai da A. com todas as capacidades cognitivas doara o prédio em questão a aqui A. mulher e marido, factualidade conhecida e aceite pela mãe e irmãos da A. mulher, como de toda a população da identificada freguesia.
d. O pai da A. mulher, na qualidade de quem gere o património dos filhos, autorizou os RR. a usar parcialmente o prédio, apenas e tão só, o vulgo “palheiro”, por lhes ter sido em tempo exigido, pela junta de freguesia a retirada dos animais do centro das aldeias, para Armazéns e terrenos periféricos, e, em troca os RR., ajudavam os pais da A. mulher no granjeio das suas hortas e dos filhos.
e. Tal limitado, ao tempo necessário, para que os RR. pudessem construir então um palheiro “seu” deles – O que era normal e usual nas aldeias, a que os AA., não se opuseram, pois, o que o pai da A. mulher decidia, em principio os AA. não contrariavam.
f. Há mais de três anos, que os AA. vêm interpelado os RR. para a desocupação do palheiro, e os RR. recusam a desocupação do palheiro.
g. Que o preço pago pelos RR. foi de duzentos mil escudos, ou duzentos contos como se dizia naquela altura.
h. Que o estábulo se encontra devidamente associado enquanto parcela possuída e utilizada pelo R. marido desde 1997 no IFAP, IP (Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas).
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Alegam os autores a nulidade da sentença nos termos do disposto na alínea b) do artigo 615º do Código de Processo Civil.
Relativamente à falta de fundamentação de facto, diga-se que, integrando a sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação dessa decisão (artº. 607º, nºs. 3 e 4), “deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b), do nº1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, nºs 2-d e 3, alíneas b) e d) - Acs. da Rel. do Porto de 5/03/2015 e de 29/06/2015, in www.dgsi.pt.
Assim, nenhuma das nulidades previstas no art. 615º do CPC se refere à decisão da matéria de facto. A possibilidade de anulação da decisão da matéria de facto está, diversamente, prevista quando se verifique existir deficiência, obscuridade e contradição sobre pontos determinados da matéria de facto julgada ou que seja necessário ampliar, nos termos constantes da alínea c), do nº 2, e da alínea b), do nº 3, do artº 662º. Isso nada tem a ver com os erros de julgamento, sejam da matéria de facto, sejam da de direito, implicantes da alteração da sentença relativamente a cada um dos respectivos segmentos decisivos em geral prevista no artigo 662º, nº 1.
Em síntese, pode-se concluir que a falta absoluta de fundamentos de factos (ausência de factos) enquadra-se na nulidade da alínea b) do artº. 615º, nº. 1, C.P.C., tal como a falta de fundamentação de direito. Já a falta de tratamento de questões suscitadas pelas partes integra-se na alínea d). A errada – nomeadamente porque omite factos relevantes -, deficiente, obscura ou contraditória decisão de facto, ou a insuficiente (ou inexistente) fundamentação/motivação de facto, deve ser abordada através do disposto no artº. 662º do C.P.C.
Mas na motivação da decisão de facto não se detecta qualquer falha ou deficiência.
Os factos provados 1 a 6 transcrevem o que consta da escritura de justificação, pelo que os mesmos se fundamentam na respectiva escritura.
Por outro lado, não poderiam os mesmos deixar de considerar-se como provados uma vez que uma escritura pública  constitui um documento autêntico cujo valor probatório é fixado pelo art. 371º do Código Civil, preceito do qual resulta a atribuição de força probatória plena a factos relatados pela autoridade ou agente público com funções de atestação, mas apenas na medida em que sejam percepcionados pela entidade documentadora.
Ora, o que está considerado como provado nos referidos pontos, não é a materialidade que consta da escritura, mas apenas as declarações que os outorgantes efectuaram perante o Notário e o conteúdo das mesmas.
O Notário não atestou que os factos que aí constam correspondem à verdade mas apenas que perante si, “os primeiros Outorgantes disseram “que declaram ser donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem do bem imóvel com a seguinte descrição (…)”.
Ora é essa a matéria que consta dos pontos 1 a 6.
 Impugnam ainda os apelantes a matéria que consta dos pontos sob os n.ºs 11, 13, 14, 15 e 16.
Indicam os depoimentos das testemunhas II, JJ, KK, LL,  MM, NN e OO.

Pretendem ainda que se adite à matéria de facto provada dois factos com o seguinte teor:
“O pai da A. mulher, na qualidade de quem gere o património dos filhos, autorizou os RR. a usar parcialmente o prédio, apenas e tão só, o vulgo “palheiro”, por lhes ter sido em tempo exigido, pela junta de freguesia a retirada dos animais do centro das aldeias, para Armazéns e terrenos periféricos, e, em troca os RR., ajudavam os pais da A. Mulher no granjeio das suas hortas e dos filhos”;
“Tal limitado, ao tempo necessário, para que os RR. pudessem construir então um palheiro “seu” deles – O que era normal e usual nas aldeias, a que os AA., não se opuseram, pois, o que o pai da A. mulher decidia, em princípio os AA. não contrariavam”.
O que está em causa nos pontos referidos, essencialmente, é saber se o falecido FF, pai da autora mulher “vendeu” verbalmente aos réus uma parcela do olival, e se estes pagaram o preço e aí construíram um curral/armazém.
As testemunhas II, NN, MM e OO a este respeito disseram que o terreno foi vendido aos réus por parte do pai da autora mulher.
Também referiram que há mais de 30 anos os réus construíram o armazém.
A testemunha II referiu que foi ele quem fez os alicerces do prédio e quem lhe pagou a obra foi o réu marido.
Também disse que fez as medições para a construção do armazém e que nessa altura estavam presentes não só o réu como o pai da autora mulher.
É certo que a testemunha LL referiu, no seu depoimento, que o pai da autora mulher lhe disse que apenas emprestou o prédio aos réus para estes fazerem um armazém. Mas este depoimento é contrariado pelos demais depoimentos. Por outro lado, e conforme se diz na decisão recorrida não é crível que alguém apenas empreste um prédio para alguém fazer um armazém com uma estrutura sólida e não precária, para além de que o seu depoimento também se revelou pouco convincente, pois é estranho que saiba desse pormenor e nada mais saiba em relação ao prédio, nomeadamente quem herdou o prédio após a morte do pai da autora.
A versão dos réus foi corroborada pelas testemunhas II, NN, KK , MM e PP.
Como se diz na decisão recorrida a propósito da versão dos autores e das testemunhas QQ e RR, ninguém empresta parte de um prédio, muito menos quando este pertence a outrem, para um terceiro construir um edifício em blocos de cimentos, ou seja, um edifício sólido e permanente, nem uma pessoa aceita construir um edifico nos termos referidos em terreno emprestado, e muito menos ainda quando, e na versão dos AA. e destas testemunhas, nem sequer pertence à pessoa que empresta.
Ouvidos os depoimentos  concordamos com a convicção do Tribunal recorrido mantendo a matéria de facto como consta da sentença.

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Refere-se no Acórdão desta Relação de Guimarães de 07/06/2018, no processo 309/16.1T8VRL.G1, disponível em www.dgsi.pt que “como observa Borges de Araújo (Prática Notarial, 2001, pág. 339) “na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo. Partindo da ideia de que, respeitando este princípio se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excecional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer. O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis”.
E de facto, a escritura de justificação notarial, enquanto um dos modos necessários para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, encontra acolhimento legal no art. 116º, nº 1, do CRP, bem como nos arts. 89º, 96º, nº 1, e 101º do Código do Notariado.
Como refere José Alberto Vieira (em “Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito – Anotação ao AUJ n.1/2008, de 04-12-2007”, Cadernos de Direito Privado, nº 24, outubro/dezembro de 2008, págs. 21 a 42) “quando o interessado pretende promover o registo de qualquer um destes factos (v.g., usucapião) está obrigado a providenciar um título escrito para ele (art. 43º, nº 1, do CRP). Ora, dentro dos meios dispostos pela ordem jurídica portuguesa para este efeito, das três uma: recorre a juízo para obter a declaração judicial do facto a registar; promove a celebração de uma escritura pública de justificação notarial; instaura processo de justificação registral, nos termos do Código do Registo Predial.”
Concretamente, segundo o mesmo autor (op. cit., pág. 37) a escritura de justificação notarial “tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão”.
Revestindo a ação ora em causa a natureza de simples apreciação negativa, incumbe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art 343.º, nº 1, do CC).
Constitui, aliás, jurisprudência uniformizada do STJ, constante do AUJ n.º 1/2008, que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1, do CRP e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7.º do Código de Registo Predial”.
Conforme consta provado nos pontos sob os n.ºs 16 a 19, os réus iniciaram a construção do curral/armazém imediatamente após a compra de terreno, sendo que há mais de 30 anos utilizam aquele edifício à vista de todos de forma contínua, publicamente sem qualquer oposição, e com a convicção de exercerem um direito próprio de proprietários.
São factos constitutivos do direito de propriedade fundado na usucapião os que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus”, em que a posse se traduz (art. 1251º e art. 1253º, “a contrario”, ambos do Código Civil).
Apesar de assim ser, também não deixa de ser certo que, podendo a posse ser exercida quer pessoalmente, quer por intermédio de outrem (art. 1252º, nº 1, do CC), situações há em que os atos praticados se apresentam como equívocos, devendo, então, em caso de dúvida, presumir-se a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º, nº 2, do Código Civil).
Desta presunção da posse naquele que exerce o poder de facto, extrai-se que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, interpretação firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996, publicado no Diário da República, II Série, n.º 144, de 24/06/1996.
Deste modo, em tais casos inverte-se o ónus da prova no que ao “animus” respeita, ficando aquele que se arroga o direito livre do encargo de o provar, cabendo, antes, àquele que pretende ver derrubado o direito arrogado, a prova de factos tendentes a ilidir a aludida presunção.
Sucede, porém, que o referido art. 1252º, nº 2, cuida de ressalvar que o ali prescrito é “sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º”, preceito segundo o qual se presume que “a posse continua em nome de quem a começou”.
Importa, por isso, sobremaneira, proceder à devida articulação entre estas duas presunções, de tal articulação extraindo as necessárias consequências.
Na verdade, se o art. 1252º, nº 2, salvaguarda do âmbito do aí estatuído os casos do n.º 2 do art. 1257.º, isto é, os casos em que se deve presumir que “a posse continua em nome de quem a começou”, então excluídos estão do âmbito da presunção da posse em nome próprio naquele estabelecida os casos em que o detentor (ou aparente possuidor) “não foi o iniciador da posse” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 8).
Nos casos de aquisição derivada da posse, como sucede com a tradição material ou simbólica, efetuada pelo anterior possuidor, prevista na alínea b) do mesmo artigo, prevalecerá a presunção ilídivel estabelecida no n.º 2 do art.º 1257.º, segundo a qual se presume que a posse continua no anterior possuidor, competindo assim ao adquirente provar não só a mera materialidade da traditio mas também a intencionalidade subjacente, mormente o negócio em se fundou aquela traditio.”
Ora, na presente acção os réus alicerçam a sua pretensão na aquisição do prédio por usucapião.
A verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa.
Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir duas características : pública e pacífica.
Os restantes caracteres – boa ou má fé, titulada, etc. – influem apenas no prazo (Neste sentido, Dr. Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pág. 112).
Nos termos do artigo 1296º do Código Civil, “não havendo registo do título ou da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se for de boa fé, e de vinte anos se for de má fé”.
A posse não titulada presume-se de má fé.
A ausência da má fé, resulta, da generalidade dos casos, da convicção de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por título válido, por se desconhecerem, precisamente, os vícios da aquisição (Pires de Lima e Antunes varela, Código Civil Anotado, v. 3º, pág. 22) .
De acordo com o disposto no artigo 1260º do citado código, a posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé a posse titulada e de má fé a não titulada.
A posse ainda que não titulada, pode ser de boa fé ; mas incumbirá sempre aos possuidores a prova das respectivas situações, dada a presunção estabelecida no artigo 1260º, de que a posse não titulada se presume de má fé (neste sentido, Ac. da Rel. do Porto, de 11/1/79, in BMJ 284, pág. 286).
E o número 1 deste artigo define a posse de boa fé como sendo  a ignorância do possuidor, aquando da constituição da posse, de lesar o direito de outrem (boa fé subjectiva).    
Conforme já se referiu, resulta da matéria de facto provada que os réus há mais de 30 anos praticam actos materiais de posse  sobre o prédio e com animus de proprietários, o que fazem de forma pública e pacífica, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja.
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 III – Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 10 de Julho de 2023.