EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
NULIDADE DO DESPACHO
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
QUANTIA CERTA
ACTUALIZAÇÃO
Sumário


I - Se o rendimento indisponível for fixado em quantia certa e na decisão que o fixar não for estabelecida a sua actualização e modo de o fazer, deve o mesmo ser actualizado por despacho, a proferir à posteriori, sob pena de o valor fixado poder deixar de ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar em função do custo de vida ficar, assim, colocado em crise o princípio da dignidade da pessoa humana subjacente àquele.
II – O critério de actualização, há-de ser encontrado por interpretação da decisão que fixou o rendimento indisponível.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

A 04/12/2020 AA veio requerer a declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante.

Por sentença de 09/12/2020 foi declarada a insolvência do requerente.

A 25/01/2021 a Sra. AI apresentou Relatório nos termos do art.º 155º do CIRE.

A 12/02/2021 foi proferido o seguinte despacho:
“(…)
Concomitantemente com o requerimento por via do qual se apresentou à insolvência, pediu o/a devedor/a BB a exoneração do passivo restante, dando cumprimento à exigência imposta pelo n.º 3 do art.º 236.º do CIRE.---
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 4 da citada disposição normativa.---
Não subsistindo motivo que fundamente, nos termos previstos pelo art.º 238.º do CIRE, o indeferimento liminar da pretensão formulada, cumpre proferir despacho nos termos do disposto no art.º 239.º do mencionado diploma legal.---
Terá de atender-se à situação económica e financeira do respectivo agregado familiar e às despesas com habitação, alimentação, electricidade, gás, água, transportes, vestuário e saúde.---
Nessa conformidade, determina-se que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do/a/s insolvente/s – que corresponderá àquele que ultrapasse o valor de € 750,00/mês – fique cedido ao/à Sr./ª Administrador/a, que vai investido/a na condição de fiduciário/a.---
Durante aquele período de cessão, o/a/s insolvente/s fica obrigado/a/s a observar as imposições previstas pelo n.º 4 do citado art.º 239.º do CIRE.---
De acordo com a previsão do art.º 240.º do CIRE, a remuneração do/a fiduciário/a e reembolso das suas despesas são da responsabilidade do/a/s insolvente/s.---
Notifique, publique e registe (art.º 247.º do CIRE).---
(…)”

A 18/02/2023 o Insolvente apresentou requerimento dizendo, em síntese:
- na sequência do despacho inicial de Exoneração do Passivo Restante, foi atribuído ao Insolvente o rendimento indisponível de € 750,00 mensais;
- à data do despacho – 2021 – o salário mínimo nacional correspondia ao valor de € 665,00, pelo que o tribunal, tendo em consideração a situação sócio-económica do Insolvente e do seu agregado familiar, atribuiu-lhe o referido valor, correspondente a 1SMN, acrescido de 12,8%;
- este valor tem de ser actualizado no decorrer dos anos do incidente de exoneração do passivo restante, para se enquadrar com a realidade económico-financeira do País;
- relativamente ao ano de 2022, o valor a ter em conta deverá ser o correspondente ao SMN, acrescido de 12,8%, ou seja, € 795,24;
- tal valor deverá ser tido em conta na elaboração do Relatório Anual correspondente ao 2º ano de cessão de rendimentos;
- relativamente ao ano de 2023, o valor a ter em conta deverá ser o correspondente ao SMN, acrescido de 12,8% - € 857,28;
- caso assim não se entenda, o rendimento disponível que corresponde ao que ultrapassar o valor de € 750,00 mensais, encontra-se desfasado da realidade económico-financeira que actualmente vivemos, tendo em consideração a inflação que se faz sentir, pelo que requer a actualização do valor do rendimento disponível do insolvente, para todo aquele que ultrapasse a quantia de € 857,28 mensais;
- o rendimento indisponível deve ser calculado com referência a 14 meses porque também a RMMG, que corresponde àquele que o Estado fixa como mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador, é recebida 14 vezes;
- requer seja confirmado que o rendimento atribuído ao insolvente, deverá ser considerado por 14 meses, dividido por 12.

Foi ordenada a notificação da Sra. Fiduciária para se pronunciar, o que a mesma fez a 17/03/2023, dizendo que:
-  não foram apresentadas, pelo insolvente, despesas que ao abrigo do 239º n.º 3, al. b, ponto iii), relevam para serem ressalvadas, assim como não foram alegadas alterações ás suas condições de vida que conduzam a uma reapreciação da situação do insolvente que justifique uma alteração do montante  do rendimento indisponível fixado, tendo por base os critérios de razoabilidade e dignidade, ponderando-se, por um lado, o interesse legítimo dos credores e, por outro, a necessidade de garantir a um devedor uma vida digna;
- no Relatório a elaborar anualmente, o cálculo deverá ter como referência um ano e não a cada um dos meses, devendo ser aclarado o valor a considerar mensalmente para esse cálculo, bem como o esclarecimento que vier a ser prestado, deve ser tido em consideração no Relatório que está a ser elaborado referente ao período de Fevereiro de 2022 a Janeiro de 2023.

A 20/03/2023 foi proferido o seguinte despacho:
Não tendo sido pelo insolvente alegados factos que fundamentem um pedido de alteração do montante do rendimento indisponível fixado, não sendo o pedido ora formulado uma mera actualização, indefere-se ao requerido.---
Por outro lado, esclarece-se que, sabendo ser comum proceder-se à fixação de um rendimento com referência mensal, a informação a prestar pelo Fiduciário quanto a quantias a ceder que excedam aquele valor deve ser prestada anualmente, sendo que, quando os rendimentos não se mantenham estáveis ao longo desse período de tempo, deve o cálculo ser efetuado com referência a um ano e não a cada um dos meses.---

Interpôs o Insolvente recurso, pedindo que:
a) Se ordene a atualização do rendimento indisponível atribuído ao insolvente de acordo com o valor do SMN acrescido de 12,8%, em cada ano do período de cessão de rendimentos;
b) Subsidiariamente, se altere o montante do rendimento indisponível atribuído ao insolvente para 1SMN acrescido de 12,8% com efeitos retroativos à data do requerido em juízo;
c) Se ordene que o cálculo do rendimento indisponível deve ser realizado tendo em consideração que aquele não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, dividida por 12.
Terminou as alegações [1] com as seguintes conclusões:
1- Por despacho inicial de exoneração de passivo restante, datado de 2021, o Tribunal a quo atribuiu ao insolvente o rendimento indisponível de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros mensais).
2- O Recorrente não pode conformar-se com a não atualização anual do referido montante a título de rendimento indisponível tendo em consideração a atualização anual do salário mínimo nacional e a inflação que atravessa o País.
3- O Recorrente requereu a atualização do valor do rendimento disponível, referente ao ano de 2022 para 795,24€, e a vigorar no ano de 2023, o valor de 857,28€.
4- Em alternativa, caso assim não se entendesse, o Recorrente solicitou a alteração do valor do rendimento indisponível a partir da data do respetivo pedido para € 857,28.
5- A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo indeferiu o solicitado, invocado que não foram alegados factos que fundamentem um pedido de alteração do montante do rendimento indisponível fixado, mas, apenas uma mera atualização do mesmo.
6- O Recorrente não se pode conformar com o despacho proferido que, salvo o devido respeito, enferma de manifesta falta de fundamentação, quanto à questão do pedido de alteração do valor do rendimento indisponível, pelo que é nulo.
7- O valor atribuído ao insolvente corresponde a um valor fixo, que não fora indexado a qualquer valor de referência, nomeadamente, ao salário mínimo nacional, que corresponde, exatamente ao limite mínimo que a nossa jurisprudência e doutrina têm entendido ser o montante mais baixo que, ainda assim, é suscetível de assegurar a subsistência com o mínimo de dignidade, para um adulto.
8- No ano de 2021, o salário mínimo nacional correspondia ao valor de € 665,00
(seiscentos e sessenta e cinco euros), pelo que, o Tribunal, tendo em consideração a situação sócio-económica do insolvente e do seu agregado familiar, atribui-lhe o valor correspondente a 1 SMN acrescido de 12,8%.
9- O valor do rendimento atribuído ao Recorrente tem de ser atualizado no decorrer dos anos do incidente de exoneração do passivo restante, para se enquadrar com a realidade económico-financeira do País.
10- O montante do rendimento indisponível atribuído ao recorrente, a vigorar relativamente ao ano de 2022, deve ser atualizado para € 795,24, devendo ser tido conta na elaboração do Relatório Anual correspondente ao 2º ano de cessão de rendimentos.
11- Assiste ao Recorrente o direito de requerer a atualização do montante do rendimento indisponível, tendo em conta a alteração do salário mínimo nacional, o qual, acompanha o crescimento da economia e a inflação.
12- O montante do rendimento indisponível atribuído ao recorrente, a vigorar relativamente ao ano de 2023, deve ser atualizado para € 857,28.
13- Não existiu qualquer oposição por parte dos credores ou de qualquer outro interveniente processual à atualização anual do rendimento indisponível atribuído ao Recorrente.
14- O Recorrente, subsidiariamente, requereu ao Tribunal a quo a alteração do
montante do rendimento indisponível atribuído, fundamentando que, o mencionado valor de € 750,00 encontra-se desfasado com a realidade económico-financeira que atualmente vivemos, tendo em consideração a inflação que se faz sentir em todos os sectores económicos.
15- No presente ano de 2023, o rendimento indisponível no valor de € 750,00 encontra-se abaixo do valor do salário mínimo nacional em vigor.
16- O critério a usar pelo julgador é o da dignidade da pessoa humana o que, numa abordagem liminar ou de enquadramento, se pode associar à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias.
17- Tal facto não pode ser ignorado uma vez que, deve ser tido em conta para efeitos de uma determinação justa e equilibrada ponderação, entre o interesse do devedor, neste caso, a atribuição de um valor que seja razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do mesmo e do seu agregado familiar, e por outro, o interesse dos credores na expetativa da recuperação, ainda que parcial dos seus créditos.
18- Sendo o salário mínimo nacional o valor justo e equilibrado que a jurisprudência tem entendido atribuir a título de rendimento disponível a um adulto, sem qualquer dependente a seu cargo.
19- Com a referida decisão, entendemos que foi violado o disposto na alínea b) do n.º 3 i) do artigo 239º do CIRE, bem como o princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de Direito que resulta das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º n.º 2 e 63º n.º 1 e 3 da CRP.
20- O montante de € 750,00 (fixo) determinado pelo Tribunal é manifestamente
insuficiente para salvaguardar um sustento minimamente digno do insolvente.
21- Fazendo apelo ao entendimento maioritário da nossa jurisprudência, que se baseia também na escala da OCDE, para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, o índice para adulto é 1 e é de 0,5 para as crianças, porque os membros do agregado familiar não têm todos necessidades iguais, devendo considerar-se também o custo marginal de uma pessoa extra que varia na medida em que o tamanho da família aumenta, ou na medida em que as necessidades dos diferentes membros podem ser distintas.
22- O Recorrente solicita a alteração da decisão recorrida, de modo que fique
excluído do rendimento a ceder ao fiduciário o montante correspondente a 1 SMN acrescido de 12,8%, por ser o cálculo aritmético que esteve na base da atribuição inicial do rendimento indisponível ao insolvente.
23- Tem vindo a ser reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional em conexão com a temática da fixação do salário mínimo nacional, tendo aquele douto Tribunal considerado no Acórdão n.º 177/2002 (com força obrigatória geral) que “… como resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas atualizações introduzidas no respetivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional, o legislador teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador”.
24- Tal princípio é o mínimo indispensável do devedor, sendo que, deverá posteriormente para fixação do valor ter em conta ao agregado familiar e às necessidades especiais do mesmo.
25- Deve ser revogado o despacho proferido, substituindo-o por outro que altere o rendimento indisponível do insolvente para a quantia equivalente a 1 SMN acrescido de 12,8%, que totaliza o valor de € 857,28 (oitocentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos), no ano 2023, com efeitos retroativos desde a data do respetivo pedido em juízo.
26- Com o despacho proferido, o Digníssimo Tribunal a quo violo o artigo 239º do CIRE, bem como os artigos 1º, 59º, e 63º da Constituição da República Portuguesa.
27- O despacho recorrido é nulo por falta de pronúncia relativamente a questões invocadas e sobre as quais, aquele, tinha obrigação de se pronunciar.
28- O Recorrente solicitou ao Tribunal que se pronunciasse quanto à forma de apuramento da cessão de rendimentos, nomeadamente, confirmasse que o rendimento atribuído ao insolvente, deve ser considerado por 14 meses dividido por 12.
29- A nossa jurisprudência vem entendendo que o rendimento atribuído aos insolventes no âmbito do período de cessão de rendimentos deve ser calculado por recurso a 14 meses.
30- O artigo 235º do CIRE estatui que, se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos seus créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência, ou nos três anos posteriores ao encerramento do processo.
31- No período de cessão, o insolvente tem de entregar ao fiduciário, para satisfação dos direitos dos credores e encargos do processo, o seu rendimento disponível, integrado por todos os recursos patrimoniais que aufira, a qualquer título, exceto os créditos previstos que tenham sido cedidos a terceiro e o que seja razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, com o limite do triplo da remuneração mínima mensal garantida, para o exercício da sua atividade profissional e, para outras despesas, que, a requerimento do devedor venham a ser consideradas pelo juiz.
32- A RMMG é tida como a remuneração básica estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, e, concebida como o patamar mínimo.
33- O rendimento atribuído deverá ser calculado com recurso a 14 meses,  porque a RMMG é recebida 14 vezes ao ano, pelo que, o seu valor anual é constituído
pelo montante mensal multiplicado por 14 (artigos 263º e 264º n.º 1 e 2 do Código do Trabalho).
34- O mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente, não deverá ser inferior à remuneração mínima anual.
35- É esta a interpretação conformada pelo próprio conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual, a que alude o artigo 3º do DL 158/2006, de 08 de Agosto, que
define “o valor da retribuição mínima mensal garantida, a que se refere o n.º 1 do artigo 266º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”.
36- Os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho.
37- A retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada  por 14, pelo que a RMMG garantida mensalmente corresponderá à RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12.
38- Este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador.
39- No âmbito dos processos de insolvência de pessoas singulares, durante o período de cessão de rendimentos, deverá interpretar-se no sentido de que o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno dos
insolventes, terá de ser retido 14 vezes ao ano, ou, para cada uma das parcelas mensais, não deverá ser inferior à RMMG multiplicada por 14, dividido por 12.
40- Neste sentido foram proferidos os seguintes Acórdãos: Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 11.10.2016, Carla Câmara, 1855/14.7CLRS-7, www.dgsi.pt, bem como os acórdãos proferidos nos processos n.º 13777/13.4T2SNT, de 31.01.2017, 3036/16.6T8BRR, de 07.03.2017, 5820/17.4T8LSB-C.L1 de 23.01.2018, e o Acórdão da Relação do Porto no âmbito do processo 1756/16.4T8STS-D.P1, de 22.05.2019.
41- Deve ser conhecida a nulidade invocada, e, em consequência, substituir-se ao Tribunal a quo deferindo o requerido pelo Recorrente, e, consequentemente, em confirmar que o rendimento indisponível atribuído ao mesmo deverá ser considerado por 14 meses dividido por 12.

Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações.

A Mmª Juiz a quo pronunciou-se quanto à invocada nulidade nos seguintes termos:

“ Vem arguida a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC.---
Cumpre, pois, proferir despacho nos termos do art.º 617.º do citado diploma.--
Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a decisão proferida não padece da invocada nulidade, pois que da mesma consta de forma clara e inequívoca os seus fundamentos quer de facto quer de direito, não se encontrando os mesmos em oposição nem padecendo de qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.---
(…)”

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida,
O Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” ( cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, Almedina, p. 139) (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida).
 
São duas as grandes questões que cumpre apreciar:
- nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e omissão de pronúncia;
- erro de julgamento:
a) o rendimento indisponível deve ser actualizado ou, se assim não se entender, deve ser alterado;
b) o rendimento indisponível deve referir-se a 14 meses.

3. Fundamentação de facto

A factualidade a considerar é constituída pelas incidências processuais descritas no Relatório do Acórdão.
           
4. Direito
4.1. Da nulidade do despacho recorrido
4.1.1. Enquadramento jurídico

Pese embora a recorrente não refira, uma única vez, a norma aplicável, o por si invocado  impõe a convocação das alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC que dispõem:

1. É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão;
 (…)
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)”

O referido normativo é aplicável aos despachos, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 613º do CPC.

A sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.

As nulidades da sentença e dos acórdãos referem-se ao conteúdo destes actos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podiam ter (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.

A alínea b) está directa, imediata e especificamente relacionada, no que respeita à sentença, com o disposto no n.º 3 do art.º 607º do CPC, onde se dispõe que nos fundamentos, deve o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes e com a parte inicial do n.º 4, onde se dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados

 Tal normativo é uma decorrência, em primeiro lugar, do art.º 205º n.º 1 da CRP,  que dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

E está ainda correlacionado com a norma geral do art.º 154º do CPC, que dispõe, no n.º 1, que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas e, no n.º 2, que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo, quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.

Resulta desta norma geral que a exigência de fundamentação há-de ser a necessária, adequada e proporcional ao caso concreto.

No caso concreto de um incidente, conjugando o disposto no art.º 154º, n.ºs 1 e 2, com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 607º, estes aplicáveis aos despachos nos termos do n.º 3 do art.º 613º, impõe-se afirmar, como regra geral, que se a sua decisão reclamar, à luz do direito aplicável, a discriminação dos factos provados e não provados, a ausência de fundamentação de facto, determina a sua nulidade nos termos do disposto no art.º 615º, também ele aplicável ex vi art.º 613º, n.º 3 do CPC.

Mas a situação prevista nesta alínea b) só se verifica quando exista uma falta absoluta de fundamentação, não quando se trate de:
a) fundamentação deficiente, no sentido de não estar devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, situação que segue o regime do art.º 662º n.º 2, alínea d) do CPC;
b) ou fundamentação medíocre, insuficiente, incompleta, não convincente ou contrária à lei, em que poderá haver erro de julgamento de facto, a constituir, por isso, objecto de recurso de impugnação da matéria de facto, salvo as situações em que esteja pura e simplesmente em causa a aplicação de normas de direito probatório material (cfr. Abranges Geraldes, Recursos em processo civil, Almedina, 6ª edição, pág. 333-334).

Ainda Alberto dos Reis, in CPC Anotado, V, 140, a propósito da especificação dos fundamentos de facto e de direito na decisão e utilizando a locução “motivação” no sentido de “fundamentos de facto e de direito”, locução que restringimos à justificação da decisão da matéria de facto, afirmava: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação, da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.

Na jurisprudência e a título meramente exemplificativo e por recente, o Ac. do STJ de 02/03/2021,  processo 835/15.0T8LRA.C3.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj - “Só a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”.

A alínea d) contempla duas situações: a) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).

A primeira está correlacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, que dispõe: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;…”

O normativo tem em vista as questões essenciais, ou seja, o juiz deve conhecer todos os pedidos, todas as causas de pedir e todas as excepções invocadas e as que lhe cabe conhecer oficiosamente (desde que existam elementos de facto que as suportem), sob pena da sentença ser nula por omissão de pronúncia.

As questões essenciais não se confundem com os argumentos invocados pelas partes nos seus articulados. O que a lei impõe, sob pena de nulidade, é que o juiz conheça as questões essenciais e não os argumentos invocados pelas partes (sendo abundante a jurisprudência em que esta questão é suscitada, a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 21/01/2014, proc. 9897/99.4TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jst).

4.1.2. Em concreto – alínea b) –
No requerimento de 18/02/2023 o recorrente formula duas pretensões:
- actualização do rendimento indisponível ou, se assim não se entender, a sua alteração;
- o rendimento indisponível deve referir-se a 14 meses.

O recorrente invoca que o despacho recorrido, que indeferiu o pedido de alteração do valor do rendimento indisponível, com fundamento em não terem sido alegados factos que fundamentem o mesmo, enferma de falta de fundamentação.

Não se vislumbra falta de fundamentação, pois o tribunal fundou o indeferimento na não alegação de factos necessários para a alteração.

A parte pode não concordar e entender que há erro de julgamento.
Mas, como se deixou referido em sede de enquadramento jurídico, essa é uma outra e diferente questão.

Improcede, portanto, a invocada nulidade por falta de fundamentação.

4.1.3. Em concreto – alínea d)
O recorrente invoca que solicitou ao tribunal que confirmasse que o rendimento atribuído ao insolvente deve ser considerado 14 meses dividido por 12 meses e que o tribunal não se pronunciou quanto a esta questão.

Efectivamente o recorrente pretendeu que o tribunal declarasse que o rendimento indisponível (e, nessa medida, também, o disponível), fosse apurado tendo em consideração a RMMG multiplicada por 14 e o resultado desta operação dividido por 12.

Estamos, portanto, perante a questão da referência temporal do rendimento indisponível ou, dizendo o mesmo, mas de outra forma, perante o critério temporal de cálculo dos rendimentos do insolvente que fica excluído do rendimento disponível.

Salvo melhor opinião, lida a decisão recorrida não encontramos nela qualquer menção à questão em referência, tendo por certo que a mesma não se identifica com “ (…) a informação a prestar pelo Fiduciário quanto a quantias a ceder que excedam aquele valor [do rendimento indisponível] deve[r] ser prestada anualmente (…)”

E isto porque o critério temporal de cálculo dos rendimentos do insolvente que fica excluído do rendimento disponível e o “tempo” (anualmente) em que o fiduciário deve prestar informação sobre a situação da exoneração do passivo ( art.º 240º n.º 2 do CIRE) são realidades diferentes.

Termos em que se julga verificada a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.

No entanto e tendo em consideração o disposto no n.º 1 do art.º 665º do CPC – ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação – não há lugar à anulação da decisão e remessa dos autos à 1ª instância, mas sim a pronúncia quanto à questão não conhecida, o que se fará adiante.

4.2. Da questão da actualização
4.2.1. Enquadramento jurídico

Dispõe o n.º 2 do art.º 239º do CIRE:
2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada por fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.

Ou seja: durante o período de 3 anos o devedor fica obrigado ceder o seu rendimento disponível.

O corpo do n.º 3 dispõe que “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor….

Mas imediatamente a seguir esclarece “….com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

Destarte, o rendimento disponível não é constituído por todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor…., mas apenas pelo valor a ceder ao fiduciário, depois de excluídos os montantes a que se refere o n.º 3.

Dito de outra forma: o normativo reporta-se a duas realidades – o rendimento disponível e o rendimento indisponível – que têm como ponto de partida todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor.

De todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor:
a) - são excluídos os créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) é excluído o que seja razoavelmente necessário para as situações referidas nos pontos i) a iii) da alínea b), nomeadamente a que se refere no ponto i) – […]o que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar….

As referidas exclusões formam o que se designa por rendimento indisponível, ou seja, a parte dos rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor que não tem de ser cedida ao fiduciário.

Tudo o mais que seja auferido pelo devedor constitui o rendimento disponível e, como tal, deve ser entregue ao fiduciário.

Coloca-se a questão da determinação “Do que seja razoavelmente necessário para … o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar…”

A norma não especifica um montante mínimo do rendimento disponível excluído da cessão, limitando-se – cfr. parte final do ponto i) da alínea b) do n.º 3 do art.º 239º do CIRE - a fixar um tecto máximo – “três vezes o salário mínimo nacional”.

Se o valor máximo é fixado por referência ao salário mínimo nacional, hoje Retribuição Mínima Mensal Garantida – RMMG - o valor mínimo não poderá deixar de ter o mesmo referencial, ou seja, nunca poderá deixar de ser considerado como razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, o valor correspondente a um salário mínimo nacional.

Assim e quanto à utilização do salário mínimo nacional como referencial para o limite mínimo, refere-se no Ac. do STJ de 02/02/2016, processo 3562/14.1T8GMR.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:

IV - Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
V - Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna.

E isto na linha do Ac. do TC n.º 117/2002, de 23/04/2002, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020177.html, acórdão que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do nº 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição.

Muito embora a concreta questão dos autos seja diferente, afirmou-se ali, com relevância para os presentes, citando o Ac. do mesmo TC n.º 318/99:
“Porém, assim como o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o ‘mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também, uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário.”

E da lavra do Ac. n.º 117/2002:
“Como se afirmou no acórdão nº 318/99 e resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas actualizações introduzidas no respectivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir "a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador" (acórdão nº 318/99).”

Isto sem prejuízo de o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, porque tem subjacente o princípio da dignidade da pessoa humana, contido no princípio do Estado de Direito, deve ser encontrado em face da situação concreta de cada devedor e do seu agregado familiar, das suas circunstâncias particulares, da sua singularidade, não obstante as dificuldades que encerra a prudente consideração de cada caso, não olvidando, que, como manda o n.º 3 do art.º 8º do CC, deverão ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, por forma a dar cumprimento ao princípio da igualdade plasmado no art.º 13º n.º 1 da CRP.

Destarte é jurisprudência corrente fixar o rendimento indisponível por referência a um múltiplo - 1, 1,2, 1,5 – da RMMG.

Este modelo tem desde logo uma vantagem evidente: permite a actualização automática do rendimento indisponível, em função, por um lado, da actualização da RMMG e, por outro, do aumento do custo de vida (com ciclos de aceleramento, como o que se vive actualmente, com o aumento da inflação) e, assim, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sem necessidade de requerimento e despacho nesse sentido.

Como resulta das regras da experiência comum e normalidade, o custo de vida está constantemente a aumentar o que significa que, se num determinado ano é possível adquirir um conjunto de bens, por um determinado valor, com aquele aumento, no ano a seguir, para comprar os mesmos bens, é necessário um valor maior.

Se aquele aumento do custo de vida não for acompanhado de um aumento dos rendimentos, assiste-se ao que se usa chamar de “degradação dos salários”.

E o mesmo se passa com o que seja fixado como razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar: se o que for fixado num determinado momento – mediante quantia certa -, não for objecto de actualização, tende a sofrer uma degradação em função do custo de vida e, portanto, fica colocado em crise o princípio da dignidade da pessoa humana subjacente àquele.

4.2.2. Em concreto
No caso, não foi isso que aconteceu, pois a decisão de 12/02/2021, determinou que o rendimento disponível do insolvente “corresponderá àquele que ultrapasse o valor de € 750,00/mês”.

Além disso, aquela decisão não contém qualquer determinação expressa de actualização do rendimento indisponível, a qual se impõe, como visto supra.

Perante esta situação, a 18/02/2023 o Insolvente formulou ( efectivamente e ao contrário do que resulta da decisão recorrida) um pedido de actualização do rendimento indisponível, invocando, em síntese:

- na sequência do despacho inicial de Exoneração do Passivo Restante, foi atribuído ao Insolvente o rendimento indisponível de € 750,00 mensais;
- à data do despacho – 2021 – o salário mínimo nacional correspondia ao valor de € 665,00, pelo que o tribunal, tendo em consideração a situação sócio-económica do Insolvente e do seu agregado familiar, atribuiu-lhe o referido valor, correspondente a 1SMN, acrescido de 12,8%;
- este valor tem de ser actualizado no decorrer dos anos do incidente de exoneração do passivo restante, para se enquadrar com a realidade económico-financeira do País;
- relativamente ao ano de 2022, o valor a ter em conta deverá ser o correspondente ao SMN, acrescido de 12,8%, ou seja, € 795,24;
- tal valor deverá ser tido em conta na elaboração do Relatório Anual correspondente ao 2º ano de cessão de rendimentos;
- relativamente ao ano de 2023, o valor a ter em conta deverá ser o correspondente ao SMN, acrescido de 12,8% - € 857,28.

Desde já entendemos que lhe assiste razão.

Muito embora a decisão de 12/02/2021, não contenha expressis verbis o critério de actualização do rendimento indisponível, cabe perguntar se, da sua interpretação, é possível extrair esse critério.

A sentença, como os despachos e os acórdãos, são actos jurídicos (são actos a que a lei atribui relevância e efeitos jurídicos), a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (ex vi art.º 295º do Código Civil), pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do CC), são igualmente válidas para a interpretação daquela.

Assim a interpretação da sentença deve fazer-se de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente (artºs 236º, nº. 1 e 238º, nº. 1 do Código Civil)

Mas sendo um acto formal, não pode a mesma valer com um sentido que não tenha na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Além disso, a sua interpretação não pode assentar, apenas, no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar os respectivos fundamentos, os quais são constitutivos e determinantes da decisão, ou seja, a decisão só se compreende à luz dos respectivos fundamentos.

Analisando a decisão de 12/02/2021, verifica-se que a mesma fixou o rendimento indisponível em € 750,00/mês, atendendo à “situação económica e financeira do respectivo agregado familiar e às despesas com habitação, alimentação, electricidade, gás, água, transportes, vestuário e saúde.---“.

 Sendo assim, pode concluir-se que a mesma considerou que, de todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor por mês estava excluída – e, portanto, não tinha de ser cedida à Sra. Fiduciária, constituindo, assim, rendimento indisponível - a referida quantia, porque a mesma correspondia ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar…

Por outro lado, e já acima o referimos, se o valor máximo do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar é fixado por referência ao salário mínimo nacional, hoje Retribuição Mínima Mensal Garantida – RMMG - o valor mínimo não poderá deixar de ter o mesmo referencial, ou seja, nunca poderá deixar de ser considerado como o valor correspondente a um salário mínimo nacional.

Em 2021 a RMMG era de € 665,00 (cfr. Decreto-Lei n.º 109-A/2020 de 31 de dezembro, que fixou o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2021).

Conjugando tudo o que já se referiu pode afirmar-se que subjacente à decisão de 12/02/2021, está o entendimento de que o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar era de 1 (uma) RMMG (€ 665,00) acrescida de 12,78% da mesma (€ 85,00) (€ 665,00 + €85,00 = € 750,00).

A partir daqui pode afirmar-se que a decisão de 12/02/2021 contém um critério de cálculo da actualização do rendimento indisponível, isto é, do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar: é o de 1 (uma) RMMG, que vigorar em cada momento, acrescida de 12,78% da mesma, por mês.

O Decreto-Lei n.º 109-B/2021 de 7 de dezembro fixou o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2022 em € 705,00

Aplicando aquela fórmula de cálculo da actualização temos que o rendimento indisponível, isto é, o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar relativamente a 2022 é de € 795,09/mês.

O Decreto-Lei n.º 85-A/2022 de 22 de dezembro fixou o valor da retribuição mínima mensal garantida para 2023 em € 760,00

Aplicando aquela fórmula de cálculo da actualização temos que o rendimento indisponível, isto é, o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar relativamente a 2023 é de € 857,12/mês.

Destarte e nesta parte, a decisão recorrida que julgou incorrectamente não ter sido deduzido pedido de actualização, deve ser revogada e substituída por outra que determina o seguinte:
- actualiza-se o rendimento indisponível relativamente ao ano de 2022, para € 795,09/mês;
- actualiza-se o rendimento indisponível relativamente ao ano de 2023, para € 857,12/mês;
- estas actualizações deverão ser tidas em consideração no Relatório a que se refere o art.º 240º, relativamente aos anos de 2022 e 2023.

Em face da procedência do recurso nesta parte, fica prejudicada a apreciação do pedido de alteração do rendimento indisponível.

4.3. Da questão do rendimento indisponível dever referir-se a 14 meses
4.3.1. Enquadramento jurídico
O rendimento indisponível (nomeadamente quando for fixado através de um múltiplo da RMMG) não pode ser fixado sem uma referência temporal, nomeadamente para se aferir da existência ou não de rendimento disponível e, havendo, do cumprimento pelo Insolvente da obrigação de o entregar ao fiduciário.

E isto é tanto mais assim quanto existem situações em que os insolventes auferem rendimentos certos, ou seja, mensalmente o Insolvente recebe determinada quantia, a qual é acrescida, nos meses devidos, dos subsídios de férias e de natal, e existem situações em que os rendimentos dos insolventes são incertos, ou seja, não é certo quanto recebem mensalmente, podendo variar.

Essa referência temporal pode ser mensal – ou seja, refere-se ao múltiplo da RMMG auferida em cada mês ou, numa outra formulação, mas com o mesmo resultado - 12 meses por anoou anual – é fixado o múltiplo da RMMG que constitui o rendimento indisponível, mas o seu apuramento é feito numa base anual, ou seja,  multiplica-se a RMMG por 14 (12 meses de remuneração, mais um subsídio de férias e um subsídio de natal) e divide-se por 12. Ao resultado desta operação aplica-se o múltiplo da RMMG fixado e, desta forma, encontra-se o montante indisponível.
Nesta fórmula o rendimento indisponível corresponde ao múltiplo do duodécimo da RMMG anual.
E na mesma, os subsídios são diluídos ao longo do ano.

No caso de ser o mês, o Insolvente fica obrigado a entregar, de todos os rendimentos que auferir em cada mês, o que exceder o que tiver sido fixado como rendimento indisponível.

Além disso e nesta situação, ficando os rendimentos do Insolvente aquém do montante do rendimento indisponível judicialmente fixado, não haverá obrigação de entregar qualquer quantia, mas também não terá o direito de compensar com o que receber a mais em outros meses ou, dito de outra forma, não terá o direito de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como indisponível.

Por outro lado, nos meses em que excede, como sucede com os subsídios de férias e de natal, fica obrigado a entregar o que exceder o montante do rendimento indisponível judicialmente fixado.

No caso de o rendimento indisponível ter uma referência anual e os rendimentos serem certos, sabendo-se, à partida, no início de cada ano, qual o valor da RMMG que vai vigorar, é possível um apuramento e cessão mensal, pois é uma questão de contas.

Sendo os rendimentos incertos, já não será possível um apuramento e cessão mensal, devendo ser anual

Sobre estas questões a Decisão singular da RL de 24/05/2023, processo 19030/22.5T8SNT-B.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl).

4.3.2. Em concreto
Mas não cabe aqui tomar posição sobre a questão de saber se a referência temporal deve ser o mês ou o que na prática é o mesmo, 12 meses ou 14 meses.

E isto porque consta da decisão de 12/02/2021:
“ (…) determina-se que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do/a/s insolvente/s – que corresponderá àquele que ultrapasse o valor de € 750,00/mês – fique cedido ao/à Sr./ª Administrador/a, que vai investido/a na condição de fiduciário/a.---

Ou seja, esta decisão fixou o rendimento indisponível tendo como referência temporal o “mês”, o que significa que, de todos os rendimentos que o Insolvente auferir em cada mês, o mesmo está obrigado a entregar, em cada mês, o que exceder o que tiver sido fixado como rendimento indisponível e, assim sendo, é também esta a referência temporal a considerar pelo sr. Fiduciário.

Ao adoptar a referida posição, aquela decisão determinou que a referência temporal do rendimento indisponível, que é uma quantia determinada (ainda que tenha subjacente um determinado critério), é o “mês”, excluindo, portanto, a possibilidade de considerar como referência temporal os 14 meses ou, dito de outra forma, o duodécimo da multiplicação da RMMG por catorze.

E deste modo aquela decisão tomou posição expressa quanto à questão da referência temporal.

Neste sentido vd. o Ac. da RE 25/02/2021, processo 90/16.4T8ORQ.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtre, em cujo sumário consta: 
Perante um despacho inicial em que se decidiu que a exoneração do passivo restante seria concedida desde que os devedores, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, cedessem ao fiduciário a parte do rendimento por si auferido que excedesse, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido, e que, durante aquele período, os devedores ficavam obrigados a entregar imediatamente ao fiduciário tudo aquilo que auferissem na parte que excedesse, por mês, três vezes o salário mínimo mensalmente garantido, impõe-se a conclusão de que o tribunal fixou um critério mensal de aferição do rendimento dos recorrentes para o efeito descrito.

Destarte, por não ter sido impugnada a decisão de 12/02/2021, tendo a mesma transitado em julgado, a mesma tornou-se imodificável, pelo que nesta parte a pretensão do recorrente soçobra.

4.4. Custas
Dispõe o art.º 527º n.º 1 do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

E o n.º 2 dispõe que entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

O recorrente obteve vencimento no recurso quanto à questão da actualização,  tendo decaído na questão do critério temporal do apuramento do rendimento indisponível.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Destarte as custas ficam a cargo do recorrente quanto à primeira questão de acordo com o critério do proveito e quanto à segunda questão por ter ficado vencido – art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

5. Decisão

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães:

a) em julgar parcialmente procedente o recurso e em consequência revogam a decisão recorrida que julgou não ter sido deduzido pedido de actualização, a qual substituem por outra que determina o seguinte:
- actualiza-se o rendimento indisponível relativamente ao ano de 2022, para € 795,09/mês;
- actualiza-se o rendimento indisponível relativamente ao ano de 2023, para € 857,12/mês;
- estas actualizações deverão ser tidas em consideração no Relatório a que se refere o art.º 240º, relativamente aos anos de 2022 e 2023.
b) em julgar verificada a omissão de pronúncia quanto à questão do critério temporal do apuramento do rendimento indisponível e, conhecendo da questão, julgar a mesma improcedente.

*
Custas pelo recorrente – art.º 527º n.º 1 e 2 do CPC
*
Notifique-se
*
Guimarães, 10/07/2022
(O presente acórdão é assinado electronicamente) 
           
Relator: José Carlos Duarte
Adjuntos: Rosália Cunha
José Alberto Martins Moreira Dias



[1] Dispõe o n.º 1 do art.º 639º do CPC que (sublinhado nosso) “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Este normativo impõe dois ónus: o de alegação e o de conclusão.
No caso releva este último e traduz-se na necessidade de finalizar as alegações recursivas com a formulação sintética de conclusões, em que é suposto que o apelante resuma ou condense os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo. (Ac. RP de 09/11/2020, proc. 18625/18.6T8PRT.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp).
Já referia Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V volume, 1984, pág. 359, que “As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”.
No mesmo sentido Aveiro Pereira, in “O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil “, pág. 31, acessível in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf, onde refere que as conclusões são as “ ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida.”
Tendo em consideração as questões que cumpre decidir nos autos, é patente a extensão e prolixidade das conclusões, quase sendo uma repetição das alegações.
Mas opta-se por não proferir despacho de aperfeiçoamento (art.º 639º n.º 3 do CPC) e, assim, convidar o recorrente a sintetizá-las, para não dilatar a apreciação do recurso.