ATROPELAMENTO
PEÃO ATROPELADO NA PASSADEIRA
SINAL VERMELHO
EXCESSO DE VELOCIDADE
MOTOCICLO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
MORTE
NEXO DE CAUSALIDADE
JUROS MORATÓRIOS
Sumário

I - Ocorrido um atropelamento, em que a vítima não obedeceu ao sinal vermelho para peões, considerando o seguinte quadro factual - o local do sinistro é uma via composta por duas hemifaixas de rodagem em cada sentido, divididas por um separador central; atento o sentido de marcha do motociclo, a passadeira de peões avistava-se a mais de 100 metros e coincidia com um cruzamento; era de dia e com total visibilidade; a via constitui uma reta, com inclinação descendente; existindo na via sinalização vertical de limite de velocidade de 50 Km/h, o condutor circulava a uma velocidade situada entre 77km/h e 80,14km/h; quando iniciou a travessia da via, o sinal luminoso aí existente encontrava-se vermelho para os peões; a Autora já tinha concluído mais de metade do trajeto (pretendia passar para o lado oposto) e foi embatida pelo motociclo quando já se encontrava próximo do separador central; o condutor do motociclo não travou ou abrandou a velocidade de que vinha animado; a Autora, quando se apercebeu da aproximação do motociclo, hesitou em avançar ou parar ──, é de considerar a concorrência de culpas em partes iguais (50%).
II - Quer o art.º 495º, quer o 496º do CC, têm como pressuposto que a vítima de acidente de viação tenha falecido e que esse decesso tenha ocorrido diretamente do sinistro.
III - Sem esse nexo de causalidade, ao marido da vítima não assiste o direito de ser indemnizado pelos danos morais por ele sofridos entre a data do sinistro e o óbito da sua mulher.
IV - Os danos patrimoniais decorrentes de acidente de viação, apurado que seja o seu valor, vencem juros moratórios desde a data da citação, nos termos do art.º 805º nº 3 do CC.

Texto Integral

Apelação nº 4786/18.8T8VNG.P1



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. AA, representada por seu marido, BB [1], instaurou ação contra A..., SA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 50.758,00, acrescidos de juros de mora desde a citação, bem como nas quantias a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença, nos termos descritos na petição inicial.
Fundamentou o seu pedido nos danos morais e materiais que lhe advieram dum sinistro rodoviário (atropelamento) ocorrido em 19/04/2018, cuja eclosão imputa ao segurado da Ré.
Em contestação, a Ré impugnou a factualidade alegada, considerando que o acidente se ficou a dever a culpa da Autora.
No decurso dos autos, veio a Autora a falecer.
A instância prosseguiu com os seus herdeiros, habilitados: o marido, BB, e o filho, CC.
Fruto de 2 ampliações do pedido, e uma de redução, veio a Autora a “atualizar e organizar a totalidade do pedido” da seguinte forma:
Petição Inicial:
• Danos Morais sofridos pela Autora € 50.000,00
• Danos Materiais € 578,00
1ª Ampliação do Pedido
• Danos Morais sofridos pela Autora € 50.000,00
• Danos Materiais € 16.757,48
Atual Ampliação do Pedido
• Danos Materiais € 7.746,28
• Direito à Vida da Autora € 75.000,00
• Danos Morais € 40.000,00
Total: € 240.081,76, acrescido de juros conforme peticionado.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, considerando que o sinistro se ficou a dever à atuação do condutor do veículo, mas também à conduta da Autora, repartiu a responsabilidade em 30% e 70%, respetivamente, e decidiu:
«a) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia de 37.351,12 (trinta e sete mil trezentos e cinquenta e um euros e doze cêntimos), a título de indemnização global para ressarcimento dos danos supra descritos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a presente decisão14 até integral pagamento;
b) Absolver a ré da restante parte do pedido»

2. Na sentença foi considerada a seguinte factualidade:

«Factos provados.
1 – Cerca das 16,00 horas, do dia 19 de Abril de 2018, registou-se na Via ..., Vila Nova de Gaia um acidente de viação, consubstanciado no atropelamento (por motociclo) de um peão (a aqui autora).
2 – Sendo tal motociclo de marca YAMAHA, ...., com matrícula ..-..-QC, propriedade e conduzido por DD.
3 – Tendo a respectiva responsabilidade estradal para com terceiros sido transferida por contrato de seguro celebrado com a entidade ré, e titulado pela apólice, ao tempo válida e em vigor, nº ...43.
4 – O motociclo, no momento, circulava na hemifaixa de rodagem esquerda da Via ..., sentido Gaia / Porto.
5 – A autora caminhava (na Via ...), no passeio lado esquerdo, sentido Porto / Gaia.
6 – Ao cruzamento da referida Via com a Rua ..., a autora iniciou – na passadeira para peões (aí existente) - a travessia da Via ..., do lado esquerdo para o lado direito, com intenção de atingir o passeio desse lado e seguir o seu caminho.
7 – Quando iniciou a travessia da via, o sinal luminoso aí existente encontrava-se vermelho para os peões, sendo que a autora, quando se apercebeu da aproximação do motociclo, hesitou em avançar ou parar.
8 – A autora já tinha concluído mais de metade do respectivo trajecto, já próximo do separador central (aí existente), quando foi violentamente embatida pelo aludido motociclo (art. 9º da petição inicial).
9 – O motociclo circulava a uma velocidade situada entre 77km/h e 80,14km/h, não tendo o respectivo condutor travado ou abrandado a velocidade de que vinha animado.
10 – A autora foi projectada, pelo ar, mais de 9,40 metros, ficando prostrada no chão da via, a sangrar;
- As hastes dos óculos do peão foram projectadas desde o ponto de impacto até à sua queda na via, cerca de 11,40 metros à frente;
- O motociclo imobilizou-se (caído na via) cerca de 39,15 metros à frente do ponto de impacto.
- Tendo a estrutura metálica do motociclo deixado marcas cravadas no pavimento por virtude de arrastamento, após a queda, numa extensão também cerca de 39,15 metros;
- Os vestígios de sangue (no pavimento) do condutor do motociclo distavam cerca de 19,40 metros do ponto de impacto.
11 – A Via ... desenvolve-se em recta com inclinação descendente (atento o referido sentido do motociclo –Porto / Gaia).
12 – Sendo tal Via composta por duas hemifaixas de rodagem em cada sentido, divididas por um separador central.
13 – Atento o sentido de marcha do aludido motociclo, o local do acidente (passadeira) avista-se (e avistava-se ao tempo do sinistro), a mais de 100 metros.
14 – Sendo que à hora do atropelamento era de dia e com total visibilidade.
15 – Possuindo tal Via sinalização vertical de limite de velocidade de 50 Km/h.
16 – Após o embate, a autora AA foi (no local) assistida pelo INEM, que efectuou entubamento e ventilação.
17 – Tendo sido transportada (em ambulância) para o Centro Hospitalar de V.N.Gaia.
18 – Local onde lhe foi diagnosticado um politraumatismo, sendo atribuída, para efeitos de tratamento/assistência hospitalar, a prioridade de “vermelho”.
19 – Sendo levada à sala de emergência entubada e ventilada por diminuição rápida do Glasgow (à chegada da VMER cerca de 14 e pouco tempo depois 4).
20 – Ao exame objetivo, apresentava TCE, com dois ferimentos incisos, na região frontal e região ciliar esquerda, anisocoria, fractura do punho direito e fractura exposta de ambas as pernas.
21 – A autora foi sujeita a inúmeros exames e submetida a cirurgias, nomeadamente, ortopédicas, com vista ao tratamento das fracturas (encavilhamento medular bloqueado bilateral, encavilhamento medular bloqueado e osteossíntese com placa).
22 – Esteve internada no referido centro hospitalar até 4/9/2018, data em que teve alta, por consolidação médico-legal das lesões resultantes do acidente.
23 – No referido centro hospitalar esteve permanentemente acamada, sem qualquer tipo de autonomia, seja para o que for.
24 – Não falava nem reconhecia ninguém.
25 – Reagia ao estímulo da dor.
26 – Sendo alimentada exclusivamente por sonda gástrica.
27 – Apresentando incontinência e necessitando de utilizar fraldas.
28 – Efectuava levante para cadeirão em dias alternados.
29 – Mostrava-se vígil com abertura espontânea dos olhos à chamada, mas não colaborante.
30 – A autora, por virtude do acidente supra descrito, apresentava um quadro clínico de tetraplegia, com necessidade de ajuda de terceira pessoa, total e permanentemente, e de internamento em unidade de saúde especializada em cuidados continuados.
31 – Necessitando permanentemente para o resto da sua vida de ajudas medicamentosas, seguimento médico regular (nomeadamente, fisioterapia) e ajudas técnicas (cama articulada, colchão anti escaras adaptado, cadeira de banho e fraldas descartáveis).
32 – A autora apresentava, em virtude do acidente, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 100 pontos.
33 – O “quantum doloris” foi fixado no grau 6 (seis), numa escala de sete graus de gravidade crescente.
34 – Após a alta (4/9/2018), ingressou na unidade de cuidados continuados (UCCLDM) de ... (Penafiel), local onde se manteve até 3 de Janeiro de 2019.
35 – Neste período de tempo, a autora, através do seu marido, pagou, pelos respectivos bens e serviços prestados pelo UCCLDM, quatro mensalidades no valor total de 3.665,90 €.
36 – Em 3 de Janeiro de 2019, a autora foi transferida para as Residências B..., S.A. em Vila Nova de Gaia.
37 – Local onde se manteve até 7 de Novembro de 2019.
38 – Tendo o autor, seu marido, liquidado as respectivas mensalidades e serviços, cobrados pela Residência B..., S.A., no valor total de 9.462,56 €.
39 – Na referida data de 7 de Novembro de 2019, a autora foi, mais uma vez, transferida, desta feita para o Centro Comunitário de ... (...).
40 – Tendo permanecido internada no Centro Comunitário de ... até ao mês de Agosto de 2020.
41 – O autor, seu marido, liquidou as respectivas mensalidades (e despesas de farmácia) num valor total de 6.599,64 €.
42 – Em serviço de dentista (necessário, o autor despendeu 60,00 €.
43 – Em medicamentos, produtos de higiene, sempre ao mesmo título, despendeu o autor a quantia de 88,83 €.
44 – Em todas as deslocações realizadas pelo autora para visitar e acompanhar a sua mulher (nos locais de internamento), o autor gastou (em combustível de viatura própria) em mais de 46 viagens, a partir da sua residência em V.N. de Gaia, o valor de 2.064,13 €.
45 – Para transferências entre as unidades de saúde e de cuidados continuados, a autora foi, necessariamente, transportada em ambulância, cujo valor global, suportado pelo autor, ascendeu a 183,20 €.
46 – Sempre em resultado do acidente, o autor pagou ao Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia a título de taxas moderadoras, o montante de 146,00 €.
47 - Em 4 de Novembro de 2020, foi emitida pelo Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia uma nota de débito no montante de 138,50 € referente a taxas moderadoras devidas pela autora.
48 – À data do acidente em apreço, a autora tinha 78 anos de idade.
49 – Vivia com o seu marido.
50 – A autora e o seu marido passavam os dias juntos, dando passeios, visitando amigos ou familiares e indo às compras, nomeadamente ao supermercado.
51 – No quintal de sua casa a autora e marido, como actividade lúdica e de lazer cultivavam, batatas, cebolas e couves.
52 – Sendo que a autora retirava muito prazer desta actividade.
53 – A autora veio a veio a falecer em 23 de Agosto de 2020.
54 – O autor, por virtude do funeral da sua mulher liquidou à agência funerária o valor de 2.095,00 €.
Factos não provados
- O condutor do motociclo circulava a velocidade superior a 100 km/h.
- Distraído e alheado ao restante trânsito de pessoas e veículos.
- O condutor do veículo seguro na ré conduzia o veículo por conta e ordem da sua entidade patronal, “CTT Expresso”.
- Desempenhando funções e trajecto pré-definidos por esta.
- O sinal luminoso (vulgo semáforo), que comandava o trânsito para peões na passadeira (que era, no momento, atravessada pela autora) mantém e mantinha a cor verde durante 15 segundos.
- O correspondente semáforo, para a circulação de veículos (no sentido efectuado pelo motociclo) apresenta-se na cor verde durante 25 segundos.
- A autora foi induzida ao estado de coma.
- O vestuário, calçado, carteira (e jóias) que a autora detinha no momento do acidente e que se perderam tinham o valor aproximado de 220,00 €, sendo que a perda de um brinco em ouro comdiamantes, propriedade da autora, foi avaliado em 250,00 €.
- A autora era saudável e perfeitamente autónoma para todas as actividades da vida diária.
- Embora com afectação cognitiva, a autora mantém plena consciência de si própria e do seu estado.
- Tendo a autora falecido em consequência direta e exclusiva do presente acidente.»

3. Inconformados com tal decisão, dela apelaram os herdeiros habilitados, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Vem o presente recurso da douta sentença da primeira instância que considerou a atribuição de culpas (no acidente de viação a que se reportam os autos) na proporção de 70% para o peão e 30% para o condutor do motociclo seguro na Ré.
2. Não podendo os Recorrentes conformarem-se com tal decisão, pelas razões a seguir aduzidas:
3. Do depoimento da testemunha EE (única testemunha dita presencial do acidente) não se pode concluir, conforme ficou exarado no ponto 7 dos factos provados (pág. 5 da sentença), que a Autora (peão): “… 7 - Quando iniciou a travessia da via, o sinal luminoso aí existente encontrava-se vermelho para os peões, …”
4. Isto porque, na inquirição da referida testemunha esta afirma que não olhou
para os semáforos dos peões, conforme: “… Inquirição da testemunha EE em 02.03.2020, com início às 15:38:07:
Aos minutos:
[00:22:56]: Testemunha – Eu não olhei para os semáforos dos peões. …”
5. Não podendo, portanto, o tribunal “a quo” concluir que o peão iniciou a travessia da via já com o sinal vermelho.
6. Razão pela qual deverá ser retirado dos factos dados como provados, transitando para os factos não provados, a afirmação de que o peão iniciou a travessia da via já com o respetivo sinal vermelho acionado.
7. Salvo o devido respeito, mal andou a douta sentença recorrida ao considerar que a atuação da lesada (peão) contribuiu em 70% e que o condutor do motociclo seguro na Ré apenas terá contribuído em 30% para a produção do acidente em análise.
8. Da factualidade dada como provada nos pontos 1 a 6 e 8 a 15 da sentença resulta inequívoco que: para além de todas as outras violações ao Código da Estrada (nomeadamente o excesso de velocidade) o condutor do motociclo violou grosseira e incompreensivelmente o disposto no nº 1 do artº 103º.
O qual, pela sua direta aplicação ao presente caso, se transcreve: “… 1 – Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem. …”
9. O nexo causal do acidente prende-se, sobretudo, com o facto de o condutor do motociclo (ao avistar o peão) não ter abrandado a sua marcha o que poderia, muito provavelmente, ter dado tempo à inditosa vítima de alcançar o separador central, evitando assim o brutal atropelamento.
10. A douta sentença em apreço considerou não provado o facto de a morte da Autora ter sido provocada pelo acidente (cfr. 2.2. Factos não provados pág. 13 da sentença).
11. Tal decisão colide frontalmente com o relatório clínico elaborado pelo médico da Casa do Povo Resende (junto aos autos a fls…).
12. Tudo indicando se não a certeza, pelo menos a alta probabilidade, de o alectuamento forçado e definitivo de uma pessoa com 78 anos de idade, em estado de vida vegetativa (conforme pontos 16 a 32 dos factos dados como provados) culminou no respetivo decesso.
13. O que implica diretamente a atribuição aos Autores das verbas peticionadas nos artigos 13º e 14º do articulado de Ampliação do Pedido, nos autos a fls…. com a referência 33264591, ou seja, a indemnização devida pelo direito à vida e dano moral dos Recorrentes.
14. Para além de tudo o que ficou dito, a sentença em recurso não teve em atenção, como devia ter tido, o facto de o peão ter (à data do atropelamento) 78 anos de idade (ponto 48 dos factos dados como provados) o que lhe conferia, conforme a legislação em vigor, o estatuto especial de utilizador vulnerável, artº 1º q), do Código da Estrada.
15. Tendo por isso a referida sentença incorrido na deficiente aplicação do artº 11º, nº 3, 24º, nº1, 25º, nº 1 e), todos do Código da Estrada.
16. O que chama inelutavelmente à colação, por aplicação conjugada dos artºs 483º, 499º e 503º do Cód. Civil, a concorrência de culpa com risco de circulação estradal.
17. É que no domínio dos acidentes de viação não há como olvidar a desigualdade que separa a um condutor e o seu veículo, da pessoa do peão.
18. A sentença ora sindicada condena a Ré ao pagamento de juros contabilizados (apenas) desde a data da sua prolação.
19. O que, relativamente aos danos materiais, viola o disposto nos artigos 566º e 805º do Código Civil.
20. A douta sentença da primeira instância violou, ou aplicou deficientemente, entre outros, os seguintes normativos:
• Código Civil: 483º, 487º, 496º, 499º, 503º, 562º, 563º, 566º, 570º.
• Código Processo Civil: 607º.
• Código da Estrada: 11º, 24º, 25º, 103º.
Termos em que Vossas Excelências sufragando os argumentos aqui expendidos e, revogando a sentença da Primeira Instância, substituindo-a por outra que acolha tais argumentos, farão, como sempre, Inteira JUSTIÇA!»

4. A Ré contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
· Reapreciação da matéria de facto
· Se existiu erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito

5.1. Reapreciação da matéria de facto
Mostrando-se cumpridos os ónus de alegação impostos no art.º 640º do CPC, incumbe reapreciar os factos pretendidos.
Se o facto provado 7 deve ser dado por não provado
7 – Quando iniciou a travessia da via, o sinal luminoso aí existente encontrava-se vermelho para os peões, sendo que a autora, quando se apercebeu da aproximação do motociclo, hesitou em avançar ou parar.
O M.mº Juiz considerou esse facto provado com fundamento «no depoimento da testemunha EE, pessoa que circulava através do motociclo interveniente no acidente em discussão nos autos, tendo a mesma descrito, de forma coerente e assertiva, a factualidade que presenciou, o que permitiu ao Tribunal formar a convicção segura de que a autora efetuou o atravessamento da via no circunstancialismo que vem descrito neste ponto.»
Os Recorrentes discordam, considerando que do depoimento dessa testemunha não se pode extrair que o peão iniciou a travessia da via já com o sinal vermelho.
A sindicância da matéria de facto implica uma visão global e concertada da prova produzida, não se compaginando com meros segmentos deste ou daquele meio de prova, desgarrados do respetivo contexto.
Na verdade, a avaliação/apreciação do depoimento das testemunhas não é corretamente efetuada se for feita de forma seccionada, sabido como é que uma qualquer frase pode adquirir significados diversos consoante o contexto em que é proferida. Da mesma forma os diversos depoimentos devem ser atendidos de forma integrada, sendo muito vulgar a ocorrência de depoimentos contraditórios e até de contradições num mesmo depoimento.
Ouvido integralmente o depoimento de EE [2] temos que, no que toca à questão dos semáforos, sempre referiu, de forma credível e espontânea, que o mesmo estava vermelho para ao peões. E, quando inquirida expressamente para explicar como pode dizer isso, dado que ia de carro, a mesma explicou com o sentido da dedução lógica: se ela ia de carro, e estava verde para ela, só poderia estar vermelho para os peões.
─ A senhora naturalmente não viu como estava o semáforo para os peões, se verde ou vermelho…
─ Eu não olhei para os semáforos dos peões. Automaticamente, supostamente, se existe algum erro, não sei. Se está verde para os carros, está vermelho para os peões.
São essas mesmas regras da experiência e do raciocínio lógico que comandam a ponderação/apreciação da prova (art.º 607º nº 4 CPC).
É certo que o “inverosímil” pode acontecer. Porém, nesses casos, exatamente porque estamos fora das regras da “normalidade”, será necessária a explicação dessa “diferença”, que para determinado acontecimento ocorreram circunstâncias anómalas.
Ora, a hipótese de ter existido uma qualquer avaria nos semáforos não foi descartada.
Na verdade, foi pedido ao Departamento de Trânsito da Câmara Municipal informação desse tipo de ocorrência, tendo ela respondido que a sinalização automática no local «não tem qualquer controle de velocidade, funcionando em modo de tempos fixos, sendo o tempo de verde na Via ..., ... s e o tempo de verde da Rua ...»
Da mesma feita, no auto de participação do acidente, o agente da PSP (que chegou logo ao local, pois ainda lá se encontravam as vítimas), fez consignar que «a sinalização semafórica encontrava-se a funcionar normalmente.»
E esse mesmo agente, FF, não teve dúvidas em afirmar isso mesmo, de forma categórica, em julgamento.
Como dado instrumental, pode ainda acrescentar-se o depoimento da testemunha EE, quando deu parte de uma nota ocorrida já depois do sinistro e que pode talvez explicar a desatenção da infeliz vítima ao semáforo:
─ A senhora recorda-se de mais alguma questão que ache importante?
─ Eu não sei, o que eu me recordo é que entretanto outra senhora veio ter comigo e perguntou-me se tinha sido eu a autora do acidente, eu disse que não, e ela disse “pois aqui não há semáforos”, e eu disse, desculpe então não há semáforos? Eu disse que há semáforos e ela disse “olhe eu passo aqui todos os dias e nem reparo que tem semáforos”. Ou seja, o que me parece é que ali as pessoas atravessam a rua e não se apercebem que existem semáforos no local.
Tudo visto, consideramos ser de manter a redação do facto provado em causa, pois assim o impõem as regras da lógica e da experiência e por não haver o mínimo indício da ocorrência de circunstâncias anómalas no funcionamento dos semáforos.

Quanto ao facto, não provado, de a morte da Autora ter sido provocada pelo acidente
- Tendo a autora falecido em consequência direta e exclusiva do presente acidente
O Sr. Juiz motivou esta “não prova” na falta de elementos probatórios, designadamente de ordem pericial e testemunhal.
Consideramos ser de descartar o recurso a prova testemunhal, na medida em que ao apuramento da causa de morte compete prova pericial, na medida que se trata de matéria da competência técnica dos médicos, em especial de índole médico-legal.
Isto sem prejuízo de, à míngua/impossibilidade dessa prova pericial, se possa recorrer à dita testemunha pericial ou técnica, como é, por exemplo, o «caso do médico assistente da vítima de acidente ou de agressão, que é ouvido sobre a relação de causalidade entre a morte desta e o acidente ou agressão, como será o caso do engenheiro que, tendo colaborado nos trabalhos de projectização e de construção do edifício, é ouvido sobre as causas da derrocada deste, na acção de indemnização instaurada contra o seu proprietário. (…) todavia, desde que na justificação do laudo invoque perceções de factos pretéritos, que são objecto da causa, ele actuará como testemunha, não propriamente como perito.» [3]
A referida perícia do estabelecimento da causa de morte é inexistente nos autos.
Da matéria de facto provada (e não questionada) resulta que o sinistro ocorreu em 19/04/2018, tinha a vítima 78 anos.
Decorre ainda da diversa documentação junta aos autos que, na sequência dos múltiplos traumatismos que padeceu, esteve internada no Centro Hospitalar de v. N. de Gaia até 4/9/2018, data em que teve alta, por consolidação médico-legal das lesões resultantes do acidente.
De 04/09/2018 até 03/01/2019 esteve internada na unidade de cuidados continuados (UCCLDM) de ... (Penafiel).
De 03/01/2019 até 07/11/2019 esteve internada em diversas Unidades da Residências B..., S.A., tendo então sido transferida para a Casa do Povo de Resende, onde ficou até 23/08/2020, data em que veio a falecer.
Ou seja, a vítima veio a falecer mais de 2 anos após o sinistro.
Resulta dos diversos processos clínicos juntos aos autos que a Autora padecia já de diversas patologias, designadamente enxaquecas sem áurea seguida em neurologia desde 2014, HTA, insuficiência mitral grau II/IV e insuficiência tricúspide moderada, DM tipo 2, obesidade e esteatose hepática.
A perícia efetuada pelo Instituto de Medicina Legal foi realizada ainda em vida da vítima (data do relatório, 04/12/2019, cerca de um ano e oito meses após o acidente).
Nessa medida, apenas pôde estabelecer o nexo de causalidade entre o traumatismo e os danos apresentados à data do exame pericial. [4]
Quanto ao nexo causal acidente-morte, o elemento mais concreto e recente é o relatório clínico da lavra do médico que assistiu a vítima na Casa do Povo de Resende, onde ingressou a 07/11/2019, e se manteve internada até 23/08/2020, data em que veio a falecer.
Nesse relatório clínico, elaborado pelo médico assistente, Dr. GG, pode ler-se: «A causa da morte tanto poderá estar ligada a sequelas cerebrais ou outras decorrentes do acidente (não há relatório médico do internamento após o acidente) pelo que as lesões descritas atrás (lesão axonal difusa com hidrocefalia, afasia, disfagia, tetraparésia espástica e das fraturas múltiplas que teve) são possíveis de encontrar nos relatórios de Alta das UMLD.
No entanto, não se constataram alterações da sua condição neurológica desde o dia em que entrou neste Centro Comunitário, até ao dia em que faleceu, pelo que se deduz que as lesões neurológicas do acidente estariam consolidadas mas que o processo aterosclerótico decorrente dos fatores de risco cárdio e cérebro vascular, bem como o alectuamento prolongado, contribuíram decididamente para um agravamento progressivo da condição vascular cerebral que muito provavelmente precipitou a morte.»
Acresce que a causa de morte que ficou a constar do respetivo certificado de óbito foi “aterosclerose cerebral” e “alectoamento por sequelas neurológicas”.
Ou seja, não é possível imputar a causa de morte ao sinistro, pelo menos com o rigor que se impõe nestas questões, pelo que improcede a pretensão de que o facto referido passe a considerar-se como provado.
Consequentemente, improcede a pretendida alteração da matéria de facto.

5.2. Subsunção dos factos ao direito
Neste âmbito, os Recorrentes suscitam várias questões, que passamos a analisar, sendo que, como se viu, a matéria de facto apurada em 1ª instância permanece inalterada.
5.2.1. Do nexo causal do acidente e repartição de culpas
Na sentença considerou-se a existência de concorrência de culpas na eclosão do acidente ─ da vítima, por ter iniciado a travessia com o sinal vermelho para peões; do condutor do motociclo, por circular em velocidade superior ao permitido para o local (limite específico de velocidade) e com velocidade excessiva (limite geral de velocidade) ─, estabelecendo-se a medida dessa culpa em 70 e 30%, respetivamente.
Os Recorrentes pugnam por uma medida contrária, 70% para o motociclista e 30% para a vítima.
A causa de pedir nos autos cifra-se na responsabilidade civil pela prática de atos ilícitos, um acidente de viação cuja ocorrência era imputada ao condutor do motociclo.
São pressupostos (cumulativos) da obrigação de indemnização por factos ilícitos (dita, extracontratual), uma conduta ilícita, a sua imputação ao agente a título de culpa e a existência de danos, causados ou decorrentes dessa conduta: art.º 483º do Código Civil (CC).
Quanto à ilicitude, traduz-se ela na ofensa de direitos de terceiro ou na violação de disposições legais (normas legais e/ou regulamentares, bem como princípios gerais ou regras de ordem técnica e de prudência comum) destinadas a proteger interesses alheios.
A culpa afere-se em abstrato, pela diligência exigível a um homem normal, em face do condicionalismo do caso concreto: art.º 487º nº 2 do CC.
Resolvida que está a questão de a vítima ter efetivamente procedido à travessia da via quando o sinal estava vermelho para peões, impõe-se concluir que violou o disposto no art.º 74º, nº 1 al. a) do Regulamento de Sinalização do Trânsito (RST) [5], nos termos do qual os peões estão impedidos de iniciarem o atravessamento da faixa de rodagem quando o respetivo semáforo apresenta a luz vermelha, bem como o art.º 101º nº 1 e 3 do Código da Estrada (CE).
E esse, cremos nós, terá sido o elemento causal predominante do sinistro.
Porém, resulta da matéria de facto provada que o condutor do motociclo também violou outras normas legais e regulamentares da condução rodoviária.
Assim, existindo na via sinalização vertical de limite de velocidade de 50 Km/h, o condutor circulava a uma velocidade situada entre 77km/h e 80,14km/h – donde a violação do limite imposto pelo sinal e do art.º 27º nº 1 CE.
Para além disso:
· violou o princípio geral em matéria de velocidade, a dita velocidade excessiva, plasmado no art.º 24º nº 1 do CE, O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
· violou o dever de moderar a velocidade de que vinha imbuído, nos termos do art.º 25º nº 1 al. a) do CE ─ Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade à aproximação de passagens assinaladas para a travessia de peões, bem como à aproximação de utilizadores vulneráveis.
· violou o dever de cuidado imposto pelo art.º 103º nº 1 CE ─ o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.
Assim sendo, temos uma concorrência de culpas na produção do acidente, tal como foi decidido na sentença.
Quanto à respetiva graduação, diz o art.º 570º nº 1 do CC, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
Sobre este aspeto é de considerar o seguinte quadro factual: o local do sinistro é uma via composta por duas hemifaixas de rodagem em cada sentido, divididas por um separador central; atento o sentido de marcha do motociclo, a passadeira de peões avistava-se a mais de 100 metros e coincidia com um cruzamento; era de dia e com total visibilidade; a via constitui uma reta, com inclinação descendente; quando iniciou a travessia da via, o sinal luminoso aí existente encontrava-se vermelho para os peões; a Autora já tinha concluído mais de metade do trajeto (pretendia passar para o lado oposto) e foi embatida pelo motociclo quando já se encontrava próximo do separador central; o condutor do motociclo não travou ou abrandou a velocidade de que vinha animado; a Autora, quando se apercebeu da aproximação do motociclo, hesitou em avançar ou parar.
Nestas circunstâncias, consideramos que a culpa deve ser imputada em partes iguais.
Na verdade, pese embora a Autora não devesse iniciar/proceder a uma travessia da via com o sinal vermelho para peões, o certo é que o condutor do motociclo tinha boas condições de visibilidade para as condições do tráfego, condições essas que lhe propiciavam regular a sua condução em conformidade e por forma a poder parar em condições de segurança, assim evitando o embate.
A velocidade de que vinha imbuído, e eventual distração ─ só assim se logrando entender que numa reta e com visibilidade de 100 metros, não houvesse quaisquer vestígios de travagem ou abrandamento da marcha ─, concorreu em igual medida com a desatenção e imperícia da infeliz vítima de proceder a uma travessia da faixa de rodagem com sinal vermelho.
Por outro lado, nenhuma circunstância factual se provou no sentido de que a travessia do peão se tivesse processado de forma súbita e totalmente imprevisível para o condutor do motociclo. Aliás, como atrás se referiu, a condutora do Jeep, que circulava atrás do condutor do motociclo, a cerca de 20/30 metros, referiu ter visto a vítima no separador central da via, tendo acreditado (supõe que tal como o condutor do motociclo) que ela iria aí parar, interrompendo a travessia.
Se o condutor do motociclo confiou, eventualmente, que a Autora iria parar no separador central, há que ponderar que se tratava de um utilizador vulnerável, uma idosa de 78 anos que, como resulta das regras da experiência, têm as suas capacidades físicas e cognitivas mais reduzidas, mais dificuldades ao nível da visão e da audição, tudo caraterísticas que explicam uma maior imperícia para evitar o acidente.
Concluindo, nestas circunstâncias de facto, entendemos como mais equilibrada a repartição de culpas na ocorrência do sinistro numa proporção de 50%.

5.2.2. Se os herdeiros têm direito a indemnização devida pelo direito à vida da Autora e o dano moral do Recorrente
Como consta do relatório, foram deduzidas 2 ampliações do pedido inicial. Na 2ª ampliação/redução, deduzida em 15/09/2022, após o óbito da Autora e competente habilitação dos seus herdeiros, veio declarar “organizar a totalidade do seu pedido do seguinte modo:
Petição Inicial:
• Danos Morais sofridos pela Autora €50.000,00
• Danos Materiais €578,00
1ª Ampliação do Pedido
• Danos Morais sofridos pela Autora €50.000,00
• Danos Materiais €16.757,48
Atual Ampliação do Pedido
• Danos Materiais €7.746,28
• Direito à Vida da Autora €75.000,00
• Danos Morais €40.000,00
Na sentença, o M.mº Juiz entendeu não ser de atender ao dano morte, por não se ter provado ter esta sido causada pelo acidente, pelo que atendeu apenas aos “danos que se produziram no hiato de tempo que decorre entre o sinistro (19/4/2018) e o falecimento (23/8/2020)”, em concreto:
- O défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, o qual atinge o grau mais elevado que é possível conceber (100 pontos);
- As dores resultantes das lesões/sequelas sofridas, as quais se situam num bastante patamar elevado (seis graus, numa escala de sete graus de gravidade crescente);
- O facto de o acidente ter determinado uma dependência absoluta da autora relativamente a terceiros.
Depois, julgou “adequado o montante de 100.000,00€ (cem mil euros) para ressarcir os danos não patrimoniais que a autora sofreu em consequência do acidente dos autos”.
E, no dispositivo da sentença, fez consignar o seguinte:
a) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia de 37.351,12 (trinta e sete mil trezentos e cinquenta e um euros e doze cêntimos), a título de indemnização global para ressarcimento dos danos supra descritos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a presente decisão até integral pagamento;
Reagem os Recorrentes contra a não consideração da perda do direito à vida da Autora, no valor peticionado de €75.000,00, bem como nos danos morais do seu marido, que computou em €40.000,00.
Começando pela indemnização pela perda do direito à vida.
É sabido que um dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos reside no nexo de causalidade, ou seja, apenas são indemnizáveis os danos causados pela conduta (art.º 483º e 563º do CC), o lesante fica obrigado a “indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Nessa medida, dado que não se provou que o decesso da Autora tenha sido causado diretamente pelos ferimentos causados pelo sinistro, não se pode atribuir indemnização a esse título, como bem se julgou em 1ª instância.
Quanto ao dano moral do Recorrente marido
Peticionou ele €40.000,00, “em termos de dano moral pela morte da A. sua mulher e por todo o sofrimento e angústia que vivenciou entre a data do sinistro e o óbito da sua mulher”.
A prática de um ilícito pode causar danos não só à pessoa em cuja esfera jurídica ele ocorreu, mas também, de forma indireta ou reflexa, a outras pessoas.
Para este efeito, dispõe o art.º 495º do CC:
1. No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem excetuar as do funeral.
2. Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima.
3. Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
E, como se esclareceu em acórdão do STJ: «I - O art.º 495º, n.º 3, do Cód. Civil, consagra uma excepção ao princípio geral de que só ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado assiste direito a indemnização, aí se abrangendo terceiros só reflexamente prejudicados com o evento danoso.
II - Contudo, esse direito não é de atribuição directa e automática às pessoas indicadas nesse normativo. Só existirá se (e na medida em que) for demonstrada a facticidade em que necessariamente terá que assentar.» [6]
Ou seja, nos termos do art.º 495º do CC, o direito de indemnização só é atribuído aos terceiros que:
· Tenham incorrido em despesas para salvar a vítima, e pelo montante delas, sem excetuar as do funeral;
· Os que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou qualquer pessoa que tenha contribuído para o tratamento ou assistência da vítima.
· Os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
Daqui decorre que o preceito regula apenas para os danos materiais. O Recorrente nada alegou sobre um potencial direito a alimentos da vítima e a indemnização que ele pede reporta-se a danos morais.
Para os danos não patrimoniais rege o art.º 496º nº 2 e 3 do CC, conferindo o direito à indemnização aos familiares.
No caso dos familiares (danos sofridos por eles próprios com a morte da vítima), o direito à indemnização é conferido sucessivamente a cada um dos grupos enunciados (o 2º grupo só tem o direito no caso de inexistência das pessoas do 1º grupo, e assim sucessivamente), sendo que, o sentido da expressão “cabe, em conjunto” «(…), quer significar que o montante há-de ser repartido em igualdade entre os membros desse grupo» [7], o que não prejudica que «(…) o tribunal não deva discriminar a parte que concretamente cabe a cada um dos beneficiários, de acordo com os danos por ele sofridos. Terem direito à indemnização em conjunto significa apenas que os descendentes não são chamados só na falta do cônjuge, como sucede com os beneficiários do 2º e 3º grupos indicados no mesmo nº 2, para os quais vigora o princípio do chamamento sucessivo.» [8]
Quanto à natureza do direito à indemnização por essas pessoas, cremos ser indiscutível que, no que toca aos danos morais sofridos pelas pessoas elencadas no preceito (no caso concreto, o marido) se trata de direitos próprios, porque produzidos diretamente na sua pessoa ou esfera jurídica.
Porém, como decorre claramente do nº 1 desse art.º 496º, esse direito indemnizatório só é atribuído em caso de morte e, morte essa que seja decorrente/causada do sinistro.
Ora, mais uma vez se dirá que, não se tendo provado que a morte da Autora tenha sido causada diretamente pelos ferimentos causados pelo sinistro, não se pode atribuir ao Recorrente a peticionada indemnização.

5.2.3. Os juros moratórios
Por fim, a questão dos juros moratórios ─ que a sentença determinou fossem contabilizados desde a data da sentença, por a indemnização ter sido atualizada a essa data ─ e que os Recorrentes pretendem que, quanto aos danos materiais sejam contabilizados desde a data da citação.
Neste particular, assiste-lhes razão, partilhando aqui do entendimento do acórdão desta Relação:
I - O Ac. UJ nº 4/02 veio fixar a seguinte jurisprudência: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artº 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artºs 805º, nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º, nº 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
II - O que se conclui daquele Ac. UJ é que não há que distinguir se os danos são de natureza patrimonial ou não patrimonial, de acordo com a actual redacção do nº 3 do artº 805º, incidindo os juros sobre todos eles, na mesma medida.
III - Porém, os juros são devidos desde a data da decisão que os atribui, se o valor do capital tiver sido arbitrado nessa data de forma actualizada; e são devidos desde a data da citação se o valor do capital arbitrado não se reportar à data da decisão.
IV - Ou seja, se a indemnização já foi fixada em valor actualizado à data da sentença, não podem ser arbitrados juros desde a data da citação que é anterior, porque tal se traduziria num enriquecimento ilícito do lesado.
V - Se o juiz arbitra juros apenas a partir da data da decisão em relação à indemnização por danos não patrimoniais, tem não só de dizer expressamente como de demonstrar, na sentença, que fixou a indemnização de forma actualizada. Só assim pode aplicar a doutrina do Ac. UJ acima citado. Não se pode presumir que os danos não patrimoniais fixados na sentença são actualizados.
VI - Assim, se o juiz não explica, nem demonstra, que tenha fixado a indemnização por danos não patrimoniais de forma actualizada, são devidos juros desde a citação, por aplicação das disposições conjugadas dos citados artºs 566º, nº 2 e 805º, nº 3 do CC.». [9]
No caso, o Sr.º Juiz não só não procedeu à autonomização entre danos morais/danos patrimoniais, como nada explicou sobre como procedeu à atualização desses danos materiais.
De forma assaz lacónica, apenas referiu que “estando a decisão equitativa prevista, em termos genéricos, no citado art.º 566º, nº3 do Código Civil - que abrange quer danos não patrimoniais, quer patrimoniais, nas situações em que não é possível averiguar o valor exacto do prejuízo”.
Não é aqui o caso, já que existem danos materiais provados, e em montante exato.
Para além disso, outra dificuldade ocorre já que, tendo considerado globalmente o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, as dores resultantes das lesões/sequelas sofridas e o facto de o acidente ter determinado uma dependência absoluta da autora relativamente a terceiros, julgou “adequado o montante de 100.000,00 € (cem mil euros) para ressarcir os danos não patrimoniais que a autora sofreu em consequência do acidente dos autos”.
E, no dispositivo da sentença, fez consignar o seguinte:
a) Condenar a ré a pagar aos autores a quantia de 37.351,12 (trinta e sete mil trezentos e cinquenta e um euros e doze cêntimos), a título de indemnização global para ressarcimento dos danos supra descritos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a presente decisão até integral pagamento;
E não descortinamos como foi encontrado esse valor. Na verdade, considerando a percentagem de culpa de 30% que tinha sido atribuída ao condutor, a indemnização por esses danos morais importaria em 30 mil euros. Donde então os restantes €7.351,12 do total da condenação?
É que os danos materiais apurados (factos provados 35, 38 e 41 a 47) importam em €22.408,76. [10]
Reequacionemos então, o que se impõe até pela repartição a que aqui procedemos de 50% em sede de concorrência de culpas.
O montante indemnizatório de todos os danos de índole moral foi fixado em €100.000,00 e esse montante não foi questionado por qualquer das partes.
Tendo a responsabilidade sido repartida em 50%, a Ré apenas terá de pagar €50.000,00.
E como esse valor foi fixado na sentença em moldes atualizados, o que não sofreu contestação, os juros serão devidos desde a data da sentença – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002, publicado no Diário da República n.º 146/2002, Série I-A de 2002-06-27.
Já quanto aos danos materiais, cifram-se eles em €22.408,76 e os juros moratórios são devidos desde a data da citação, nos termos do art.º 805º nº 3 do CC.


6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO

7. Pelo que fica exposto, no parcial provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em condenar a Ré a pagar aos Recorrentes:

i. €50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de danos morais sofridos pela Autora, acrescidos de juros de mora devidos desde a data deste acórdão até efetivo e integral pagamento.
ii. €22.408,76 (vinte e dois mil, quatrocentos e oito euros e setenta e seis cêntimos), a título de danos materiais, acrescidos de juros moratórios, devidos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Custas do recurso a cargo dos Recorrentes e da Ré, na proporção do decaimento.


Porto, 15 de junho de 2023
Isabel Silva
Carlos Portela
Judite Pires
______________
[1] A Autora AA foi sujeita a medida de acompanhamento, por sentença datada de 22/08/2019, com fundamento em “Deterioração Cognitiva Grave decorrente de TCE grave”. A marido BB foi designado seu Acompanhante.
[2] Relações pessoais e razão de ciência: não conhece nenhuma das partes, assistiu ao acidente, foi antes de ir trabalhar, vinha de carro de Gaia para o Porto, vinha na faixa esquerda, atrás do condutor da mota, 20/30 metros, sem nenhum outro veículo entre ambos.
[3] Cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, 1985, Coimbra Editora, pág. 582 e 610.
[4] Aí se refere: «Os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal.»
[5] Aprovado pelo Decreto-Regulamentar nº22-A/98, de 01 de outubro.
[6] Acórdão de 03/11/2016, processo nº 6/15.5T8VFR.P1.S1, relator António Joaquim Piçarra, disponível em http://www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 15.04.1997, processo 97A208, Relator Lopes Pinto.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição revista e atualizada, 1987, Coimbra Editora, pág. 501.
No mesmo sentido, Capelo de Sousa, “Lições de Direito as Sucessões”, vol. I, 4ª edição renovada, Coimbra Editora, pág. 322.
[9] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27/09/2018, processo nº 75/10.4TBAMT.P1, relatora Deolinda Varão.
[10] Esclarece-se que não se equaciona aqui as despesas de funeral (facto provado 54) pela razão que tem vindo a ser apontada de não se ter provado que a morte tenha sido decorrência do sinistro.