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CONTRATO DE TRABALHO
GERENTE
JUNÇÃO DE SENTENÇA APÓS ALEGAÇÕES
RETIFICAÇÃO DE SENTENÇA
Sumário
As partes podem juntar sentenças de primeira instância em que se aborde questão similar à dos autos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão – 651º, 2 CPC A recorrente não cumpriu parcialmente o ónus de indicar a resposta alternativa e os concretos meios de prova que impõem uma decisão diferente da proferida em primeira instância, o que leva à rejeição dessa parte do recurso. Não há fundamento probatório que leve o tribunal da relação a alterar a resposta à restante matéria de facto. A sentença deve ser retificada por verificação de erro material, na parte em que condena a ré no pagamento de retribuições intercalares até ao trânsito de sentença anterior que declarou o despedimento, quando no relatório se consigna que esta foi revogada, evidenciando-se que se pretenderia referir ao transito em julgado da decisão de despedimento que estava sendo proferida. No caso, os factos são suficientemente fortes para se poder considerar que estamos, quer perante um caso de acumulação de gerência com funções separadas de trabalhador, quer perante um caso de admissibilidade de exercício de gerência por contrato de trabalho, mormente por se tratar de gerente não sócio, sendo a gerência plural, e os sócios intervirem nas decisões sobre a sociedade em aspectos tidos por relevantes.
Texto Integral
I - RELATÓRIO
AA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra “P..., Lda.”
Pede que:
a) seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho celebrado entre o autor e a ré com inicio em 29 de maio de 2004;
b) seja condenada a ré a pagar ao autor a quantia de 889,50€ (oitocentos e oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos), respeitante aos restantes créditos salariais vencidos e não pagos, tendo por referência a retribuição mensal liquida de 1000,00€;
c) seja declarada a ilicitude do despedimento do autor, promovido pela ré;
d) seja condenada a ré a pagar ao autor uma indemnização em substituição da reintegração, correspondente a 45 (quarenta e cinco ) dias de retribuição de base e de diuturnidades, por cada ano de antiguidade ou fração, contada desde 29/05/2004 até à data do trânsito em julgado da presente sentença ou do acórdão que eventualmente e em definitivo venha a confirmar a ilicitude do despedimento, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da presente sentença até ao integral e efetivo pagamento, calculados à taxa legal;
e) seja condenada a ré a pagar ao autor as retribuições, incluindo os montantes do ordenado base, das diuturnidades, e do subsídio de refeição, e também os respetivos subsídios de férias e de Natal vencidas desde o trigésimo dia anterior ao da propositura da ação até à data do trânsito em julgado da presente sentença ou, sendo a mesma objeto de recurso, do acórdão que venha a confirmar a ilicitude do seu despedimento, acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos desde a data do respetivo vencimento de cada uma delas até ao integral e efetivo pagamento, calculados à taxa legal.
Causa de pedir: alega, em síntese, que, em 29/05/2004, foi contratado para trabalhar sob a autoridade e direcção da ré e nomeado gerente, não sócio, cumulando funções enquanto tal e também como trabalhador, colaborando no fabrico e distribuição de pão/bolos/similares, mediante o pagamento da retribuição mensal de 1.000,00€, recebendo subsídio de férias/natal e estando sujeito ao mesmo regime fiscal e de SS dos demais trabalhadores, obedecendo a indicações da ré, o que fez até ao dia 11/01/2020, data em que a ré dispensou os seus serviços, entregando-lhe documento onde consta que o contrato de trabalho cessou por iniciativa do empregador, o que entende configurar um despedimento ilícito.
Para além da indemnização em substituição deste e do pagamento das retribuições intercalares, alega estarem em falta algumas parcelas retributivas em cujo pagamento pede a condenação da ré, compensado que seja um crédito desta sobre o Autor de 438,94, conforme confessado pelo Autor, decorrente da aquisição de produtos alimentares.
A ré contestou, confirmando o exercício das funções de gerente por parte do autor entre 16/6/2004 até 11/01/2020, mas negando que tenha existido um contrato de trabalho, sendo impossível a sua existência, tendo em conta as funções de gerência exercidas pelo autor. Nega que a retribuição mensal acordada tenha sido de 1.000,00€, mas sim de 773,48€, e diz que o valor que o autor lhe deve e cuja compensação invoca na petição inicial não é de 438,94€, mas sim de 455,28€.
Termina pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido e a procedência da reconvenção e a condenação do autor a reconhecer ser devedor da quantia de 455,28€ a título de aquisição de produtos alimentares.
O autor respondeu, negando ser devedor de qualquer outra quantia para além da referida na petição inicial e pedindo a improcedência da reconvenção.
Em 12-12-2020, foi proferido despacho saneador, rejeitando-se a reconvenção e proferindo-se, ainda, decisão nos seguintes termos: “a) declaro que entre M... e X... ..., Lda. vigorou um contrato de trabalho; b) declaro a ilicitude do despedimento do autor M..., promovido pela ré X..., Lda. em 11/01/2020. A responsabilidade por custas será determinada a final, de acordo com o decaimento global da ação.
(…)
CONTINUAÇÃO DOS AUTOS Os autos prosseguem apenas para apreciação dos demais pedidos deduzidos na ação, para o que é necessário a produção de prova sobre a retribuição mensal acordada entre autor e ré e sobre a data de início de funções do autor.”
Foi interposto recurso do despacho saneador que julgou parcialmente a causa.
Atento o efeito devolutivo do recurso, os autos prosseguiram com realização de audiência de julgamento e, por sentença proferida em 19-11-2021, ficou decidida a retribuição mensal acordada entre autor e ré e a data de início de funções do autor, condenando-se a ré a pagar ao autor indemnização e retribuições intercalares calculadas com base na retribuição aferida (referindo-se no dispositivo, a este propósito que a ré era condenada nas “...as retribuições devidas entre 03/05/2020 (30 dias antes da propositura da presente ação) e a data de trânsito em julgado da sentença proferida a fls. 73 e seguintes, à razão de 773,48€ (setecentos e quarenta e três e quarenta e oito cêntimos) mensais; sendo todas estas quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4%...).
Entretanto, o Tribunal da Relação de Guimarães, por decisão de 16-12-2021, decidiu “julgar procedente a apelação, anulando-se a decisão e posteriores termos dela dependentes, e determinando-se a produção de prova nos termos referidos”.
Realizou-se nova audiência de discussão e julgamento, com sessões em 27/04/2022 e em 30/05/2022, sendo o seu objecto a qualificação da relação jurídica entre as partes e a alegada ilicitude de despedimento,
Proferiu-se sentença. DECISÃO RECORRIDA (DISPOSITIVO): “Assim, e nos termos expostos, julga-se a presente acção procedente por parcialmente provada e, consequentemente: a) Declara-se que entre a ré “P..., Lda.”, e o autor AA existiu e vigorou um contrato de trabalho no período ininterrupto de 29/05/2004 a 11/01/2020, sendo que, durante o referido período, o Autor trabalhou para a Ré desempenhando as funções de gerente para as quais foi contratado; b) Condena-se a aqui Ré “P..., Lda.” a reconhecer que vigorou entre si e o aqui Autor AA, o referido contrato de trabalho, no período ininterrupto de 29/05/2004 a 11/01/2020; e, c) Declara-se a ilicitude do despedimento do Autor, levado a cabo pela Ré, pelo que, em consequência, deverá a aqui Ré P..., Lda.” liquidar ao Autor AA, conforme já decidido por sentença já transitada nos autos: i) a quantia de 13.149,16 € (treze mil, cento e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) a título de indemnização em substituição da reintegração, quantia a que deve ser deduzido o montante de € 438,94 (quatrocentos e trinta e oito euros e noventa e quatro cêntimos), devido à ré pelo autor; ii) as retribuições devidas entre 03/05/2020 (30 dias antes da propositura da presente ação) e a data de trânsito em julgado da sentença proferida a fls. 73 e seguintes, à razão de 773,48€ (setecentos e quarenta e três e quarenta e oito cêntimos) mensais; iii) sendo todas estas quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos até integral pagamento, sobre as referidas quantias, sendo a de i) desde a data de cessação do contrato e as de ii) desde as respetivas datas de vencimento de cada retribuição,
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Custas pela ré e autor na proporção do respectivo decaimento.
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Fixo o valor da acção em € 27.84, 78.”
PEDIDO DE RECTIFICAÇÃO DE SENTENÇA
O autor requereu, nos termos do n.º 1 do artigo 614 do C.P.C., que fosse corrigida a sentença no sentido de constar na alínea ii) do ponto c) da decisão o seguinte: “ii) As retribuições devidas entre 03/05/2020 (30 dias antes da propositura da presente ação) e a data de trânsito em julgado da decisão final quedeclare a ilicitude do despedimento, à razão de € 773,48 (setecentos e setenta e três euros e quarenta e oito cêntimos) mensais). O pedido não foi atendido, considerando a senhora juiz que nada havia a rectificar.
FOI INTERPOSTO RECURSO PELA RÉ –CONCLUSÕES: A. Com o devido respeito, não se nos afigura correta a decisão ora posta em crise, no que respeita à apreciação da matéria de Facto e de Direito. B. Da audição dos depoimentos prestado por TODAS AS TESTEMUNHAS, de TODAS AS PARTES, e da prova DOCUMENTAL, é lícito concluir pela Recorrente que foram erradamente apreciados e valorados as provas carreadas aos presentes autos, pelo que ocorre notório erro de julgamento. C. A presente impugnação da matéria de facto, prende-se essencialmente com a convicção de que o Autor ter exercido exclusivamente a função de gerente da Ré, e JAMAIS ter exercido a função de trabalhador da Ré. D. No presente Recurso, a Recorrente, aqui R. almeja impugnar os factos dados como provados, nomeadamente os pontos L), I), O), P), Q), e T), e impugna todos os factos dados como não provados (que não se encontram numerados) mencionados na fundamentação de factos: E. Ex.mos Juízes Desembargadores: Resulta da prova documental e testemunhal o seguinte: F. Basta proceder à audição da confissão das declarações prestadas pelo Autor em sede de Audiência de Julgamento, que o mesmo APENAS exercia as funções de Gerente, confessando que: Não possuía horário de trabalho; Deslocava à sede da empresa quando almejasse; Auferiu durante o período em que foi nomeado gerente (2004 a 2020) o valor da remuneração na qualidade de gerente, NUNCA auferindo qualquer salário a título de trabalhador, não beneficiava de dupla retribuição; Apenas desempenhava certas funções de trabalhadores da Ré, em casos esporádicos e pontuais, quando faltava algum trabalhador; Podia tirar uma ou várias tardes da semana, para resolver assuntos do seu interesse; o Autor não recebia instruções e ordens da R. – Alínea M) dos factos dados como provados. G. De facto, como poderia o Tribunal a quo considerar que o Autor é trabalhador, quando o mesmo não possuía horário de trabalho? Quando o Autor se deslocava para a sede da R. quando bem entendesse, podendo tirar tardes ou dias para resolver assuntos pessoais? Quando apenas ajudava em serviços da R. para substituir outros trabalhadores? H. Ora, a confissão do Autor, perante estes factos demonstrativos que possuía total liberdade e não estava sujeito a direção por quem quer que seja, é revelador que o Autor apenas era Gerente. Todas as testemunhas arroladas pela Ré, foram perentórias e unanimes em afirmar que o Autor nunca exerceu as funções de trabalhador. I. Refere o Prof. Dr. PAULO FERREIRA DA CUNHA (Pensar o Direito, I. Do Realismo Clássico à análise mítica, 1990, pp. 50-51), que: «o Direito é o justo, é a coisa devida, é o seu, o suum cuique. Ora não tenhamos dúvida. O suum de cada um é o que lhe é conferido por um título, um modo sócio-juridicamente admitido de ter a propriedade. O meu é o que comprei, ou me foi dado, etc .. Não tenho direito à lua, nem a nada que não tenha já adquirido legitimamente. Só por extensão ou analogia o Direito adquire os demais significados. Assim, o meu direito é aquilo a que tenho direito, é o objecto justo. E a justiça jurídica é a justiça de o atribuir correctamente. J. Os factos provados não conduzem a que seja reconhecido ao Autor, aqui recorrido, como foi, a existência de relação laboral entre o mesmo e a Ré. K. Ora provou-se que o autor, aqui Recorrido, que: - o mesmo foi nomeado como gerente efetivo, através de deliberação aprovada em Assembleia Geral de 29/05/2004 – Alínea D), dos factos dados como provados; - O Autor auferia, por essa função de gerente, a quantia de €773,48 - Alínea I), dos factos dados como provados. - Nunca o Autor se encontrou vinculado a um horário de trabalho pré-estabelecido, sendo que o mesmo se deslocava às instalações da R. quando entendesse; Aliás, o Autor tinha total liberdade de entrar e sair nas instalações da Ré para exercer as suas funções, sempre que quisesse e entendesse; O Autor tinha total liberdade para gerir as suas funções no horário que entendesse, podendo mesmo “tirar” uma ou várias tardes da semana, para resolver assuntos do seu interesse; E, o Autor frequentava as piscinas municipais à sexta a tarde, quinzenalmente, iniciando-se assim o fim de semana da sua folga, que alternava com o outro gerente. - Alíneas N), O), P) e Q) dos factos dados como provados. - O Autor gozava férias, em dia que entendesse ao longo do ano - Alínea T), dos factos dados como provados. - Os sócios da R. não fiscalizavam o A. – Alínea M), dos factos dados como provados. L. Perante a fundamentação de facto, denota-se que a Douta Sentença qualificou incorretamente a relação jurídica entre Autor e Ré. VENERANDOS DESEMBARGADORES: M. No caso em apreço, o Autor foi nomeado gerente da Ré, e ficou claramente demonstrado que o mesmo não se encontrava numa situação de dependência do empregador, sob a sua “autoridade e direção”, porquanto, atendendo à prova gravada e dada como provada, resulta que:
· Era o Autor quem advertia os funcionários no caso de os mesmos infringirem as normas laborais – Alínea J), dos factos dados como provados.
· Era o Autor e os aludidos gerentes, que exprimiam as ordens, instruções, fiscalização e disciplina aos trabalhadores da Ré - – Alínea H), dos factos dados como provados.
· Competia ao A. juntamente com o outro gerente, não sócio, BB, ou, na impossibilidade de qualquer um destes dois, aos dois gerentes suplentes que eram sócios, o poder de administração e representação da R., detendo assim poder de autoridade, direcção, fiscalização e de disciplina sobre os trabalhadores desta – Alínea W), dos factos dados como provados.
· Os sócios da R. não fiscalizavam o A., permitindo que o gerente executasse as suas funções do modo que entendesse, conferindo-lhe toda e qualquer autonomia na sua gestão e administração -Alínea M), dos factos dados como provados.
· Não resulta dos factos provados dados na Douta Sentença quais os instrumentos disponibilizados pela Ré.
· Não resultou provado qual seria a sua categoria profissional.
· Não resulta provado qual seria a sua retribuição. N. Pois bem. Vista a matéria de facto provada verifica-se que NÃO EXISTIA UM CONTROLO DE ASSIDUIDADE E PONTUALIDADE (Alínea N)), as FÉRIAS ERAM AGENDADAS PELO AUTOR (Alínea T)), e NÃO possuía horário de trabalho pré-estabelecido; NÃO EXISTIA SUBORDINAÇÃO; nem que a Ré disponibilizava instrumentos ao Autor. O. Os elementos essenciais e constitutivos do contrato de trabalho são, assim, a subordinação económica e a subordinação jurídica, traduzindo-se o primeiro no facto de o trabalhador receber certa retribuição do dador de trabalho e o segundo no facto de o mesmo se encontrar na sua atividade sob as ordens, direção e fiscalização do empregador. P. Ora, compulsados os factos apurados, afigura-se-nos que o Autor NÃO LOGROU DEMONSTRAR PRATICAMENTE NENHUM FACTO REVELADOR DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA À RÉ, seja quanto à vinculação a um horário de trabalho, seja quanto ao tempo de trabalho, seja quanto ao cálculo da remuneração, seja quanto à assunção do risco da não produção dos resultados, seja quanto à dependência económica, seja quanto à sujeição do mesmo a ordens diretas, seja quanto à inserção do Autor na organização predisposta pelo credor e a sua sujeição às regras dessa organização, seja quanto ao recebimento de ordens propriamente ditas por parte da gerência da sociedade Ré ou pelos sócios, quer seja sequer quanto ao cumprimento de um horário pré-estabelecido. Q. E mesmo o exercício dos instrumentos disponibilizados por esta não ficou demonstrado. R. Foi violado o art. 342º, nº 1, do Cód. Civil, porquanto o autor não provou indícios relevantes. S. Levanta-se aqui uma questão de princípio, qual seja a de saber se o gerente de um sociedade comercial por quotas, como foi o caso do Autor – nomeado em 2004 até 2020, pode ser trabalhador da mesma, ou seja, considerar-se vinculado a ela por um contrato de trabalho. T. Relativamente a outros tipos de pessoas coletivas, entre as quais as sociedades por quotas (como é o caso da aqui R.), nada na lei obsta expressamente à constituição de um vínculo laboral entre a sociedade e um gerente. U. Mas tal vínculo, implicando como vimos subordinação jurídica, apenas se poderá formar se e na medida em que o trabalhador já tivesse um contrato de trabalho antes de ser nomeado gerente, continuando a desempenhar as mesmas funções e nos mesmos moldes; ou se e na medida em que seja contratado de entre não sócios e por outro ou outros gerentes designados no pacto social ou em assembleia de sócios – é, com efeito, sobretudo em relação aos gerentes não sócios que não tem sido afastada a possibilidade de qualificar o seu vínculo como laboral, como se alcança de acórdãos como o do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.1993, in CJ (STJ), 1993, tomo I, pág. 257, ou o acórdão da Relação de Lisboa de 13.07.1988, in CJ (STJ), 1988, tomo IV, pág. 150. --- De facto, só em hipóteses como estas é configurável a coexistência, na mesma pessoa, da qualidade de trabalhador e gerente (contratado). V. Em todos os restantes casos, de pessoa nomeada no pacto social como gerente de uma sociedade por quotas, designada como administradora de uma sociedade anónima ou eleita como tal pela respectiva assembleia geral (arts. 391º do CSC), ou eleita em assembleia geral como membro da direcção de uma cooperativa (arts. 46º do CCoop. de 1980 e 49º do CCoop. de 1996), que actua com autonomia e em representação da pessoa colectiva, não estão preenchidas, por princípio e natureza, as características do contrato de trabalho. W. De facto, é praticamente inconciliável com a subordinação jurídica que o contrato de trabalho supõe a actividade daqueles que não se apresentam normalmente adstritos às ordens de quem quer que seja, só tendo que prestar contas dos seus actos de gestão à própria sociedade cujos órgãos directivos integram, pelo que o vínculo entre a pessoa colectiva e o gestor (gerente, administrador ou director), que actua com autonomia, sem controle ou superintendência de outrem, e em representação da pessoa colectiva, a revestir alguma natureza contratual, só poderá ser a de um “mandato”, ainda que retribuído, ou, mais especificamente, de “contrato de administração” - neste sentido, vd., entre outros autores, Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 6ª ed., vol. I. X. Sendo do Autor, como vimos, o ónus da prova nesta matéria, temos de concluir pela não verificação da existência de um contrato de trabalho. Y. Até porque do acervo fático provado resulta à sociedade a independência e insubordinação do Autor face à sociedade Ré, pois que era este quem, juntamente com o outro gerente, firmava a vontade da Ré, selecionava os fornecedores para a aquisição de bens e serviços; negociava com fornecedores e clientes, preços para a aquisição de bens; convocava os sócios para as Assembleias Gerais e Extraordinárias, e outras; fixava os preços a comercializar para revenda e venda ao público dos bens alimentares; promovia o pagamentos de todas das despesas da R.; o poder de representação em juízo da R.; outorgava contratos de trabalho, empreitada, leasing, compra e venda, prestação de serviços, ajustes directos, etc.; outorgava contratos públicos, designadamente com Escolas Públicas – cfr. documento nº ..., que se junta e se dá por integralmente reproduzido; a emitia de cheques a favor de terceiros; elaborava e efectuar os horários de trabalho dos funcionários da R.; efectuava encomendas; elaborar o mapa de fabrico diário para a semana; ordenar a reparação e manutenção dos veículos automóveis, propriedade da R.; e, ordenava a reparação e manutenção da maquinaria da R.. Z. Salvo melhor opinião, não pode o Autor ser considerado como trabalhador da Ré, porquanto o mesmo apenas auferia uma remuneração pelas funções de gerente, e TRABALHAVA EM QUE DIAS ENTENDIA, ESCOLHIA OS DIAS DE FÉRIAS AO SEU “GOSTO”, E PODIA ENTRAR NAS INSTALAÇÕES DA R. QUANDO QUISESSE E ENTENDESSE, AA. Tal como nota a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta do Supremo Tribunal, «[i]sto significa que o recorrente não estava vinculado a horário de trabalho, não se verificando, assim, um dos índices que com mais firmeza assinala a existência de subordinação jurídica». BB. Além disso, - e não menos importante, o Autor, aqui Recorrido, não logrou provar que a dupla função correspondesse uma dupla retribuição. CC. SAPIENTES JUÍZES DESEMBARGADORES, com Todo o Devido Respeito, não pode a Ré, aqui Recorrente concordar com a Douta Sentença proferida, e face aos factos apurados, não existe qualquer fundamento para reconhecer que, em algum momento da relação entre as partes (o A., como pessoa singular, e a R., como pessoa coletiva), se formou um vínculo laboral. DD. Seguimos por perto, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, proc. nº 12602/16.9T8PRT.P1, relator Desembargador, Dr. RUI ATAÍDE DE ARAÚJO, de 21/01/2019: III - O mero pagamento, pela sociedade, de um rendimento mensal não chega para se concluir, quer pela existência de um contrato de trabalho, quer pela existência de créditos por retribuições em atraso, subsídios de férias e/ou de natal (posto que estas prestaçõessão inerentes a um contrato dequeles). EE. Trazemos à colação o Ac. do Tribunal da Relação de Évora, proc. nº 127/15.4T8STR-B.E1, relator JUIZ DESEMBARGADOR DR. MÁRIO COELHO, de 06-04-2017. No seu sumário, resulta que: “Nas sociedades por quotas, detendo o gerente poderes de autoridade, direcção, fiscalização e disciplina dos respectivos trabalhadores, ocorre, em princípio, uma situação de incompatibilidade entre o exercício simultâneo dessas funções de gerente e as de trabalhador”. FF. Por outro lado não se pode olvidar que o Autor apenas executava algumas tarefas não referentes á gerência e várias dessas de forma esporádica/ ocasional, nomeadamente quando ocorria a falta de funcionários para o efeito: Depoimento do Autor CC, no dia 27-04-2022, gravação áudio (CD) – 20220427094830_5807925_2870524: (do minuto 56:25 ao minuto 59:39): Confessa o Autor que executava as funções de padeiro quando algum distribuidor faltava, e referiu que ia substituir o trabalhador “era eu que tinha de ir” substituir. Na impossibilidade de algum trabalhador não comparecer, era o Autor quem substituía esporadicamente. GG. Conforme resulta do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. nº 2029/5, relator JUIZ DESEMBARGADOR, DR. SERRA LEITÃO, de 20-10-2005: “ (…) Mas como é do conhecimento geral, em sociedades de pequena dimensão, como tudo indica ser o caso da Ré, é vulgar os sócios gerentes, trabalharem “ ao lado” dos seus funcionários e mesmo exercerem actividades, não inerentes á gerência, mas para as quais têm específicas habilitações”. HH. No caso dos presentes autos não estão presentes na relação contratual em apreço índices suficientes da existência de subordinação jurídica, pelo contrário, apurou-se mediante os factos dados como provados que o Autor, aqui Recorrido que sempre desenvolveu a sua actividade de gestão dos assuntos da Ré, com total autonomia, sem sujeição a ordens ou instruções, não se podendo considerar que as relações que se estabeleceram entre a Recorrente e o Recorrido se enquadram no âmbito de uma relação contratual de trabalho subordinado. II. Senão, repare-se: provou-se que o Autor não recebia instruções e ordens da R. – Alínea M) dos factos dados como provados. As ordens estão no amago do contrato de trabalho, constituindo a manifestação mais evidente da subordinação jurídica – o que no caso em apreço não sucedeu no caso em apreço! JJ. Destarte, o Autor foi nomeado exclusivamente para o cargo de Gerente da Ré, pelo que nunca em qualquer momento, anterior ou posterior, foi contratado para exercer qualquer função como trabalhador, em regime subordinado da Ré. Assim sendo, nunca existiu contrato de trabalho entre Autor e Ré, anterior à nomeação de gerente do Autor. KK. O Autor sempre foi considerado como um verdadeiro GERENTE e não como um trabalhador – conforme resulta dos factos V) a X) dos factos dados como provados. LL. Assim sendo, violou a Douta Sentença, os preceitos estabelecidos nos arts. 11º do CT, 342º do CC entre outras disposições legais.
NESTES TERMOS e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência, deverá ser revogada a Douta Sentença, substituindo-o por outro Acórdão, que absolva a Ré do pedido, com as devidas consequências legais.
CONTRA-ALEGAÇÃO - Refere-se que:
A - Como questão prévia requer a retificação da sentença, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 614 do C.P.C,
Sustenta que, certamente por lapso, no ponto c), ii) da sentença proferida a 06/07/2022, consta que a Ré deve ser condenada a pagar ao Autor as retribuições devidas entre 03/05/2020 (30 dias antes da propositura da presente ação) e a data de trânsito em julgado da sentença proferida a fls. 73 (sentença/saneador proferida a 12/12/2020, que foi alvo de recurso e cuja decisão veio a ser anulada), quando, na verdade, as retribuições são devidas até ao transito em julgado da decisão final que declare a ilicitude do despedimento. Àdata da apresentação das presentes contra-alegações o Tribunal a quo ainda não se tinha pronunciado sobre o pedido de retificação da sentença, aguardando-se o respectivo despacho antes que os respectivos autos subam a esta Relação. Não obstante, deverá o Tribunal “a quem” pronunciar-se sobre o pedido de retificação da sentença, a qual deverá ser alterada no sentido de constar Da alínea ii) do ponto c) da decisão o seguinte: ii) As retribuições devidas entre 03/05/2020 (30 dias antes da propositura da presente ação) e a data de trânsito em julgado da decisão final que declare a ilicitude do despedimento, à razão de € 773,48 (setecentos e setenta e três euros e quarenta e oito cêntimos) mensais).
B - O recurso sobre a matéria de facto não cumpre com as obrigações dispostas no artigo 640º do CPC, ao não especificar a resposta alternativa quanto a alguns dos pontos, nem quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou do meio de gravação que impunham decisão diferente sobre a matéria de facto que pretende ver impugnada, mormente a não provada.
C - No mais, o recurso deve ser julgado improcedente. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – sustenta-se a inadmissibilidade do recurso sobre parte da matéria de facto ( a não provada e o ponto provado P, por não serem indicados os concretos meios de prova que imponham decisão diferente) e a improcedência do recurso.
RESPOSTAS - inexistentes.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.
QUESTÕES A DECIDIR[1]: admissibilidade de junção de documento; rectificação da sentença; impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto; qualificação da relação jurídica entre autor e ré.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) QUESTÃO PRÉVIA- JUNÇÃO DE DOCUMENTOS:
A ré/recorrente, após apresentação das alegações e antes do início do prazo para elaboração de projecto de acórdão, veio juntar aos autos cópia de sentença da primeira instância, proc. 2075/21...., TJ ..., Juízo do Trabalho ... – J.... Refere que a mesma é bastante pertinente e útil para a boa decisão da causa, porquanto é ali autor um outro cogerente e as rés são as mesmas, sendo também a temática igual, a saber a discussão sobre a qualificação laboral da relação de gerente, tendo a acção sido julgada improcedente. Justifica a junção nesta fase porquanto o documento é objectivamente superveniente, já que a sentença transitou em julgado, quer após a audiência de julgamento, quer após a apresentação do recurso.
O autor/recorrido opõe-se à junção alegando, quer a sua extemporaneidade, quer a falta de verificação das condições excepcionais que permitem a sua admissão, quer a sua impertinência dado que a causa de pedir (factos) da outra acção é diferente da discutida nos autos.
Analisando:
Do ponto de vista substantivo diz-se “documento” qualquer objecto elaborado pelo homem destinado a reproduzir ou representar uma coisa ou facto- 362º, segunda parte, CC.
Do ponto de vista processual, a noção de “documento” associa-se ao conceito de prova (“Prova documental é a que resulta de documento...” - 362º, 1ª parte, CC. Refere-se ao objecto material que representa o facto a averiguar pelo juiz face ao thema probandum[2].
Os documentos enquanto meios de prova são apresentados em juízo para efeitos de instrução, destinando-se à prova dos factos alegados como fundamento da acção ou da defesa. Como tal devem ser apresentados em momento próprio, por regra serão juntos até o encerramento da discussão em 1ª instância a fim de permitir o contraditório e a sua análise pelo julgador. Sendo excepcional a sua apresentação posterior, reservada aos casos em que tal não tenha sido possível até aquele momento, ou cuja junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância – 410º, 423º, 425º, 651º, 1 CPC.
Contudo, existem documentos que se subsumem no referido conceito substantivo, mas não são meios de instrução ou de prova de factos. É o caso, por exemplo, dos pareceres de advogados, juristas e professores, os quais não são prova documental no sentido estrito do termo e, consequentemente, não estão sujeitos ao respectivo regime adjectivo, mormente quanto ao momento da sua apresentação.
Tais “documentos” não se destinam a demonstrar a verdade do facto alegado. Limitam-se a emitir um juízo ou interpretação sobre uma determinada questão, mormente jurídica, provinda de alguém que se supõe ter autoridade na matéria. É pressuposto contribuírem apenas para esclarecer.
Como se refere nos ac.s do STJ, www.dgsi.pt:
- de 23-05-1995 “A função dos pareceres serve apenas como uma contribuição para esclarecer, mas com nula força probatória”:
- de 11-10-2022 “Os pareceres jurídicos relevam ao nível do estudo e do enquadramento das questões de natureza jurídica suscitadas pelas partes, dando o seu contributo para o esclarecimento do julgador”
Também esta é a posição da RG, conforme ac. de 22-05-2017, onde consta “A razão de ser deste regime diverso reside no facto de os pareceres não serem meios de prova, embora também se destinem a esclarecer o espírito de quem julga.”
Podendo, por isso, os pareceres de jurisconsultos ser juntos até ao início do prazo para elaboração de projecto de acórdão.
A ressalva deste regime está expressamente declarada na lei quando se refere, quanto à instância de recurso: “As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao inicio do prazo para a elaboração do projeto de acórdão – 651º, 2 CPC (com norma equiparada quanto à 1ª instância no art. 426º, CPC). O limite visa permitir a sua ponderação pelo relator e, subsequentemente, pelos adjuntos.
Não se vendo razão para ser diferente no caso de sentenças ou acórdãos, sendo a jurisprudência, em paridade com a doutrina, fonte mediata de direito.
Assim se defende no ac. do STJ de 3-05-2001:
“ III - "Parecer" é a expressão de uma posição sobre uma questão teórica, jurídica ou não, sobre a qual o tribunal há-de pronunciar-se. IV - Deve admitir-se a junção de um "Parecer" ainda que não esteja assinado, bem como uma decisão judicial proferida noutro processo, se expressarem uma posição (como se refere em III ) que possa contribuir para a opinião que os julgadores possam formar no estudo a que irão proceder.”
Note-se que a própria recorrente não alega que a junção da sentença se destina a provar factos e/ou a instruir a causa, invocando apenas a sua pertinência para os autos, o que aponta para a junção de “uma opinião jurídica”.
Assim sendo, admite-se a junção da sentença da primeira instância, apenas enquanto “opinião jurídica” cuja relevância dependerá da semelhança com o caso (leia-se identidade de factos provados/causa concreta de pedir) e da pertinência da fundamentação.
B) RECTIFICAÇÃO DA SENTENÇA
Como resulta do presente relatório, para o qual se remete, o autor pediu a rectificação da sentença ao abrigo do disposto no art. 614º, CPC, invocando a existência de lapso manifesto no ponto c), ii Do dispositivo, ao declarar-se a ilicitude do despedimento e condenar-se a ré a pagar-lhe as retribuições devidas até à data de trânsito em julgado da sentença proferida a fls. 73 e seguintes, à razão de 773,48€, quando se deveria referir a data de trânsito em julgado da decisão final que declara a ilicitude do despedimento.
O pedido de rectificação foi indeferidopelo tribunal a quo e, nas contra-alegações, o autor renova a questão.
Pese embora, por aplicação analógica do regime das nulidades da sentença, o despacho de indeferimento, em si, não seja recorrível, a Relação no recurso entretanto interposto da sentença não deixa de ter o poder de interpretar a respectiva matéria - 617º, 1, 6, CPC e José Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 2, Almedina, 4ª ed., pág. 732.
No caso concreto estamos, efectivamente, perante um erro material ou inexatidão devido a lapso manifesto. Trata-se de um erro de escrita, um dissenso, uma “distracção”, uma falta de atenção, revelada no contexto da peça escrita, hipótese prevista no art. 614º, 1, CPC. Só assim se pode considerar, porquanto na sentença ora recorrida declara-se a ilicitude do despedimento e condena-se a ré nas chamadas retribuições intercalares estabelecendo como limite o transito em julgado da sentença de fls 73. Acontece que, como é reconhecido no contexto/relatório da sentença recorrida, a decisão de fls 73, que é o despacho saneador/sentença proferido em 12-12-2020, foi alvo de recurso e o TRG anulou-a, bem como o restante processado dele dependente, por acórdão de 16-12-2021, determinando a continuação dos autos, com julgamento para se apurar da qualificação da relação laboral e da inerente (i)licitude da cessação do contrato de trabalho. Pelo que tal decisão para a qual a sentença ora recorrida remete nunca transitou em julgado, em boa verdade não existe, por ter sido “destruída” (revogada), sendo substituída pela sentença de que nos ocupamos.
Note-se, ainda, que a “segunda sentença” proferida em 19-11-2021 (os autos prosseguiram dado o efeito meramente devolutivo do recurso anterior), além de ser parcialmente atingida pela revogação determinada pela Relação (restante processado dependente da decisão anulada) apenas tinha por objecto a fixação do valor das retribuições para atribuição de indemnização ou retribuições intercalares em caso de ser confirmada a sentença que declarou a ilicitude do despedimento, o que, como referimos, não veio a acontecer. Somente, com a presente sentença ora alvo de recurso se declara a ilicitude do despedimento.
Pelo que coerentemente no ponto c), ii) passará a constar:
“ii) as retribuições devidas entre 03/05/2020 (30 dias antes da propositura da presente ação) e a data de trânsito em julgado da decisão final que declara a ilicitude do despedimento, à razão de 773,48€ (setecentos e quarenta e três e quarenta e oito cêntimos) mensais; a data de trânsito em julgado.
Consequentemente, o ponto C do dispositivo precisa também de ser ajustado, eliminando a parte final: c) Declara-se a ilicitude do despedimento do Autor, levado a cabo pela Ré, pelo que, em consequência, deverá a aqui Ré P..., Lda.” liquidar ao Autor AA, conforme já decidido por sentença já transitada nos autos:” - a parte a negrito será eliminada. C) FACTOS
FACTOS PROVADOS:
A) A ré é uma sociedade comercial por quotas que tem como escopo lucrativo o exercício da indústria e comércio de pão e seus afins;
B) A administração da sociedade é constituída por dois membros efetivos (gerência plural) e dois substitutos, escolhidos em Assembleia Geral de entre os sócios ou pessoas estranhas à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena;
C) Sendo que o mandato da gerência é fixado pelo período de dois anos, podendo renovar-se sucessivamente;
D) Por deliberação aprovada em Assembleia Geral de 29/05/2004, a ré nomeou o aqui Autor para o cargo de gerente efetivo (documento junto a fls. 39v. e 40);
E) Por deliberação aprovada em Assembleia Geral de 11/01/2020, a ré nomeou para o cargo de gerentes efetivos BB e DD (documento junto a fls. 10 v. e ss.);
F) A partir de 11/01/2020, a ré não permitiu que o autor continuasse a exercer as funções de gerente;
G) Por carta enviada pela ré e recebida pelo Autor, datada de 07/05/2020, a ré remeteu ao autor o documento junto a fls. 13, assinado e carimbado pela gerência, datado de 17 de abril de 2020 e intitulado “certificado de trabalho”, com o seguinte teor:
“A empresa P..., Lda., contribuinte n.º ..., com sede no Lugar ..., na cidade ..., pela presente declara, nos termos e para os efeitos previstos no número 1 ao artigo 341º do Código do Trabalho (Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro), que o trabalhador AA, foi funcionário desta empresa entre 18/06/2004 a 11/01/2020, data esta em que o contrato de trabalho cessou mediante iniciativa do empregador.
Desempenhou na empresa, durante esse período, a seguinte função: - 18/06/2004 a 11/01/2020 – Gerente;”
H) O aqui A. iniciou funções em 29/05/2004, data em que foi nomeado gerente efectivo da Ré, em substituição do gerente renunciante EE – cfr. doc. ... junto com a contestação, constante a fls. 39v. e 40, que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
I) À data do despedimento, o Autor auferia mensalmente a quantia de € 773,48 (setecentos e setenta e três euros e quarenta e oito cêntimos) - Cfr. doc. ... junto com a p. i., constante a fls. 13v., que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
J) A Ré pagou ao Autor à data da cessação do contrato o montante de € 2.800,75, correspondendo ao montante liquido de €1.791,56, sendo €773,48 de vencimento base, €1.160,22, de férias não gozadas, €773,48, de subsidio de férias, €35,16 de proporcionais do subsidio de férias, €23,25 de subsidio de Natal e €35,16 dos proporcionais de férias do ano seguinte. - Cfr. Doc. .... junto com a p. i., constante a fls. 14, que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
K) O Autor confessa que tem uma dívida à Ré no valor de €438,94 decorrente da aquisição de produtos alimentares.
Factos provados, com interesse para a decisão da causa, são os seguintes:
(Da petição inicial)
L) Em 29/05/2004, o Autor foi contratado pela Ré, tendo nessa mesma data sido nomeado gerente.
M) Funções de gerente que exerceu ininterruptamente, por mandatos sucessivos até ao dia 11/01/2020.
N) O Autor sempre prestou o seu trabalho no local definido pela Ré/empregadora, mais concretamente na sua sede, sita no Lugar ..., E....
O) O Autor procedia ao exercício de tarefas não tipicamente de gerência, exercendo igualmente funções idênticas aos restantes trabalhadores da Ré contratados com a categoria profissional de padeiros e distribuidores, forneiros.
P) Designadamente, colaborava com uma frequência não concretamente apurada, conjuntamente com os demais trabalhadores da Ré, no fabrico do pão, bolos e produtos similares, bem como na distribuição dos produtos alimentares pelas residências e estabelecimentos comerciais.
Q) O Autor estava sujeito ao mesmo modo de retribuição, ao regime fiscal e o regime de segurança social dos outros trabalhadores da empresa, recebendo vencimento, férias, subsídio de férias e subsídio de Natal.
R) Ao longo de todo o tempo de execução do contrato, a Ré fez descontos para a Segurança Social e procedeu, mensalmente, à retenção na fonte do valor referente ao IRS.
S) Para além disso, os seus actos de gerência estavam limitados, na medida em que tinha que obedecer directamente às ordens e aos planos comerciais e financeiros fixados pelos sócios da Ré.
T) Não obstante pertencer à gerência a representação e administração da sociedade, alguns trabalhadores eram contratados por imposição dos sócios, independentemente da vontade dos gerentes, como também eram os sócios da Ré que por vezes decidiam, contra a vontade e orientações da gerência, onde seriam aplicados os valores existentes em conta corrente.
U) A Ré não instaurou ao Autor qualquer processo disciplinar com vista ao seu despedimento.
(Da contestação)
V) o A. exercia as suas funções de gerente, quer na sede da R., quer nas suas lojas de venda ao público.
- Por confissão do Autor:
W) Competia ao A. juntamente com o outro gerente, não sócio, BB, ou, na impossibilidade de qualquer um destes dois, aos dois gerentes suplentes que eram sócios, o poder de administração e representação da R., detendo assim poder de autoridade, direcção, fiscalização e de disciplina sobre os trabalhadores desta.
H) Era o A. e os aludidos gerentes, que exprimiam as ordens, instruções, fiscalização e disciplina aos trabalhadores da Ré.
I) O A. contratava e despedia os trabalhadores da ré, mas fazia-o apenas, depois de ouvir os sócios FF ou Dr. GG, tendo sucedido designadamente com a contratação da funcionária HH, que foi contratada por indicação da sócia FF, quando o aqui Autor há época não concordava com essa contratação.
J) O Autor advertia os funcionários no caso de os mesmos infringirem as normas laborais.
K) Competia ao A. juntamente com o outro gerente, não sócio, BB, ou na impossibilidade de qualquer um destes dois, dos dois gerentes suplentes que eram sócios, levantar, depositar, transferir e movimentar contas bancárias da R., ou seja: a gestão de conta bancária.
L) Competia ao A. ainda:
- seleccionar os fornecedores para a aquisição de bens e serviços;
- negociar com fornecedores e clientes, preços para a aquisição de bens;
- convocar os sócios para as Assembleias Gerais e Extraordinárias, e outras;
- fixar os preços a comercializar para revenda e venda ao público dos bens alimentares;
- promover o pagamentos de todas das despesas da R.;
- o poder de representação em juízo da R.;
- outorgar contratos de trabalho, empreitada, leasing, compra e venda, prestação de serviços, ajustes directos, etc.;
- outorgar contratos públicos, designadamente com Escolas Públicas – cfr.
documento nº ..., que se junta e se dá por integralmente reproduzido;
- a emissão de cheques a favor de terceiros;
- elaborar e efectuar os horários de trabalho dos funcionários da R.
- efectuar encomendas;
- elaborar o mapa de fabrico diário para a semana;
- ordenar a reparação e manutenção dos veículos automóveis, propriedade da
R.; e,
- ordenar a reparação e manutenção da maquinaria da R..
M) Com exceção dos últimos dois anos, quando a FF e o Dr. GG, passaram a frequentar mais vezes a empresa e a fiscalizar a sua atuação, os sócios da R. não fiscalizavam o A., permitindo que o gerente executasse as suas funções do modo que entendesse, conferindo-lhe toda e qualquer autonomia na sua gestão e administração.
N) Nunca o A. se encontrou vinculado a um horário de trabalho pré-estabelecido, sendo que o mesmo se deslocava às instalações da R. quando entendesse.
O) O A. tinha total liberdade de entrar e sair nas instalações da R. para exercer as suas funções, sempre que quisesse e entendesse.
P) O A. tinha total liberdade para gerir as suas funções no horário que entendesse, podendo mesmo “tirar” uma ou várias tardes da semana, para resolver assuntos do seu interesse.
Q) O aqui Autor frequentava as piscinas municipais à sexta a tarde, quinzenalmente, iniciando-se assim o fim de semana da sua folga, que alternava com o outro gerente.
R) Era o A. quem: pagava as despesas da R., exigia os créditos da R., fixava os valores dos produtos alimentares, comercializados pela R., solucionava todos os problemas, relacionados com as actividades exercidas pela R., tinha o poder pleno de direcção sobre os funcionários da R., se dirigia aos bancos, repartições de finanças, segurança social.
S) O Autor contraiu um Aluguer de Longa Duração para a Ré mas com autorização dos sócios presentes em assembleia geral, tendo esse assunto sido levada à assembleia de sócios da aqui Ré.
T) Quando o Autor foi trabalhar para a ré por acordo com os seus sócios, ficou determinado que tiraria apenas 08 dias de férias, em agosto, que não tiraria férias na época do Natal ou Páscoa e, que tinha a liberdade de gozar os restantes dias de férias, 14 dias de férias a que tinha direito, em dias que entendesse ao longo do ano.
U) O Autor apenas emitia facturas e recibos em nome da R. na ausência da funcionária do escritório, DD.
V) O Autor prestava contas aos sócios da R..
W) O Autor celebrou um contrato de empreitada, para realização de obras na sede, mas quem decidiu qual o orçamento, o empreiteiro e a entrega da obra foram os sócios, numa assembleia convocada na ocasião.
X) O Autor fiscalizava toda a máquina estrutural e económica da R..
FACTOS NÃO PROVADOS
- Que o A. só desempenhou a sua função de gerente a partir de 16/06/2004;
- Que o Autor nunca recebeu quaisquer ordens e instruções dos sócios que representa a Ré;
- Que as funções do A., enquanto gerente da R., passavam por: promover a nível salarial os trabalhadores da Ré; nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados actos ou categorias de actos; elaborar o plano / mapa de férias dos funcionários;
- Que fosse o aqui Autor quem determinava os seus dias de gozo de férias e quem determinava os dias de férias dos trabalhadores da R.;
- Que a R. teve conhecimento que o A. frequentava as piscinas municipais da parte da tarde do dia;
- Que era o A. quem contratava e despedia os trabalhadores da R., de sua livre vontade, sem qualquer ingerência por parte dos sócios da R.;
- Que nunca o A. foi sujeito a ordens directas ou simples instruções genéricas e o controlo da sua prestação por parte dos sócios da R.;
- Que o A. nunca exerceu qualquer actividade idêntica aos restantes trabalhadores com a categoria profissional de padeiros, distribuidores e forneiros;
- Que o A. nunca desempenhava as funções de padeiro (em virtude de o mesmo não saber fabricar pão, nem bolos), distribuidor ou forneiro, nem distribuía os produtos alimentares pelas residências.
D) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO:
O tribunal superior deve alterar a materialidade que sustenta o Direito caso os factos considerados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente imponham decisão diferente – art. 662º do CPC. O verbo “impor” distingue-se do verbo “admitir ou “possibilitar”. A utilização de tal vocábulo confere um especial grau de exigência imposto à segunda instância, a qual deve apenas modificar a matéria fáctica caso se evidencie, inequivocamente, uma errada valoração. É, assim, preciso que na segunda instância se detecte um inquestionável mal julgado. E que não haja qualquer dúvida que a resposta deveria ser indubitavelmente diferente.
Ademais, para que o tribunal da Relação se ocupe do recurso sobre a matéria de facto exige-se também, sob pena da sua rejeição, que o recorrente cumpra o ónus de impugnação especificada, o qual, cingindo-nos aos aspectos essenciais, requer que a parte indique os pontos de facto concretos que contesta, qual a resposta alternativa que propõe que seja dada e qual o meio de prova concreto que impõe essa alteração da resposta à matéria de facto - 640º, 1, CPC.
Repare-se que o nosso sistema de recurso sobre a matéria de facto está construído de forma exigente, delimitando rigorosamente em que termos se permite o recurso, o qual não se destina, como muitas vezes as partes pretendem, a uma reapreciação global da prova, mas sim a uma fiscalização da decisão recorrida nos pontos alegadamente mal julgados e desde que os concretos e indicados meios probatórios ditem decisão diferente. Repise-se que uma simples dúvida não impõe decisão diferente. Nesta fase é o recorrente que tem o ónus de, com a prova que indica, comprovar o erro, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal.
Em especial no que respeita à obrigação de o recorrente especificar, pelo menos na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, está em causa a chamada resposta alternativa, ou seja, o recorrente deve propor a resposta a dar a um ponto específico da matéria de facto, fazendo uma análise crítica da prova – 640º, 1, al. c), CPC. Este requisito insere-se no ónus de alegação e tem em vista evitar recursos genéricos e inconsequentes[3].
Já a terceira regra refere-se à necessidade de especificação, pelo menos na motivação, dos concretos meios de prova (documental, testemunhal…) constantes do processo ou da gravação nele realizada que imponham decisão diferente econcretizados quanto a cada um dos factos impugnados – art. 640º, 1, b), CPC.
Havendo jurisprudência a defender que não é permitida uma indicação genérica e em bloco para um conjunto de factos[4]. No que concordamos, desde que tal técnica não permita, por via de um exercício normal e razoável, determinar qual a prova concreta que impõe/justifica decisão diversa quanto a um facto concreto.
Finalmente, subsiste ainda um dever que a jurisprudência do STJ tem apelidado de mais acessório, referente à impugnação da matéria fáctica que se funde em prova gravada. Neste caso acresce a necessidade de, na motivação, se indicar com exactidão as passagens ou transcrição dos segmentos considerados relevantes e em que se funda o recurso – 640, 2, al. a), CPC.
Por último, importa recordar que não há despacho de aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto[5], levando o incumprimento deste ónus à rejeição do recurso, ao contrário do que sucede em matéria de direito onde subsiste uma “solução paliativa” relativamente a certa deficiências do ónus de alegar e apresentar conclusões– art.s 640º, 1, 639, 3 a contrario relacionado com o art. 652º, 1, al. a), b, CPC.
Em síntese, vigora um apertado e exigente ónus de alegação por parte de quem recorre.
Pelo que, sendo a forma um meio para tornar o uso do recurso objectivo, racional e justificado, o seu escrutínio deve sujeitar-se a critérios de proporcionalidade e razoabilidade. Que passa pela verificação do cumprimento destas três etapas essenciais que são a indicação precisa do segmento factual impugnado, do enunciado da decisão alternativa proposta e da sua sustentação crítica em meios de prova devidamente identificados e localizados de molde a demonstrar que a prova foi mal avaliada.
Estes serão os três deveres essenciais que integram um ónus primário de especificação que, quando incumpridos, levam à rejeição imediata do recurso, sem possibilidade de convite de aperfeiçoamento. Por integrarem o núcleo duro do ónus de delimitação e de fundamentação do objecto e por se considerar a possibilidade de aperfeiçoamento geradora de atrasos processuais e de potenciais abusos[6].
Já o dever de indicar as passagens será um dever secundário que só será imprescindível se dificultar em muito o contraditório e tornar o exame no tribunal ad quem muito difícil, mormente quanto à sua localização/perceção.
Dito isto, analisando a impugnação da matéria de facto:
A recorrente impugna os factos dados como provados L), I), O), P), Q), e T) e impugna todos os factos dados como não provados.
Quanto aos factos não provados, a recorrente limita-se a dizer que “impugna todos os factos dados como não provados (que não se encontram numerados) mencionados na fundamentação de factos”. Depois nada mais refere. Nem alude à resposta alternativa proposta, nem indica qualquer meio de prova que imponha decisão diferente. Nos termos acima explanados, é de rejeitar esta parte do recurso.
O mesmo acontece quanto ao ponto provado P, sobre o qual a recorrente não indica qualquer meio de prova, pelo que se rejeita também, nesta parte, o recurso.
Analisando os demais factos provados que o recorrente pretende não provados: Ponto L) com a seguinte redacção:
“L) Em 29/05/2004, o Autor foi contratado pela Ré, tendo nessa mesma data sido nomeado gerente. “
Invoca o doc. nº ..., junto com a Contestação, que é a acta de nomeação do autor como gerente.
O documento em causa não impõe decisão diferente. O facto de o autor ter sido nomeado gerente não contende, no plano dos factos, com a possibilidade de ter sido contratado para desempenhar outras funções.
Resulta, aliás, da prova testemunhal que o autor desempenhava outras funções não associadas à gerência. Veja-se, por exemplo, o depoimento de II, que trabalhou para a ré durante 6 anos, que infra melhor analisaremos, bem como de DD, empregada de escritório na ré, a quem, aliás, o autor substituiu durante meses aquando da licença de maternidade, tal como esta confirmou, além de referir também outras funções desempenhadas pelo autor, como fazer e entregar pão em fins-de semana alternados.
Pontos I e T com a seguinte redacção: I) O A. contratava e despedia os trabalhadores da ré, mas fazia-o apenas, depois de ouvir os sócios FF ou Dr. GG, tendo sucedido designadamente com a contratação da funcionária HH, que foi contratada por indicação da sócia FF, quando o aqui Autor há época não concordava com essa contratação. T) Não obstante pertencer à gerência a representação e administração da sociedade, alguns trabalhadores eram contratados por imposição dos sócios, independentemente da vontade dos gerentes, como também eram os sócios da Ré que por vezes decidiam, contra a vontade e orientações da gerência, onde seriam aplicados os valores existentes em conta corrente.
Invoca os depoimentos de EE e FF dizendo que os sócios não se envolvem na contratação/despedimento de funcionários.
Mas, das declarações de parte de FF, sócia, resulta até o contrário. Além de acabar a reconhecer que falou com o autor para admitirem “a HH”, referiu que frequentava assiduamente um dos estabelecimentos da ré (depósito) onde ia comprar pão e chegou a questionar o autor porque “não estava disponível para atender uma cliente”, admitiu que as “obras caras eram decididas pelos sócios” e que se fosse preciso comprar outras “coisas como um forno” eram ouvidos os sócios e que os “gerentes aos fins-de-semana se revezavam e levavam pão aos restaurantes”, etc...
EE no que respeita a questões de pessoal foi evasivo e referiu “são bastidores da ré que eu não acompanho”, prestando declarações pouco concretas.
As declarações do autor vão no sentido referido na sentença. Pese embora fossem os gerentes a fazerem as entrevistas de contratação, eram sempre ouvidos os sócios, competindo a estes a decisão, o que também acontecia em caso de dispensa de trabalhadores (demissão), bem como em questões da aplicação dos valores em conta corrente. Deu como exemplo o “caso da HH, ele não queria e os sócios é que decidiram, a sócia é que quis”, referindo-se à sócia FF.
Ademais, II, que trabalhou para a ré durante 6 anos, referiu que, aquando da admissão, foi entrevistada pelo autor e pela D. DD, mas depois teve de aguardar pela resposta, tendo o autor na altura mencionado “que tinha de falar com os sócios para autorizarem” e que “só passado alguns dias o autor ligou”, prestando ainda vasta confirmação sobre as múltiplas tarefas desempenhadas pelo autor (cozia pão muitas vezes no turno da manhã, distribuía e trazia mercadoria da fábrica, etc...)
Também GG, sócio da ré, confirmou que nos últimos anos de gerência da ré “verificava o regular funcionamento da empresa...pressionámos um bocadinho…chamou a atenção da gerência...havia um certo relaxamento por parte da gerência...”. Após insistência, também reconheceu que a sociedade decidia como seriam distribuídos os lucros (aplicados os valores existentes em conta corrente).
Ponto O com a seguinte redacção: O) O Autor procedia ao exercício de tarefas não tipicamente de gerência, exercendo igualmente funções idênticas aos restantes trabalhadores da Ré contratados com a categoria profissional de padeiros e distribuidores, forneiros.
Invoca como meio de prova: doc. nº ... junto com a PI donde consta que o Autor apenas desempenhou na empresa, durante esse período (18/06/2004 a 11/01/2020) a função de Gerente, doc. ... da PI/pacto social, doc. ... junto com a pi. e recibo de vencimento onde consta o cargo de gerente “Categoria/Profissão: “Residual(inclui ignorado)/Gerente”, depoimentos do Autor CC, depoimento do representante legal da R. EE, testemunhas GG, JJ e KK.
Os documentos em causa não infirmam a matéria provada, mormente os recibos onde consta a categoria, mas também o pagamento ao autor de férias, subsidio de férias e de natal. Aliás, no artigo 14, 3, do pacto social, doc. ... da PI, consta que “A gerência será remunerada nos termos a deliberar em assembleia geral e os gerentes, além do ordenado de gerência receberão o salário correspondente à sua actividade profissional na sociedade, durante o período em que a exercerem”, o que aponta para a possibilidade de cumulação de funções.
No que se refere a outras funções desempenhadas (cozer pão, transportar pão/mercadorias/tabuleiros, substituir funcionários incluindo por largos períodos), o autor prestou declarações que se afiguraram credíveis face ao modo sereno como depôs e que foram confirmadas pelas referidas testemunhas II, LL que inclusive referiu que o autor a substituiu em funções aquando da licença de maternidade. Mais mencionou que ela própria foi nomeada gerente quando o autor saiu da empresa e que cumulou funções de gerência e trabalhadora ganhando mais cerca de 120/130€, indiciando-se assim uma prática que não seria estranha na empresa.
EE, sócio pouco presente na empresa, prestou depoimento muito genérico e aparentemente com pouco conhecimento de causa.
O depoimento de JJ, padeiro, trabalhador da ré, não é de molde a infirmar o referido na matéria provada. Dentro do “pouco à vontade” que demonstrou, apesar de tudo, referiu que o autor como “gerente estava lá mais tempo...estava lá mais tempo que outros gerentes...levava pão às padarias, por vezes, levava tabuleiros...” etc...
O depoimento de GG, sócio da ré, também não infirma o referido na matéria provada, pois não nega que o autor desempenhasse outras tarefas, o seu discurso limitou-se ao “nunca viu” seguido de reservas quanto à frequência com ele próprio vai ao “depósito” (estabelecimento da ré) tomar o pequeno almoço e em período não coincidente com o horário praticado pelo autor.
Cite-se ainda o depoimento de MM, que foi sócio e gerente da ré. Referiu que além de gerente desempenhava na altura outras funções, acumulando com o escritório, tendo recebido quando saiu uma indemnização de um vencimento por cada ano, fazendo um acordo com a ré. Mais referiu que os gerentes tinham de dar conhecimento aos sócios de “determinadas questões”. Testemunhou que vive perto de um dos estabelecimentos da ré (depósito) e via o autor a distribuir pão cru, até aos sábados e NN.
Não há assim motivo para alterar a matéria.
Pontos Q com a seguinte redacção: Q) O Autor estava sujeito ao mesmo modo de retribuição, ao regime fiscal e o regime de segurança social dos outros trabalhadores da empresa, recebendo vencimento, férias, subsídio de férias e subsídio de Natal.
Refere-se que o autor não se encontrava sujeito ao mesmo modo de retribuição, ao regime fiscal e ao regime de segurança social de outros trabalhadores da empresa. Pagava aos gerentes subsídio de férias e de natal, e proporcionava férias, conforme recibo id. sob o doc. nº ... junto com a PI, porém, tal não significa que o Autor fosse considerado trabalhador da Ré, sendo tais pagamentos a título de PRÉMIO/BÓNUS.
Invoca como meios de prova: doc. ... (pacto social da ré), 4 (recibo de vencimento) da p.i.
Os documentos não infirmam a matéria provada, aliás comprovam o pagamento de subsídio de férias e de natal e a sujeição a descontos para efeitos fiscais e de SS em taxação equivalente a qualquer trabalhador (ex. doc. ... da p.i), em lado algum constando o alegado prémio.
É de manter a matéria de facto.
E ) DIREITO
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente e julgada improcedente a impugnação da matéria de facto, a questão de direito que remanesce é a qualificação da relação contratual entre autor e ré, mormente saber se esta é de cariz laboral.
Grande parte da argumentação de direito da recorrente perdeu autoridade, na medida em que se alicerçava na modificação da matéria de facto, que não procedeu. Ainda assim, insiste a recorrente em que, por princípio, o autor, enquanto gerente de uma sociedade comercial por quotas, não poderia ser simultaneamente seu trabalhador e, ademais, sustenta que este não comprovou indícios suficientes de subordinação jurídica.
Analisando:
Desde logo, refira-se que, ao contrário do previsto no artigo 398º, 1 para os administradores das sociedades anónimas, o Código das Sociedades Comerciais não contém qualquer norma que proíba os gerentes das sociedades por quotas de estarem vinculados à sociedade por um contrato de trabalho.
A eventual incompatibilidade respeita a outra ordem de ideias. Digamos que a “incompatibilidade genética” entre a posição de “trabalhador subordinado” própria do contrato de trabalho e o exercício simultâneo da gerência com os inerentes poderes de representação e direcção da empresa tem sido assinalada pela jurisprudência e doutrina a propósito da estranheza causada pela aparente fusão entre a veste de empregador e de trabalhador.
No que se refere à “função principal” de gerência, refere-se artigo 252º do CSC:(Composição da gerência) 1 - A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena. 2 - Os gerentes são designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios, se não estiver prevista no contrato outra forma de designação.”- negrito nosso.
Refere-se, ainda, no artigo 261º quanto ao funcionamento da gerência plural: 1 - Quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respetivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados.” - negrito nosso.
Tem vindo a admitir-se e/ou a afastar-se a possibilidade de o gerente estar vinculado à sociedade por contrato de trabalho consoante as circunstâncias do caso, mormente quando estas revelem que existem sócios com peso e capacidade de influenciar a formação da vontade da sociedade e/ou gerentes plurais com poderes de interferir na vida da sociedade e de condicionar a actuação do outro gerente. Ou seja, quando se comprove que parte relevante da actividade desempenhada pelo gerente é determinada por outrem, ou, diremos, face ao esbatimento do conceito clássico de “controlar/ordenar”, é exteriormente condicionada pelo modo como a sociedade está organizada, interferindo ou podendo potencialmente interferir nessa organização de meios outras pessoas distintas do gerente.
Dificilmente se podem equacionar situações de dependência jurídica e económica nos casos, por exemplo, de gerência única exercida por sócio maioritário. Neste caso, este será o único a integrar o órgão diretivo e representativo da sociedade, a ter poderes efectivos para a administrar, dirigir e, simultaneamente, pelo voto maioritário de que dispõe, apto a tomar decisões sobre a sociedade, teoricamente poucas dúvidas se colocando de que agirá no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado.
Na jurisprudência e doutrina descortinam-se duas previsões em que se admite que o gerente possa estar ligado à sociedade mediante contrato de trabalho:
( i ) Emcumulação de funções de gerência de sociedade e de trabalhador, caso em que não é a própria gerência que é exercida abrigo de contrato de trabalho, tese esta aparentemente maioritária.
Tem-se admitido esta possibilidade de acumulação quando se verifique que: há exercício de outras tarefas que não de gerência; quando anteriormente o gerente detinha um contrato de trabalho; quando não se trate de gerente único; quando se diferenciem as funções de gerência das funções desempenhadas como trabalhador; quando existem sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes; quando o gerente, também sócio da empresa, demonstre indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo;
Neste sentido vão alguns acórdãos do STJ, dos quais destacamos os seguintes e respectivos sumários: De 29/09/1999, processo nº 98S364:
“ I- Os sócios gerentes, constituindo os órgãos directivos e representativos da sociedade, participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado. II- Nas sociedades por quotas - ao invés do que sucede nas sociedades anónimas face ao artigo 398 do CSC - as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de sócio-gerente e de trabalhador subordinado. III- No confronto da situação "sócio-gerente/trabalhador" (pelo menos nos casos de sociedades por quotas) são particularmente relevantes os aspectos respeitantes: 1. à anterioridade ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio gerente; 2. à retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições; 3. à natureza das funções concretamente exercidas, antes e depois da ascensão à gerência, designadamente em vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de actividade; 4. à composição da gerência, designadamente ao número de sócios gerente e às respectivas quotas; 5. à existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes; 6. à dependência, hierárquica e funcional, dos sócios-gerentes que desempenhem tarefas não tipicamente de gerência, relativamente a outras actividade.
De 22-04-2010, processo nº 506.06.8TTGRD.C1S1: “IV - As particularidades que se podem verificar no âmbito das sociedades por quotas onde realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação de funções de sócio gerente e de trabalhador, afastam a aplicação do disposto no art. 398.º do Código Comercial que, reportado às sociedades anónimas, proíbe a cumulação de funções de administrador e de trabalhador subordinado, admitindo-se, assim, a possibilidade de um sócio gerente de uma sociedade por quotas ser simultaneamente seu trabalhador, desde que, no caso concreto, se verifique a existência de subordinação jurídica.[7]
Na doutrina:
Pedro Romano Martinez[8] admite que, diferentemente dos administradores da sociedades anónimas, os gerentes societários podem cumular as funções para que formam designados com as de trabalhador subordinado, mas afasta a possibilidade de se estabelecer um contrato de trabalho com aqueles que exerçam apenas a gerência, ainda que se tratem de pessoas estranhas à sociedade (não sócios), realidades que corresponderão antes a um mandato ou prestação de serviço.
Também Maria do Rosário Palma Ramalho[9] propende a que os gerentes não sócios das sociedades por quotas (252º CSC) se reconduzem à qualidade de mandatários, pese embora refira jurisprudência que admite a qualificação do vínculo como laboral caso exista subordinação jurídica, o que lhe parece difícil de configurar.
José Andrade Mesquita[10] refere que nas sociedades por quotas, ao contrário do que acontece nas sociedades anónimas (398º CSC), é legalmente possível a acumulação de funções de gerência com outro tipo de funções, admitindo, nesse caso, a possibilidade de existência de contrato de trabalho.
( ii) Outro entendimento é o da própria gerência ser exercida mediante contrato de trabalho, dependendo do caso concreto, sendo comummente citadas como circunstâncias a atender: o facto de o gerente não ser sócio; a existência de gerência plural ou mesmo de facto em que outro gerente tem poderes efectivos sobre os demais, organizando e determinando o trabalho; a prova do exercício de gerência com subordinação jurídica com demonstração do respectivo circunstancialismo, tal como os efetivos poderes sobre tal gerente por parte dos sócios ou de outro gerente.
Neste sentido vão alguns acórdãos do STJ, dos quais destacamos os seguintes e respectivos sumários:
De 19-03-1992, processo nº 003291: “I - A qualidade de gerente de sociedade por quotas e compatível com a de trabalhador, desde que exista uma situação de subordinação jurídica. II - A existência de remuneração não releva, pois o gerente tem direito a remuneração, a fixar pelos sócios, salvo disposição do pacto social em contrario. III - A qualidade de gerente não sócio pode decorrer de prévio contrato de trabalho, mas não é esclarecedora por si.” De 14/2/1995, processo nº 086242: “III - A qualidade de gerente advém dum contrato celebrado entre a sociedade e o gerente - o contrato de administração, funcionando contra ele a presunção de culpa em face da violação grave dos deveres contratuais. I
V - Este contrato constituirá um contrato de trabalho ou de prestação de serviço, conforme, concretamente, revista as características próprias de um ou de outro”.
De 30/9/2004, processo nº 03S2053:
“I - É admissível que um sócio gerente de uma sociedade por quotas seja também, seu empregado de escritório. II - Incumbe ao Autor o ónus da prova do contrato de trabalho, como empregado de escritório, por si invocado como causa de pedir.”
Desta RG, o já referido ac. 16-12-2021, em cujo sumário consta: - Ainda que se admita a possibilidade de exercício de gerência de sociedade mediante contrato de trabalho, tal sempre dependeria da prova da subordinação jurídica, com demonstração do circunstancialismo demonstrativo de tal subordinação, como os efetivos poderes sobre tal gerente, por parte da sociedade ou de outro gerente.
Na doutrina, no sentido de a própria gerência pode ser exercida mediante contrato de trabalho, tudo dependendo das circunstâncias, Júlio Gomes, Direito do trabalho, vol. I, Relações individuais de trabalho, pág. 16.
No caso dos autos:
O autor configurou a acção, quer na linha do entendimento maioritário, quer minoritário. Sustentou que cumulou as duas funções de gerente e de trabalhador (artigos 5, 9, 20 a 25 da petição inicial) referindo quais as atividades que exercia enquanto trabalhador. Também sustentou que a sua ligação à ré deve qualificar-se como contrato de trabalho e não como mandato ou de administração, aludindo à tese minoritária (artigos 19º e 28 a 31 , 33 da petição inicial).
O autor iniciou a relação contratual com a ré em 2004.
Estava então em vigor a redacção inicial do Código do Trabalho de 2003[11] que definia o contrato de trabalho como “... aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas”- 10º.
A actual redacção do CT, embora formalmente diferente[12], em substância não trás diferença, mantendo a matriz na subordinação jurídica. Limitando-se apenas a evidenciar o elemento organizatório, actualizando a lei à vida, por ser menos evidente no mundo laboral em que hoje nos movemos a prolação de “ordens”. O contexto actual reclama que se atenda à inserção do trabalhador em organização alheia e a ela submetido.
À data do início da relação contratual havia sido introduzida e estava também em vigor uma diferente redacção de presunção de laboralidade (12º[13] CT/03) muito criticada, de tão exigente que era, ao fazer coincidir a presunção com os elementos essenciais da definição do contrato de trabalho, acabando por se exigir a prova de todos os cinco indícios, o que se confundia com a prova do vínculo típico de trabalho. Pelo que a mesma era inútil ou inoperante, ao invés de facilitar a tarefa de subsunção dos índices no conceito. Actualmente vigora uma presunção de contrato de trabalho no sentido próprio do termo, que facilita a tarefa ao bastar-se com a verificação de algumas das cinco características elencadas na lei(CT/09)[14].
Sublinha-se, contudo, que o uso da presunção só é necessária caso falhe a prova directa dos elementos fácticos caracterizadores do contrato de trabalho.
Para tanto, ou seja, para caracterizar como laboral a relação contratual, a jurisprudência há muito que se serve do chamado método indiciário, prática anterior ao inicio da relação havida entre autor e ré.
Donde, no caso, com reporte ao início da relação, haverá que recorrer aos indícios de laboralidade relacionados ao conceito de contrato de trabalho vigente: 1) a prestação de actividade para outrem; 2) sob a sua autoridade e direcção 3) e mediante retribuição.
Quanto ao primeiro, refere-se frequentemente que o objecto do contrato de trabalho é uma actividade, assim se pretendendo distingui-lo do contrato de prestação de serviços, que é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra certo resultado do seu trabalho, intelectual ou manual, com ou sem retribuição – 1154º do CC. O objecto deste último, o trabalho autónomo é, portanto, o resultado dessa actividade, sendo o prestador livre na organização e escolha dos meios para o atingir. Mas este primeiro elemento não é actualmente muito operativo, está presente noutros contratos e com eles se confunde.
O pagamento de retribuição também é inerente a muitos outros contratos, mormente na prestação de serviços/mandato, só por si não é determinante, sendo mais relevante o facto de ela ser periódica e fixada em função do tempo (indicia pagamento de actividade) e não à peça (indicia pagamento de resultado).
O traço característico do contrato de trabalho é, sim, desde sempre, a subordinação jurídica que é uma relação de dependência da conduta do trabalhador face do empregador, o qual pode, assim, conformar ou delimitar a execução do contrato. Como aludimos, está, contudo, definitivamente ultrapassada a ideia da subordinação associada à emissão de ordens claras, directas e sistemáticas, dada a crescente autonomia técnica dos trabalhadores e actuais formas de organização e de interacção laboral. O traço decisivo é o chamado elemento organizatório, opção aliás espelhada já na revisão de 2006 do CT/03 e, como dissemos, mantida na actual redacção do CT/09 que utilizam, respectivamente, as expressões “estrutura organizativa” (12º CT/03) e “no âmbito de organização” (11º do CT/09).
Donde, o fulcro da subordinação consistirá no facto de o prestador não trabalhar segundo a sua própria organização, mas sim inserido numa ciclo produtivo de trabalho alheio e em proveito de outrem, estando adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário[15].
A doutrina e jurisprudência ao longo do tempo utilizaram o já referido método indiciário para inferir a existência de contrato de trabalho, elencando indicadores de laboralidade, tais como: a realização da actividade em local de trabalho determinado pelo beneficiário; a observância de horário de trabalho; a obediência a indicações/ordens/directivas e sujeição à disciplina da empresa ou da organização; a modalidade de pagamento de uma retribuição de forma periódica e, por norma, em função do tempo; a utilização de instrumentos de trabalho fornecidos pelo beneficiário do trabalho; a exclusividade do trabalho; o pagamento dos subsídios de férias e de Natal; a observância de um regime fiscal e de segurança social próprio do trabalhador por conta de outrem; a vontade das partes no início e a sua exteriorização ao longo da relação contratual, etc…
A estes indícios de laboralidade aplicáveis ao trabalhador “comum” terão de acrescer, no caso dos autos, os “especiais” referentes ao exercício da própria gerência com subordinação jurídica, ou os referentes à acumulação de gerência com outras funções de trabalhador acima elencadas.
Ora, diga-se que no caso, a prova foi suficientemente forte para se poder considerar que estamos, quer perante um caso de acumulação de gerência com funções separadas de trabalhador, quer perante um caso de admissibilidade de exercício de gerência por contrato de trabalho, mormente por se tratar de gerente não sócio, sendo a gerência plural, e os sócios intervirem nas decisões sobre a sociedade em aspectos tidos por relevantes.
A acumulação de exercício de gerência com funções de trabalhador está comprovada pelo teor dos pontos L, M, O, P, donde resulta que o autor, além do exercício da gerência, desenvolvia também funções idênticas às de outros trabalhadores no fabrico de pão/bolos/produtos similares, bem como na sua distribuição pelas residência e estabelecimentos comerciais.
Disso é comprovativo, em especial, o teor dos seguintes pontos provados: O) O Autor procedia ao exercício de tarefas não tipicamente de gerência, exercendo igualmente funções idênticas aos restantes trabalhadores da Ré contratados com a categoria profissional de padeiros e distribuidores, forneiros. P) Designadamente, colaborava com uma frequência não concretamente apurada, conjuntamente com os demais trabalhadores da Ré, no fabrico do pão, bolos e produtos similares, bem como na distribuição dos produtos alimentares pelas residências e estabelecimentos comerciais.
O exercício destas funções individualiza-se o suficiente para se concluir que há acumulação de exercício de gerência com as de trabalhador, tanto mais que, como desenvolveremos de seguida, a gerência era, ela própria, em aspectos relevantes, condicionada externamente tratando-se de empresa familiar onde alguns dos sócios eram pessoas presentes e intervinham (pontos T, I, M, S, T, W (segundo W).
Refere a propósito José Andrade Mesquita, ob. citada, pág. 272:
“Nas sociedades por quotas, o controlo dos sócios revela-se muito mais intenso, em virtude do lastro pessoal destas entidades. Por outro lado, as diversas tarefas distinguem-se com facilidade porque o gerente, muitas vezes, executa funções materiais que não se confundem minimamente com a gerência social. Pode, por exemplo, atender clientes ao balcão de um estabelecimento comercial...efectuar entregas ao domicílio, ou trabalhar como electricista”.
Avançando, parece-nos, ainda, que o exercício da gerência, no caso concreto, indicia compatibilidade com um vinculo laboral, porquanto se verificam as características acima referidas, mormente trata-se de gerente não sócio, a gerência era plural e os sócios eram entidades presentes com interferência em decisões importantes tomadas pela sociedade.
Na verdade, embora o autor exercesse a gerência (pontos W (primeiro), K, L, R), esta era condicionada pelos sócios em aspectos tidos por relevantes. Assim, eram os sócios que decidiam a contratação e despedimento de trabalhadores, ainda que contra a vontade do autor - (pontos T, I). Eram os sócios que decidiam sobre a aplicação de valores existentes em conta corrente, ainda que contra vontade e orientações da gerência (ponto. T). Eram os sócios que autorizavam a contração em ALD (ponto S). Eram os sócios que decidiam a realização de contratos de empreitada para obras na sede (ponto W). Os sócios condicionavam ainda os períodos de férias do autor, vedando-lhe o gozo em determinadas épocas do ano, como agosto, Natal e Páscoa (T). O autor prestava ainda contas aos sócios (ponto V).
Ademais, pese embora o autor em largo período da gerência na prática a exercesse com autonomia, existia a potencialidade de fiscalização e, tanto assim é, que nos últimos anos, os sócios Sra. FF e Dr. GG passaram a frequentar mais a empresa e fiscalizaram a sua actuação (ponto M, primeira parte). Repare-se que o que interessa à caracterização da subordinação não é se a fiscalização é exercida, ou se é mais ou menos apertada, mas sim a potencialidade desse exercício.
Depois, centrando-nos agora nos aspectos de subordinação comuns a “qualquer trabalhador”, verifica-se que o autor recebia uma retribuição periódica (mensal) e certa, em função do tempo, e, ademais, diga-se, módica, pouco acima do SMN (635€ em 2020). Normalmente os gerentes que são remunerados “por baixo” são sócios das empresas e obtêm lucro por via dos rendimentos (lucro) da própria empresa, o que não é caso do autor que recebia remuneração pouco acima de um mero trabalhador operacional.
O autor trabalhava em local definido pela ré, na sede da empresa e nas lojas de venda ao público (pontos N e V).
Voltando-nos agora para os chamados indícios externos, o autor gozava férias e recebia retribuição de férias e subsídios de férias e de natal, tal como qualquer trabalhador vinculado por contrato de trabalho. Era retido o desconto para a Segurança Social de 11% e fazia-se retenção na fonte para efeitos de IRS conforme ao seu escalão (recibo 4 da p.i), de igual modo a qualquer trabalhador dependente (ponto Q)
Finalmente, no domínio da interpretação de declarações de vontade[16] a ré emitiu certificado de trabalho nos termos do art. 341º do CT (pontos G) onde, antes de “estalar o conflito”, se intitula a si como empregadora e o autor como trabalhador, o deve ser valorado em conjunto com todos os demais indícios.
Do exposto, resulta a natureza laboral da relação contratual havida entre autor e ré. Por terem maior peso e relevância os factores acima assinalados relativamente aos demais de pendor contrário, como a inexistência de horário pré-definido e o exercício de gerência com autonomia em alguns períodos e tarefas, meramente decorrente de opção dos sócios da ré em não exercer a fiscalização, pese embora tivessem a potencialidade do seu exercício.
Uma palavra final sobre a sentença junta aos autos para afastar a sua relevância enquanto opinião jurídica, dado que os seus pressupostos de facto são diferentes daqueles que resultaram provados nos nossos autos.
Assim sendo é de confirmar a sentença do tribunal a quo, com a rectificação acima assinalada.
III - DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em não conceder provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida, excetuando os pontos C.II e C do dispositivo que se rectificam nos seguintes termos: O ponto C.ii passará a ter a seguinte redacção: “ii) as retribuições devidas entre 03/05/2020 (30 dias antes da propositura da presente ação) e a data de trânsito em julgado da decisão final que declara a ilicitude do despedimento, à razão de 773,48€ (setecentos e quarenta e três e quarenta e oito cêntimos) mensais”;
No ponto C elimina-se a expressão “conforme já decidido por sentença já transitada nos autos”.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
10-07-2023
Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora) Antero Dinis Ramos Veiga Francisco Sousa Pereira
[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s salvo as questões de natureza oficiosa. [2] Alberto do Reis, CPC anotado, vol. III, 3ª ed., p. 352-353. [3] Ac. STJ de 11-07-2019, revista 334/16.2T8CMN-G.G1.S2. [4] Ac. STJ de 5-09-2018 revista 15787/15.8T8PRT.P1.S2, e de 11-04-2018, revista 789/16.5T8VRL.G1.S1, in www.dgsi.pt. [5] António Santos Geraldes, O Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 770. [6] Neste sentido Ac.s STJ, 3-10-2019, revista nº 77/06.5TBGVA.C2.S2; de 29-10-2015, revista 233/09.4TBVNC.G1.S1; de 11-07-2019, revista 121/06.6TBOBR.P1.S1. [7] Ver também, na Relação, o ac. RE de 6-4-2017, processo nº 127/15.4T8STR-B.E1, e ac. desta RG proferido em 16-12-20021, p. 1154/20.5T8BCL-A.G1 (www.dgsi.pt), que incidiu sobre anterior recurso neste mesmo processo . [8] Direito do Trabalho, Almedina, 9.ª ed., pág. 344 e ss. [9] Tratado do Direito do Trabalho, parte II, Almedina, 4ª ed., pág. 66 e 67. [10] Direito do Trabalho, AAFD, 2003, pág. 271 a 274. [11] Art. 7º, 1, da Lei 7/2009, de 12-02, que aprovou o CT/2009 donde resulta que a novo CT/09 não se aplica quanto “…a condições de validade e efeitos de factos ou situações totalmente passados …” e conforme jurisprudência constante- vd. ac. STJ de 16-12-2010, p. 996/07.1TTMTS.P1.S1 [12] CT/09 Artigo 11.ºNoção de contrato de trabalho
“Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.” [13] Artigo 12 Presunção Presume-se que as partes celebraram um contrato de trabalho sempre que, cumulativamente: a) O prestador de trabalho esteja inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as orientações deste;b) O trabalho seja realizado na empresa beneficiária da actividade ou em local por esta controlado, respeitando um horário previamente definido; c) O prestador de trabalho seja retribuído em função do tempo despendido na execução da actividade ou se encontre numa situação de dependência económica face ao beneficiário da actividade;d) Os instrumentos de trabalho sejam essencialmente fornecidos pelo beneficiário da actividade;e) A prestação de trabalho tenha sido executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias. [14] Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado do Direito do Trabalho, Parte II, 4º ed., p. 48 e 49. [15] António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 19º ed., p. 148. [16] Pese embora tal não possa valer por si só como confissão, como se assinalou em anterior acórdão desta RG.