CRIME DE PECULATO DE USO
ACUSAÇÃO NULA
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DOS ACTOS IMPERFEITOS
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
DEVOLUÇÃO DOS AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário

I – O valor dos bens usados é elementos essencial à configuração do crime de peculato de uso.
II – A acusação pelo crime de peculato de uso que não contém nem o valor dos bens usados nem as características de tais bens de onde se possa retirar o seu valor é manifestamente infundada.
III – A insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança determina a rejeição da acusação.
IV – Os elementos em falta não podem ser aditados na sentença, por se tratar de alteração substancial dos factos.
V – Enquanto as causas de nulidade da acusação constantes do n.º 3 do artigo 283.º do C.P.P. são sanáveis, devendo ser arguidas pelos interessados nos termos legais, o vício previsto no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), de conhecimento oficioso, sobrepõe-se àquela.
VI – Perante uma acusação manifestamente infundada, quer o juiz de julgamento, quer o juiz de instrução estão impedidos de enviar os autos ao Ministério Público para que proceda à sua reformulação, completando-a com os elementos em falta.
V – Neste caso o Ministério Público pode proferir nova acusação em processo diferente, com base em certidão que deve requerer para o efeito.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

          A – Relatório

1. … foi proferida decisão instrutória, a 10.2.2023, decidindo-se julgar verificada a nulidade da acusação pública, ….

2. Inconformado com a decisão instrutória, veio o assistente, Município ..., interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“…

2.º) Na verdade, o artigo 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal estatui que ao despacho referido no número anterior (o despacho de pronúncia ou não pronúncia) é aplicável o disposto no artigo 283.º do mesmo Código, artigo relativo ao despacho de acusação.

3.º) Por seu turno, o n.º 3, alínea b), desse artigo 283.º estatui que a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

4.º) Neste despacho de não pronúncia são tecidas considerações genéricas sobre o crime de peculato de uso, por que vêm os arguidos acusados, e sustenta-se que os factos por que os arguidos vêm acusado não integram a prática de tal crime.

5.º) Mas não se toma posição clara sobre se a prática de tais factos está ou não suficientemente indiciada.

8.º) Assim, deveria o despacho recorrido especificar os factos que considera, ou não, suficientemente indiciados (questão sobre a qual terá tal despacho força de caso julgado material), independentemente da questão (a analisar de seguida) de saber se eles configuram, ou não, o crime de peculato de uso por que vêm os arguidos acusados.

10.º) A mera insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (imposta pelo art.º 283º 3 b) do CPP), conduzindo à rejeição da acusação, implica a devolução dos autos ao MP para os fins que tiver por convenientes e não a extinção do procedimento criminal.”

14.º) Isto é, vale para o vício previsto no art 311º nº 3 (als a), b) e c)), como para a nulidade sanável prevista no art. 283º do CPP, o princípio do aproveitamento dos atos imperfeitos expresso nos nºs 2 e 3 do art.º 122º do CPP, de acordo com o qual deve ordenar-se sempre que possível a repetição dos atos inválidos, …

15.º) O poder-dever de perseguir criminalmente os autores de crimes não pode ser posto em causa por questões meramente formais que não envolvam a ofensa de direitos fundamentais e garantias processuais dos arguidos, …

16.º) Os apontados vícios, que constam no douto despacho de não pronúncia, poderão ser suprimidos na douta sentença a proferir, não implicando qualquer alteração substancial.

17.º) Os equipamentos utilizados pelos Arguidos estão descritos na acusação. Aliás, também resulta da acusação, o tempo despendido pelos Arguidos a trabalhar no horário que deveriam estar ao serviço do Município, para a empresa do Arguido AA. Todos os equipamentos e as horas de trabalho, são quantificáveis, através do recurso às regras de experiência normal.

…”.

3. Também o Ministério Púbico, …, veio interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“…

3º - Entendemos que, no caso de a declaração de nulidade da acusação ter por base a insuficiência da descrição dos factos que integram os elementos do crime imputado aos arguidos, estamos perante uma deficiência de ordem formal e, como tal, pode ser suprida pelo Ministério Público, no mesmo processo, formulando novo libelo acusatório. …

4º - Daqui decorre que nada obsta à reformulação da acusação, desde que o seu conteúdo material seja alterado com a inclusão dos factos pertinentes que conduziram à sua rejeição.

6º - Este entendimento está em perfeito equilíbrio com o dever de exercício da ação penal orientada pelos princípios da legalidade, da certeza e da segurança jurídica na aplicação da lei penal e as garantias do processo penal que devem ser asseguradas aos arguidos, nos termos do disposto nos artigos 219.°, n.º 1, 29.°, n.º 5 e 32.°, todos da Constituição da República Portuguesa.

7º - Sobre a problemática da violação do princípio ne bis in idem pronunciou-se o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 246/2017, DR II série, de 17-05-2017, admitindo a possibilidade de vir a ser deduzida validamente uma nova acusação, suprindo uma outra manifestamente infundada por insuficiente descrição de um elemento típico, não se mostrando violados nem este, nem outros princípios ou quaisquer normas constitucionais.

8º - A declaração da nulidade da acusação, nos termos consignados (por não conter a narração dos factos), seguida da devolução dos autos ao Ministério Público, não configura um convite ao seu aperfeiçoamento, o que contenderia com o princípio do acusatório, sendo que não existe fundamento para invocar a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/2005.

9º - Trazendo igualmente à colação a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 1/2015 sempre se adianta que tal supõe o julgamento e a apreciação do mérito da causa, o que, como já foi dito, não é o que sucede no caso em análise, em que o juiz não chega a proferir qualquer decisão sobre o mérito da causa.

…”.

4. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pela sua improcedência …

5. Veio igualmente o arguido AA responder aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente, pugnando pela sua improcedência, …

6. Também a arguida BB respondeu aos recursos interpostos pelo Ministério público e pelo assistente, pugnando pela sua improcedência, …

 

7. … o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da procedência parcial do recurso do assistente e da procedência do recurso do Ministério Público, caso seja mantida a nulidade da acusação pública.

               *

    

      B – Fundamentação

 1. …

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelos recorrentes, as questões a decidir são as seguintes:

Do recurso do assistente Município ...:

- se o despacho recorrido é nulo, nos termos do disposto nos artigos 308º, nº 2, e 283º, nº 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, por não especificar quais os factos considerados indiciados e não indiciados;

- se a acusação descreve os factos integradores do crime de peculato de uso;

- se os elementos em falta na acusação, apontados no despacho recorrido, podem ser suprimidos na sentença a proferir, por não implicarem qualquer alteração substancial;

- se a mera insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, conduzindo à rejeição da acusação, implica a devolução dos autos ao MP e não a extinção do procedimento criminal.

       Do recurso do MP

- se, na sequência da declaração de nulidade da acusação, deve o processo ser devolvido ao Ministério Público para deduzir uma nova acusação, suprindo as omissões apontadas na decisão recorrida.

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a decisão recorrida, que apresenta o seguinte teor:

     “I.

                    *

B\ DA NULIDADE DA ACUSAÇÃO

Sustenta o arguido AA que a acusação pública é nula, por não descrever factualidade que suporte a imputação que lhe faz da prática de crime de peculato de uso. Não descreve em que consistiu, em concreto, a acção ilícita e não descreve, em concreto, quais as coisas indevidamente usadas.

Pese embora esta nulidade apenas tenha sido arguida por AA, a procedência da arguição aproveitará necessariamente às co-arguida CC e BB, …

A acusação tem o seguinte teor:

« …».

… a acusação (artigo 28º) conclui que os arguidos, sem fundamento e autorização, utilizarem equipamentos e recursos pertencentes à Câmara Municipal ..., que lhes eram acessíveis e lhes foram entregues em razão das suas funções enquanto funcionários camarários, cientes de que não os podiam utilizar em proveito próprio ou de terceiros e, ainda assim, usaram-nos em benefício da sociedade “T...”. A menção a “equipamentos e recursos” faz pouco sentido face ao tipo legal do crime imputado, sendo evidente que este não abrange o uso indevido de “recursos” e que só o fará relativamente a “equipamentos” se estes forem imóveis, veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável.

Nos artigos 10º, 15º, 19º e 21º, a acusação faz referência ao uso pelos arguidos de computadores, impressoras e respectivos tinteiros, papel, triturador de papel, telefone, internet e demais equipamentos que lhes estavam entregues ou afectos. A internet não cabe no elenco das coisas usáveis no cometimento do crime de peculato de uso. Os “demais equipamentos” não são determináveis, sendo essa expressão indeterminada insusceptível de fundar acusação criminal. Não se descrevem minimamente, nem em quantidade, nem em características, quais os computadores, impressoras, tinteiros ou telefones usados pelos arguidos. Não é atribuído qualquer valor a nenhuma dessas coisas, sendo claro que só é punível peculato de uso de coisas móveis de valor apreciável. A falta de indicação de qualquer valor inviabiliza que se conclua terem as coisas usadas “valor apreciável”. Nem sequer se pode considerar que a tal conclusão se chega por regras de experiência normal. O “valor apreciável” é aquele que, não chegando a ser um valor elevado (€ 5100 – artigo 202º, al. a), do C. Penal), está bastante além do valor diminuto (€ 102 – artigo 202º, al. c), do C. Penal) - …

Assim, o “abuso” de coisas de valor inferior a € 500 não estará seguramente abrangido pelo tipo legal de crime imputado aos arguidos. E nenhuma das coisas genericamente indicadas na acusação tem necessariamente valor superior a € 500. Bem pelo contrário.

Assim, concorda-se com o arguente AA: a acusação não cumpre a exigência de descrever cabalmente os factos integradores dos requisitos típicos do crime que imputa aos arguidos. O que se encontra descrito na acusação é insuficiente para imputar aos arguidos a prática do crime de peculato de uso, ou de qualquer outro, não podendo assim fundamentar a aplicação aos mesmos de uma pena. …

O que implica que a acusação é nula, à luz do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do C. P. Penal.

Verificada tal nulidade, impõe-se julgar prejudicadas todas as demais questões suscitadas e ordenar o arquivamento dos autos quanto a todos os arguidos, não sendo admissível sanar tal vício -  …

                 *

III.

Termos em que, face a todo o exposto:

a) julgo verificada a nulidade da acusação pública;

b) consequentemente, julgo prejudicadas todas as demais questões e determino o arquivamento dos autos.

…”.

 

               *

               *

  4. Cumpre agora apreciar e decidir.

Do recurso do assistente Município ...:

A primeira questão a decidir é a de saber se o despacho recorrido é nulo, nos termos do disposto nos artigos 308º, nº 2, e 283º, nº 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, por não especificar quais os factos considerados indiciados e não indiciados.

Com a epígrafe Despacho de pronúncia e de não pronúncia, estipula o artigo 308º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal que:

1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 283º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1 do artigo anterior.

3 - No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.

 Por sua vez, dispõe o artigo 283º, nºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Penal que:

É vasta a discussão jurisprudencial sobre a natureza da invalidade que afecta o despacho de não pronúncia quando este não contém a discriminação dos factos considerados indiciados e não indiciados, assim como a forma que deve assumir a fundamentação de tal factualidade.

Acontece que no presente caso revela-se desnecessário abordar tal questão.

Como resulta do artigo 308º, nº 3, do Código de Processo Penal, no despacho de não pronúncia o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.

Foi o que fez o tribunal a quo, acabando por julgar verificada a nulidade da acusação pública, considerar prejudicadas todas as demais questões e determinar o arquivamento dos autos.

Assim, o despacho recorrido encontra-se suficientemente fundamentado, inexistindo no caso concreto qualquer obrigatoriedade, necessidade ou mesmo conveniência, do tribunal tomar posição sobre a factualidade vertida na acusação pública.

Por não assistir razão ao recorrente, improcede esta questão por si suscitada.

                              *

A próxima questão é a de saber se a acusação descreve os factos integradores do crime de peculato de uso.

Os arguidos vêm acusados por um crime de peculato de uso, previsto e punido pelo artigo 376º, nº1, do Código Penal, por referência ao artigo 386.º, nº1, alínea a), b), e d), ambos do Código Penal, este último na redacção dada pela Lei n.º30/2015, de 22/04.

Quanto ao tipo objectivo de ilícito, pode afirmar-se que o objecto do crime são os imóveis, os veículos, ou outras coisas móveis ou animais de valor apreciável, públicos ou particulares.

Como afirma DD (cfr. obra supra citada, pág. 708), “o legislador pretendeu restringir o objecto do presente tipo legal face ao objecto do crime de peculato, ao exigir que as coisas móveis sejam de valor apreciável, exemplificando com o caso dos veículos. … O intuito restritivo é compreensível dada a menor gravidade da conduta em causa e o valor simbólico da presente incriminação. … Em relação à concretização do valor apreciável, parece que estará algo abaixo do valor elevado, mas bastante além do valor diminuto (em sentido semelhante, EE e FF 1624, entendendo que o valor apreciável “se queda abaixo do valor elevado … como querendo traduzir algum valor, mas não muito”; quanto à noção de valor elevado e valor diminuto, cfr. artigo 202º, alínea a) e c), do Código Penal. Assim, só o uso de uma coisa móvel de algum valor constituirá crime, sendo o uso indevido de bens de pouco valor um facto atípico, por constituir um abuso menos grave”.

No que respeita à conduta típica esta consiste em fazer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, dos referidos bens (imóvel, veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável). Trata-se de utilizar o bem, ou de permitir a outrem que o utilize, ou seja, facultar a outra pessoa o gozo do bem – cfr. obra supra citada, pág. 709.

A utilização deverá ser temporária, sem que haja apropriação, sem animus domini, ou alteração do bem, sendo este reposto ulteriormente no lugar que lhe é devido; ou seja, há alteração do destino do bem (por exemplo, uso de um veículo destinado ao serviço público em causa, para fins particulares (levar os filhos à escola, dar um passeio, etc.) – mas não da sua substância. Se o agente ao usar o bem o danifica ou altera a sua estrutura, então, terá de responder por este dano.

Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, trata-se de um tipo legal doloso, sendo a intenção do agente de usar temporariamente o bem ou permitir o seu uso e não fazer seu o bem. Pode estar em causa qualquer modalidade de dolo, directo, necessário ou eventual. Porém, o dolo eventual só se compagina com a permissão de uso. A intenção de restituição terá de existir ab initio, sendo que o agente deve ter conhecimento de todos os elementos do tipo, sob pena de não se preencher o elemento intelectual do dolo – cfr. obra supra citada, págs. 718-719.

Assim, o agente

▪ deve saber que é funcionário,

▪ ter consciência de que se trata de bem alheio, do qual tem a posse em razão das suas funções;

▪ deve saber que o está a usar, ou permitir o seu uso, para fins alheios àqueles a que se destina.

Voltando ao caso concreto, vejamos os factos relevantes da acusação.

Os arguidos, à data dos factos, eram funcionários da Câmara Municipal ....

Desde, pelo menos, o final do ano de 2017, que o arguido AA passou a executar os trabalhos da sociedade “T...” nas instalações da Câmara Municipal ..., utilizando o computador, a impressora e respectivos tinteiros, o telefone, a internet e demais equipamentos que lhe estavam entregues para o exercício das suas funções enquanto funcionário camarário, sem que estivesse autorizado para o efeito.

Ainda no ano de 2019, por força do aumento do volume de negócios da “T...”, as arguidas CC e BB, por instruções de AA, passaram a exercer as tarefas relacionadas com a actividade daquela sociedade nas instalações da Câmara Municipal ..., utilizando os computadores, as impressoras, os telefones e demais equipamento que lhes estava afecto para o desempenho das suas funções camarárias, sem estarem autorizadas para o efeito.

Desde o ano de 2018 e até ao dia 13 de Março de 2020, a arguida CC despendeu, pelo menos, setecentas e sessenta e cinco horas de trabalho afecto à sociedade “T...” durante o horário de funcionamento da Câmara Municipal ..., sendo que, pelo menos, seiscentas e dezoito horas o foram, em simultâneo, com o arguido AA.

Acresce que a arguida CC, no desempenho das funções que prestava para aquela sociedade, imprimiu, pelo menos, quatro mil e seis folhas, utilizando o computador, a impressora e o papel que lhe foram atribuídos pela Câmara Municipal ... para o exercício das suas funções enquanto funcionária camarária, fazendo-o sem estar autorizada.

Desde o ano de 2019 e até ao dia 13 de Março de 2020, a arguida BB despendeu, pelo menos, cento e noventa e duas horas de trabalho afecto à sociedade “T...” durante o horário de funcionamento da Câmara Municipal ..., sendo que, pelo menos, sessenta e cinco horas o foram, em simultâneo, com o arguido AA.

Acresce que a arguida BB, no desempenho das funções que prestava para aquela sociedade, imprimiu, pelo menos, setecentas e cinquenta folhas, utilizando o computador, a impressora e o papel que lhe foram atribuídos pela Câmara Municipal ... para o exercício das suas funções enquanto funcionária camarária, fazendo-o sem estar autorizada.

No dia 20 de Março de 2020, a arguida CC utilizou o triturador da Câmara Municipal ... para destruir diversos documentos relacionados com a actividade da “T...”, sem que estivesse autorizada a fazê-lo.

Os equipamentos que os arguidos utilizaram no desempenho das funções inerentes à actividade da sociedade “T...” e acima descritas, pertenciam à Câmara Municipal ... e foram-lhes entregues para o exercício exclusivo das suas funções enquanto funcionários daquela Câmara, estando impedidos de os utilizarem para outro fim.

São estes os elementos objectivos descritos na acusação.

Pois bem.

O AA usou o computador e a impressora.

Porém, não se refere o valor destes bens ou mesmo as suas caraterísticas de forma a que o julgador possa aferir se são bens móveis de valor apreciável.

Poder-se-ia dizer que, pela natureza dos bens, serão de valor apreciável.

Acontece que nem todos os computadores ou impressoras têm um valor apreciável. Basta pensar em computadores, ou mesmo impressoras, com muitos anos, que já pouco valor patrimonial têm, mas que continuam a ser usados em muitos serviços do Estado.

Assim, relativamente ao computador e impressora, a acusação não contém todos os elementos indispensáveis à subsunção no crime de peculato de uso, previsto e punido pelo artigo 376º, nº1, do Código Penal.

Relativamente aos tinteiros, não se diz quantos gastou e se foram gastos total ou parcialmente. Porém, pelas quantidades de folhas imprimidas, deverão ter sido gastos alguns tinteiros, que não se discriminam.

Ora, os tinteiros, gastos total ou parcialmente, não se enquadram nos elementos típicos objectivos do crime sub judice, desde logo porque não podem ser restituídos sem perda da sua substância.

Não estamos perante a utilização temporária do bem, sendo este reposto ulteriormente no lugar que lhe é devido sem alteração dos seus componentes.

De qualquer forma, sempre se refere que nenhum valor é mencionado em relação aos tinteiros, não havendo elementos de onde se possa retirar que estamos perante bens móveis de valor apreciável.

O mesmo acontecendo em relação ao telefone. Não se retira da acusação que o telefone usado tenha um valor apreciável.

Relativamente à internet nem mesmo é dito de que forma foi usada e qual o seu valor. Mesmo a considerar-se como bem móvel, sempre faltariam elementos típicos – o valor apreciável e poder ser restituída.

A expressão “demais equipamentos que lhe estavam entregues para o exercício das suas funções enquanto funcionário camarário” é irrelevante, já que não concretiza os equipamentos.

As arguidas GG e BB utilizaram igualmente os computadores, as impressoras, os telefones e demais equipamento que lhes estava afecto para o desempenho das suas funções camarárias.

Mais uma vez não se referem quaisquer valores em relação aos computadores e impressoras, nem mesmo as suas características de onde pudesse resultar esse valor. Reafirma-se que é imprescindível apurar se estamos perante bens de valor apreciável.

O mesmo se diga em relação ao telefone.

A expressão demais equipamento, sem a identificação desse equipamento, é irrelevante.

Também as horas de trabalho afectas à sociedade T... não são bens que se enquadrem na referida norma legal, nem mesmo as folhas imprimidas. Aquelas não são bens móveis e estas, independentemente do valor, não são bens aptos a serem restituídos sem a alteração da sua substância. Não são bens que apenas foram usados temporariamente.

No que respeita ao triturador usado pela GG, também se desconhece o seu valor, bem como as suas características, não se podendo aferir se estamos perante um bem de valor apreciável.

Concorda-se, assim, com o tribunal a quo quando afirma que “o que se encontra descrito na acusação é insuficiente para imputar aos arguidos a prática do crime de peculato de uso, ou de qualquer outro, não podendo assim fundamentar a aplicação aos mesmos de uma pena. Isto é, a acusação não cumpre a sua finalidade, não podendo o processo prosseguir sem que esteja devidamente definido o seu objecto processual, não permitindo assim que os arguidos exerçam os seus direitos de defesa, nem podendo conduzir à condenação dos mesmos porquanto os factos que descreve são atípicos”.

Pelo exposto, conclui-se que a acusação não contém todos os elementos típicos objectivos do crime de peculato de uso imputado aos arguidos, improcedendo esta questão suscitada pelo recorrente.

              *

Passa-se agora a conhecer se os elementos em falta na acusação, apontados no despacho recorrido, podem ser suprimidos na sentença a proferir, por não implicarem qualquer alteração substancial.

Assim, retirando os bens que não se subsumem no crime em causa, por insusceptíveis de serem devolvidos sem alteração da sua substância ou por não serem bens móveis, dos demais usados (computadores, impressoras e triturador) não existe valor.

Esse elemento em falta, caso seja aditado em sede de sentença, corresponde a uma alteração não substancial de factos, como defende o recorrente?

Cumpre, então, definir os conceitos de alteração não substancial e substancial de factos.

A lei não define o conceito de alteração não substancial de factos. No entanto, a partir da alínea f) do artigo 1º do Código de Processo Penal, que define o conceito de alteração substancial, chegamos à definição de alteração não substancial.

Nos termos da referida alínea f), alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Logo, alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis – cfr. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal comentado, de António Henriques Gaspar Et al., pág. 1125.

Crime diverso que tem de ser entendido não apenas como crime punível por diferente normativo legal, mas também o crime subsumível na mesma norma legal desde que praticado noutras circunstâncias quanto a algum dos elementos essenciais do tipo.

Neste sentido veja-se o Ac. da RC de 24.5.2017, in www.dgsi.pt, segundo o qual “a noção de crime diverso, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 1.º, n.º 1, al. f), e 359.º, ambos do CPP, não é atinente apenas à imputação de crime previsto em diferente normativo legal, cabendo também naquele conceito o ilícito penal previsto na mesma norma, mas cometido noutras circunstâncias quanto a algum dos elementos essenciais do tipo. Tanto ocorre alteração substancial quando diverso é o contexto objectivo do cometimento do crime, como quando diferente se revelam os parâmetros subjectivos da sua perpetração, mormente a intenção, quando ela integra o respectivo tipo legal”.

O Ac. do STJ de 21.3.2007, consultável em dre.pt, é claro ao afirmar que “alteração substancial dos factos” significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da
acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa. É este o sentido da definição constante do art. 1.°, n.º 1, al. f), do CPP para «alteração substancial dos factos», que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

                 A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

               “Alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância
para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal. A alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa”.

No que respeita à sua finalidade, o instituto da alteração dos factos encontra-se intimamente ligado às garantias do processo criminal, constitucionalmente consagradas no artigo 32º da nossa Lei Fundamental, mormente nos seus nºs 1 e 5.

Como aí se estabelece, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (nº 1) e tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório (nº 5).

Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal comentado, de António Henriques Gaspar Et al., pág. 1127, afirma que “o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa do arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.”

           

             Também o TC se tem pronunciado neste sentido, mormente no Ac. nº 463/2004/T., publicado no DR, série II, de 12.8.2004, onde se pode ler que “a propósito do princípio acusatório, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que ele 'é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal' e 'uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial', significando essencialmente que 'só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32.º, p. 205).

            Relativamente ao princípio do contraditório, assinalam os mesmos comentadores que ele implica o dever 'de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão', bem como o 'direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão', e ainda o 'direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo', sendo certo que 'o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição' (ibidem, nota X ao artigo 32.º, p. 206).

Os princípios do acusatório e do contraditório, enquanto princípios estruturantes do processo penal, movem-se necessariamente no quadro de um sistema processual que tem também - como vimos - de assegurar todas as garantias de defesa, ou seja, no quadro de um processo penal justo e equitativo.

O princípio do contraditório, encarado do ponto de vista do arguido, pretende, antes de mais, realizar o seu direito de defesa. … O sentido essencial do princípio do contraditório 'está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar.''

A descoberta da verdade material em processo penal há-de, portanto, necessariamente compaginar-se com aquelas garantias de defesa do arguido. E assim se reconhecerá, como corolário do princípio do acusatório, o da vinculação temática do tribunal e da correlação entre a acusação (e a pronúncia) e a sentença”.

Voltando ao caso concreto, os elementos em falta na acusação, relativos ao valor dos bens ou características dos bens de onde se possa retirar o valor, são elementos essenciais para a punição dos arguidos, podendo transformar uma conduta atípica numa conduta típica; isto é, dependendo do seu quantum, poderão imputar um crime aos arguidos.

A ser assim, de forma alguma, essa alteração de factos pode ser considerada não substancial.

Trata-se de uma alteração substancial de factos e, como tal, nos termos do artigo 359º, nº 1, do Código de Processo Penal, em sede de julgamento, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso.

Pelo exposto, os elementos em falta na acusação não podem ser suprimidos na sentença a proferir, improcedendo igualmente esta pretensão do recorrente.

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A próxima questão é a de saber se a mera insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, conduzindo à rejeição da acusação, implica a devolução dos autos ao MP e não a extinção do procedimento criminal.

Começa-se por dizer que, se é certo que a nulidade da acusação cominada no artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal, é uma nulidade sanável, devendo ser arguida pelos interessados nos termos legais, já o vício previsto no artigo 311º, nº 3, alínea d), do Código de Processo Penal (acusação manifestamente infundada em virtude dos factos não constituírem crime) é de conhecimento oficioso, sobrepondo-se, por isso, à referida nulidade – cfr. neste sentido o Ac. da RC de 7.3.2018, in www.dgsi.pt.

Como se pode ler neste aresto, “a rejeição da acusação pelo Juiz de julgamento, nos termos do artigo 311º, nº 2, alínea a) e 3º, alínea d), do Código de Processo Penal, é uma realidade diversa da simples declaração de nulidade da acusação.

Rejeitada a acusação entendemos que o juiz não deve determinar, ao abrigo do artigo 122.º do C.P.P., a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correção da acusação pública, pelo Ministério Público.

Cremos que uma decisão nesse sentido, não só não respeitaria o disposto no artigo 311.º, n.º 2 do C.P.P., como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e colocaria em causa as legítimas expectativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP”.

Também no Ac. da RL de 30.1.2007, in www.dgsi, e citado no referido aresto da Relação de Coimbra, pode ler-se que “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (artigo 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal - leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objetividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objeto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, retifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido (…)», sob pena de sério e inexorável comprometimento do princípio acusatório”.

Mais recentemente, no Ac. de 24.5.2022, in www.dgsi.pt, a Relação de Lisboa reafirmou essa sua posição, …

A Relação de Coimbra, no Ac. de 9.5.2012, in www.dgsi, pronunciou-se no mesmo sentido, afirmando que: “Sendo a acusação particular omissa quanto à indicação das disposições legais aplicáveis não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção da mesma. Não constando da referida acusação as disposições legais aplicáveis bem como os factos integradores do tipo subjetivo, deve ser rejeitada por manifestamente infundada”.

Por sua vez, a Relação do Porto também já se pronunciou nesse sentido, no Ac. de 13.5.2020, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que:

“Sempre que estão em causa casos extremos de invalidade da acusação, mas não todas as situações de nulidade da acusação previstas no art. 283.º, n.º 3, do CPPenal, como se viu, permite o legislador que o juiz do julgamento, na fase preliminar do saneamento do processo, portanto, antes de iniciar o julgamento e avaliar do mérito do processo, impeça o prosseguimento dos autos com a sujeição do arguido a um julgamento que irá acabar inevitavelmente em absolvição.

Mas esse saneamento é apenas possível no momento a que alude o art. 311.º, n.º 2, do CPPenal, pois passada essa fase, impõe-se que o julgamento prossiga até final, acabando por ser proferida decisão de mérito, que perante as deficiências a que alude o referido preceito somente poderá ser de absolvição.

Este regime é tributário da estrutura acusatória do processo.

….

O art. 311.º do CPPenal, respeitante ao saneamento do processo criminal remetido para julgamento, vinca de forma bem expressiva, fundamentalmente após as alterações introduzidas com a Lei 59/98, de 25-08, a separação decorrente do princípio do acusatório entre a entidade que acusa e a que julga.

Ao juiz do julgamento está vedada a possibilidade de determinar a reparação de uma acusação ferida de deficiência grave, como seja qualquer uma das que estão previstas no art. 311.º, n.º s 2 e 3, do CPPenal.

Nem a lei expressamente o permite, nem a estrutura acusatória do processo a autoriza.

Seguro é, assim, que se a acusação não contém a indicação das provas que a fundamentam (al. a) do n.º 2 e al. d) do n.º 3 ambos do art. 311.º do CPPenal) deve o juiz do julgamento, aquando do saneamento do processo, rejeitar a acusação, estando vedada a possibilidade de realizar qualquer convite ao aperfeiçoamento”.

Jurisprudência que se acompanha integralmente.

No caso concreto, não estamos na fase de julgamento mas de instrução.

No entanto, as considerações tecidas para a fase de julgamento valem integralmente para a fase de instrução, já que também nesta fase processual não se pode olvidar quer o princípio do acusatório quer o do contraditório.

Tanto assim é que, nos termos do artigo 309º, nº 1, do Código de Processo Penal, a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

Perante a estrutura acusatória do processo penal, os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não podendo o juiz formular convites ou recomendações, e muito menos ordens, ao Órgão Titular da acção penal, para aperfeiçoamento, rectificação, complemento, ou dedução de nova acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais.

Por outro lado, os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea – cfr. Ac. da RG de 9.1.2017, in www.dgsi.pt.

Por isso, também o JIC, perante a insuficiência da acusação deduzida contra um arguido, quanto aos factos integrantes de um dado tipo legal, chegado o momento de sobre ela decidir, não pode devolver os autos ao Ministério Público, ou ao acusador particular, para que a mesma seja completada – em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada para o caso de insuficiência de factos no requerimento de abertura de instrução (AUJ do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I de 4-11-2005), cuja ratio, obviamente, se estende à acusação pública, à luz dos princípios que enformam o nosso processo penal.

Com efeito, se o actual regime processual, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo (arts. 359º, 303º e 309º do CPP), por maior e reforçada razão, está vedada uma tal via para a situação a que os autos se reportam, em que, bem vistas as coisas, até se depararia com bem mais do que uma mera alteração substancial perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal de crime que era imputado” – cfr. aresto acabado de referir da RG.

No mesmo sentido, veja-se o Ac. da RL de 30.1.2007, in www.dgsi.pt, onde se lê que “concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos – nomeadamente, de facto – de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art. 308.º, n.º 1, in fine, do CPP. Não pode, naquele caso, o juiz de instrução devolver o processo ao MP, para reformular a acusação declarada nula”.

De facto, assim é. Tanto o juiz do julgamento como o juiz de instrução, perante uma acusação sem factos que se subsumam no crime imputado ao arguido, encontram-se impedidos de enviar os autos ao Ministério Público para reformular a acusação, completando-a com os elementos em falta.

Aliás, nem se compreenderia que estando os autos em fase de instrução ou de julgamento, voltassem para a fase de inquérito, para depois voltar a correr nova fase de instrução e de julgamento.

Não podemos esquecer que o inquérito só pode ser reaberto no caso de arquivamento e se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público nesse despacho – cfr. artigo 279º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Como se afirma no Ac. da RC de 22.3.2023, in www.dgsi.pt, “sendo o processo penal constituído por uma sucessão de actos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, depois de o processo ter sido remetido para julgamento o Ministério Público não pode alterar a acusação”.

O mesmo valendo para a fase de instrução.

Pergunta-se então se, perante uma acusação sem factos típicos, por lapso ou erro do acusador, o arguido ficará impune?

Neste ponto é de referir a posição que já tomou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 246/2017, publicado no DR, Série II, de 25/07/2017, onde se decidiu “não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes”.

Contudo, isso não significa que essa nova acusação venha a ser deduzida no mesmo processo, fazendo os autos recuar a uma fase processual distinta e anterior àquela em que se encontra.

Como se afirma no Ac. da RC de 22.3.2023, in www.dgsi.pt, “Não significa isto que, aceitando o M.P. o entendimento do Tribunal Constitucional relativo à relevância e limites do ne bis in idem, esteja impedido de renovar a acusação na parte em que não foi recebida, completando-a de modo a conferir-lhe viabilidade. Simplesmente, não o poderá fazer no mesmo processo, ficando salva a possibilidade de o fazer com base em certidão que para o efeito deverá requerer”.

Aqui chegados, resta concluir que também neste ponto não assiste razão ao recorrente.

A insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, conduzindo à rejeição da acusação, não implica nem impõe a devolução dos autos ao MP tendo em vista a sanação do vício.

O convite ao aperfeiçoamento da acusação deduzida pelo Ministério Público, não é um acto previsto na lei, sendo violador do princípio do acusatório, bem como das legítimas expectativas do arguido e das garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32º, nº 1, da CRP.

Aliás, caso os elementos em falta na acusação não constassem do inquérito, por não terem sido investigados, a situação nem poderia passar por um simples aperfeiçoamento da peça acusatória. Implicaria, antes, a produção de prova indiciária para apurar dos elementos em falta, que poderiam nunca ser indiciados. Isto é, implicaria uma nova fase de inquérito, que seria reaberto ao arrepio do disposto no artigo 279º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Assim, verificando-se que a acusação do MP não contém factos que constituem crime, terá necessariamente que ser rejeitada, não podendo ser reparada por convite ao aperfeiçoamento formulado pelo juiz de instrução ou do julgamento, com a consequente remessa dos autos para os serviços do Ministério Público.

Em suma, sem necessidade de mais considerações, improcede igualmente esta questão suscitada pelo recorrente, não merecendo qualquer censura o despacho recorrido.

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Improcedendo, assim, todas as questões suscitadas pelo assistente Município ..., deve ser negado provimento ao recurso.

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       Do recurso do MP

A única questão suscitada é a de saber se, na sequência da declaração de nulidade da acusação, deve o processo ser devolvido ao Ministério Público para deduzir uma nova acusação, suprindo as omissões apontadas na decisão recorrida.

Esta questão acabou de ser apreciada, dando-se como reproduzido o que ficou dito supra.

Improcede, de igual forma, esta questão suscitada pelo Ministério Público.

Improcedendo a única questão suscitada pelo recorrente, deve ser negado provimento ao recurso.

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         C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos interpostos pelo assistente Município ... e Ministério Público e, em consequência, decidem manter o despacho recorrido.

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Custas pelo assistente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida – artigos 515º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, 8º, nº 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

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              Notifique.

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            Coimbra, 12 de Julho de 2023.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

              Rosa Pinto – Relatora

              Maria José Guerra – 1ª Adjunta

              Luís Teixeira – 2º Adjunto