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CASO JULGADO MATERIAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
Sumário
I - A força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado. II - A sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro ato jurídico, a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos. III - Para alcançarmos o verdadeiro sentido de uma sentença, a sua interpretação não pode assentar exclusivamente no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar e analisar todos os antecedentes lógicos, que a suportam e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
Nos presentes autos de ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, que Cofidis - Sucursal da Sociedade Anónima Francesa Cofidis, S.A., anteriormente denominada Banco Mais, S.A., instaurou contra AA e BB, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
«Face ao exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, o Tribunal julga a acção PARCIALMENTE PROCEDENTE, e, em consequência: a) CONDENA os réus AA e BB a pagarem à autora a quantia que vier a ser apurada em sede de liquidação de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros desde 10/06/2009 à taxa anual de 22,269%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento, tendo por limite máximo o valor pecuniário peticionado (contrato de crédito pessoal REN nº 914491) [no caso, de € 1.017,33]. b) CONDENA o réu AA a pagar à autora a quantia que vier a ser apurada em sede de liquidação de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros desde 10/10/2010 à taxa anual de 22,650%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento, tendo por limite máximo o valor pecuniário peticionado (contrato de mútuo nº ...17) [no caso, de € 8.187,53]. c) No mais, vão os réus absolvidos. (…)».
Transitada a sentença e contados os autos, veio a autora, por requerimento de 04.11.2022, deduzir incidente de liquidação de harmonia com o disposto nos artigos 358º e seguintes do Código de Processo Civil.
A fundamentar a pretensão de liquidação diz: «Vê-se dos autos de acção declarativa que os requeridos foram condenados a pagar ao ora requerente - vide sentença de fls. –, a quantia a liquidar correspondente às prestações de capital não pagas, acrescida de juros desde 10/06/2009 à taxa de 22,269% e imposto de selo (contrato REN nº 914491 da responsabilidade de ambos os requeridos) e a quantia a liquidar correspondente às prestações de capital não pagas, acrescida de juros desde 10/10/2010 à taxa de 22,650% e imposto de selo (Contrato nº ...17 da responsabilidade do requerido AA). Contrato REN nº 914491 da responsabilidade de ambos os requeridos (…) O capital das prestações vencidas e não pagas, 15ª e seguintes, é de € 806,80 conforme plano financeiro que se junta (documento 1). (…) Os juros sobre a quantia de € 806,80 à taxa de 22,269%, desde 10 de Junho de 2009 até 25 de Junho de 2011 (transito em julgado da sentença) representam mais € 366,72 e o imposto de selo sobre estes juros € 14,67. (…) Os juros sobre a quantia de € 806,80 à taxa de 22,269%, desde 4 de Novembro de 2017 (atento a prescrição de juros posterior ao transito em julgado da sentença) até ao presente – 4 de Novembro de 2022 – representam mais € 898,82 e o imposto de selo sobre estes juros € 35,95. Contrato nº ...17 da responsabilidade do requerido AA. (…) O capital das prestações vencidas e não pagas, 33ª e seguintes, é de € 5.910,34 conforme plano financeiro que se junta (documento 2). (…) O capital total em divida é de € 5.827,63 [€ 5.910,34 - € 82,71 ( artigo 13º da PI)] (…) Os juros sobre a quantia de € 5.827,63 à taxa de 22,650%, desde 10 de Outubro de 2010 até 25 de Junho de 2011 (transito em julgado da sentença) representam mais € 933,01 e o imposto de selo sobre estes juros € 37,32. (…) Os juros sobre a quantia de € 5.827,63 à taxa de 22,650%, desde 4 de Novembro de 2017 (atento a prescrição de juros posterior ao transito em julgado da sentença) até ao presente – 4 de Novembro de 2022 – representam mais € 6.603,41 e o imposto de selo sobre estes juros € 264,14. Assim, (…) Consequência da liquidação requerida, o débito dos requeridos para com o ora requerente [na medida da condenação referida na alínea a) e b) da sentença], é de € 15.788,47 (€ 806,80 + € 366,72 + € 14,67 + € 898,82 + € 35,95 + € 5.827,63 + € 933,01 + € 37,22 + € 6.603,41 + € 264,14), importâncias a que acrescem os juros, às referidas taxas de 22,269% e 22,650% que se vencerem desde 5 de Novembro de 2022, até efectivo e integral pagamento e o imposto de selo que, à taxa de 4%, sobre estes juros recair, sobre as quantias de € 806,80 e € 5.827,63 respetivamente. (…)».
Termina, pedindo que seja julgada procedente e provada, para os devidos e legais efeitos a liquidação requerida, nela se condenando os requeridos em conformidade.
Os requeridos não contestaram, tendo os factos articulados no requerimento inicial sido considerados como confessados.
As partes, notificadas para alegar de direito, nada disseram.
Foi proferida decisão em cujo dispositivo se consignou:
«Pelo exposto acima, julgo o presente incidente de liquidação parcialmente procedente e, em consequência, decido: a) Liquidar a quantia pecuniária devida pelos requeridos AA e BB à requerente Cofidis, Sucursal da Sociedade Anónima Francesa Cofidis, S.A., respeitante ao contrato de crédito pessoal n.º 914491, no valor de € 806,80 (oitocentos e seis euros e oitenta cêntimos), acrescido de juros moratórios vencidos contabilizados desde 2009/06/10 e vincendos até efetivo e integral pagamento, calculados à taxa de 22,269%, bem como imposto do selo respetivo calculado à taxa de 4%, até ao montante de € 1.017,33 (mil e dezassete euros e trinta e três cêntimos); b) Liquidar a quantia pecuniária devida pelo requerido AA à requerente Cofidis, Sucursal da Sociedade Anónima Francesa Cofidis, S.A., respeitante ao contrato de mútuo n.º ...17, no valor de € 5.827,63 (cinco mil oitocentos e vinte e sete euros e sessenta e três cêntimos), acrescido de juros moratórios vencidos contabilizados desde 2010/10/10 e vincendos até efetivo e integral pagamento, calculados à taxa de 22,650%, bem como imposto do selo respetivo calculado à taxa de 4%, até ao montante de € 8.187,53 (oito mil cento e oitenta e sete euros e cinquenta e três cêntimos).
*
Custas a cargo de requerente e requeridos na proporção de 40% e 60%, respetivamente (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). * Valor do incidente: € 15.788,47 (artigos 296.º, n.º 1, 297.º, n.º 1, 304.º, n.º 1, e 306.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).»
Inconformada, a autora/requerente apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. A sentença declarativa é expressa a condenar os requeridos nas quantias a liquidar “acrescidas de juros desde 10/06/2009 à taxa anual de 22,269%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento” e “acrescidas de juros desde 10/10/2010 à taxa anual de 22,650%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento”
2. Os juros moratórios referentes a cada um dos contratos dependem de simples cálculo aritmético, e não estão sujeitos a liquidação de sentença, estando devidamente fundamentados na sentença declarativa quer quanto às taxas aplicáveis, início de contagem da mora e fim da mesma ou seja, até integral pagamento da divida reclamada e já confirmada por sentença transitada em julgado.
3. A decisão a proferir, sobre o requerimento de liquidação, tem como objecto de apreciação a parte não líquida e não dependente de simples cálculo aritmético da sentença declarativa, ou seja, proferir decisão única e exclusivamente sobre o capital em divida, expurgado de juros remuneratórios, incluído em cada um dos contratos.
4. Quanto ao contrato de crédito pessoal nº 914491 o valor de capital é de € 806,80 e quanto ao contrato de mútuo nº ...17 o montante de capital é de € 5.827,63 sendo que, ambos os montantes, respeitam os limites impostos na sentença declarativa.
5. Os limites constantes da parte decisória da ação declarativa são referentes ao valor desconhecido nessa fase processual, ou seja, ao valor do capital incluído nas prestações em divida referentes a cada um dos contratos e não a qualquer outro valor a apurar.
6. Em momento algum do relatório da sentença declarativa, da sua fundamentação ou da parte decisória da mesma, consta qualquer limitação temporal (final) ou de montante ao que são os juros reclamados a título de mora.
7. Qualquer interpretação sobre o que consta da parte decisória da sentença tem de levar em conta, em primeiro lugar, o que consta da matéria de facto dada como provada e da fundamentação da sentença declarativa.
8. A interpretação do Tribunal na sentença proferida relativamente à liquidação, e objecto do presente recurso, restringe o montante a reclamar a título de juros moratórios, limitação essa que não consta, nem se pode deduzir, interpretando a sentença declarativa no seu conjunto, do que decidido foi nos autos de ação declarativa.
9. Desta forma, o Tribunal, na decisão de liquidação da sentença, ao limitar o montante dos juros moratórios que podem ser reclamados, viola o decidido na sentença declarativa e artigo 613º nº 1, artigo 619º nº 1 e artigo 625º, todos do Código de Processo Civil,
Termos em que deve a decisão recorrida ser substituída por acórdão que determine que, quanto ao contrato de crédito pessoal nº 914491 o valor de capital é de € 806,80 e quanto ao contrato de mútuo nº ...17 o montante de capital é de € 5.827,63 e, quanto aos juros moratórios devidos, os mesmos são os devidos nos termos constantes da ação declarativa sendo que, a única limitação temporal a que os mesmos estão sujeitos é a referente à eventual prescrição, nos termos legais, ou ao integral pagamento da divida como decorre da própria sentença, como é de, JUSTIÇA».
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda consubstancia-se em saber se a decisão recorrida violou o caso julgado formado pela sentença transitada em julgado, proferida 03.06.2011, onde corre o incidente de liquidação.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Na presente ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a correr termos sob o processo n.º 255/11.5TBRMR, foi proferida sentença em 2011/06/03, com o seguinte dispositivo, no que ao caso releva:
“Face ao exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, o Tribunal julga a acção PARCIALMENTE PROCEDENTE, e, em consequência: a) CONDENA os réus AA e BB a pagarem à autora a quantia que vier a ser apurada em sede de liquidação de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros desde 10/06/2009 à taxa anual de 22,269%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento, tendo por limite máximo o valor pecuniário peticionado (contrato de crédito pessoal REN nº 914491) [no caso, de € 1.017,33]. b) CONDENA o réu AA a pagar à autora a quantia que vier a ser apurada em sede de liquidação de sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros desde 10/10/2010 à taxa anual de 22,650%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento, tendo por limite máximo o valor pecuniário peticionado (contrato de mútuo nº ...17) [no caso, de € 8.187,53]. c) No mais, vão os réus absolvidos. (…)”.
2. Decidiu aquela sentença, em sede de matéria de facto provada, e por remissão para a petição inicial, o seguinte, no que ao caso releva, respeitante ao contrato de mútuo n.º ...17:
“(…) 1. O A., no exercício da sua actividade comercial e com destino, segundo informação então prestada pelo R. marido, à aquisição de um veículo de marca MITSUBISHI, modelo CARISMA 1900 GLS TD, com a matrícula ..-..-LA, por contrato constante de título particular datado de 12 de Junho de 2007 (…), concedeu ao dito R marido crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado ao dito R. marido a importância de Euros 9.027,00 (…). 2. Nos termos do contrato assim celebrado entre o A. e o R. marido aquele emprestou a este a dita importância de Euros 9.027,00, com juros à taxa nominal de 18,650% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio do seguro de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 60 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 10 de Julho de 2007 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes. 3. De harmonia com o acordado entre as partes (…) a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga - conforme ordem irrevogável logo dada pelo referido R. marido para o seu Banco - mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para a conta bancária, sediada em Lisboa, logo indicada pelo ora A. (…). 4. Conforme também expressamente acordado (…) a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações, tendo estas o valor constante do contrato, ou seja o valor de Euros 239,58 cada (…). 5. (…) foi acordado entre A. e R. marido que “A falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implica o imediato vencimento de todas as restantes” e, igualmente, na alínea c) da Cláusula 4.ª das Condições Gerais do referido contrato, A. e R. marido mais expressamente acordaram que “No valor das prestações estão incluídos o capital, os juros do empréstimo, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios das apólices de seguro a que se refere a Cláusula 13.ª das Condições Gerais”. (…) 7. Mais foi acordado entre o A. e o R. marido (…) que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 18,650% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 22,650%. (…) 11. O R. marido solicitou também ao A., ao que este acedeu, que, prorrogando o prazo de pagamento, fosse concedido um período de carência de 7 meses, a partir da 23.ª prestação, com vencimento em 10/05/2009 – o que o A. fez – passando assim o valor da prestação mensalmente acordada a ser de Euros 266,15 a partir da 23.ª cuja data de vencimento passou a ser em 10/12/2009, atento o referido período de carência (…). 12. De harmonia com o então acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem irrevogável logo dada pelo R. marido para o seu Banco – mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para a conta bancária logo indicada pelo ora A. (…) 13. O referido R. marido, das prestações referidas, não pagou a 33.ª prestação e seguintes, - num total de 28 – vencida a primeira em 10 de Outubro de 2010, vencendo-se então todas do montante cada uma de Euros 266,15, conforme antes referido, tendo contudo entregue ao A. a quantia de Euros 82,71. 14. O referido R. marido não providenciou às transferências bancárias referidas - que não foram feitas - para pagamento das ditas prestações, nem o R., ou quem quer que fosse por ele, as pagou ao A. (…)
3. As prestações em dívida pelo requerido AA, no total de 28, respeitantes ao contrato de mútuo n.º ...17, totalizam o montante de € 5.910,34, do qual permanece em dívida o valor de € 5.827,63.
4. Decidiu ainda aquela sentença, em sede de matéria de facto provada, e por remissão para a petição inicial, o seguinte, no que ao caso releva, respeitante ao contrato de crédito pessoal n.º 914491:
“21. O A. concedeu ainda, aos RR., por contrato constante de título particular datado de 3 Abril de 2009 (…), crédito pessoal directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado aos ditos RR. mais a importância de Euros 1.737,00 (…). 22. Nos termos do contrato assim celebrado entre o A. e os referidos RR., aquele emprestou a estes mais a dita importância de Euros 1.737,00, com juros à taxa nominal de 18,269% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão com imposto de selo incluído, o imposto de selo de abertura de crédito e os prémios dos seguros de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 24 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 10 de Junho de 2009 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes (…). 23. De harmonia com o acordado entre as partes (…) a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga - conforme ordem irrevogável logo dada pelo R. marido para o seu Banco - mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para uma conta bancária titulada pelo ora A. (…). 24. Conforme também expressamente acordado (…) a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações, tendo estas o valor constante do contrato, ou seja o valor de euros 88,63 cada. (…). 25. A. e RR. expressamente acordaram, conforme consta da Cláusula 8.ª, alínea b) das Condições Gerais do referido contrato, que “A falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento, implica o imediato vencimento de todas as restantes incluindo juros remuneratórios e demais eventuais encargos incorporados no montante de cada prestação mencionada nas condições particulares.” (…). 27. Mais foi acordado entre o A. e os referidos RR. (…) que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada 18,269% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 22,269%. (…) 31. Os referidos RR., das prestações referidas, não pagaram a 15.ª prestação e seguintes vencida a primeira em 10 de Agosto de 2010, - num total de 10 - , vencendo-se então todas do montante cada uma de Euros 88,63, conforme antes referido. 32. Os referidos RR. não providenciaram às transferências bancárias referidas - que não foram feitas - para pagamento das ditas prestações, nem os referidos RR., ou quem quer que fosse por eles, as pagou ao A. (…).
5. As prestações em dívida pelos requeridos, no total de 15, respeitantes ao contrato de mútuo n.º ...91, totalizam o montante de € 806,80.
Quanto a factos não provados, consignou-se na decisão recorrida que «nada ficou por provar».
O DIREITO
Em crise está a decisão proferida no incidente de liquidação que julgou parcialmente procedente o incidente de liquidação nos termos acima referidos.
Insurge-se a recorrente contra esta decisão, por entender que o Tribunal a quo interpretou erradamente a referência ao máximo valor pecuniário peticionado constante da sentença declarativa.
Não suscita dúvidas que a liquidação da sentença destina-se tão somente a ver concretizado o objeto da sua condenação (genérica), mas, obviamente, sempre respeitando - ou nunca ultrapassando - o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, tem forçosamente de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença.
Assim decidiu o acórdão do STJ de 22.5.2014[1], com o seguinte sumário:
«I - A liquidação (processada como incidente nos termos dos arts. 378.º do CPC em vigor quando a acção se iniciou e atualmente nos arts. 358.º e ss.) destina-se a «fixar o objeto ou a quantidade» da condenação proferida em termos genéricos, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 609.º do CPC, não podendo contrariar o que ficou julgado, nomeadamente, corrigindo-o.»
Será que o julgado na sentença proferida no processo principal na parte atinente à condenação genérica foi desrespeitado na decisão ora recorrida? E em termos de se poder dizer que tal decisão violou o caso julgado formado naquela sentença.
Em breves considerações sobre o caso julgado, dir-se-á que não está aqui em causa a exceção dilatória de caso julgado, mas, sim, uma alegada autoridade do caso julgado (formado pela referida sentença no processo principal).
Às decisões judiciais que versem sobre a relação material controvertida, quando transitadas em julgado, é atribuída força obrigatória dentro e fora do processo nos limites subjetivos e objetivos fixados nos artigos 580º e 581º do CPC e nos precisos termos em que julga, como se preceitua nos artigos 619º, nº 1, e 621º do mesmo Código, com o que se forma o denominado caso julgado material.
No que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina[2] quer a jurisprudência[3] têm distinguido duas vertentes, a saber:
a) – uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.
Quanto à função negativa ou exceção de caso julgado, é unânime o entendimento de que, para tanto, tem de se verificar a tríplice identidade estabelecida no artigo 581º do CPC: a identidade de sujeitos; a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.
Já quanto à autoridade de caso julgado, existem divergências. Para alguns, entre os quais Alberto dos Reis[4], a função negativa (exceção de caso julgado) e a função positiva (autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma moeda, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade. Segundo outra linha de entendimento, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado[5].
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[6], «(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida».
Por sua vez, no respeitante aos limites objetivos do caso julgado, Teixeira de Sousa escreve o seguinte[7]:
«O caso julgado abrange a parte decisória …, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (…).
Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.
(…)
O caso julgado da decisão também possui valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. Excluída está, desde logo, a situação contraditória: se, por exemplo, o autor é reconhecido como proprietário, então não o é o demandado (…).
Além disso, está igualmente afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.»
Assim, «a autoridade do caso julgado material implica o acatamento de uma decisão de mérito transitada cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de outra ação a julgar posteriormente, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa»[8].
Para tal efeito, embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, tem vindo a ser sustentado maioritariamente, na esteira da doutrina defendida por Vaz Serra[9] que a força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, (…).»[10]
Revertendo ao caso concreto, temos, antes de mais, que ver e interpretar devidamente o que foi decidido na sentença cujo dispositivo aqui está sob liquidação, qual o seu âmbito ou objeto preciso, pois só assim podemos aferir duma possível ofensa do aí julgado por banda da decisão proferida no incidente de liquidação, aqui em crise.
A sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro ato jurídico, a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos [art. 295º do CC][11].
Vale isto por dizer que, sendo a sentença um ato jurídico formal, regulamentado pela lei de processo e implicando uma objetivação da composição dos interesses nela contida, a sua interpretação deve ser feita de acordo com os critérios estabelecidos nos arts. 236º, nº 1 e 238º, nº 1, ambos do C. Civil, ou seja, tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, não podendo valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso[12].
E isto sem esquecer, como salientou o Acórdão do STJ, de 03.02.2011[13], que a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, correspondendo, antes, ao resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objetivo a essa situação, pelo que, importa ter em consideração, não só que o declarante se encontra investido na função de aplicador da lei e, por isso, obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no art. 9º do CC, como também a correlação lógica e teleológica entre a pretensão em apreciação, os fundamentos de facto e de direito em que assenta o dispositivo decisório e este, tudo à luz da sua estrita conexão, desenvolvimento e interdependência.
Mas, para além de tudo isto, importa salientar que, para alcançarmos o verdadeiro sentido de uma sentença, a sua interpretação não pode assentar exclusivamente no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar e analisar todos os antecedentes lógicos, que a suportam e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência[14].
Transpondo estas considerações gerais para a especificidade do caso dos autos, verifica-se que na decisão recorrida se entendeu, no que tange ao contrato de credito pessoal, que «a sentença condenatória no seu dispositivo, a interpretar com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso (cfr. artigos 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil) , fixou como limite máximo da soma de capital, juros e imposto do selo o valor pecuniário de € 1.017,33 peticionado pela requerente na presente ação, pelo que deverá a condenação genérica ser liquidada até ao limite deste montante».
E idêntico raciocínio se fez relativamente ao contrato de mútuo.
Porém, lendo atentamente o dispositivo da sentença liquidanda, apreende-se com a devida precisão, o que está em causa no incidente de liquidação: determinar/fixar as quantias a pagar à autora correspondentes às prestações de capital devidas pelos réus/requeridos no âmbito dos contratos de crédito pessoal e de mútuo acima referenciados, tendo por limites máximos os valores pecuniário peticionados [€ 1.017,33 no contrato de crédito pessoal e € 8.187,53 no contrato de mútuo].
É isto que também se colhe da fundamentação da sentença, onde a respeito do contrato de crédito pessoal REN nº 914491 se escreveu:
“Vejamos então quais as obrigações resultantes para o mutuário devido ao referido incumprimento. Não oferece dúvidas que a autora tem direito a receber dos réus o valor correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de juros moratórios desde 10/08/2010 à taxa anual de 22,269% e do imposto de selo respectivo, até integral pagamento, vista a matéria de facto provada, o teor da cláusula 9ª das Condições Gerais, e o disposto no artigo 781º do Código Civil. Mas, porém, terá a autora direito ao valor que reclama a título de juros remuneratórios, sobre o capital em dívida?” (destaque nosso).
Significa isto que a única parte do pedido objeto de discussão foi a existência, ou não, de legitimidade para peticionar juros remuneratórios e não juros moratórios, que a sentença de forma expressa entendeu serem devidos até integral pagamento nos termos peticionados, tendo o Tribunal a quo concluído não ter a autora direito aos juros remuneratórios sobre o capital em dívida, invocando, além do mais, o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça, nº 7/2009, de 25.03.2009.
Resulta assim evidente que a única limitação ao pedido formulado na ação pela autora/recorrente, é aquele que se reporta ao montante de juros remuneratórios, tendo no demais o pedido sido julgado procedente.
No que concerne ao contrato de mútuo nº ...17, a posição do Tribunal a quo foi exatamente a mesma, pelo que nos escusamos aqui de repetir o que acima escrevemos.
Fica assim expresso que a sentença proferida na faze declarativa, foi a de julgar a ação parcialmente procedente, sendo que a improcedência do pedido formulado respeita única e exclusivamente à matéria dos juros remuneratórios peticionados.
Fica também expresso que o dispositivo daquela sentença relativo aos juros de mora reclamados, quanto aos dois contratos, é de simples cálculo aritmético, estando balizada a data de início da contagem dos juros, a sua taxa e a referencia expressa até integral pagamento da dívida reclamada.
A parte não líquida da sentença, e que carecia de liquidação, é a que respeita ao capital reclamado que deveria ser expurgado de juros remuneratórios.
Como bem aduz a recorrente nas alegações, «não conhecendo o Tribunal qual o valor do capital inserido nas prestações incumpridas, de ambos os contratos, é compreensível a limitação, a que é feita referência na parte decisória da ação declarativa, na medida em que, não poderia vir a ser reclamado mais capital, expurgado de juros remuneratórios, do que aquele que foi reclamado na petição inicial e que incluía juros remuneratórios».
Ademais, não consta da fundamentação ou do dispositivo da sentença qualquer limitação temporal ou de montante ao que são os juros reclamados a título de mora, até porque é referido, para ambos os contratos, «acrescidas de juros desde 10/06/2009 à taxa anual de 22,269%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento» e «acrescidas de juros desde 10/10/2010 à taxa anual de 22,650%, e imposto de selo respectivo, até integral pagamento».
Assim, a interpretação feita na decisão recorrida quanto à limitação do vencimento de juros moratórios, não tem suporte na sentença liquidanda, sendo que a única limitação temporal quanto a esses juros é a eventual prescrição, nos termos legais, ou ao pagamento integral da dívida.
Por conseguinte, o recurso merece provimento.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida na parte relativa aos segmentos das alíneas a) e b) do dispositivo que limitam o montante devido a título de juros de mora às quantias de € 1.017,33 e € 8.187,53, respetivamente, consignando-se que a única limitação temporal a que esses juros estão sujeitos é a referente à eventual prescrição, nos termos legais, ou ao integral pagamento da dívida como decorre da sentença proferida na ação declarativa.
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Évora, 12 de julho de 2023
Manuel Bargado (Relator)
Elisabete Valente (1ª Adjunta)
José Lúcio (2º Adjunto)
(documento com assinatura eletrónica)
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[1] Proc. 451/2001.G1.S1, in Sumários – Cível- 2014, p. 321, citado no acórdão do STJ de 16.12.2021, proc. 970/18.2T8PFR.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Vide, entre outros, Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 38-39; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 572; Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008, p. 354.
[3] Cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 20.06.2012, proc. 241/07.0TTLSB.L1.S1, de 28.03.2019, proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1 e de 02.12.2020, proc. 4278/19.8T8GMR.G1.S1, disponíveis, como os demais adiante citados sem indicação de origem, em www.dgsi.pt.
[4] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, pp. 92-93.
[5] Cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 13.12.2007, proc. 07A3739, de 06.03.2008, proc. 08B402, de 23.11.2011, proc. 644/08.2TBVFR.P1.S1 e o citado acórdão de 20.06.2012 e, ainda, os autores citados na nota de rodapé 3.
[6] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª Edição, Almedina, p. 599.
[7] Ob. cit., pp. 578-579.
[8] Cfr. o citado acórdão do STJ de 28.03.2019, que aqui seguimos de perto.
[9] Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 110º, p. 232.
[10] Cfr. o citado acórdão do STJ de 20.06.2012.
[11] Acórdão do STJ de 05.11.2009. proc. 4800/05.TBAMD-A.S1.
[12] Cfr. Acórdão do STJ de 01.07.2021, proc. 726/15.4T8PTM.E1.S1.
[13] Proc. 190-A/1999.E1.S1, citando os acórdãos do STJ, de 05.11.1998, proc. 98B712 e de 28.01.1997, in CJ, Ano V, tomo I, p. 83.
[14] Neste sentido, Castanheira Neves, in RLJ, 110.º, pp. 289-305, e Pinto Furtado, citando Betti, in O Direito, Anos 106.º-119.º, p. 46, citados no acima referenciado acórdão do STJ de 01.07.2021.