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FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
UNIDADE MÍNIMA DE CULTURA
NULIDADE
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
Sumário
I - O acordo amigável extrajudicial entre comproprietários sobre o fracionamento de um imóvel rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, colide com a norma do artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil, determinando a infração dessa norma a nulidade do ato de fracionamento (artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil). II - A invocação das regras da usucapião tendentes à aquisição originária do direito de propriedade, sem oposição dos Réus, bem como a confessada intenção dos Autores de contornarem a referida prescrição legal, não corresponde a um interesse em agir baseado na procura de uma tutela jurisdicional adequada e necessária à defesa do alegado direito ou ao afastamento do estado de incerteza grave e objetivo do mesmo. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
AA e BB intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e DD, EE e FF, GG, HH e II, pedindo:
«a) Se declare que o prédio rústico sito em …, na freguesia da Mexilhoeira Grande, concelho de Portimão, composto de figueiras, oliveiras, eucaliptos, horta, cultura arvense e ruinas de prédio urbano (este com a área de construção de 185 m2, com logradouro, possuído a área total de 1 250 m2), a confrontar do norte, com …; do sul, com …; do nascente, com …, e do poente, com Ribeira, com a área de 4,705 ha, inscrito na matriz cadastral nº … da secção B e na matriz urbana nº …, todas da freguesia da Mexilhoeira Grande, deste concelho e Portimão, e descrito na conservatória do Registo Predial de Portimão sob o nº … livro B-24 ( hoje descrito sob o nº …), se encontra materialmente dividido, por usucapião, em três parcelas, distintas e autónomas, designadas pelas letras A, B e C no levantamento topográfico aqui junto como Doc. Nº 10, com as áreas respectivamente de A =17 823 m2; B = 14 316 m2 e C = 14 911 m2.
b) Se declare que os AA adquiriram por usucapião a parcela designada com a letra C do prédio apontado em a), com a área de 14 911 m2 (catorze mil novecentos e onze metros quadrados), sendo donos e legítimos possuidores da mesma parcela e que esta é distinta e autónoma em relação às demais parcelas, sita em …, na freguesia da Mexilhoeira Grande, concelho de Portimão, composta de figueiras, oliveiras, eucaliptos, cultura arvense, horta, a confrontar do norte, com …; do sul, com …; do nascente, com … e do poente, com ribeira.
c) Se condene os RR a reconhecerem, quer a divisão por usucapião do dito prédio naquelas três parcelas distintas e autónomas (identificadas em a), quer a parcela pertencente aos AA, designada pela letra “C” e estes como donos, proprietários e legítimos possuidores daquela mesma parcela;
d) Condenar-se os RR a reconhecerem e a acatarem a constituição e existência de tal parcela de terra como autónoma, distinta e independente, dividida e demarcada, assim como o direito de propriedade dos AA sobre o mesma, e a se absterem de praticar actos que perturbem ou impeçam aos AA o uso da dita parcela/prédio ou o exercício do direito de propriedade, ou de outro com este conexo, sobre a mesma parcela.
E ainda:
e) Declarar-se a aquisição por usucapião pelos AA da propriedade de 1/3 da água do referido charco e dos demais direitos constantes do alegado nos artigos 59 a 73, ambos inclusive.
f) Condenar-se os RR a reconhecerem e a acatarem os direitos dos AA, e sequentes aquisições, correspondentes ao pedido indicado na alínea e) e a se absterem de praticar actos que lhes perturbem ou impeçam o exercício daqueles mesmos direitos e dos que com estes estejam conexos.»
Alegaram que o prédio rústico sito em …, na freguesia da Mexilhoeira Grande, concelho de Portimão, atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o nº …, foi propriedade dos progenitores do Autor e que estes o doaram, há mais de trinta e cinco anos, aos seus filhos, ou seja, ao ora Autor, a JJ (entretanto falecido) e a HH, os quais acertaram a divisão do prédio em três parcelas distintas, que distribuíram entre si amigavelmente, tendo procedido à marcação dos limites de cada parcela e à colocação dos respetivos marcos em pedra e passado a cuidar, cultivar, colher de cada uma das parcelas de terreno que lhe foi destinada, no convencimento de que cada parcela lhes pertencia como prédio autónomo e que não prejudicavam ninguém.
Mais alegaram que têm estado na posse da parcela de terreno que lhes coube e que identificaram com a letra “C”, e que o fazem de forma pacifica, pública, à vista de toda a gente e de boa-fé, desconhecendo lesarem direitos de terceiros, convictos que exercem os direitos correspondentes a propriedade plena sobre a aludida parcela, como, aliás, também tem acontecido com os demais donatários em relação às parcelas que fizeram suas no seguimento do fracionamento acordado.
Também alegaram que se encontra construída no prédio que foi tripartido, com localização nas parcelas designadas pelas letras A, B e C, também desde há mais de trinta e cinco anos, uma reserva de água – vulgo charco - alimentado apenas pela retenção de águas pluviais, com a área de 1 883,00 m2. Água essa que é encaminhada para as três hortas existente, e cujos encargos foram e são suportados igualmente por todos os donatários titulares das respetivas parcelas, os quais suportaram e suportam, de igual forma, os custos inerentes à conservação do dito charco, sendo que para cada uma das parcelas se encontra, desde sempre, acordado e cumprido por todos os respetivos titulares, em conformidade com os seus interesses, o uso semanal de dois dias de água. E daí que, na proporção de 1/3 para cada um, são os Autores e Réus os titulares/proprietários das parcelas, em comum e partes iguais daquela água, enquanto o mesmo charco existir.
Regularmente citados os réus não contestaram.
O tribunal a quo ordenou a notificação dos Autores para querendo se pronunciarem quanto à eventual verificação da exceção dilatória insuprível de falta de interesse em agir, por não se achar descrita na petição inicial qualquer situação de oposição dos Réus aos pretensos direitos dos Autores.
Os Autores apresentaram requerimento onde defendem que, no caso, existe interesse em agir, nos seguintes termos:
«Com efeito, há que ter presente, para além de as partes estarem de acordo quanto à divisão do prédio mãe (de sequeiro e com a área de 4,705 hects, indicado em 9, 11, 13, 16 e 27 da p.i.) nas parcelas que ajustaram entre si, que demarcaram e que desfrutam (situação de que, eventualmente, se poderia vir a falar de tal excepção dilatória), que algo existe que lhes ultrapassa, nas suas vontades/acertos, para que tal acordo possa ser concretizado, e que não depende de quaisquer concordâncias entre elas. É o caso de se confrontarem com a indivisibilidade do prédio mãe, à luz do que se encontra legislado sobre a unidade de cultura decidida para esta zona do país (portaria 19/2019, de 15 de Janeiro e artº 1376, nº 1 do C.C. indicados em 48, 51 e 52 da p.i.) do qual resultaram as três parcelas identificadas nos autos (em 28 da p.i.) - entre as quais se encontra a que os AA reclamam ter adquirido por usucapião, com a área de 14.911,00m2, (parcela “C” indicada em 27, 34, , 35 e 51 da p.i.) - por as referidas partes entenderem não continuar na indivisão e terem operado a divisão de coisa comum, assente no prédio identificado em 41 da p.i.
Por isso, salvo sempre o devido respeito, não se poderá deixar de atender ao que foi dito na p.i., entre o mais, nos artigos 16, 23, 25, 28, 30, 31, 32, 34, 35, 41, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 74 e 75 (por lapso, ao fim da p.i. indicado com o nº 60 ), e, já agora, no que consta das alíneas c) e d) do pedido formulado no articulado dos AA.
Aliás, toda a jurisprudência ali invocada, que aqui se dá por reproduzida, admite a divisibilidade do prédio mãe (e formação das parcelas aludidas) nos termos em que está referenciada ao longo da p.i.
(…)
É bem certo que noutras circunstâncias, em que não existe confronto entre a divisão de um prédio rústico e o que se encontra legislado quanto a Unidade de Cultura de certa zona do país (portanto, o disposto na citada portaria 19/2019 e o artº 1376 do C.C.) se apontam as regras dos artigos 34, 116, 117-A, 117-B e 117-H-2 do Código do Registo Predial para a resolução de questões registrais, no caso de estar em causa apenas matéria que verse sobre o trato sucessivo, a partir ou não de aquisições de terrenos com base no instituto da usucapião. Mas nestes autos não é o trato sucessivo que está em discussão, como claramente se retira do articulado e da jurisprudência invocada.
Porém, na verdade, não se conhece que o Código do Registo Predial contenha disposições que contemplem um procedimento que as partes possam levar a efeito para o registo de aquisição por usucapião de parcela de prédio rústico quando está em causa a divisão do prédio em não conformidade com o disposto na citada portaria e artigo 1376 e seguintes do C. Civil, ou seja, quando o prédio dividido e as parcelas dele destacadas e a registar possuam área inferior à unidade de cultura prevista para certa zona do país.
(…)
Então, verifica-se que não há forma extrajudicial de os AA verem reconhecido o seu direito de se tornarem os únicos e exclusivos titulares da parcela “C” em causa, pois que sem a intervenção judicial todo o prédio mãe (e as mencionadas parcelas) permanecerá em regime de compropriedade entre AA e RR, o que, pelos vistos, não é o desejo de nenhuma das partes possuidoras das ditas parcelas.
Está, portanto, claro que a aquisição de tal parcela pelos AA, através do Instituto da Usucapião resultante da divisão de coisa comum exige confirmação judicial, nisso residindo o seu manifesto interesse processual na presente lide, pois que sem ela ficariam privados do direito a serem reconhecidos como únicos e exclusivos proprietários da dita parcela “C”, direito que a lei ( e a jurisprudência invocadas na p.i. ) manifestamente lhes confere.
Estamos, então, perante um conflito de interesses (de que a falta de contestação dos RR nem o pode negar), pelo que só com a decisão do tribunal é que a parcela dos AA será destacada do todo do prédio mãe, vivendo-se grave e objectivo estado real de incerteza que pode comprometer o valor ou negociabilidade da própria relação jurídica e põe em causa o direito dos AA.
Para além de que, em caso de indivisibilidade do terreno, como acontece nos presentes autos, ainda prevê ao artº 1379, nºs 2, 3 e 4 do C .C., que pode haver lugar à acção de anulação pelo M.P. a intentar no prazo de três anos a contar da data da operação. Podendo, também aqui, assentar a incerteza dos AA em poderem concretizar a divisão que pretendem por causa das áreas previstas para a unidade de cultura nesta zona do país.
A questão da aquisição por usucapião, colocada pelos AA nestes autos, tem de ser apreciada e decidida em processo litigioso, (sob pena de estes se confrontarem com um total bloqueio aos seus direitos) não sendo possível, como ficou dito, resolvê-la em processo de justificação na Conservatória do Registo Predial. Pelo que se terá de reconhecer ao tribunal onde correm os presentes autos, competência para se pronunciar sobre a referenciada unidade de cultura.
Tendo em consideração o que consta da citada portaria e do artigo 1376 do C.C., se a invocação da aquisição por usucapião levasse, em termos automáticos, à divisão de um terreno em prejuízo do respeito pelas normas que regulam a unidade de cultura, então estar-se-ia a abrir caminho para deixar de respeitar as regras de ordem pública decorrentes daquelas normas, sem necessidade de se submeter a questão à apreciação jurisdicional, o que, diga-se em abono da verdade, era um porta escancarada para a prática de conluios e de fraude em tal área de divisão de prédios rústicos.
Daí que, mais uma vez se diga que, não só existe interesse em agir por parte dos AA, como existe a necessidade de intervenção do tribunal. Não sendo, para a questão em apreço, a Conservatória do Registo Predial competente para atender ao pedido dos AA.
Por fim e por tudo o que fica dito, o acordo firmado pelas partes descrito na p.i., não pode viabilizar, sem mais, a aquisição da parcela “C” pretendida pelos AA, levando ao reconhecimento da divisão do prédio mãe, tendo tal divisão de ser apreciada pelo tribunal, em face do litígio que existe no confronto com as normas legais referidas, dado não ser possível resolver a questão de forma extrajudicial.»
Em sede de despacho saneador, o tribunal a quo apreciou a questão prévia da falta de interesse em agir, decidindo do seguinte modo:
«O interesse processual ou interesse em agir, tem sido concebido como pressuposto processual referente às partes e porque não previsto expressamente, é havido como pressuposto processual inominado, que avulta em especial do lado do autor, que é de conhecimento oficioso e cuja falta gera a absolvição da instância (art.288 nº1 e) CPC).
O fundamento para erigir o interesse em agir em pressuposto processual contende com o objetivo de evitar ações inúteis, pois se a lei proíbe a prática de atos inúteis (art.130 do Cod. de Proc. Civ), por maioria de razão proibirá ações inúteis. “Nas palavras de Antunes Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, «o interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção»; trata-se da «necessidade justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção»[10]. Assim, subjacente a qualquer acção judicial de natureza civil está, necessariamente, um conflito entre interesses particulares, pelo que «quando o autor não configura, através dos factos que articula, a existência de um conflito de interesses com o réu, não existirá da sua parte interesse em agir» [11]. – Citações extraídas do Acórdão da Relação do Porto de 10.01.2022, Proc. n.º 129/21.1T8VGS.P1, disponível em www.dgsi.pt., no qual foi decidida questão idêntica.
Na presente situação não existe nenhum conflito de interesses entre os autores e os réus.
E inexiste igualmente qualquer situação efetiva lesão de um qualquer direito dos proponentes ou de ameaça de lesão desse mesmo direito.
Segundo o que foi alegado, vivem todos de forma muito pacifica, respeitando os direitos de propriedade e de compropriedade de que se arrogam titulares. E daí que os demandados nem sequer tenham contestado a presente ação.
Ora, os tribunais têm por função para dirimir litígios, não competindo ao referido órgão de soberania, num contexto de perfeita paz social, proceder à fabricação de títulos com vista a que partes logrem praticar atos de registo. E ainda que atual redação do art.º 1379º/1 do C. C., na versão dada pela Lei 111/2015, de 27-08, possa, no plano notarial, ser tida como obstativa da realização de uma escritura de justificação notarial, sucede que a eventual inconstitucionalidade de tal norma - que uma vez assim interpretada, acaba por derrogar o instituto da usucapião e colocar, igualmente, em causa o direito de propriedade privada - deve ser arguida em sede própria, ao invés de se provocar a intervenção do tribunal para solucionar um litigio que é absolutamente inexistente.
Pelo que nessa sequência, num contexto em que não cumpre dirimir qualquer litígio e ou conflito de interesses entre as partes, a presente ação revela-se, pois, desnecessária, se não mesmo inútil, podendo, pois, afirmar-se que os autores carecem de interesse em agir.
E, como vem sendo acolhido pela nossa doutrina a falta de interesse em agir, embora não esteja tipificado na nossa lei adjetiva (artigo 577.º do Cod. Proc. Civ), é caracterizada como exceção dilatória – nº 2 do artigo 576. º do Cod. Proc. Civ – de conhecimento oficioso – artigo 578º do Cod. Proc. Civ – – e que verificada determina a absolvição da instância.
Assim, sendo resta-nos considerar que estamos em presença de uma exceção dilatória inominada da falta de interesse em agir dos autores, cuja procedência determina a absolvição da instância dos réus.»
Concluindo no dispositivo:
«(…) verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir por parte dos autores e absolve-se, consequentemente, os réus da instância.»
Inconformados, os Autores interpuseram recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
A. - Quer a matéria de facto, quer a matéria de direito alegadas na p.i. e na resposta dos AA à notificação que lhes foi dirigida pela Srª Juíza foram, no essencial, ignoradas na douta sentença em recurso;
B. - A douta sentença, do muito que havia a considerar, simplesmente se dignou, sem mais nada, considerar o alegado em 23-24-26-36-39 e o facto de os RR não terem contestado à acção para decidir que havia falta de interesse em agir por parte dos AA;
C. - Não se pode garantir que os AA. estejam seguros quanto à defesa dos seus direitos/interesses que reclamam nestes autos sem que exista decisão judicial;
D. - O facto de se desenhar na p.i. algum acordo com os RR e de estes não terem contestado a acção, nada pode garantir no futuro em favor dos AA pois que tanto os mesmos RR, como seus sucessores, de um dia para o outro podem voltar atrás em tais concertos e obrigar de novo os AA a virem a juízo pelas mesmas razões colocadas na agora p.i.;
E. - E não cuidou a mesma sentença de considerar a incerteza de no futuro poder existir o acordo a que agora deu guarida, para viabilizar qualquer escritura notarial possível. Como não considerou que os AA – como qualquer comum cidadão – o que pretendem é contar com a segurança jurídica dos seus direitos/interesses em qualquer momento das suas vidas.
F. - Tão pouco se ateve na verificação dos requisitos da usucapião invocados pelos AA como forma de aquisição da sua parcela de terreno;
G. - De igual modo, não se debruçou sobre o facto de estarem em causa parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura determinada para o Algarve e de a pretensão dos AA poder ofender ou não as disposições dos artigos 1376 e 1379 e da portaria 19/2019, o que não devia deixar de fazer para decidir a falta de interesse em agir;
H. - Não considerou a douta sentença que eventual acordo entre as partes na matéria de facto alegada não poderá contrariar normas de interesse público existentes a que se houvesse de atender na pretensão dos AA;
I. - Ignorou a douta sentença o alegado pelos AA sobre a recusa dos notários em levar por diante escrituras de justificação estando em causa o fraccionamento terrenos em parcelas com área inferior à unidade de cultura. Referindo apenas que os tribunais não fabricam documentos com vista ao registo predial, quando o que está em causa, em primeiro lugar, é o documento que opere a divisão do terreno e depois , então, o registo referido;
J. - A decisão da falta de interesse em agir, alicerçada no artº 3º do CPC, afigura-se interpretada restritivamente, e que não teve devidamente em conta o disposto no artº 9º do C.C. (será que neste preceito legal não se terá de considerar uma interpretação que considere todo o trabalho e tempo ocupado na tramitação a que o processo obriga, desde a sua entrada no tribunal até ao transito em julgado, incluindo recursos eventuais, o que pode negar a questão do alívio dos tribunais?) . Pois que, continuando a decretar-se tão simplesmente a falta de interesse em agir, da forma como tem acontecido, verifica-se haver frustração da visão que defende que um tal tipo de decisão tem em vista aliviar os tribunais do afogadilho de processos;
K. - Uma tal visão só teria eficácia prática se fosse possível levar a efeito a triagem dos processos à sua entrada no tribunal para verificar ali a falta de interesse em agir, pois que no momento em que é proferida decisão naquele sentido todo o processo já foi analisado pelo Sr Juiz e este estará em condições de decidir sobre o pedido;
L. - Não sendo assim, todos os processos igualmente (uns e outros) prosseguem a sua marcha na tramitação normal - p.i.; contestação, incidentes e as diversas diligências que se adequem, saneamento, e só aqui, depois de tanto trabalho e tempo a ocupar magistrados e funcionários, é que surge a verificação da falta de interesse em agir, para, depois, sendo esta a decisão, se seguirem os recursos que forem possíveis. Então o que é que se ganha agora com aquele decretamento, se todo o processo já foi estudado e só há que decidir em face da razão dos AA ou falta dela? E quanto à economia processual, o que se dirá?
M. - Fazendo fé no que foi decidido pelo Ac. da Relação de Coimbra acima referenciado, a indivisibilidade imposta pelo artº 1376 do C.C. não é absoluta, podendo o prédio ser fraccionado em parcelas com área inferior à unidade e cultura, nomeadamente se os interessados as usucapiram;
N. - A verificação da usucapião invocada, as suas consequências e os factos controvertidos têm de ser apreciados e decididos em processo litigioso e não em processo de justificação;
O. - Admitir-se, sem mais, haver acordo das partes para decidir questões da forma como foram decididas nestes autos, poderá servir para se dissipar dificuldades de ordem publica com origem no artº 1376 do C.C.
P. - Existe litígio efectivo, como existe interesse em agir por parte dos AA.
Não foi apresentada resposta ao recurso.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos e ocorrências processuais relevantes para apreciação do objeto do recurso constam do antecedente Relatório.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 3 e 4, 639.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, do CPC), cumpre apreciar e decidir se, na configuração da presente lide, existe interesse em agir por parte dos Autores.
2. Os recorrentes não questionam que, por via da falta de contestação dos Réus e dos efeitos previstos nos artigos 566.º e 577.º, n.º 1, do CPC, os factos que alegaram na petição inicial relacionados com divisão amigável do prédio em parcelas com área inferior à unidade de cultura e os relacionados com os requisitos da usucapião, se consideram admitidos por acordo e que daí resultará, com elevada probabilidade, a procedência da ação.
Também não escondem que a presente ação não radica num conflito entre Autores e Réus, invocando apenas um eventual desacerto no futuro que possa justificar uma demanda, embora nada aleguem no sentido de tal facto futuro e incerto possa vir a ocorrer.
Também reconhecem que a presente ação é intentada porque se verifica a «(…) recusa dos notários em levar por diante escrituras de justificação estando em causa o fraccionamento terrenos em parcelas com área inferior à unidade de cultura», admitindo também que ao caso não é aplicável o processo de justificação notarial, pelo que, não pretendendo manter-se em situação de compropriedade e pretendendo efetuar o registo da sua parcela, visam obter uma sentença que legitime a divisão que fizeram do prédio-mãe, ainda que daí decorra a violação da proibição do artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil.
Ora, a questão que os Autores colocam ao tribunal recorrido, e agora em sede de recurso discordando do decidido, já tem sido objeto de decisão em vários arestos nos nossos tribunais superiores.
Considerando o que vem disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, na presente análise deve levar-se em conta o sentido decisório dessa jurisprudência em ordem a salvaguardar, dento da medida do possível e com as devidas adaptações que justifiquem aplicáveis ao caso concreto, a aplicação uniforme do direito.
A caraterização do interesse em agir tem sido moldada pela doutrina e jurisprudência uma vez que esta figura jurídica não se encontra plasmada na letra da lei.
Desses ensinamentos e interpretações em face de casos concretos, é de realçar os traços que caracterizam o interesse em agir.
Assim, e essencialmente, MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p.79 e ss) defendia que havia interesse em agir em situações em que «o direito do demandante está carecido de tutela judicial», daí o interesse de recorrer ao processo, enquanto «arma judiciária», sublinhado que «não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.»
ANTUNES VARELA (et al., Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 179 e ss.) acentuava que a «necessidade de tutela judiciária» por parte do autor significa a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual. Embora sublinhasse que podia não ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada, arredando, contudo, as situações em que a demanda visa satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjetivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. Consequentemente, na sua visão, a «necessidade de tutela judiciária» éuma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação – mas não mais do que isso.
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (As Partes, o Objeto e a Prova na Ação Declarativa, Lex Edições Jurídicas, abril de 1995, p. 97), considera que o interesse em agir se traduz no «interesse da parte ativa em obter a tutela judicial de uma situação subjetiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela.»
Por sua vez, para FERREIRA DE ALMEIDA (Direito Processual Civil, I, Almedina, 2010, p. 446), o interesse em agir consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo, o que se verificará em caso de indisponibilidade de outros expedientes (extrajudiciais) de realização da tutela judiciária pretendida, seja porque tais meios, na realidade, não existem, seja porque, existindo, se encontram já exauridos.
REMÉDIO MARQUES (A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 394) refere que «A exigência da verificação do interesse processual contribui para retirar dos tribunais os litígios cuja resolução por via judicial não é indispensável nem necessária, e serve de freio, pois previne a dedução precipitada ou não refletida de ações».
Na jurisprudência é comumente aceite que o interesse em agir é um verdadeiro pressuposto processual inominado determinante da absolvição da instância (artigos 576.º, n.º 1 e 2, e 577.º, alínea b), do CPC).
Em regra, o interesse em agir tem sido analisado em ações de simples apreciação positiva por com as mesmas se visar obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do CPC).
Daí que, na configuração da causa de pedir da ação de simples apreciação positiva, seja necessário a invocação com vista à demonstração do interesse na propositura da mesma, ou seja, a necessidade em obter a declaração judicial da (in)existência de um direito.
Surgem, porém, situações como a dos autos em que, a par de pedidos que se alinham na ótica dos pedidos típicos das ações de simples apreciação positiva, também se encontram cumulados com pedidos condenatórios próprios destes tipo de ações (artigo 10.º, n.ºs 1, 2 e 3, alínea b), do CPC).
De qualquer modo, o recurso a juízo pressupõe uma situação de litigiosidade entre as partes decorrente da violação ou ameaça de violação do direito de outrem, ou, um estado de incerteza grave e objetivo desse direito, sendo que, em qualquer dos casos, a factualidade alegada deve refletir a necessidade de intervenção judicial que afaste a lesão ou ameaça de lesão do direito ou o referido estado de incerteza.
No Acórdão da Relação de Guimarães datado de 22-09-2022 (proc. n.º 65/21.1T8EPS.G1m disponível em www.dgsi.pt), numa situação com contornos fácticos muito análogos aos da presente lide, encontra-se uma ampla resenha jurisprudencial sobre a temática que, com a devida vénia, aqui extratamos por ser muito elucidativa do modo como os nossos tribunais têm enfrentado e decidido a questão.
Lê-se no referido Acórdão:
«AcRE de 12/07/2007, processo nº 728/07-3, disponível em www.dgsi.pt, tais como os mais citados: O artº 116º do Código do Registo Predial estabelece que aquele que não disponha de documento para efetuar a primeira inscrição de um prédio no registo predial, a pode obter através de escritura de justificação notarial ou do processo de justificação consagrado no CRP. São estes os dois meios que o legislador consagrou para o efeito, no caso de não haver conflitualidade sobre a questão, conforme se retira do artº 117, nº1, do CRP. Há falta de interesse em agir, por banda dos autores (ou dos réus), relativamente ao objeto da ação e ao pedido quando não existe uma situação de conflitualidade sobre o direito, ou seja, uma situação de incerteza objetiva e grave sobre o direito de que se arrogam, sustentada na divergência de terceiros sobre a matéria, pressuposto processual inominado essencial da instauração de uma ação de simples apreciação positiva. É nas ações de simples apreciação que o apuramento do interesse processual reveste maior acuidade. Destinando-se essas ações a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto (artº 4º, nº2, alínea a), do CPC), tem-se entendido que não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na ação. Por isso se tem sustentado que, nas ações de simples apreciação, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objetiva e grave, sob pena de não se verificar aquele requisito processual.”
Também nesta Relação de Guimarães, processo nº 293/09.8TBPTL.G1, de 23/02/2010: “O interesse em agir ou interesse processual consiste na necessidade justificada, razoável, em prosseguir a ação. Nas ações de simples apreciação, que se destinam a obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, o interesse em agir traduz-se numa situação de incerteza ou de dúvida grave e objetiva.”
No AcRL de 20/05/2010, processo nº 2001/08.1TBBNV.L1-2: “No domínio da ação de simples apreciação, para que haja interesse em agir exige-se a verificação de uma situação de incerteza objetivamente grave, de molde a justificar a intervenção judicial. Na ação declarativa de condenação – e deixando de lado o caso particular da ação condenatória em prestações periódicas ou futuras, fora dos casos previstos no artº 472º, do CPC, - o interesse processual está in re ipsa, isto é, na simples afirmação que o autor faz da violação do seu direito, como na ação declarativa constitutiva está na existência de um seu direito potestativo carecido de exercício judicial. Tratando-se o interesse em agir de um pressuposto processual relativo às partes a falta daquele integra uma exceção dilatória (processual).”
Ainda no acórdão desta Relação de Guimarães de 19/06/2014, processo nº 42/13.6TBMNC.G1 se decidiu que “O interesse processual ou interesse em agir deve traduzir-se numa necessidade justificada, razoável e fundada de recurso à ação judicial. Nas ações de simples apreciação, para quer haja interesse em agir, quanto à existência ou inexistência do direito ou do facto, deve a situação de incerteza ser objetiva e grave. Essa objetividade e gravidade devem subsumir-se em circunstâncias exteriores e prejuízo concretos e reais, não consubstanciando tal meras conjeturas, caprichos ou hipóteses académicas.”
No AcRL de 19/01/2017, processo nº 3583/16.0T8SNT.L1-2, decidiu-se que “O interesse em agir é também apelidado de interesse de agir, interesse processual, causa legítima da ação, motivo justificativo dela, necessidade de agir, ou necessidade de tutela jurídica. Como resulta de todas estas designações, consiste na necessidade de recorrer ao processo. O artº 3º do CPC estrutura a ação judicial – qualquer ação – na base de um conflito de interesses, e este evidencia-se numa ação de simples apreciação positiva, perante a configuração pelo seu autor, através de factos, de uma atitude do réu que implique colocar em dúvida o seu direito ou a consistência do mesmo, e implicando para esse direito, um grave e objetivo estado de incerteza que possa comprometer o valor ou negociabilidade da própria relação jurídica; e numa ação de condenação, na configuração pelo seu autor, igualmente através de factos, de comportamentos do réu que impliquem a violação pelo mesmo daquele direito, ou a ameaça dessa violação. Quando o autor não configura, através dos factos que articula, a existência de um conflito de interesses com o réu, não existirá da sua parte interesse em agir. A exigência da verificação do interesse processual contribui para retirar dos tribunais os litígios cuja resolução por via judicial não é indispensável, nem necessária.”
Novamente nesta Relação, no processo nº 3504/16.0T8BRG.G1, de 28/02/2019, decidiu-se que “Entre os pressupostos processuais referente às partes, deve incluir-se o interesse processual ou o interesse em agir. Embora a lei não lhe faça referência expressa, ele encontra-se perfeitamente identificado como tal na doutrina e na jurisprudência, que o consideram admissível no elenco não taxativo do artº 577º do CPC. O autor não tem interesse em agir se não tiver havido (ainda) qualquer lesão efetiva de um direito seu, nomeadamente de ordem patrimonial, servindo a presente ação apenas para prevenir uma lesão futura do mesmo. A interpretação do conceito de interesse em agir, como pressuposto processual que pressupõe a carência de tutela jurisdicional por parte do autor, não é violadora do artigo 20º da CRP.”
No AcRC de 26/04/2022, processo nº 82/21.1T8ALD.C1 considerou-se que “Visando o peticionado na ação e na reconvenção o reconhecimento/declaração de ter cada uma das partes adquirido por usucapião uma metade concreta, especificada, de um prédio rústico, sem incerteza quanto a tal aquisição ou litígio a respeito – antes resultando total sintonia de posições – no objetivo comum de alcançar um documento (sentença) que permita registar a aquisição do direito de propriedade invocado no processo, tem de concluir-se pela inexistência de interesse em agir de autores e reconvintes, com a decorrente absolvição da instância, e não pela incompetência material do tribunal. Com efeito, trata-se de pedido característico das ações de simples apreciação positiva, que não prescindem de uma situação de incerteza objetiva quanto à existência do direito, a qual não se verifica no caso. As partes podiam socorrer-se do processo de justificação previsto nos artºs 117º-B a 117º - O do Código do Registo Predial para obtenção de documento que servisse de base ao registo da aquisição do direito, pelo que tinham ao seu alcance um meio extrajudicial para obtenção do pretendido na ação, a qual se queda desnecessária.”
No AcRP de 10/01/2022, processo nº 129/21.1T8VGS.P1 decidiu-se que “o interesse processual ou interesse em agir, embora não autonomizado em geral, constitui um pressuposto processual relativo às parte, e a sua falta integra exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, a conduzir à absolvição da instância (cfr. alínea e), do nº 1 do artº 278º, nº2, do artº 576º, artº 577º e artº 578º, todos do CPC), exprimindo a necessidade do processo, pela essencialidade da tutela judicial, a adequação entre o direito que se pretende exercer e o caminho escolhido pelo autor. Tem como finalidade limitar a liberdade de ação do autor para agir em juízo por forma a, circunscrevendo o direito de ação às situações objetivamente carecidas de tutela jurisdicional, garantir a eficácia e o prestígio dos tribunais, aos quais se reservam, apenas, os casos de objetiva necessidade, merecedores de tutela judicial. Aferindo-se face à petição inicial, para que se verifique tal pressuposto processual tem o autor de invocar situação justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo para nele fazer valer direito seu carecido de tutela judiciária. Os princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça impõem solução equilibrada, por proporcional e adequada, que não vede o acesso necessário ou útil nem permita o acesso supérfluo e inútil. Estando entre o leque dos meios ao dispor dos autores, para fazer valer o seu direito ou salvaguardar o seu interesse, a via extrajudicial, não empreendida, falta o preenchimento do referido pressuposto processual e, na verificação da exceção dilatória inominada, têm os réus de ser absolvidos da instância, desnecessária.”
Igual solução se seguiu no processo nº 5005/21.5T8PRT.P1, de 4/05/2022, do mesmo coletivo.
Finalmente, no processo nº 70/21.8T8VGS.P1, de 4 de maio de 2022, “O interesse processual em agir conjuga a relação entre necessidade e adequação, de necessidade porque para a solução do conflito é imprescindível a atuação jurisdicional, e de adequação porque o resultado a obter deve corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como este a configura. Existe falta de interesse em agir numa ação em que o autor pede que seja declarada a aquisição por usucapião do direito de propriedade de uma parcela de um determinado prédio, sem que seja imputada aos réus qualquer oposição a essa titularidade ou ao exercício das faculdades a ela inerentes ou sem que se alegue uma situação objetiva de incerteza que ponha em causa a consistência desse direito.»
Feito este excurso, cumpre agora voltar à análise da situação trazida a juízo nestes autos.
Os Autores optaram por intentar uma ação de declarativa sob a forma de processo comum.
Como causa de pedir invocaram factos que consubstanciam a existência de uma doação verbal de um imóvel dos falecidos proprietários aos seus filhos, os quais por acordo amigável e informal, há mais de 35 anos, dividiram o prédio em três parcelas, que cada um dos três filhos dos doadores possui desde então como se fossem os seus proprietários (ora Autores e Réus), invocando a aquisição da respetiva titularidade através do instituto da usucapião.
Formularam pedidos típicos de uma ação se simples apreciação positiva (quando pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade – alíneas a), b) e e) do petitório) e pedidos típicos da ação de condenação (quando pedem a condenação dos Réus a reconhecerem esse direito – alíneas c), d), e f), do petitório).
Embora não seja absolutamente relevante para a decisão da questão controvertida em apreciação, sempre se recorda que, como referia, ANSELMO DE CASTRO (Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, vol. I p.. 126, nota 1), é normal, nas praxes forenses, em pedidos de mera declaração, concluir-se pela condenação do réu a ver reconhecido o direito ou relação jurídica. Fácil é ver, porém, que na realidade não há condenação alguma, visto não poder falar-se numa obrigação de reconhecimento de direito de outrem.
De qualquer modo, e independentemente da forma da ação e do modo como foram configurados os pedidos, a verdade é que os Autores não alegam que exista qualquer estado de incerteza ou de dúvida grave e objetiva sobre o direito que vêm invocar, nem que os Réus se oponham ao reconhecimento do mesmo.
No fundo, a petição inicial evidencia a falta de litigiosidade ou do estado de incerteza que justifica a demanda por uma tutela jurisdicional.
A falta de contestação veio, se dúvidas houvesse, confirmar a falta de dissídio ou controvérsia, pois as partes estão totalmente de acordo quanto aos direitos de cada um sobre as parcelas e sobre o como dividiram o prédio originando as mesmas. Até sobre o modo como dividiram o direito à utilização da água (charca) que serve o imóvel.
Alegam, contudo, os Autores que não têm outra forma de obter o reconhecimento jurídico da divisão do imóvel e de procederam ao respetivo registo.
Entendem, assim, que o seu interesse em agir reside no facto de apenas o tribunal poder decidir, com base nas regras da usucapião, confirmando, desse modo, a divisão do imóvel em parcelas autónomas com áreas inferiores à unidade de cultura.
Mas sem razão, em nosso entender.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 04-05-2022 (proc. n.º 70/21.5T8VGS.P1, disponível em www.dgsi.pt), relatado num caso com evidentes semelhanças em relação ao presente, justifica-se a falta de interesse em agir do seguinte modo:
«Ora, o apelante não estrutura a sua pretensão numa situação de existência de conflito ou de uma situação de incerteza, mas tão só na necessidade de obter um título que lhe permita registar a propriedade em seu nome.
E para o efeito a lei estabeleceu dois mecanismos destinados a suprir a falta de documento válido que legitime a inscrição no registo, meios esses de utilização necessária, estando vedado ao interessado recorrer aos meios judiciais em primeira linha: a escritura de justificação e a acção de justificação, previstas nos artigos 116.º e ss. CRP.
Assim, nos termos do n.º 1 deste artigo, O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.
E, de acordo com o n.º 2, Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do n.º 2 do artigo 34.º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 273/2001, de 13 de Outubro, que alterou a redacção deste artigo, deixou-se clara a intenção de desjudicialização desta matéria:
O presente diploma opera a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os próprios conservadores de registo, inserindo-se numa estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio.
Trata-se de uma iniciativa que se enquadra num plano de desburocratização e simplificação processual, de aproveitamento de actos e de proximidade da decisão, na medida em que a maioria dos processos em causa eram já instruídos pelas entidades que ora adquirem competência para os decidir, garantindo-se, em todos os casos, a possibilidade de recurso.
Passa assim a ser objecto de decisão por parte do conservador o processo de justificação judicial, aplicável à maioria das situações de suprimento de omissão de registo não oportunamente lavrado (…).
Assim sendo, uma acção, como a presente, destinada apenas a obter título para a inscrição do direito de propriedade no registo predial, sem que esse direito esteja questionado por quem quer que seja, esbarra inevitavelmente com a falta de interesse em agir.
Como se realça no acórdão da Relação de Lisboa, de 07.04.2005, Salazar Casanova, www.dgsi.pt.jtrl, proc. n.º 469/2005-8.
A lei não abriu dois procedimentos a utilizar ao arbítrio das partes: acção declarativa para reconhecimento de aquisição da propriedade por usucapião e processo de justificação relativa ao trato sucessivo de tal forma que se um interessado não fosse bem sucedido num deles poderia tentar a sua sorte no outro e vice-versa.
Assim, o interessado deverá recorrer à via judicial no caso de o seu direito estar a ser posto em causa (pressuposto de litigiosidade); se tal não suceder, o que se verá pelos termos concretos à luz dos quais desenha o litígio, utilizará a via do registo predial sob pena de, demandando quem se não lhe opõe, ver a sua pretensão soçobrar processualmente por via da procedência da excepção dilatória da falta de interesse em agir.
Em conclusão: verifica-se falta de interesse em agir numa acção em que se pede que seja declarada a aquisição por usucapião do direito de propriedade uma parcela de um determinado prédio, sem que seja imputada aos réus qualquer oposição a essa titularidade ou ao exercício das faculdades a ela inerentes, ou que se alegue uma situação objectiva de incerteza que ponha em causa a consistência desse direito.»
Sublinha-se a concordância com a fundamentação supra extratada, acrescentando-se, ainda, que a objeção dos recorrentes a este entendimento baseada na alegada impossibilidade de recorrerem às vias extrajudiciais que mencionam, em nada invalida esta conclusão, pois apenas evidencia que também, no caso, não se encontram preenchidos os requisitos para despoletarem aquelas formas de tutela.
Em suma, o que se verifica é um acordo amigável entre comproprietários sobre o fracionamento de um imóvel rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, que colide com a norma do artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil, determinando a infração dessa norma a nulidade do ato de fracionamento (artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil).
A manifesta intenção dos Autores de contornarem essa prescrição legal não corresponde a um interesse em agir baseado na procura de uma tutela jurisdicional adequada e necessária à defesa do alegado direito de aquisição originária ou ao afastamento do estado de incerteza grave e objetiva sobre o mesmo.
Reiterando-se que da matéria de facto invocada não emerge qualquer litígio ou sequer qualquer estado de indefinição relativamente aos direitos de cada um, sendo que esse litígio ou estado de incerteza sempre teria de emergir da matéria de facto alegada. Resultando, ao invés, da factualidade alegada na petição inicial e da falta de contestação, que não há qualquer litígio ou estado de incerteza, uma vez que as partes estão de acordo quanto aos direitos de cada uma sobre o prédio em causa.
Nestes termos, nenhuma censura merece a decisão recorrida, concluindo-se, em sintonia com a mesma, que inexiste interesse em agir.
Improcede, assim, a apelação.
3. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 28-06-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Albertina Pedroso (1.ª Adjunta)
José Lúcio (2.º Adjunto)