Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
MISERICÓRDIAS
CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário
I - Fruto de uma longa evolução, atualmente a maioria das Misericórdias portuguesas são associações de fiéis, erigidas por uma autoridade eclesiástica, que se regem pelos seus estatutos (compromissos), mantendo, igualmente, uma atividade de âmbito social, de assistência e de solidariedade, à qual se aplica um conjunto de regras vigentes na ordem jurídica portuguesa, mormente o Estatuto das IPSS, atuando no plano interno dessa atividade social como entidades jurídicas de natureza particular sem caráter lucrativo. II - A Santa Casa da Misericórdia de Beja insere-se no contexto da criação das Misericórdias portuguesas pela Rainha D. Leonor, nascida em Beja, sendo atualmente uma IPSS sob a forma jurídica de Associação que se dedica a Creche e Educação Pré-Escolar, Gestão de Imóveis Próprios, Empresa de Inserção Social na Área da Jardinagem, Apoio à Integração Social e Comunitária e Apoio Social na Área da Saúde Mental. III - A celebração de um contrato de arrendamento habitacional entre a Santa Casa da Misericórdia de Beja e a Ré, ao abrigo do Código Civil e do NRAU, rege-se pelas regras desses diplomas legais, sendo competentes em razão da matéria para apreciar e decidir os litígios decorrentes do incumprimento desse contrato de arrendamento os tribunais judiciais e não os tribunais administrativos. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE BEJA, Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra AA, formulando os seguintes pedidos: «a) Ser declarada a resolução do contrato, com base na falta do pagamento das rendas contratualmente devidas pela R.; b) Ser decretado o despejo, condenando-se a R. a entregar de imediato à A., livre e desocupado, o prédio urbano objecto do contrato aqui em causa; c) Condenar-se a R. ao pagamento das mencionadas rendas vencidas no montante actual de 3.300,00 € (três mil trezentos euros) e também das vincendas até à entrega efectiva do locado – artigo 1083 n.º 4 do código civil;».
Alegou, sem suma, que é dona e legitima proprietária do prédio urbano sito na Rua …, da União de Freguesias de Beja (Salvador e Santa Maria da Feira), concelho de Beja, e que, em 05-09-2019, para passar a vigorar em 01-11-2019, celebrou com a Ré um contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais, do referido prédio, pela renda mensal de €100,00.
A Ré deixou de pagar as rendas desde abril de 2020 (inclusive), encontrando-se em incumprimento desde essa data até dezembro de 2020, perfazendo a dívida o valor de €3.300,00.
Contestou a ré, invocando que vive com a sua família no imóvel arrendado em 05-09-2019, de forma ininterrupta, há mais de 50 anos, ali fazendo a sua vida pessoal e familiar, com autorização da então proprietária, que lho cedeu gratuitamente.
Aufere apenas uma pensão de sobrevivência no valor €532,54 com a qual suporta os encargos do seu agregado familiar.
O incumprimento de pagamento da renda decorre da sua absoluta incapacidade financeira para pagar a renda.
Em 16-03-2023, foi proferido despacho saneador que conhecendo da exceção de incompetência absoluta do tribunal, «(…) , declaro[u] este Tribunal materialmente incompetente para conhecer do objecto do presente processo e absolvo da instância a ré, nos termos do disposto no art. 4º, n.º 1, al k) do ETAF e 96º, 97º, n.º 1 e 99º, n.º 1 do C. Processo Civil.»
Inconformada, a Autora interpôs recurso onde defende a revogação da decisão recorrida por o tribunal ser competente em razão da matéria, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«a) A recorrente é uma IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social);
b) A recorrente não faz parte da administração central ou local do estado, nem directa, nem indirectamente, sendo certo que o estado não tem qualquer participação na gestão da mesma;
c) A recorrente celebrou com a recorrida um contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais que se rege pelos preceitos do Código Civil e do NRAU e não do decreto n.º 49.034 de 28-5-1969;
d) Em momento algum se demonstrou, ou sequer se alegou, que o imóvel aqui em causa alguma vez tivesse sido objecto de arrendamento para “habitação social”, ou que tenha ou tivesse tido qualquer apoio financeiro do estado para esse efeito;
e) Não está em causa a devolução de qualquer imóvel do estado mas sim a devolução de um imóvel propriedade privada da recorrente;
f) Não existe qualquer remissão no contrato de arrendamento junto aos autos para o decreto n.º 49.034 de 28-5-1969, pelo que é absolutamente descontextualizada qualquer menção feita nesse sentido;
g) Não é de aplicar o artigo 4º n.º 1 alínea k) do ETAF porque em litígio não está nenhuma entidade pública;
h) Na falta de outra ordem jurisdicional competente, são competentes para conhecer do presente litigio os tribunais judiciais, “in casu” o Tribunal “a quo”.
I) A douta sentença recorrida violou os artigos 64º e 65º do C.P.C, 40º da lei 62/2013 de 26 de Agosto e 4º n.º 1 alínea k) do ETAF.»
Não foi apresentada resposta ao recurso.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a apreciação do objeto do recurso constam do antecedente Relatório.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 3 e 4, 639.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, do CPC), cumpre apreciar e decidir da competência em razão da matéria do tribunal recorrido.
2. No caso, cumpre aferir da competência material dos Tribunais Judiciais e, concretamente, do Juízo Local Cível de Beja, versus Tribunais Administrativos para conhecer dos pedidos formulados nesta ação.
É comumente aceite que a competência em razão da matéria afere-se em função da causa de pedir e do pedido formulado pelo Autor.
Nessa aferição relevam os elementos objetivos e subjetivos da ação.
Quantos aos primeiros, importa aferir a tutela peticionada em face do direito alegado, o facto ou factos donde resulta o direito e, quanto aos segundos, a identidade e a natureza das partes.
É o que resulta do ensinamento de MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 91) quando escreveu que a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a ação é proposta, «seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.»
A competência de um tribunal, também como é sabido, corresponde a um pressuposto processual que visa repartir o poder jurisdicional, segundo vários critérios definidos legalmente, pelos vários tribunais.
No que concerne à competência em razão da matéria, no plano interno, assenta a mesma essencialmente no critério da especialização, ou seja, atende-se à natureza das matérias das causas.
Estipula o artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa: «1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais.»
No mesmo sentido, lê-se no artigo 40.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário): «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuladas a outra ordem jurisdicional», estipulação repetida no artigo 64.º do CPC 2013.
Por sua vez, o n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa, prescreve: «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.»
Em face destes preceitos, compete aos tribunais judiciais, a título residual, julgar as ações que não competirem aos outros tribunais.
Por conseguinte, a competência dos tribunais comuns (cíveis) sempre será recortada pela negativa, ou seja, só têm competência caso a mesma não esteja deferida a um tribunal de outra ordem jurisdicional.
No caso, se não estiver atribuída aos tribunais administrativos.
O artigo 1.º, n.º 1 do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, e alterações subsequentes) proclama que aqueles tribunais são competentes para dirimir «litígios emergentes das relações jurídico administrativas (…).»
O artigo 4.º do ETAF, por sua vez, prescreve exemplificativamente qual o âmbito da jurisdição desses tribunais.
Considerando a fundamentação da decisão recorrida, releva a previsão do n.º 1, alínea K) do referido artigo 4.º, da qual resulta que são competentes aqueles tribunais nas causas referentes à «k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;».
Nesta conformidade, importa, então, passar a caracterizar a relação jurídica estabelecida entre as partes tal como apresentada pela Autora analisando a causa de pedir enquanto ato ou facto jurídico de que procede a pretensão (pedido) deduzida em juízo (artigo 581.º do CPC).
No caso, funda-se na alegação de factos consubstanciadores da celebração, em 05-09-2019, de um contrato de arrendamento a prazo certo para fim habitacional, entre a Autora, proprietária e legitima possuidora de um imóvel, e a Ré, na qualidade de arrendatária, mediante o pagamento de uma determinada renda mensal (€100,00), que a Ré deixou de pagar, encontrando-se em incumprimento desde abril a dezembro de 2020, razão pela qual a Autora pede que se decretada a resolução do contrato de arrendamento com o consequente despejo da Ré e pagamento das rendas em falta.
Alega, ainda, remetendo para as cláusulas do referido contrato, que o mesmo foi celebrado ao abrigo das normas do Código Civil e da Lei n.º 6/2006, de 27-02, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14-08 (Novo Regime do Arrendamento Urbano – NRAU).
Também alega a Autora que é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) e que desenvolve a sua atividade na área social, no sentido de proteger e auxiliar os cidadãos mais carecidos na satisfação das suas necessidades básicas como é o caso da habitação.
Atendendo à causa de pedir e aos pedidos formulados, a presente ação tem como fundamento a afirmação do direito de propriedade sobre um determinado imóvel, o poder de gozar e fruir do mesmo pela Autora, o que inclui o direito de sobre ele constituir contratos de arrendamento com fins habitacionais, assistindo-lhe o direito, como a qualquer outro senhorio que veja o contrato de arrendamento incumprido por falta de pagamento das rendas (obrigação que impende sobre o arrendatário como decorre do artigo 1038.º, alínea a), do Código Civil) intentar a competente ação visando a resolução do contrato, o despejo do arrendatário e o pagamento das rendas não pagas.
A competência em razão da matéria para apreciar e decidir tal controvérsia cabe na competência residual dos tribunais judiciais.
Decorre, porém, do despacho recorrido para fundamentar a competência em razão da matéria dos tribunais administrativos que está em causa uma cedência do imóvel com fins de habitação social por parte de uma IPSS, tecendo subsequentemente vários considerandos jurídicos, encadeando a evolução histórica do arrendamento social e do regime da renda apoiada, reportando-se, a dado passo, entre outros diplomas e preceitos, ao artigo 82.º, n.º 1, do RAU.
Efetivamente, lê-se em determinado segmento da decisão:
«Atento o caso concreto, importa sublinhar ainda a remissão que no contrato é feita para o Decreto n° 49.034, de 28-5-1969, que integra o “Regulamento do Fundo de Fomento da Habitação”, no qual se regulava, além do mais, o concurso para “distribuição das casas do Fundo de Fomento da Habitação” (art. 14°), tendo como pressuposto a falta de “habitação própria adequada” (art. 15°), segundo os critérios preferenciais ínsitos no seu art. 19°, onde abundam as referências ao rendimento global e ao número de elementos do agregado familiar. Ademais, prescrevia-se em tal Regulamento que das “decisões proferidas pelo conselho administrativo do Fundo em matéria de classificação dos concorrentes e distribuição das habitações” cabia “recurso para o Ministro das Obras Públicas”.
Como se refere na obra “Arrendamentos Sociais”, do C.I.J.E, da Fac. de Direito da Universidade do Porto, ed. Almedina, 2005 (ainda antes da publicação da Lei nº 21/09), “a relação de arrendamento social é encabeçada pelo Estado mas também, e sobretudo, pelos organismos autónomos, pelos institutos públicos, autarquias locais e IPSS, sempre que tenham construído ou adquirido prédios com apoio financeiro do Estado. São estes os arrendamentos sujeitos a renda apoiada, de acordo com o art. 82°, n° 1, do RAU” (págs. 32 e 33).
Tal como já decorria do citado Decreto n° 31.106, continuam a prescrever-se causas específicas que legitimam a entidade proprietária dos imóveis a proceder à cessação unilateral da utilização dos fogos atribuídos (v.g. com fundamento na ocorrência de alterações das condições de natureza económica que determinaram a atribuição do fogo ou com fundamento na detenção, a qualquer título, de outra habitação adequada ao agregado familiar - art. 3°, n°s 1, als. b) e g), daquela Lei). Causas que, à semelhança do regime anterior, também tornam inadequado o recurso ao regime geral da resolução do contrato de arrendamento, revelando a pertinência da integração dos eventuais litígios que surgirem nos quadros do direito administrativo.
A comprovar a especificidade da matéria justificativa da atribuição da competência aos Tribunais Administrativos está também o art. 3°, n° 7, da mesma Lei, que confere ao locador poderes de autoridade, justificando que, “caso não ocorra a desocupação e entrega da habitação nos termos determinados, pode a entidade proprietária mandar executar o despejo, podendo para o efeito requisitar as autoridades policiais competentes para que procedam à identificação dos ocupantes da habitação ou para assegurar a execução do despejo”, com possibilidade de interposição de recurso do acto administrativos “para os tribunais administrativos” (n° 8).
Deste modo, conclui-se que são os Tribunais Administrativos e Fiscais os competentes para julgar a questão exposta.»
Ora, a fundamentação extratada não se ancora no clausulado do contrato junto aos autos, pois nada nele indica que as partes quiseram celebrar um contrato de arrendamento habitacional ao abrigo do regime de renda condicionada, apoiada ou social.
Refere-se na decisão recorrida:
«Atento o caso concreto, importa sublinhar ainda a remissão que no contrato é feita para o Decreto n° 49.034, de 28-5-1969, que integra o “Regulamento do Fundo de Fomento da Habitação”», mas trata-se de evidente lapso de leitura do contrato de arrendamento apresentado nos autos, pois nele não consta a referida remissão, nem qualquer menção que indique que o contrato foi celebrado sob o regime de renda condicionada, apoiada ou sob o regime de renda social. Sendo que o contrato de arrendamento em causa foi celebrado em 2019, ou seja, ao abrigo do NRAU, circunstância que a decisão recorrida omite totalmente na sua análise.
Aliás, na decisão recorrida transcreve-se, embora sem o mencionar, grande parte da fundamentação do Acórdão da Relação de Lisboa de 30-06-2011 (proc. n.º 7745/08.5TBCSC.L1-7, Relator: Des. António Geraldes, disponível em www.dgs.pt), mas inaplicável à situação descrita nos presentes autos.
Naquele aresto e como decorre da sua leitura integral, ao contrário do que sucede no presente caso, o arrendamento habitacional foi celebrado em 01-06-1986, pela entidade gestora do Parque Habitacional de uma Câmara Municipal, tinha cariz social e estava sujeito ao regime de renda apoiada, ao qual se aplicava o estabelecido no Decreto-Lei n.º 163/93, de 28-10 (entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 271/2003, de 28-10, que aprovou o «Programa Especial de Realojamento nas áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto», bem como o artigo 82.º do RAU (regime de renda apoiada, por via do artigo 61.º do NRAU, o Decreto-lei n.º 166/93 (regime de fixação e atualização da renda apoiada) e, em relação a outras questões, designadamente aos motivos de extinção do contrato, o disposto no Decreto n.º 35.106, de 06-11-1945 (que veio a ser expressamente revogado pela Lei n.º 21/2009, de 20-05) e, apenas supletivamente, o regime geral da locação e o regime do arrendamento urbano que, pela sua índole, seja compatível com tais arrendamentos.
Nesse contexto fático-jurídico, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão da 1.ª instância que decretou a procedência da exceção de incompetência absoluta do tribunal cível e absolveu os Réus da instância.
Todavia, no caso presente e como acima referido, a situação é totalmente diferente, pois o contrato de arrendamento para fins habitacionais foi celebrado em 05-09-2019 e teve o seu início em 01-11-2019, tendo sido celebrado ao abrigo do NRAU, nada estando mencionado no seu clausulado donde se infira que se trata de um arrendamento sujeito a um especial regime quanto à sua celebração e determinação do valor da renda.
Nem, inevitavelmente, tal decorre da natureza jurídica da senhoria.
Na petição inicial a Autora, Santa Casa da Misericórdia de Beja, alega que é uma IPSS e que atua na área social, mormente na área da habitação.
Como se refere no Acórdão do STJ, de 26-04-2007 (proc. n.º 07B723, Relator: João Bernardo, disponível em www.dgsi.pt): «As misericórdias vêm de muito longe na nossa história. Em 15 de Agosto de 1498 foi fundada a primeira, em Lisboa e, à morte da rainha D. Leonor, em 1525, já havia em Portugal 61. Com um regime jurídico nem sempre claro, como é bem compreensível, foram atingidas com o artigo 43.º do Decreto n.º 23 de 16.5.1832, tendo a respectiva tutela passado, pelo menos no plano legal, para os perfeitos das províncias. Depois, o artigo 108.º § 8.º do Código Administrativo de 1842, passou a tutela para a esfera do governador civil, que continuou com o artigo 186.º do Código Administrativo de 1878 e com o artigo 220.º, n.º2 do Código Administrativo de 1886. O Código Administrativo de 1936-40 incluiu as misericórdias no capítulo dedicado às associações beneficentes ou humanitárias, ficando a criação e administração daquelas reservada às irmandades ou confrarias da Igreja Católica, ainda que os “compromissos” carecessem de aprovação do Governo (artigos 372.º do Decreto-Lei n.º 27.424 de 31.12.1936 e 433.º do Decreto-Lei n.º 31.095, de 31.12.1940). Com o Decreto-Lei n.º618/75, de 11.11 foi levada a cabo a nacionalização dos hospitais das misericórdias. Seguiu-se o Decreto-Lei n.º 519-G/79, de 29.12 que, embora considerando as misericórdias como pessoas colectivas de direito privado do Estado Português, as teve como incluídas na ordem jurídica canónica, com as sujeições canónicas daí resultantes (art.ºs 56.º e 57.º). Com o Decreto-Lei n.º119/83, de 25.2. – que aprovou o que chamou “Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social” - acabou-se com a distinção entre irmandades e misericórdias, reconheceram-se ambas como “constituídas na ordem jurídica canónica”(artigo 68.º, n.º1) e precisou-se que se lhes “aplica directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhe são próprias.”».
Fruto dessa longa evolução, atualmente a maioria das Misericórdias portuguesas são associações de fiéis, erigidas por uma autoridade eclesiástica, que se regem pelos seus estatutos (compromissos), mantendo, igualmente, uma atividade de âmbito social, de assistência e de solidariedade, à qual se aplica um conjunto de regras vigentes na ordem jurídica portuguesa, sendo que tal dicotomia nada tem a ver com a distinção que se possa estabelecer entre entidades públicas e privadas.
O facto de serem pessoas jurídicas canónicas não impede que a sua atividade atinente ao desenvolvimento da sua atividade de assistência e solidariedade se reja pela ordem jurídica civil (não canónica), sendo-lhe aplicável o regime da IPSS (com exceção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), ou seja, sejam entidades jurídicas de natureza particular sem caráter lucrativo (cfr. artigo 68.º a 71.º do Estatuto das IPSS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25-02, e alterações subsequentes, e artigo 63.º, n.º 5, da CRP)
Como refere PAULO DÁ MESQUITA (A Tutela das Misericórdias e o Âmbito das Jurisdições Eclesiástica e do Estado, in Julgar, n.º 23- 2014, pp. 107-138, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/05/06-Paulo-D%C3%A1-Mesquita.pdf) na conclusão 4. deste estudo: «4. As irmandades da Misericórdia que sejam, simultaneamente, pessoas jurídicas canónicas e instituições particulares de solidariedade social ao direito português subsistem sujeitas à tutela eclesiástica atento, nomeadamente, o disposto no artigo 12.º da Concordata de 2004 e nos artigos 48.º e 69.º, n.º 1, do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro.» e na conclusão 7. «7. O Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83 distingue entre as pessoas jurídicas constituídas ao abrigo do direito português e as pessoas jurídicas canónicas.», realçando na conclusão 9. que esta distinção e as conclusões alcançadas neste estudo «9. (…) não prejudicam as competências jurisdicionais dos tribunais portugueses para resolver conflitos entre pessoas jurídicas, nomeadamente, os conflitos entre as irmandades da Misericórdia e outras pessoas jurídicas relativos à actividade desenvolvida por aquelas com fins de assistência e solidariedade no território português.»
Sobre a natureza jurídica das Misericórdias, veja-se, também o Acórdão da Relação de Coimbra de 23-11-2010 (proc. n.º 98/09.6TBSRT.C1; Relator: Alberto Ruço) e o Acórdão da mesma Relação de Coimbra de 17-05-2011 (proc. n.º 646/09.1TBFND.C1, Relatora: Judite Pires; ambos disponíveis em www.dgsi.pt, bem como o comentário a este último acórdão por PAULO VASCONCELOS, Natureza jurídica das Misericórdias e a jurisdição a que estão sujeitas , in Cooperativismo e Economia Social, 34 (2011-2012), pp. 221-226, disponível em www.paulovasconcelos.pt/docs/RCES_34.pdf), onde também se discutia a competência em razão da matéria dos tribunais judiciais mas aí por contraponto com a competência material dos tribunais eclesiásticos.
A Santa Casa da Misericórdia de Beja insere-se no contexto da criação das Misericórdias portuguesas pela Rainha D. Leonor, nascida em Beja, sendo atualmente uma IPSS sob a forma jurídica de Associação que se dedica a Creche e Educação Pré-Escolar, Gestão de Imóveis Próprios, Empresa de Inserção Social na Área da Jardinagem, Apoio à Integração Social e Comunitária e Apoio Social na Área da Saúde Mental (informações que se encontram disponíveis no respetivo site https://www.scmbeja.pt/index.php/entidade/historial e no Relatório de Atividades e Contas de 2022, em https://scmbeja.pt/files/Rel_contas_2022.pdf).
Donde a sua atuação, no caso em concreto, e de acordo com o clausulado no contrato de arrendamento para fins habitacionais celebrado com a Ré, decorre da sua natureza de IPSS, ou seja, enquanto entidade associativa privada, sem fins lucrativos, mas de cariz assistencial e social, não sendo administrada pelo Estado ou por outro organismo público, tudo sem prejuízo de também se encontrar sujeita a regulamentação especial por se tratar de uma pessoa jurídica canónica sob a vigilância e tutela das autoridades eclesiásticas nos domínios em que estas são soberanas e que não se confundem com as referentes ao funcionamento interno da instituição (cfr. artigos 1.º, n.ºs e 1 e 3, 1.º-A, 2.º, n.º 1, alínea a), 40.º, 52.º, 68.º e 69.ºdo Estatuto das IPSS).
Em face de tudo o que vem dito, e retomando a ponderação do articulado na petição inicial quanto à causa de pedir e pedidos formulados, cabe concluir que, para além do contrato de arrendamento para fins habitacionais celebrado com a Ré, ao abrigo das regras do Código Civil e do NRAU, não se enquadrar na tipologia de arrendamentos de renda apoiada, condicionada, social ou de natureza equivalente, não existindo fundamento jurídico para convocar a competência dos tribunais administrativos, seja por aplicação da alínea K) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, ou qualquer outra alínea do mesmo normativo, também a Autora não agiu na qualidade de entidade pública, como exigido pela referida alínea k), pois a sua atuação ao celebrar o referido contrato de arrendamento para fins habitacionais insere-se no desenvolvimento da sua atividade de gestão do seu património imobiliário na qualidade de IPSS e no âmbito da prossecução de fins de assistência e solidariedade.
Donde decorre que a pretensão da Autora, estruturada pelos factos que integram a causa de pedir e pelos pedidos apoiados em tais factos, deve ser apreciada pelos tribunais judiciais comuns, que são dotados de competência em razão da matéria para esse efeito; no caso, e em concreto, o Juízo Local Cível de Beja- J2.
IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, declarando-se, outrossim, a competência em razão da matéria do tribunal cível (Juízo Local Cível de Beja – J2) para presente ação, ordenando-se, consequentemente, que os autos prossigam a sua normal tramitação.
Sem custas por a Apelada não ter apresentado resposta ao recurso.
Évora, 28-06-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Manuel Bargado (1.º Adjunto)
José Lúcio (2.º Adjunto)