I. Aplica-se a extensão do prazo de 10 dias previsto no artigo 638.º, n.º 7 do CPC, à interposição do recurso que impugna a decisão de facto, tendo havido gravação da prova e visando a impugnação a reapreciação da mesma, ainda que, em concreto, se venha a verificar que o recorrente não acatou os ónus previstos no artigo 640.º do CPC.
II. O deficiente cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, não determina um convite ao aperfeiçoamento, mas sim a imediata rejeição do recurso, no todo ou em parte, conforme a parte afetada.
III. Se os impugnantes se limitam a transcrever os depoimentos ou partes deles (não sendo tal procedimento sequer obrigatório - cfr. artigo 640.º, n.º 2, alínea a), in fine, do CPC), sem indicarem em concreto as passagens em que fundam a impugnação (o que é exigido pela lei), limitando-se a referenciar, de quando em vez, sem se perceber o critério que preside a tal menção, os minutos da gravação, cumprem apenas formalmente o requisito legal previsto no artigo 640.º, n.º1, alínea b) e n.º 2 do CPC, o que determina a rejeição da impugnação da decisão de facto.
IV. A presunção prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial, dado o caráter não constitutivo do mesmo, não abrange as áreas e confrontações dos imóveis, e pode ser ilidida por prova em contrário.
V. As estradas enquanto bens do domínio público estão fora do comércio jurídico e, consequentemente, não são passíveis de apropriação individual por via das regras da usucapião.
VI. Não tendo os Autores provado os atos possessórios de molde a ficarem demonstrados os pressupostos da usucapião, sobre um determinado bem (forno, alpendre e área adjacente) construído há mais de 50 anos por várias pessoas de uma localidade para nele confecionarem pão e outros alimentos, improcede o pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre tal bem.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Conforme se requer seja declarado por V.Exa, indeferindo o requerimento de recurso apresentado pelo Recorrente nos termos e com fundamento na al. a) do n.º 2 do art.º 641.º do CPC. »
Corresponde a jurisprudência que temos por largamente consensual a adotada no Ac. do STJ, de 28-04-2016[1], que apreciando a questão da extemporaneidade da interposição do recurso precisamente por razões similares às invocadas pelo Apelado, decidiu:
«3. A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.
4. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º, nº 1, do CPC.»
No mesmo sentido, em aresto mais recente proferido em 25-05-2023[2], o STJ reiterou a mesma interpretação da lei, lendo-se no respetivo sumário:
«I – O recorrente beneficia do prazo alargado de recurso do art.º 638.º n.º7 do CPCiv se integra no recurso conclusões que envolvem efectivamente a impugnação da decisão da matéria de facto, tendo por base depoimentos gravados, nos termos do art.º 640.º n.º2 al.a) do CPCiv.
II – Do não cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto a que se reporta o art.º 640.º n.º1 als. a) e c) e n.º2 do CPCiv não resulta a necessária não aplicabilidade ao Apelante do acréscimo de 10 dias que beneficiou para a apresentação das alegações de apelação.»
No caso, a prova foi gravada, os Apelantes impugnaram a decisão de facto e fazem disso menção no corpo da alegação e nas conclusões recursivas, pelo que beneficiam da extensão do prazo prevista no artigo 638.º, n.º 7, do CPC, independentemente de se verificarem, em concreto, os requisitos da admissão da impugnação daquela decisão, a aferir infra.
2. Impugnação da decisão de facto
Os Apelantes impugnam a decisão de facto em relação aos pontos provados sob os n.ºs 2, 3, 5, 6 e 7, que, no seu entender, deveriam ter sido dados como não provados.
Também impugnam todos os factos não provados, que, no seu entender, deveriam ter sido tidos como provados.
Assim, os Apelantes apenas não impugnam os pontos 1 e 4 dos factos provados, ou seja, respetivamente, a inscrição registral dos prédios a favor dos Autores e a não utilização há dezenas de anos pelos residentes da localidade de Moinhos de Vento do forno que se encontra localizado no prédio …, registado a favor dos Autores.
Os Apelantes para fundamentarem a impugnação da decisão de facto invocam erro de julgamento ao nível da decisão de facto, centrando, essencialmente, a sua discordância na não valoração dos esclarecimentos do perito prestados em audiência e no depoimento de três testemunhas por eles arroladas, bem como no documento junto com o requerimento probatório com a referência 37284600, que corresponde a uma cópia certificada de informação (n.º 187/GJA2017) dos serviços do Réu prestada no PA n.º 180/GJA2017, onde se atesta que não se encontra documentado nos arquivos municipais que o forno tivesse sido construído de raiz pelo Município de Almodôvar.
Em relação aos esclarecimentos do perito (…) e das testemunhas …, … e …, os Apelantes transcrevem longos trechos dos seus depoimentos, mencionando de vez em quando, os minutos da gravação, conforme consta de fls. 121v a 170.
Terminada a parte extratada dos depoimentos, os Apelantes referem «Como se evidencia, a sentença limitou-se, sem mais, a desconsiderar os depoimentos na sua globalidade, das testemunhas dos Recorrentes», acrescentando que o tribunal desconsiderou, por completo, e sem informar o motivo, os testemunhos supra referidos, referindo em relação a cada depoimento o que, no entender dos Apelantes, foram os factos que foram relatados e que deveriam ter sido tidos em conta pelo tribunal recorrido.
E concluíram:
«Os depoimentos indicados das testemunhas não permitem razoavelmente comprovar que as parcelas de terreno em crise, bem como o forno e alpendre lá existentes, são do domínio público (que o Tribunal nem sequer qualificou como sendo domínio publico indisponível da autarquia – no caso apenas podíamos estar perante estrada), mas sim propriedade dos Recorrentes.
Ao contrário do que foi explanado na sentença, deveria atender-se aos factos relatados e ao direito de propriedade invocado pelos Recorrentes, pois os mesmos foram devidamente explicados pelas testemunhas, que com circunstância e razão de ciência explicaram ao pormenor.»
Como decorre da fundamentação da sentença recorrida, todos os meios de prova foram crítica e criteriosamente ponderados, todos eles sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, sendo constituídos por documentos, pelos depoimentos das testemunhas arrolada pelas partes, pelo relatório pericial e pelos esclarecimentos do sr. perito prestados em audiência.
Os factos provados foram objeto de análise circunstanciada com base nos meios de prova e da sua relevância probatória em relação à específica matéria de facto em apreciação. Sendo que na apreciação dos depoimentos das testemunhas foi mencionada a razão de ciência e o motivo pelo qual o tribunal recorrido deu maior credibilidade aos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Réu do que aos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores.
Feita esta introdução, analisemos se estão preenchidos os pressupostos necessários para a segunda instância reapreciar a decisão de facto.
Os poderes de sindicabilidade da Relação no que diz respeito ao julgamento do facto dependem do preenchimentos pelo impugnante dos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC. Se estiverem preenchidos, a Relação pode alterar a decisão de facto se tiver ocorrido erro de julgamento por terem sido factos provados quando a prova não o permitia, ou, ao invés, não provados quando ocorra o oposto (artigo 662.º do CPC).
A modificabilidade da decisão de facto em sede de segunda instância não afasta as regras de valoração da prova, mormente a da livre apreciação da prova quando a mesma esteve na base da formação da convicção do julgador a quo, sem prejuízo do tribunal de recurso visar a formação de uma convicção própria com base nos meios de prova carreados para os autos e valoração do seu valor probatório.
Todavia, a reapreciação da decisão de facto quando a prova foi gravada, e sem prejuízo dos poderes de modificabilidade da decisão ao abrigo do artigo 662.º do CPC, depende do acatamento por parte do impugnante dos requisitos da impugnação, que se apresentam como ónus para o impugnante e cujo não acatamento determina a rejeição total ou parcial da impugnação, constando os mesmos do artigo 640.º do CPC, que estipula:
«1.Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previso na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)».
Como tem sido decidido pelo STJ, o deficiente cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, não determina um convite ao aperfeiçoamento, mas sim a imediata rejeição do recurso, no todo ou em parte, conforme a parte afetada. [3]
Não se mostrando tal interpretação violadora de qualquer preceito constitucional.
O STJ tem proferido inúmeros acórdãos onde analisa o modo como deve ser interpretado o disposto no artigo 640.º do CPC no que diz respeito ao acatamento dos ónus ali previstos por parte do impugnante, existindo uma nítida evolução jurisprudencial no sentido da interpretação do normativo, como se colhe dos seguintes arestos:
- Ac. STJ, de 21-03-2023, cujo sumário tem o seguinte teor:
«O facto de o recorrente, ter indicado os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, sem os relacionar com cada um dos meios de prova, com cada uma passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados prejudica a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.»;
- Ac. STJ, de 21-03-2023, cujo sumário tem o seguinte teor:
«O facto de o recorrente não ter indicado os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, pretendendo relacionar, em bloco, um conjunto de documentos e de depoimentos com o conjunto dos factos dados como não provados, prejudica a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.»
- Ac. STJ, de 25-05-2023, cujo sumário é o seguinte:
«Numa interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil em termos adequados à função e conformes com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, para que possa considerar-se observado o ónus da impugnação é preciso que, através das indicações do recorrente dos concretos pontos de facto impugnados e dos meios de prova relevantes para cada um, fique assegurada a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.»
No aresto do STJ proferido em 21-03-2023, já citado[7], lê-se na sua fundamentação:
«O Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2.
(…) O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:
Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” [6]. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” [7]. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” [8].
(…) O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do Código de Processo Civil — logo, da observância ou inobservância do ónus primário de delimitação do objecto — há-de ser um critério adequado à função [9], conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade [10] [11].
(…) O requisito de que o critério seja adequado à função coloca em evidência que os ónus enunciados no art. 640.º pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso [12] e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido [13]. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade pronunciam-se sobre a relação entre a gravidade do comportamento processual do recorrente — inobservância dos ónus do art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — e a gravidade das consequências do seu comportamento processual: a gravidade do consequência prevista no art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — rejeição do recurso ou rejeição imediata do recurso — há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável para a gravidade da falha do recorrente [14].
(…) Entre os corolários dos requisitos de que o critério seja adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade está o de que “a decisão de rejeição do recurso […] não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal […] face ao grau de dificuldade que [a inobservância dos ónus do art. 640.º] acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso” [15].[8]»
Seguindo esta interpretação quanto aos requisitos da impugnação da decisão de facto, e voltando a nossa análise para o recurso dos Apelantes, não nos suscita qualquer dívida que os recorrentes indicaram os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados, referenciando-o no corpo da alegação e nas conclusões (cfr. conclusões 25 e 27), e indicaram nas conclusões a decisão que deveria ter sido proferida, que, no caso, é apenas dar o provado como não provado e vice-versa.
Porém, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não cumpriram o ónus de fundamentação concludente da impugnação.
Como decorre do artigo 640.º, n.º 1, al. b), do CPC, o impugnante deve relacionar cada um dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados com cada um dos meios de prova relevantes.
Como se refere o Acórdão do STJ proferido em 25-05-2023, supra citado, a propósito do incumprimento do dever de relacionar cada um dos concretos pontos de facto incorretamente julgador com cada um dos meios de prova relevantes, apresentando-se, ao invés, uma impugnação por blocos de factos e sem a consequente discriminação de cada meio de prova em relação a cada facto impugnado:
«Sucede que esta circunstância inviabiliza a compreensão clara do fim e do objecto do recurso e, em consequência – o que é de destacar –, prejudica a possibilidade de um contraditório esclarecido[12] .
Confirma-se, em suma, a inobservância do ónus de fundamentação concludente da impugnação, o que, numa interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil em termos adequados à função e conformes com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, determina a rejeição da impugnação[13][9].»
No caso sub judice, os ora recorrentes em vez de relacionar especificadamente cada um dos concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados com cada um dos meios de prova (designadamente prova pericial, testemunhal e documental), optaram por indicar, em bloco, todos os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados e relacionaram-nos, também em bloco, com aqueles meios de prova, ou seja, não discriminam cada facto impugnado e a respetiva prova que, no seu entender, impunha decisão diferente da proferida.
E mais, transcreveram segmento dos depoimentos sem qualquer segmentação em relação à matéria que impugnaram, mencionando em algumas páginas os minutos da gravação, sem se perceber qual seja o critério da indicação, o que não corresponde de todo ao requisito de indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso como imposto pelo n.º 2, alínea a), do CPC.
Ademais, só no final de todas as transcrições, os Apelantes mencionam a valoração que os próprios fazem dos depoimentos, quando o que se visa com a impugnação é que sejam os depoimentos a falar por eles mesmos em conformidade com o assinalado nas exatas passagens que devem ser indicadas por terem precisamente essa finalidade, não cabendo ao tribunal de recurso procurar em longas transcrições as passagens dos depoimentos que, no entender dos impugnantes, infirmam a valoração da prova levada a cabo pelo tribunal a quo.
Se os impugnantes se limitam a transcrever os depoimentos ou partes deles (não sendo tal procedimento sequer obrigatório - cfr. artigo 640.º, n.º 2, alínea a), in fine, do CPC), sem indicarem em concreto as passagens em que fundam a impugnação (o que é exigido pela lei), limitando-se a referenciar, de quando em vez, sem se perceber o critério que preside a tal menção, os minutos da gravação, cumprem apenas formalmente o requisito legal previsto no artigo 640.º, n.º1, alínea b) e n.º 2 do CPC.
O que, por um lado, coloca em causa a possibilidade da parte contrária exercer um contraditório esclarecido e, por outro lado, transpõe para o julgador que reaprecia a prova, o ónus de identificar e procurar os segmentos relevantes do(s) depoimento(s), impondo com tal conduta um grau de dificuldade excessivo e desadequado à reapreciação da decisão de facto. Ou seja, o incumprimento deste ónus tem consequências manifestamente graves, pelo que não pode deixar de conduzir à rejeição do recurso.
Em face de todo o exposto, atento o modo como os Apelantes impugnaram a decisão de facto inviabiliza uma compreensão clara do objeto da impugnação e dos concretos fundamentos em que a mesma assenta, o que significa que não se encontra preenchido o referido ónus primário da impugnação no que concerne à fundamentação concludente da impugnação, cujo não acatamento determina, numa interpretação do artigo 640.º do CPC em termos adequados à função e conformes com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a rejeição da impugnação.
Nestes termos, rejeita-se a impugnação da decisão facto.
Sem prejuízo desta conclusão, impõe-se, oficiosamente, expurgar da decisão de facto a matéria de natureza estritamente jurídica.
O ponto 7 dos factos provados menciona que «Integra o domínio público» as áreas que refere de seguida, mencionando, ainda, que o forno é «comunitário».
Estando em discussão na presente ação se as áreas de 20m2 e de 80,40m2 são privadas ou públicas e se o forno, alpendre e área adjacente é pertença de particulares (dos Autores) ou comunitário ( do Réu), a inclusão desses termos na decisão de facto, só por si, decidiria a causa, o que denota claramente o seu pendor jurídico.
No âmbito do atual CPC, tal como no anterior, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito.
Como decidido no Acórdão de 28-06-2018 desta Relação de Évora[10], a supressão dessas expressões de cariz jurídico-conclusivo por parte da Relação ocorre ao abrigo do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, e não em termos de apreciação da prova nos termos do artigo 640.º ou do artigo 662.º do CPC.
Nestes termos, altera-se a redação do ponto 7 dos factos provados (eliminando-se também a sua parte final que tal facto já decorre do ponto 1 dos factos provados), que passa a ter o seguinte teor:
«7. Integra o prédio … a área de 20m2, que corresponde a uma via pública (estrada), e integra o prédio n.º …, a área de 98,40m2, que corresponde à implantação do forno referido em 2., alpendre e área adjacente.»
3. Mérito da sentença
Os Apelantes centram a sua discordância quanto à questão de direito tendo como pressuposto a alteração da decisão de facto.
A decisão de facto, como se viu, apenas foi modificada quanto ao ponto 7 dos factos provados para expurgar o juízo conclusivo nele inserido.
O que em nada altera a conclusão alcançada na sentença quanto à natureza pública da área de 20m2 e da área de 98,40m2 ocupada pelo forno, alpendre e área adjacente em face do que ficou provados nos pontos 1 a 7 da decisão de facto, pelas razões que se concretizam de seguida.
Quanto à questão da área dos 20m2, que integram o prédio referido no ponto 1, a), dos factos provados, tendo ficado provado que tal área corresponde a uma via pública (estrada), o decidido na sentença nenhuma censura merece.
De acordo com o artigo 84.º, n.º 2, da CRP, os bens do domínio público pertencem ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais. As estradas incluem-se nesse domínio público (artigo 84.º, n.º 1, alínea d), da CRP, e artigos 1.º, n.º 1, alínea a) e 15.º do Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de outubro, na sua redação atual (RJPIP).
Em Portugal adotou-se um conceito formal de domínio público, isto é, são bens do domínio público aqueles que constam da CRP e da legislação específica, constituindo o património do Estado um conjunto de bens do seu domínio público ou privado (cfr. artigos 2.º, 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15-10).
Em relação ao domínio público autárquico não existe nenhuma lei de caráter geral relativa ao património público autárquico, pese embora se insiram neste as estradas e caminhos municipais e os bens do domínio público hídrico reservado para as autarquias locais.
Os bens do domínio público estão sujeitos a um regime de direito público, dotado de especial tutela, daqui decorrendo as características dos bens de domínio público (cfr. artigo 18.º e seguintes do RJPIP): inalienabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e autotutela.
O artigo 18.º do RJPIP estipula expressamente: «Os imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objeto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado.», o que significa que se lhes aplica o disposto no artigo 202.º, n.º 2, do Código Civil, não sendo, consequentemente, passíveis de apropriação individual.
A desafetação de bens do domínio publico, seja expressa ou tacitamente, incorporando-se no domínio privado da pessoa jurídica de direito público, pode verificar-se se deixarem de satisfazer o interesse coletivo, mas nunca em prol de meros interesses particulares.
Como refere MARCELO CAETANO, «(…) a cessação da dominialidade pode ocorrer em consequência do desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam. Pode a desafectação ser expressa por via de lei ou acto administrativo que declare não dominial, ou tácita, verificando-se esta desafectação sempre que uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração. A desafectação tácita das coisas públicas tem de ser aceite em todos os casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica. A desafectação há-de resultar da cessação da função que estava na base do carácter dominial».[11]
Na situação que nos ocupa nada se encontra provado que indique que a via pública (estrada) que ocupa 20m2 do prédio referido no ponto 1, alínea a), dos factos provados, não esteja no domínio público do Estado ou da autarquia, sendo que o ónus de prova de que tal área era privada ou se encontrava afeta ao domínio público privado, suscetível de ser usucapida, impendia sobre os Autores (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
O que não lograram demonstrar, e, assim sendo, a conclusão a retirar é que a mesma se encontra fora do comércio jurídico e é insuscetível de usucapião.
De qualquer modo, também os Autores não lograram provar os requisitos da aquisição prescritiva em relação a essa faixa de terreno, pelo que o pedido formulado na p.i. quanto a essa parcela sempre teria de improceder.
Acrescentando-se que, embora gozem da presunção de registo prevista no artigo 7.º do Cód. de Registo Predial, dado o caráter não constitutivo do mesmo, sendo que as áreas e confrontações dos imóveis não se incluem sequer na presunção prevista no preceito, no caso, a presunção foi ilidida pelo Réu ao demonstrar que os referidos 20m2 correspondiam à área da implantação de uma via pública.
Donde o pedido dos Autores quanto a esta matéria teria de improceder, como agora também se confirma.
Em relação ao forno, alpendre e área adjacente, e no que concerne à presunção de registo abrangendo todo o prédio …, incluindo a área de 80,40m2, remete-se para o acima referido quanto à natureza não constitutiva do registo predial e para a ilisão da respetiva presunção.
Presunção que também o Réu conseguiu ilidir, considerando os factos provados sob os n.ºs 2, 3, 4, 5 e 6.
Restaria aos Autores provarem os requisitos da aquisição originária, ou seja, da usucapião.
Porém, não lograram os Autores provar que exerceram sobre o forno, alpendre e área adjacente atos possessórios de molde a ficarem demonstrados os requisitos da usucapião, pelo contrário, pois o que ficou provado foi que o forno foi construído há mais de 50 anos por várias pessoas da localidade, entre eles o avô da Autora, para ser por todos utilizado na confeção de pão e outros alimentos, provando-se, ademais, que foi o Réu quem fez as obras de remodelação do alpendre de apoio ao forno e ali inscreveu a data em que o fez.
Nestes termos, também não poderia deixar de improceder o pedido dos Autores quanto a esta questão e procedente o pedido reconvencional nos termos e pelas razões que constam da sentença recorrida que, por razões de economia, aqui se dão por reproduzidas.
Nestes termos, improcede a apelação.
4. Custas
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
V- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 12-07-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] Proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1 (Abrantes Geraldes), disponível em www.dgsi.pt
[2] Proc. n.º 68865/21.3YIPRT.L1.S1 (Vieira Cunha), em www.dgsi.pt
[3] Cfr., ente outros, Ac. STJ, 25-05-2023, proc. 752/20.1T8CTB.C1.S1 (Maria Graça Trigo) e jurisprudência citada neste aresto.
[4] Proferido no proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1. (Nuno Pinto de Oliveira), em www.dgsi.pt
[5] Proferido no proc. 2947/17.6T8LSB.L1.S1 (Nuno Pinto de Oliveira), em www.dgsi-pt
[6] Proferido no processo 6713/19.6T8GMR.G1.S1 (Catarina Serra), em www.dgsi.pt
[7] Proferido no proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1. (Nuno Pinto de Oliveira), em www.dgsi.pt
[8] As notas de rodapé do aresto citado têm o seguinte conteúdo:
[6] Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao art. 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 165.
[7] Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao art. 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 165.
[8] Cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao art. 640.º, cit., in: Recursos no novo Código de Processo Civil, pág. 166.
[9] Vide, p. ex., os acórdãos do STJ de 31 de Maio de 2016 — processo n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1 —, de 2 de Junho de 2016 — processo n.º 725/12.8TBCHV.G1.S1 — e de 14 de Dezembro de 2017 — processo n.º 2190/03.1TBPTM.E2.S1.
[10] Vide, p. ex., na jurisprudência das Secções Cíveis, os acórdãos do STJ de 31 de Maio de 2016 — processo n.º 889/10.5TBFIG.C1-A.S1 —, de 8 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1 —, de 11 de Julho de 2019 — processo n.º 121/06.6TBOBR.P1.S1 —ou de 3 de Outubro de 2019 — processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2 — e, na jurisprudência da Secção Social, os acórdãos do STJ de 11 de Setembro de 2019 — processo n.º 42/18.0T8SRQ.L1.S1 — ou de 6 de Novembro de 2019 — processo n.º 1092/08.0TTBRG.G1.S1.
[11] Como sintetiza António dos Santos Abrantes Geraldes, “… o Supremo tem realçado a necessidade de extrair do texto legal soluções capazes de integrar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando prevalência aos aspectos de ordem material” (anotação ao art. 640.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pág. 174).
[12] Cf. acórdão do STJ de 22 de Março de 2018 — processo n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1 —, em que se diz que “os requisitos formais de admissibilidade da impugnação da decisão de facto, mormente os constantes do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e alcance teleológico da pretensão recursória”.
[13] Expressão dos acórdãos do STJ de 15 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1 — e de 22 de Março de 2018 — processo n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1.
[14] Vide, p. ex., António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 640.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), cit., pág. 770.
[15] Cf. acórdão do STJ de 15 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1.
[9] As notas 12 e 13 do acórdãos têm o seguinte teor:
«[12] Cfr., em termos semelhantes, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2021 (Proc. 618/18.5T8BJA.E1.S1). Veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2021 (Proc. 1121/13.5TVLSB.L2.S1), em que se admitiu a impugnação em bloco da factualidade, se adverte: “[n]ecessário é, que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado”.
[13] Como diz Abrantes Geraldes (Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 167), “pretendendo o recorrente a modificação da decisão de um tribunal de 1.ª instância e dirigindo essa pretensão a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção de prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas”.»
[10] Proc.170/16.6T8MMN.E1(Florbela Moreira Lança), em www.dgsi.pt.
[11] MARCELO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. 2º, 9º ed., p. 956. Veja-se também Ac. RC, de 21-02-2006,proc. 4281/05 (Ferreira de Barros), em www.dgsi.pt