PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
NOTIFICAÇÃO PESSOAL DA SENTENÇA AO ARGUIDO
ADVOGADO CONSTITUÍDO
NULIDADE
Sumário


Em processo de contraordenação, tendo sido interposto recurso de impugnação judicial, a sentença proferida em audiência de julgamento não tem que ser notificada pessoalmente ao arguido que não compareceu na data designada para sua leitura, mas que esteve representado por advogado constituído.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I -RELATÓRIO

 Nos autos de contra-ordenação nº ...0..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ..., por despacho proferido no dia 7 de Outubro de 2022, foi indeferido o requerimento anteriormente formulado pela arguida em que pedia que, na sequência do reconhecimento da respectiva omissão, seja efectuada a sua notificação pessoal da sentença proferida para depois poder interpor recurso.

Inconformada veio a arguida G..., Ldª interpor o presente recurso, apresentando a respectiva motivação, que, após convite nos termos do art.º 417º, nº 3 do C. P. Penal, apresentou as conclusões e petitório que a seguir se transcrevem:

“1 - O despacho recorrido entende que não se verifica qualquer nulidade decorrente da não notificação da sentença pessoalmente à arguida, mas apesar de não se ter a recorrente como notificada para comparecer na leitura da sentença, a verdade é que não foi só a nulidade de tal omissão que se arguiu e peticiou.

2 - Contudo, o foco está também direcionado na omissão da notificação da sentença pessoalmente à arguida, que já não a sua presença na leitura.3 - Urge também cotejar os pedidos efectuados no final do requerimento que deu origem ao despacho recorrido:

"TERMOS EM QUE deve ser:

a) reconhecida a nulidade decorrente da falta de notificação pessoal da sentença à arguida;
b)dada sem efeito a conta final elaborada e a sua notificação;c)reconhecido o não trânsito da sentença proferida e
d) ordenada a notificação pessoal da arguida, na pessoa do seu representante."
 leitura, mas sim da falta de notificação pessoal da sentença.
4- Nunca foi pedida a declaração de nulidade pela não notificação pessoal da arguida para a leitura, mas sim da falta de notificação pessoal da sentença.
5 - Pedindo-se por fim que fosse: "d) ordenada a notificação pessoal da arguida, na pessoa do seu representante."
6 - E esta nulidade decorrente da omissão da notificação da sentença em si após a respectiva leitura, em bom rigor, não foi apreciada.
7 - O DL 322/82, é muito claro no seu "artigo 74.º - Regime do recurso: 1 - O recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha  sido proferida sem a presença deste." (sublinhado nosso).
8 - É inquestionável que a arguida não esteve presente na leitura da sentença NEM nunca foi tentada a notificação da sentença à arguida.
9 - Discutir se a arguida esteve ou não representada é algo que deita por terra o legalmente estabelecido e que não está em causa.
10 - A interpretação da lei não tolera qualquer restrição, ou o legislador teria dito: "se o arguido não estiver presente nem representado", o que não é o caso.
11 - É proibida e defendida pelo plenário do STJ a "analogia in malam partem, com o reverso de admissão in bonam partem".
12 - Tal princípio aplica-se também a interpretações restritiva e/ou extensivas que redundem em soluções desfavoráveis ao arguido.
13 - O arguido tem também o direito a confiar no legislador e nos Tribunais, e que quando a lei diz qual o prazo e o momento a partir do qual o mesmo se conta, assim será aplicado nos Tribunais.
14 - O princípio da confiança, como decidio pelo STj no Acórdão supra, "(...) comporta a ideia da previsibilidade que, no essencial se «reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos».".
15 - A propósito da “segurança jurídica” e da “protecção da confiança” refere o J.J. Gomes Canotilho que “… a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos."
16 – Face à cristalina redação e à inexistência de margem de interpretação que legalmente revogue o estatuído, temos que ainda não ocorreu a obrigatória notificação pessoal da sentença à arguida e o prazo para interpor recurso ainda não se iniciou sequer.
17 - À cautela, diga-se desde já que a interpretação restritiva citada e adoptada de que a parte do artigo 74.º nº 1 do DL 433/82 no sentido de que apesar de a lei dizer caso o arguido não tenha estado presente na audiência apenas é aplicável caso não tenha estado presente nem representado é manifestamente inconstitucional por violar os princípios da segurança e confiança jurídicas, fazendo concomitantemente uma interpretação restritiva contrária aos ditâmes do Direito Penal, violando também o disposto nos arts. 2.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
18 - Os princípios da segurança e da confiança jurídicas bem como os ditâmes interpretativos do Direito Penal nunca permitiriam uma constitucional interpretação restritiva como a preconizada e feita.
19 - Assim, em qualquer processo contra-ordenacional a que se aplique o DL 433/82, a interpretação restritiva que determine que de forma geral e abstracta onde se lê no art. 74.º nº 1 que o prazo se conta da notificação pessoal ao arguido que esteve ausente da leitura da sentença apenas se aplica se este esteve ausente E não representado.

TERMOS EM QUE deve ser julgado procedente o recurso e:
a) reconhecido que o arguido nunca foi notificado da sentença principal proferida nos autos;
b) reconhecido que o prazo de recurso ainda não iniciou;
c) ordenada a baixa dos autos para efectivação da notificação pessoal da sentença ao arguido.”

Respondeu o Ministério Público na 1ª instância, que suscitou a questão prévia de rejeição do recurso por falta de alegações e, caso se entenda pela sua admissão, pugna pela sua improcedência e pela consequente confirmação do decidido, porquanto e em suma, no dia da leitura da sentença – 01/06/2022 – a recorrente esteve representada por mandatário, pelo que considera-se regularmente notificada do teor da sentença no dia em que a mesma foi proferida, dia a partir do qual começou a correr o prazo para recurso da mencionada sentença.

Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer suscitando a questão prévia da rejeição do recurso, por ausência de conclusões e, caso assim se não entenda, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, aderindo, no essencial, aos fundamentos constantes da resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância, que complementou com citação de jurisprudência que os sustenta.

Cumprido que foi o art.º 417º, nº 2, do CPP, foi apresentada resposta pela recorrente, mantendo, no essencial, o pedido final do recurso apresentado.

Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado - artigo 419º, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal.

II- FUNDAMENTAÇÃO:

1 – OBJECTO DO RECURSO.

A jurisprudência do STJ[1]  firmou-se há muito no sentido de que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.[2]
Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, consiste em determinar se verifica a nulidade decorrente da falta de notificação pessoal da sentença à arguida.

2- DA DECISÃO RECORRIDA

“No dia 01.06.2022 foi proferida sentença no âmbito dos presentes autos, na presença do Exmo. Sr. Dr. AA, devidamente munido com substabelecimento com reserva outorgado pelo Exmo. Sr. Dr. BB, mandatário da recorrente.
Compulsados os autos, mais concretamente, as referências n.ºs ...29 e ...48 verificamos que o legal representante da recorrente foi notificado para a data da leitura, por carta registada com aviso de recepção, não tendo, no entanto, procedido ao seu levantamento.
Veio a recorrente, por requerimento datado de 31.08.2022, alegar que a sentença ainda não transitou em julgado, uma vez que foi proferida sem que tivesse sido notificada da data designada para a sua leitura, o que, na sua óptica, constituiu uma nulidade.
Pronunciou-se a Digna Magistrada do Ministério Público nos termos e com os fundamentos que constam da promoção que antecede.
Apreciando.
Conforme se lê, a título meramente exemplificativo, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 04.11.2016 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt, “a notificação a que alude a última parte do n.º 1 do artigo 74.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro apenas se aplica a decisão que seja proferida por despacho ou em que a audiência seja realizada sem notificação regular do arguido, e não nas situações em que o mandatário tenha sido notificado da data da leitura da sentença e não compareceu, contando-se o prazo para interposição de recurso a partir do depósito da sentença”.
No caso dos autos, verifica-se que o legal representante da recorrente foi devidamente notificado da data designada para a leitura de sentença, não se vislumbrando donde decorre a conclusão do il. causídico quando se reporta à obrigatoriedade de notificação através de PD, a qual, obviamente, apenas se aplica no âmbito de processo penal, por força das obrigações decorrentes da prestação de termo de identidade e residência, situação inaplicável in casu. 

No mais, e quanto à concreta questão suscitada, transcrevemos integralmente o sumário do acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06.04.2004 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt:

I - O art.º 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 não pode ser lido na sua literalidade imediata, sem recurso aos princípios e à coerência do processo de contra-ordenação para o interpretar.
II - Assim, enquanto no processo penal a regra é a da obrigatoriedade da presença do arguido no julgamento, no processo de contra-ordenação a regra é a da não obrigatoriedade dessa presença, como dispõe o art.º 67.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, ou seja, o arguido pode ser obrigado a comparecer à audiência, apenas se o Juiz considerar a sua presença como necessária ao esclarecimento dos factos.
III - Acresce que, em processo de contra-ordenação não é obrigatória a constituição de advogado, nem sequer a nomeação de defensor, nada impondo tal constituição para a interposição do recurso em 1.ª instância.
IV - Dos artºs 46º, 47º e 68º, nº 1 do RGCO conclui-se que em processo de contra-ordenação, nada sendo ordenado quanto à obrigatoriedade de comparência do arguido à audiência de julgamento, este pode, simplesmente não comparecer, comparecer em pessoa ou fazer-se representar por advogado e, neste último caso, tudo se passa como se ele estivesse presente, através do advogado ou defensor.
V - Tendo o arguido estado representado por advogado na audiência de julgamento, o prazo para o recurso tem de contar-se da sentença, nos termos da primeira proposição do n.º 1, do art.º 74.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, desde logo, porque a notificação da sentença fica feita, no próprio acto, na pessoa do advogado, nos termos dos art.os 46.º, n.º 2 e 47.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10.
VI - Em suma, impõe-se a afirmação de que a segunda proposição do n.º 1, do art.º 74.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, «(...) ou da notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste», visa acautelar os casos em que o arguido não está presente nem representado no acto em que a mesma é proferida e, como tal, em que é  possível que o prazo decorra, no seu desconhecimento da existência da decisão e do decurso do prazo.
VII - A não ser assim, teríamos para o processo menos solene e em que os valores em jogo são de menor repercussão ética e material – o processo contra-ordenacional – uma solução processual mais garantística do que a vigente para o processo mais solene – o processo penal – o que seria uma solução senão absurda, pelo menos paradoxal, na harmonia do sistema.”
Em face do exposto, considerando que a recorrente se considera regularmente notificada do teor da sentença no dia em que a mesma foi proferida, ou seja, em 01.06.2022, inexistindo qualquer nulidade que importe sanar, indefiro o requerido.
Sem prejuízo do exarado, e mesmo que assim não se entendesse, o que apenas hipoteticamente se admite, sempre se diga que não tendo sido arguida a sobredita nulidade aquando do acto de leitura da sentença, se deve considerar a mesma sanada (cfr. artigo 120.º, n.ºs 1 e 3 al. a) do Código de Processo Penal).
Notifique. “

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Ultrapassada que está a questão prévia da rejeição do recurso por, na sequência da notificação efectuada nos termos do disposto no art.º 417º, nº 3 do C. P. Penal, a recorrente ter apresentado as conclusões em falta, impõe-se agora conhecer o objecto do recurso.

Para tanto importa considerar, por relevantes, as seguintes incidências processuais:

-Em resultado da impugnação judicial da decisão administrativa e sem que tenha sido determinada a sua presença em julgamento, o legal representante da arguida esteve presente na primeira sessão de julgamento, realizada no dia 19/05/2022, tendo também estado acompanhado pelo seu ilustre mandatário (referência citius ...99);
- Nesse dia foi designada para a leitura da sentença o dia 26/05/2022;
- Por despacho proferido no dia 25/05/2022 (referência citius ...07) a referida diligência foi adiada para o dia 1 de Junho de 2022;
- A arguida foi notificada por carta registada com PR (referência citius ...29), que foi devolvida com menção de objecto não reclamado;
- O mandatário foi notificado para a continuação da audiência de julgamento (leitura da sentença) (referência citius nº ...42);
- Na acta de leitura da sentença esteve presente o Sr. Dr. AA, devidamente munido com substabelecimento com reserva outorgado pelo Sr. Dr. BB, mandatário da recorrente;
-  A 01-6-2022 foi proferida sentença, que foi depositada na mesma data;
- A arguida/ recorrente só a 31-08-2022 veio alertar para o facto de que se mostra por efectuar a notificação da sentença à arguida (referência citius ...08);
-E, a 08-09-2022 veio juntar novo requerimento (...10), que foi indeferido pelo despacho objecto de recurso, em que pede a final que seja:
a) reconhecida a nulidade decorrente da falta de notificação pessoal da sentença
à arguida;
b) dada sem efeito a conta final elaborada e a sua notificação;
c) reconhecido o não trânsito da sentença proferida e
d) ordenada a notificação pessoal da arguida, na pessoa do seu representante.”

Estão em causa a prática de cinco contra-ordenações previstas e punidas pelos artºs  5.º, n.º 2 al. b) do Decreto-lei n.º 48/96 de 15 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro, conjugado com os artigos 5.º, n.º 1 al. f) e 13.º ambos do Regulamento dos Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos Comerciais e de Prestação de Serviços do Concelho ..., anexo do Regulamento n.º .../2015, com as alterações introduzidas pelo Regulamento n.º .../2018,
Assim, os presentes autos regem-se pelos princípios e normas previstas no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 (Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, doravante designado RGCO e diploma a que se reportam as disposições legais citadas sem menção de origem).

Ora, prevê o art.º 67º, do RGCO, que:

“1-O arguido não é obrigado a comparecer à audiência, salvo se o juiz considerar a sua presença como necessária ao esclarecimento dos factos.
2 - Nos casos em que o juiz não ordenou a presença do arguido este poderá fazer-se representar por advogado com procuração escrita.”
Enquanto no processo penal a regra é a da obrigatoriedade da presença do arguido no julgamento, no processo de contra-ordenação a regra é a da não obrigatoriedade dessa presença, como dispõe o citado art.º 67.º, n.º 1.
Por sua vez, resulta dessa disposição legal, como também tem sido entendido pela jurisprudência,[3] que em processo de contra-ordenação, nada sendo ordenado quanto à obrigatoriedade de comparência do arguido à audiência de julgamento, este pode, simplesmente não comparecer, comparecer em pessoa ou fazer-se representar por advogado. Neste último caso, tudo se passa como se ele estivesse presente, através do advogado ou defensor.
Na situação sub judice, embora a arguida tenha estado presente na primeira sessão da audiência, a sua presença não foi determinada por qualquer despacho. Nessa audiência esteve igualmente presente o seu advogado, que também esteve presente no acto de leitura da sentença.
Determina o art.º 74.º do referido RGCO, e ao que por ora releva, que:
1. recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste”.
A jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores tem entendido que a notificação a que se refere a última parte do nº 1 dessa disposição legal  apenas releva  nas hipóteses em que a decisão final seja proferida por despacho ou em que a audiência se realize sem que o arguido compareça ou se faça representar por advogado («ausência processual», mas não se o arguido e o defensor nomeado ou constituído – ou apenas um deles – comparecerem na audiência, caso em que o prazo de interposição do recurso se conta «a partir da sentença», ou melhor, do seu depósito ( cfr. entre outros  Acórdão do TRP de 24-04-02 no recurso nº 0240225,  Acórdão do TRC, de 10-03-2004, Processo: 3147/03, Ac. do TRE de 24-06-2010, Processo 360/09.8TBGLG.E1 e de 4-11-2016, processo 956/16. 1 T8STR-A-E1 Acórdão do TRL de 22.10.2015, proc. 491/15.5T9PDL.L1-9, Ac. do TRG de 23-10-2017, Processo 28/14. 3 TBEPS.G3, de 22-02-2021, Processo nº 21/19.T8CBT.G1 e de 17-02-2022, processo 6395/20.2 T8 GMR, todos in www.dgsi.pt.).
Citando-se a título ilustrativo, o já mencionado Ac. da Relação de Guimarães de 6 de Outubro de 2004, em cujo sumário se escreveu o seguinte:
I-O art.º 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 não pode ser lido na sua literalidade imediata, sem recurso aos princípios e à coerência do processo de contra-ordenação para o interpretar.
II - Assim, enquanto no processo penal a regra é a da obrigatoriedade da presença do arguido no julgamento, no processo de contra-ordenação a regra é a da não obrigatoriedade dessa presença, como dispõe o art.º 67.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, ou seja, o arguido pode ser obrigado a comparecer à audiência, apenas se o Juiz considerar a sua presença como necessária ao esclarecimento dos factos.
III - Acresce que, em processo de contra-ordenação não é obrigatória a constituição de advogado, nem sequer a nomeação de defensor, nada impondo tal constituição para a interposição do recurso em 1.ª instância.
IV - Dos artºs 46º, 47º e 68º, nº 1 do RGCO conclui-se que em processo de contra-ordenação, nada sendo ordenado quanto à obrigatoriedade de comparência do arguido à audiência de julgamento, este pode, simplesmente não comparecer, comparecer em pessoa ou fazer-se representar por advogado e, neste último caso, tudo se passa como se ele estivesse presente, através do advogado ou defensor.
V - Tendo o arguido estado representado por advogado na audiência de julgamento, o prazo para o recurso tem de contar-se da sentença, nos termos da primeira proposição do n.º 1, do art.º 74.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, desde logo, porque a notificação da sentença fica feita, no próprio acto, na pessoa do advogado, nos termos dos art.os 46.º, n.º 2 e 47.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10.
VI - Em suma, impõe-se a afirmação de que a segunda proposição do n.º 1, do art.º 74.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, «(...) ou da notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste», visa acautelar os casos em que o arguido não está presente nem representado no acto em que a mesma é proferida e, como tal, em que é possível que o prazo decorra, no seu desconhecimento da existência da decisão e do decurso do prazo.
VII - A não ser assim, teríamos para o processo menos solene e em que os valores em jogo são de menor repercussão ética e material – o processo contra-ordenacional – uma solução processual mais garantística do que a vigente para o processo mais solene – o processo penal – o que seria uma solução senão absurda, pelo menos paradoxal, na harmonia do sistema.”

Em igual sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 21-09-2011[4], em que se assinalou:

I- Em processo de contra-ordenação, diversamente do que ocorre em processo penal, o arguido pode litigar por si, desacompanhado de advogado ou defensor, e se o juiz não considerar como necessária a sua presença na audiência de julgamento, pode não comparecer, nem se fazer representar na mesma por advogado;
II- O art.74, nº1, do RGCO, não se refere à presença física, mas antes à presença processual, considerando-se o arguido notificado da sentença, depois de esta ter sido lida perante o defensor nomeado ou constituído, contando-se o prazo de recurso a partir dessa data, mesmo que o arguido não tenha comparecido a esse acto.”

Também na doutrina se tem seguido idêntica orientação, destacando-se Paulo Pinto de Albuquerque[5], que defende que:“ A notificação a que se refere a última parte do nº 1 do artº 74º apenas releva para a hipótese de a decisão mediante despacho ou ser realizada audiência sem a notificação regular do arguido ou sem que o arguido comparece ou se faça representar por advogado.”
Assim, tendo em consideração a orientação jurisprudencial e doutrinal acabada de referir, ter-se-á de concluir que não assiste razão à recorrente quando alega que é inquestionável que não esteve presente na leitura da sentença nem que nunca foi tentada a sua notificação da sentença.
De facto, por um lado, ao contrário do alegado, como resulta das incidências processuais acima descritas, após ter sido transferida a leitura da sentença, para o dia 1 de Junho de 2022, foram expedidas cartas para notificação da arguida, ora recorrente, e seu advogado. A primeira carta referida foi devolvida com menção de objecto não reclamado, pelo que a sua não efectiva recepção apenas à arguida/recorrente é imputável.
Por outro lado, estando a recorrente representada por mandatário no acto de leitura da sentença, tudo se passou como se ali estivesse (processualmente) presente.
Deste modo, ter-se-á de considerar, à semelhança do que entendeu o tribunal recorrido, que a arguida foi notificada da sentença, depois de esta ter sido lida perante o mandatário que a representou no referido acto de leitura da sentença, não ocorrendo, por isso, a invocada omissão de notificação.
Alega ainda a recorrente que a interpretação da mencionada norma prevista no nº 1 do art.° 74.° do RGCO perfilhada pelo tribunal recorrido, e agora por nós, no sentido de que a notificação da sentença ai prevista apenas releva, para o que aqui interessa, para a hipótese do arguido não se fazer representar na audiência por advogado, padece de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da segurança e confiança jurídicas e é contrária aos ditames do Direito Penal e aos  artºs 2º e 32º da CRP.
Também quanto a esta concreta questão a recorrente carece de razão.

Senão vejamos.
Como acima mencionamos, nos presentes autos estão em causa ilícitos contra-ordenacionais, que têm um regime próprio e específico, desde logo na sua vertente processual, nomeadamente no que se refere à não obrigatoriedade de o arguido estar presente na audiência e à interposição do recurso.
Não se vislumbra em que medida essa interpretação constitui qualquer compressão ou restrição dos direitos de defesa da arguida/recorrente e viole os princípios da segurança e confiança jurídica, porquanto nela se considerou que a arguida se encontrava devidamente representada, no caso por mandatário constituído, que se inteirou do conteúdo da sentença e das respectivas razões de facto e de direito da decisão e dispunha desde então do prazo legalmente consagrado para exercer efectivamente o direito ao recurso constitucionalmente protegido – artº 32º, nº 1, da CRP e, concomitantemente, exercer o  direito de defesa .
Sobre a conformidade constitucional dessa interpretação já se pronunciou aliás o Tribunal Constitucional no Ac. n.°77/2005, de 15 de Fevereiro de 2005 (Processo n.° 149/04, 2ª Secção, Relator: Paulo Mota Pinto), onde, a certo passo, se escreve: " tendo o arguido em processo contra‑ordenacional visto dispensada a sua presença, e sendo ao defensor do arguido notificado o dia para a leitura pública da sentença e depósito desta na secretaria, tem este a possibilidade imediata de, ainda que não possa assistir à audiência de leitura da decisão, consultar a decisão depositada na secretaria. E, de posse de uma cópia dessa sentença, pode, nos dias imediatos, reflectir sobre ela, ponderando, juntamente com o arguido, sobre a conveniência de interpor recurso da mesma. O que não merece tutela, nem é tocado pela garantia de defesa do arguido em processo de contra-ordenação, é o absentismo simultâneo do arguido – que viu a sua presença logo no julgamento dispensada – e do seu mandatário constituído, que foi notificado da data para leitura da decisão, ou, muito menos, a falta de interesse ou diligência deste último, no sentido de, notificado do dia da leitura da decisão, ainda que a esta não possa assistir, concretizar a possibilidade de tomar conhecimento da decisão e a comunicar ao arguido. Ao defensor do arguido foi dado prévio conhecimento do acto judicial de leitura da decisão, e, em processo de contra-ordenação, tal basta para se poder considerar notificada a decisão no momento dessa leitura, ainda que a esse acto faltem tanto o arguido como o seu mandatário constituído.”
Ora, importa salientar que, como já referimos, no caso vertente, o Exmo. mandatário da arguida esteve presente no acto de leitura da sentença, ficando devidamente notificado.
De notar também que todos os arestos mencionados pela recorrente quanto à questão da inconstitucionalidade reportam-se a ilícitos penais. E, o Tribunal Constitucional tem vindo a salientar que, no domínio do processo contra-ordenacional, não se verifica uma estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal, face à menor ressonância ética do primeiro, o que o subtrai às mais rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal (neste sentido Ac. do Tribunal constitucional n.º 537/2011 Processo n.º 394/11, ... Secção, relator Conselheiro José Borges Soeiro).
Por conseguinte, não merece censura o despacho recorrido, não tendo sido violadas as normas legais e/ou constitucionais invocadas pela recorrente, designadamente os artºs 74º, nº 1 do Dec.-Lei nº 433/82, de 27/10 e 2º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, pois, o recurso.

III- DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes na Secção Penal desta Relação julgar improcedente o recurso, confirmando o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, arts. 92º, n.ºs 1 e 3, e 93º, n.º 3, do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, e art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
 (Texto elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias - art.º. 94º, n.º 2, do CPP)
                                                                          

Guimarães, 26 de Junho de 2023
                                                            
Anabela Varizo Martins (relatora)

Ana Teixeira (1º adjunta)

Fátima Furtado (2ª adjunta)

 

[1] Cfr. arts. 412.º e 417.º do C P Penal e, entre outros, Ac.do STJ de 27-10-2016, processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 06-06-2018, processo nº 4691/16. 2 T8 LSB.L1.S1  e da Relação de Guimarães de 11-06-2019, processo nº 314/17.0GAPTL.G1, disponíveis em www.dgsi.pt  e, na doutrina, Germano Marques da Silva- Direito Processual Penal Português, 3, pag. 335 e Simas Santos e Leal Henriques in «Recursos em Processo Penal», Editora Rei dos Livros, 6.ª Edição, pág. 81 e seguintes .
[2]Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[3] Cfr. entre outros Ac. da Relação de Guimarães de 6 de Outubro de 2004 Processo: 1874/03-2, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Processo 2486/10.6TBOER.L1-5, relator Jorge Gonçalves. Disponível em www.dgsi. pt.
[5] In Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2º edição actualizada.