RECURSO DE REVISÃO
ESCOLHA DA PENA
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
DOENÇA GRAVE
PROVA DOCUMENTAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - O legislador não desconhece que a escolha da pena é uma operação diversa da determinação da sua medida concreta, com diferentes critérios, pelo que impedindo o n.º 3 do art. 449.º do CPP o recurso de revisão com o único fim de correção da “medida concreta da sanção aplicada”, tem de se entender que apenas se quis excluir o pedido de correção da dosimetria da pena aplicada, mas já não o da escolha da pena.
II - Sendo a revisão de sentença um recurso de natureza excecional, a aferição das causas de justificação invocadas pelo recorrente para não ter apresentado os novos factos ou as novas provas na ocasião em que que se procedeu ao julgamento, deve ser rigorosa, de modo a não permitir que a inércia voluntária do recorrente lhe abra um meio extraordinário de defesa, quando podia ter-se servido oportunamente dos meios ordinários de defesa.

Texto Integral




Proc. n.º 149/17.0T9CSC-A.S1

Recurso extraordinário de revisão

*

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

     

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., no âmbito do processo comum singular n.º 149/17.0T9CSC, foi o arguido AA condenado, por sentença de 18 de junho de 2021, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de maio de 2022, transitado em julgado a 17 de maio de 2022, na pena de 8 meses de prisão, pela prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo art.348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.   

2. Invocando como fundamento de revisão, o previsto na alínea d)[1], n.º 1, do art.449.º do Código de Processo Penal, vem o condenado AA, em 30 de maio de 2022, interpor recurso extraordinário de revisão de sentença, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1ª - O Arguido padece de “... (...)” - cfr. Doc. ....

2ª - “Devido ao excesso de ferro acumulado no fígado necessita de fazer controlos analíticos e flebotomias com regularidade de modo a expoliar o ferro e evitar lesões hepáticas” – cfr. Doc. ... supra.

3ª - Tal circunstância é incompatível com uma pena privativa da liberdade.

4ª - E tal como o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 2011 referiu: I. O recurso extraordinário de revisão consagra uma solução de compromisso entre o valor da segurança das decisões judiciais consubstanciada no instituto do caso julgado, e o valor da justiça nomeadamente quando estão em causa direitos fundamentais de pessoa humana como ocorre nas condenações penais.

5ª - III. Entende-se que a novidade dos factos ou meios de prova apresentados no recurso de revisão, à luz da al. d) do preceito mencionado, se afere por um desconhecimento desses factos ou meios de prova por parte do tribunal e não de quem os pretende fazer valer. (negrito e sublinhado nosso)

6ª - No entanto a sua invocação em sede de recurso só será admissível, se for dada uma explicação suficiente para a omissão, antes da sua apresentação. Ou seja, explicando porque é que não pôde, e eventualmente até, porque é que entendeu, na altura, que não devia apresentar os factos ou meios de prova, agora novos para o tribunal. (negrito e sublinhado nosso)

7ª - O Arguido penitencia-se por não ter informado em momento anterior qualquer dos Tribunais desta sua situação de saúde. Mas apenas não o fez por, simplesmente, ter vergonha e embaraço por esta situação que o diminui de forma grave. Tal circunstância gera-lhe um sentimento de inferioridade e respectivo complexo que preferiu esconder.

8ª - E só nesta situação limite de estar colocado perante uma Douta Decisão condenatória em pena de prisão efectiva, foi o ora Arguido levado a expor a sua situação de saúde, no que se refere à ....

9ª - Para além disso, o Arguido é também portador do vírus da ..., conforme documento que se protesta juntar.

10ª - Sendo certo que nos parece evidente que tal circunstancialismo demonstra, de per si, no mínimo, graves dúvidas sobre a justiça da condenação, tratando-se em ambos os casos de doenças graves, evolutivas e irreversíveis. E que já não responde às terapêuticas disponíveis

11ª - Pois que, uma pena de prisão efectiva, nestas circunstâncias, colocará em risco a vida do Arguido ou (pelo menos) a sua integridade física de forma grave, quer pela sua especial fragilidade física e necessidade de cuidados, quer (consequentemente) pela facilidade com que, no meio da população prisional, «apanharia» decerto outras doenças – assim como também existe o risco de o Arguido transmitir tais patologias a terceiros.

12ª – Termos em que se requer a substituição da pena aplicada por uma pena não privativa da liberdade. Assim se fazendo JUSTIÇA.

3. O Ministério Público, junto do Juízo Local Criminal ..., respondeu ao recurso extraordinário de revisão, concluindo que, “não constituindo a prova indicada pelo arguido meio de prova novo, nem nela se enunciando facto novo, nos termos do critério legal estabelecido, não pode qualquer dos argumentos enunciados servir de fundamento à pretensão do arguido, de revisão da sentença proferida (e confirmada por acórdão do Tribunal da Relação), pelo que deverá o recurso ora interposto ser rejeitado, só assim se fazendo a esperada e costumada Justiça”.

4. Sobre o mérito do pedido formulado pelo condenado, pronunciou-se a Exma Juíza de Direito, nos termos do art.454.º do Código de Processo Penal, informando o seguinte (transcrição):

“Tendo em consideração o disposto o art.449º, n.º 1, al. d) do Cód. de Processo Penal, a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando: “(…) d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Destarte, o processo de revisão com fundamento na al. d), acima citada, visa uma nova decisão, assente num novo julgamento sobre a matéria de facto, sendo que nos factos novos se incluem todos os que deveriam constituir tema de prova.

Ora, neste caso, e salvo melhor entendimento, não se vislumbra que as questões suscitadas pelo arguido, ora recorrente, constituam fundamento legal para a revisão da sentença condenatória nos termos peticionados.

Desde logo, e com o devido respeito, o arguido, ora recorrente, além de não invocar quaisquer novos elementos fácticos, não devem aqueles servir de fundamento para permitir qualquer alteração à pena que lhe foi aplicada.

A alegação do estado de saúde do arguido, aqui recorrente, é notoriamente demonstrativo, que aquele pretende alcançar, aquilo que não conseguiu através do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo certo que sobre este Tribunal não impende qualquer dever de conhecimento dos elementos fácticos somente agora invocados pelo arguido, o qual, ao longo de todo o processo, nunca invocou qualquer circunstância relacionada com a sua situação clínica, tendo plena consciência do seu estado de saúde, quer na data em que o julgamento ocorreu, como também no âmbito do recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa, não a tendo invocado porque assim não o quis.

Relativamente aos “novos factos”, alicerçados num “novo meio probatório”, acompanham-se os fundamentos aduzidos pela Digna Magistrada do Ministério Público, no sentido de que o recorrente se louva, para o efeito, de um recurso extraordinário, de forma a reparar a sua inércia ao longo de todo o processado, sendo manifestamente insuficiente ou inidóneo para colocar em causa os meios probatórios sopesados por este Tribunal na sua decisão.

Por todo o exposto, e em conformidade com as referidas disposições legais, o parecer deste Tribunal é no sentido de que deve ser indeferida a pretensão do recorrente e negada a revisão, por manifestamente infundada, não se suscitando quaisquer dúvidas sobre a justiça da manutenção da condenação.”.

5. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, no visto a que alude o art.445.º, n.º1, do C.P.P., emitiu parecer no sentido da improcedência da pretensão do condenado/recorrente, por não se verificarem os requisitos a que se refere o art.449.º, n.º1, alínea d), do C.P.P. ou qualquer dos demais segmentos do mesmo preceito legal, o que deverá determinar a negação da revisão de sentença.

6. Notificado o requerente do pedido de revisão da posição assumida pelo Ministério Público na vista a que alude o art.455.º, n.º1 do C.P.P., para, em 10 dias, querendo, dizer que tivesse por conveniente, veio responder mantendo o entendimento de que cumpre os requisitos da alínea d), n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal e que deve ser substituída a pena de prisão aplicada por uma outra pena não privativa da liberdade.

  7.  Realizada a Conferência, nos termos do art.455.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, cumpre decidir.

II – Fundamentação

8. São as seguintes as ocorrências processuais relevantes que importa apreciar no âmbito deste recurso, em face das certidões e demais documentos juntos aos autos:

A – Da sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., proferida em 18 de junho de 2021, no processo comum singular n.º 149/17.0T9CSC, em que é arguido AA, resultou apurada a seguinte factualidade e respetiva motivação (transcrição):

2.1. Factos provados (com relevância para a boa decisão da causa)

1. Por decisão judicial proferida, em 24/02/2015 e transitada em julgado em 12/06/2015, no processo sumário n.º 148/15...., pela Mma. Juíza da Comarca de Lisboa Oeste, Instância Local Criminal ..., o arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 meses, tendo ainda sido advertido da obrigação de entregar, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença, neste Tribunal ou em qualquer posto policial, a carta de condução de que é titular, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, o que foi regularmente comunicado ao arguido, que tomou conhecimento dessa obrigação e das consequências do seu incumprimento, no dia 13/05/2015, tendo entendido o respetivo teor;

2. Todavia, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução no decurso de tal prazo, bem como não apresentou qualquer justificação aceitável para tal procedimento;

3. O arguido agiu de modo voluntário, livre e consciente, com intenção de desrespeitar a ordem legal e legitimamente emanada de autoridade competente, que lhe fora regularmente comunicada, cujo teor entendera perfeitamente e com cabal conhecimento das circunstâncias que para si adviriam do incumprimento de tal ordem.

4. O arguido sabia que a sua conduta era e é proibida e punida por lei.

5. O arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 13/06/2011, pela prática, em 01/05/2011, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 40 dias de multa, à taxa diária de €8,00 e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de 3 meses e 15 dias;

6. O arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 12/06/2015, pela prática, em 10/02/2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €6,00 e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de 6 meses;

7. O arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 10/10/2019, pela prática, em 07/10/2016, de um crime de desobediência simples, numa pena de 5 meses de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade;

8. O arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 11/03/2013, pela prática, em 07/06/2010, de um crime de fraude fiscal, numa pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €6,00;

9. O arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 08/02/2019, pela prática, em 09/12/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de numa pena de 7 meses de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de 12 meses;

10. O arguido foi condenado, por decisão transitada em julgado em 06/10/2016, pela prática, em 04/09/2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de numa pena de 5 meses de prisão suspensa por 1 ano e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo prazo de 9 meses;

11. O arguido está a trabalhar em ..., não tendo sido possível apurar as demais condições pessoais e económicas do arguido, em virtude de o mesmo, apesar de notificado, não ter comparecido em julgamento.

2.2. Factos não provados:

Nenhuns.

2.3. Motivação da matéria de facto:

O Tribunal formou a sua convicção com base na prova produzida e examinada em audiência de julgamento, nomeadamente no teor da certidão de fls. 2-15.

Quanto aos demais factos, o Tribunal louvou-se no teor da ata da audiência de julgamento e do requerimento do arguido e do certificado do registo criminal que antecedem.”.

B -  Do Doc. n.º...,  junto com o pedido de revisão de sentença – “Relatório Clínico” do C..., EPE - Hospital ... - Hospital ..., de 6 de junho de 2022, do utente AA – consta (transcrição):

“…é seguido na Consulta de Hospital de Dia de ... por ... (...)” - Devido ao excesso de ferro acumulado no fígado necessita de fazer controlos analíticos e flebotomias com regularidade de modo a expoliar o ferro e evitar lesões hepáticas”.

C - Do Doc. n.º ..., que o condenado protestou juntar com o pedido de revisão de sentença e veio juntar – “Relatório” do C..., EPE - Hospital ... - Hospital ..., de 8 de agosto de 2022, do utente AA – consta, designadamente (transcrição):

“…é seguido nesta consulta a intervalos regulares: Apresenta os seguintes diagnósticos: - ..., baixa carga viral (…) - Sobrecarga de ferro: doente seguido em consulta de Hospital de Dia de ...”. 

D - Na sequência de deferimento pelo Juiz de 1.ª instância, do pedido formulado pelo condenado AA no recurso de revisão, de que fosse oficiado ao Hospital ... para juntar aos autos informação sobre o seu estado de saúde, designadamente, quanto à ... e à ..., foram juntos aos autos:  

- “Relatório Clínico”, datado 10 de novembro de 2022, onde se declara que aquele utente “… é seguido no de Hospital de Dia de ...  por sobrecarga de ferro secundária doença hepática crónica de causa etílica e infeção ... (controlo na consulta de Gastroenterologia). A RMN hepática feita em 30/Agosto/2022 não confirma sobrecarga de ferro hepático e a elastografia indica ausência de fibrose hepática. Mantém  consultas periódicas de reavaliação.”; e

7- “Relatório”, datado de 11 de novembro de 2022, onde, além do mais, se declara que o paciente “…é seguido em consulta de Gastrenterologia por: - ..., ..., com baixa carga viral; (…); - Sobrecarga de ferro, já está a ser seguido na ... (…)”.      

E - Na sequência de deferimento do requerimento do ora recorrente, de que fosse notificado o médico autor do relatório ora junto aos autos para vir esclarecer se “ uma pena de prisão efectiva, nestas circunstâncias, colocará em risco a vida do Arguido ou (pelo menos) a sua integridade física de forma grave, quer pela sua especial fragilidade física e necessidade de cuidados, quer (consequentemente) pela facilidade com que, no meio da população prisional, «apanharia» decerto outras doenças – assim como também existe o risco de o Arguido transmitir tais patologias a terceiros.(cfr. teor da conclusão 11.ª das alegações do recurso de revisão)”, foi junto aos autos um “Relatório com Esclarecimento adicional”, datado de 16 de dezembro de 2022, da médica assistente de AA, em que se declara:

 “…informo que a pena efetiva para o cidadão acima referido, não põe em causa a sua integridade física, nem constitui situação de risco para a transmissão da doença aos restantes encarcerados”.

F -  O recorrente juntou ainda aos autos dois documentos, ao abrigo do art.340.º do C.P.P., por os considerar fundamentais para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa:

- “Informação clínica”, subscrita por médico e psicóloga, datada de 12 de janeiro de 2023, onde, além do mais se declara que o ora recorrente “…está a ser acompanhado na Consulta de Adição  do Centro de Saúde ..., desde Setembro de 2022, em consulta médica e de Psicologia, com regularidade semanal. Embora tenha vindo à consulta através de medida judicial, tem feito boa adesão à consulta, revelando  uma clara vontade de olhar para o seu problema Ligado ao Consumo de Álcool, (…). Encontra-se estabilizado profissionalmente, encontrou equilíbrio familiar e fomentou o contacto com a rede familiar, de quem sente grande apoio e que são um fator de grande equilíbrio pessoal. (…). Está em perspetiva como possível projeto terapêutico ingresso em Comunidade Terapêutica, caso o projeto de abstinência total não se cumpra na totalidade. (…) seria fundamental a mesma não ser interrompida, de modo que se possa dar continuidade a este acompanhamento fundamental e essencial na abordagem da problemática dos consumos de álcool , que trazem por trás outros aspetos psicológicos e emocionais, que merecem todo o cuidado e acompanhamento regular.”;

- “Plano de Reinserção Social” elaborado pela DGRSP, datado de 19-9-2022, respeitante ao proc. n.º 488/15...., do ... – Juiz ..., em que o ora recorrente foi condenado, por sentença transitada em julgado a 2 de maio de 2022, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, onde, além do mais, consta:

“Condição imposta judicialmente: Tratamento e posterior prevenção do alcoolismo. (…)

O probando encontra-se no presente a trabalhar como carpinteiro na empresa “C..., Lda” , em regime de contrato de trabalho. (…)

 Face ao processo AA apresenta autocrítica pela sua conduta , denotando uma atitude de respeito face ao sistema judicial e preocupação em cumprir as obrigações decorrentes da sentença”.            

9. Âmbito do recurso:

O pedido de revisão de sentença tem o âmbito decorrente do requerimento inicial apresentado.

No caso, o requerimento inicial apresentado pelo recorrente, solicitando autorização de revisão da sentença condenatória proferida no proc. n.º 149/17.0T9CSC, tem como fundamento ou requisito, o indicado no art.449.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal.

10. Antes da apreciação da pretensão e argumentos apresentado pelo recorrente, impõe-se fixar, sinteticamente, os fundamentos e os pressupostos da revisão de sentença, ou seja, o regime legal que lhe subjaz.

O art.29.º da Constituição da República Portuguesa, inserido no Título II, epigrafado de «Direitos, liberdades e garantias» consagra, no seu n.º5, o princípio ne bis in idem e, assim, ainda que de forma implícita, a figura do caso julgado.

O fundamento central do caso julgado é uma concessão prática à necessidade de garantir a segurança e a certeza do direito.

Como assertivamente esclarece Eduardo Correia, com o caso julgado “…ainda mesmo com possível, sacrifício da justiça material, quere-se assegurar através dele aos cidadãos a paz; quere-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto.”.[2]      

Porém, embora a segurança seja um dos fins do processo penal, não é o único, como acentua Cavaleiro de Ferreira:

A justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações; o direito não pode querer e não quer a manutenção duma condenação, em homenagem à estabilidade das decisões judiciais a garantia dum mal invocado prestígio ou infabilidade do juízo humano, à custa de postergação de direitos fundamentais dos cidadãos, transformados então cruelmente em vítimas ou mártires duma ideia mais do que errada, porque criminosa da lei e do direito.”. [3]  

O caso julgado não pode, pois, ser um dogma absoluto face à injustiça patente.

E a nossa lei fundamental não deixa de o reconhecer, privilegiando a justiça material em detrimento da segurança e da certeza que resulta da autoridade do caso julgado, ao estabelecer no art.29.º. n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, que «os cidadãos injustamente condenados o direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença é á indemnização pelos danos sofridos».

Com o recurso de revisão consegue o legislador obter o equilíbrio entre a imutabilidade da sentença ditada pelo caso julgado (vertente da segurança) e a necessidade de assegurar o respeito pela verdade material (vertente da Justiça).

No mesmo sentido esclarece José Alberto dos Reis, no âmbito do processo civil, que “O recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas suscetíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa a eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”.[4]

A revisão de sentença criminal, densificada no art.449.º e seguintes do Código de Processo Penal, é um recurso extraordinário que visa a impugnação de uma sentença transitada em julgado e a obtenção de uma nova decisão, mediante a repetição do julgamento.

Comporta, no entendimento generalizado da doutrina, duas fases: a fase do juízo rescindente e a fase do juízo rescisório.

A primeira fase abrange a tramitação desde a apresentação do pedido até à decisão que concede ou denegue a revisão; a segunda fase – do juízo rescisório – só existe se a revisão for concedida e inicia-se com a baixa do processo e termina com um novo julgamento.[5]

O requerimento a pedir a revisão, contendo os fundamentos e as provas, é apresentado no tribunal que proferiu a decisão que deve ser revista (art.451.º do C.P.P.) e, se o fundamento for a descoberta de novos factos ou meios de prova, o juiz procede às diligências que considera indispensáveis, mandando documentar as declarações prestadas (art.453.º do C.P.P.).     

Os fundamentos e condições de admissibilidade da revisão da sentença penal transitada em julgado, em que seria injusto e intolerável manter a sentença transitada em julgado, constam das alíneas a) a g) do n.º 1 do art.449.º do Código de Processo Penal.

São elas, taxativamente, as seguintes:

- Falsidade dos meios de prova, verificada por outra sentença transitada em julgado - alínea a);

- Dolo de julgamento, decorrente de crime cometido pelo juiz ou por jurado relacionado com o exercício da sua função no processo - alínea b);

- Inconciliabilidade de decisões, entre os factos que servirem de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença, resultando graves dúvidas sobre a justiça da condenação - alínea c);

-  Descoberta de novos factos ou meios de prova que, em si mesmos ou conjugados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação - alínea d);

-  Condenação com recurso a provas proibidas - alínea e);

- Declaração pelo Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que haja servido de fundamento à condenação - alínea f); e
- Sentença vinculativa do Estado português, proferida por uma instância internacional, inconciliável com a condenação ou que suscite graves dúvidas sobre a sua justiça - alínea g).
      O fundamento da revisão da sentença transitada em julgado previsto na alínea d) do n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal, que o recorrente traz à colação exige a verificação cumulativa de dois pressupostos:

- a descoberta de novos factos ou novos meios de prova; e

- que eles suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

No que respeita ao primeiro destes pressupostos, importa, antes do mais, saber para quem devem ser novos os factos (“factos probandos”) ou os meios de prova (“as provas relativas a factos probandos”) que fundamentam a revisão da sentença, é uma das questões que esta norma coloca.

São três as orientações que o Supremo Tribunal de Justiça segue a este respeito:

Uma primeira, com interpretação mais ampla, considera que são novos os factos ou novos os meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, que não tiverem sido apreciados no processo que levou à condenação do arguido, por não serem do conhecimento do tribunal, na ocasião em que ocorreu o julgamento, pese embora, nessa altura pudessem ser do conhecimento do condenado.

Este entendimento foi partilhado durante um largo lapso de tempo pelo S.T.J, designadamente nos acórdãos de 3-7-1997 (proc. n.º 485/97 - 3.ª) e de 1-7-2009 (proc. n.º319/04.1GBTMR-B.S1 - 3.ª).[6]

Uma outra, mais restritiva, defende que os novos factos ou novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são apenas aqueles que eram desconhecidos do recorrente aquando do julgamento.

Apela para o efeito, essencialmente, à natureza extraordinária do recurso de revisão e ao dever de lealdade processual que recai sobre todos os sujeitos processuais.

Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-6-2013 (proc. n.º 198/10.0TAGRD-A-S1- 5.ª) e de 25-6-2013 (proc. n.º 51/09.0PABMAI-B.S1 - 3.ª).[7]           

E, uma terceira orientação, mais restritiva do que a primeira e mais ampla que a segunda, sustenta que os novos factos ou novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são os que embora conhecidos de quem cabia apresentá-los, no momento em que o julgamento teve lugar, apresente uma justificação bastante para a omissão verificada (por impossibilidade ou por, na altura, se considerar que não deviam ter sido apresentados os factos ou os meios de prova agora novos para o tribunal).

É a posição defendida no recente acórdão do S.T.J. de 11-11-2021 (proc. n.º769/17.3 PBAMD-B.S1- 5.ª Secção), onde se escreve: “Na sua aceção mais comum – e, por assim dizer, mais tradicional – «[a] expressão “factos ou meios de prova novos”, constante do fundamento de revisão da alínea d) do n° 1 do artigo 449º do CPP, deve interpretar-se no sentido de serem aqueles que eram ignorados pelo tribunal e pelo requerente ao tempo do julgamento e, por isso, não puderam, então, ser apresentados e produzidos, de modo a serem apreciados e valorados na decisão».

Concede, todavia, alguma jurisprudência mais recente – aliás, hoje, predominante e com que se concorda – que ainda sejam novos os factos ou meios de prova já conhecidos ao tempo do julgamento pelo requerente, desde que este justifique «porque é que não pôde, e, eventualmente até, porque é que entendeu, na altura, que não devia apresentar os factos ou meios de prova, agora novos para o tribunal».[8]

Seguimos, no presente caso, a orientação maioritária na jurisprudência neste momento, que vai no sentido de que os novos factos ou novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são os desconhecidos pelo tribunal e ainda os que embora conhecidos de quem cabia apresentá-los, no momento em que o julgamento teve lugar, apresente uma justificação bastante para a omissão verificada.

Como se consignou no acórdão do S.T.J. de 6 de outubro de 2022, com relato deste mesmo relator, “É uma posição equilibrada, que tem em consideração, por um lado, a natureza extraordinária do recurso de revisão, preservando o caso julgado como fator estabilizador das relações jurídicas e, por outro, o interesse na efetiva realização da verdade material, permitindo ao recorrente justificar porque não alegou os novos factos ou meios de prova no momento em que o julgamento teve lugar.”.[9] 

Para a procedência do recurso de revisão não basta, como vimos, a descoberta de novos factos ou novos meios de prova, tornando-se ainda necessário, um outro pressuposto: que eles suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Como se decidiu, entre outros, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1-7-2009 (proc. n.º 319/04.1GBTMR-B.S1), para efeitos do disposto no art.449.º, n.º1, al. d), do C.P.P., “A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada; há-de elevar-se do patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade” que baste, tendo os novos factos  e ou provas de assumir o qualificativo da “gravidade” da dúvida”. Não é, consequentemente, admissível revisão de sentença penal com o único objetivo de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.”.

Ainda com interesse para a presente decisão, estabelece o n.º3 do art.449.º do Código de Processo Penal, que «Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.».
Também a redação do n.º3 do art.449.º do C.P.P. não é objeto de uma interpretação consensual na jurisprudência. 
Assim, uma corrente considera que a inadmissibilidade da revisão tendo como única finalidade corrigir a medida concreta da pena abrange também a espécie da pena. É a posição defendida no acórdão do S.T.J. de 8-1-2009 (proc. n.º 3637/08), com o seguinte sumário:
“I - Diferentemente do que sucede com as demais als. do n.º1 do art.449.º do C.P.P., em que a revisão resulta, sem mais, da verificação de alguma das situações ali previstas, no caso da al. d) a revisão não é admitida se tiver como única finalidade corrigir a medida concreta da pena. II - Por esta deve entender-se não só o quantum, mas também a espécie de pena.”. [10] 
Uma outra corrente, mais restritiva da interpretação da inadmissibilidade de revisão consagrada no n.º3 do art.449.º do C.P.P., distingue a medida concreta da sanção aplicada da escolha da pena e só considera inadmissível a revisão quando tiver como única finalidade corrigir a medida concreta da pena aplicada, mas não a sua escolha
É a posição que se pode ler no sumário do acórdão do S.T.J. de 27-6-2012 (proc. n.º 847/09.2PEAMD-A.S1):

«III- Os conceitos de escolha e de medida da pena são distintos. A escolha refere-se à opção tomada pelo julgador pelo tipo ou espécie de pena a aplicar: pena de prisão ou multa, nos crimes puníveis em alternativa com prisão e multa; pena principal ou pena de substituição, quando a lei permite essa substituição. Após a escolha, segue-se a fixação da medida concreta da pena escolhida, dentro da moldura legalmente estabelecida. IV - Quando no n.º3 do art.449.º do C.P.P. impede o recurso de revisão com o único fim de correção da “medida concreta da sanção aplicada” tem de se entender que se quis apenas excluir o pedido de correção da medida da pena, mas já não o da sua escolha. V – Deve partir-se do pressuposto que o legislador conhece a distinção de conceitos e que sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.9.º, n.º3, 2.ª parte , do CC). Acresce que esta interpretação é a mais razoável e justa, pelo menos quando se perspetive a opção entre uma pena privativa e uma pena não privativa da liberdade.”.[11]
Adiantamos, desde já, seguir esta segunda orientação jurisprudencial, que distingue a questão da medida concreta da pena aplicada, da escolha da espécie da pena.

Prevendo um tipo penal a aplicação, em alternativa, de uma pena de prisão ou de multa, como penas principais, a primeira operação, tendo em vista a aplicação da pena criminal, é a  escolha da pena, cujo critério de orientação geral consta do art.70.º do Código Penal.

O critério de determinação da medida concreta da pena consta do art.71.º do Código Penal.   

Determinada uma concreta medida da pena de prisão, impõe-se ainda ao Juiz verificar se ela pode ser objeto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e respetiva medida.

O legislador não desconhece que a escolha da pena é uma operação diversa da determinação da sua medida concreta, com diferentes critérios, pelo que impedindo o n.º3 do art.449.º do C.P.P. o recurso de revisão com o único fim de correção da “medida concreta da sanção aplicada”, tem de se entender que apenas se quis excluir o pedido de correção da dosimetria da pena aplicada, mas já não o da  escolha da pena.

Será assim admissível a revisão de sentença quando a descoberta de novos factos ou meios de prova pode levar à alteração da escolha da pena, particularmente quando está em causa a opção entre uma pena de prisão aplicada e uma pena não privativa da liberdade

Estabelecido o regime legal que subjaz ao pedido de revisão importa examinar a questão em apreciação.

11. Retomando o caso concreto.

Com o pedido de autorização de revisão da sentença condenatória, formulado ao abrigo do disposto na alínea d), n.º1 do art.449.º, do Código de Processo Penal, pretende o recorrente AA, “a substituição da pena aplicada por uma pena não privativa da liberdade”.

Os argumentos apresentados para o efeito e em síntese, pelo recorrente AA, no seu requerimento são os seguintes: (i) o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou na íntegra o teor da sentença proferida em 1.ª Instância, por acórdão proferido a 3 de maio de 2022, mas desconhecia um facto: a grave situação de saúde do arguido, pois padece de “... (...), necessitando fazer controlos analíticos e flebotomias com regularidade de modo a expoliar o ferro e evitar lesões hepáticas, devido ao excesso de ferro acumulado no fígado, e é também portador do vírus da ...; (ii) o recorrente não informou qualquer dos dois tribunais desta sua situação de saúde por ter vergonha e embaraço, que o diminui de forma grave, gerando-lhe um sentimento de inferioridade e complexo que preferiu esconder, que só foi levado a expor perante a decisão condenatória em prisão efetiva;  (iii) o seu estado de saúde é incompatível com uma pena privativa da liberdade, pois colocará em risco a sua vida ou pelo menos a sua integridade física de forma grave, quer pela sua especial fragilidade física e necessidade de cuidados, quer (consequentemente) pela facilidade com que, no meio da população prisional, «apanharia» decerto outras doenças, assim como também existe o risco de o arguido transmitir tais patologias a terceiros; (iv) tal circunstancialismo demonstra, de per si, no mínimo, graves dúvidas sobre a justiça da condenação, tratando-se em ambos os casos de doenças graves, evolutivas e irreversíveis.

Vejamos se assim é.

11.1. O recurso de revisão de sentença invocado pelo recorrente tem como única finalidade corrigir a espécie da pena aplicada, por substituição da pena de prisão efetiva por uma pena não privativa da liberdade.

Seguindo o entendimento do citado acórdão do S.T.J. de 12-9-2012, consideramos que não é inadmissível, nos termos do n.º3 do art.449.º do Código de Processo Penal a revisão de sentença peticionada pelo recorrente AA. 

11.2. Cumpre agora aferir se, no caso, se verifica o primeiro dos pressupostos do fundamento de revisão previsto na alínea d), n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal: a descoberta de novos factos ou novos meios de prova.

Temos como pacífico, perante a análise da factualidade dada como provada na sentença revidenda que o tribunal de 1.ª  instância, desconhecia o estado de saúde do arguido AA quando realizou o julgamento e proferiu a sentença.

Também da leitura do acórdão da Relação de Lisboa, que confirmou a sentença condenatória pode concluir-se que o tribunal de 2.ª instância desconhecia o estado de saúde do arguido.

Considerando que do ponto n.º 11 da factualidade dada como provada, na sentença revidenda, consta que “O arguido está a trabalhar em ..., não tendo sido possível apurar as demais condições pessoais e económicas do arguido, em virtude de o mesmo, apesar de notificado, não ter comparecido em julgamento”, só ao comportamento processual do arguido pode imputar-se o desconhecimento, por parte do Tribunal, do seu estado de saúde quando este  proferiu a sentença.

O recorrente AA, seguindo a orientação jurisprudencial de que a descoberta dos novos factos ou dos novos meios de prova, invocáveis em sede de recurso de revisão, são os desconhecidos do Tribunal, embora não tenham de ser ignorados por quem cabia apresentá-los no momento em que o julgamento teve lugar, desde que apresente uma justificação bastante para a omissão verificada, vem penitenciar-se no recurso de revisão pela não oportuna apresentação das suas doenças, alegando não o ter feito por vergonha e embaraço, pois as doenças geram-lhe um sentimento de inferioridade e complexo que preferiu esconder, e que só foi levado a expor perante a decisão condenatória em prisão efetiva.

Sendo a revisão de sentença um recurso de natureza excecional, a aferição das causas de justificação invocadas pelo recorrente para não ter apresentado os novos factos ou as novas provas na ocasião em que que se procedeu ao julgamento, deve ser rigorosa, de modo a não permitir que a inércia voluntária do recorrente lhe abra um meio extraordinário de defesa, quando podia ter-se servido oportunamente dos meios ordinários de defesa.

Resulta da sentença revidenda que o arguido AA não compareceu na audiência de julgamento.

Se tivesse comparecido na audiência de julgamento, poderia conceber-se, embora com dificuldade, que no momento da averiguação pelo Tribunal sua  situação pessoal não tivesse querido revelar, em sessão pública, as doenças hepáticas de que padecia, por vergonha e embaraço, por estas lhe gerarem um alegado sentimento de inferioridade ou por ter um complexo relativamente a elas.

Mas não tendo comparecido na audiência de julgamento, não se vislumbra, no critério de um homem médio, com cerca de 50 anos de idade, que vergonha ou embaraço, lhe poderia trazer a invocação nos autos das doenças hepáticas e junção dos respetivos  documentos clínicos comprovativos das doenças que invoca neste recurso extraordinário.

Padecer de “... (...)”, devido ao excesso de ferro acumulado no fígado, de que o cidadão médio certamente nunca ouviu falar, objetivamente, não é razão para o arguido sentir vergonha, nem embaraço.

Mesmo a ..., que é uma doença infeciosa causada pelo vírus da ... e que ataca o fígado, podendo causar doença aguda ou crónica, não é motivo de vergonha. Qualquer pessoa pode vir a adquirir e padecer desta doença. Quando muito, sendo esta uma doença transmissível embora só em circunstâncias muito específicas, pode admitir-se que a sua revelação a pessoas mais chegadas, com quem se convive, pode trazer algum embaraço ou desconforto. Mas não no caso concreto, em que o arguido AA não compareceu em julgamento, perante o Tribunal, e toda a prova dada como provada na sentença revidenda se fundamentou em prova documental, como resulta da motivação da matéria de facto.

Pelo exposto, este Supremo Tribunal entende que esta justificação do recorrente AA para não ter apresentado ao Tribunal, aquando do julgamento, os factos e os meios de prova relativos às suas doenças hepáticas, não é motivo bastante para se considerar estarmos perante a descoberta de novos factos e novos meios de prova invocáveis em sede de fundamento da alínea d), n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal.

Importa notar, por outro lado, que quando a alínea d), n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal refere, como fundamento do recurso, a expressão «Se descobrirem novos factos ou meios de prova», reporta-se a factos já existentes na altura do julgamento e posteriormente descobertos e não a factos que só aconteceram posteriormente à decisão a rever. 

O recorrente alega que as doenças de que é portador já existiam à data da sentença proferida em 18 de junho de 2021 e do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de maio de 2022 que a confirmou, mas a factualidade que consta nas alíneas B , C, D , E e F, da fundamentação da presente decisão, não permite concluir que o arguido, naquelas datas, padecia das doenças hepáticas referidas.

Os documentos juntos aos autos foram elaborados em 6 de junho de 2022, 8 de agosto de 2022, 10 e 11 de novembro de 2022, 16 de dezembro de 2022, 12 de janeiro de 2023 e 19 de setembro de 2022, ou seja, são todos posteriores ao julgamento do arguido e nenhum deles reporta as doenças hepáticas de que o ora recorrente padece a, pelo menos, 18 de junho de 2021, data do julgamento do arguido em 1.ª instância - ou mesmo à data da confirmação dessa decisão pelo Tribunal da Relação.   

Assim, não se tem como verificado este primeiro requisito do recurso extraordinário.

11.3. Passando, agora, ao segundo requisito da revisão de sentença.

Do mesmo modo, quando a alínea d), n.º1 do art.449.º do C.P.P., nos fala em «graves dúvidas sobre a justiça da condenação», reporta-se à decisão condenatória e não à situação de facto que foi criada por ocorrência posterior à decisão a rever. 

Aceitando-se, porém, que essas doenças de que o ora recorrente hoje padece pudessem já existir à data do seu julgamento, não se vislumbra como poderia concluir-se que tais doenças constituiriam, no caso, factos geradores de «graves dúvidas sobre a justiça da condenação» do arguido AA na pena de 8 meses de prisão, efetiva, pela prática de um crime de desobediência simples.

O recorrente, ao assentar a existência de «graves dúvidas sobre a justiça da condenação, no argumento de que a sua condenação em pena de prisão, para além de vir a colocar em risco a sua vida ou pelo menos a sua integridade física de forma grave - quer pela sua especial fragilidade física e necessidade de cuidados, quer (consequentemente) pela facilidade com que, no meio da população prisional, «apanharia» decerto outras doenças -, colocaria também a de terceiros, a quem poderia transmitir as suas patologias, erige como critério  para a escolha da pena, entre pena privativa ou não privativa da liberdade, os perigos da execução da prisão em meio prisional, para a sua saúde e para a de terceiros.

O critério da escolha da pena, estabelecido no art.70.º do Código Penal, assenta exclusivamente em razões de prevenção geral e especial e não no estado de saúdo do arguido ou em incompatibilidades entre o estado de saúde do arguido e o de terceiros no meio prisional.

Os problemas de saúde dos condenados a cumprir pena em meio prisional, designadamente, com doenças graves, evolutivas e irreversíveis encontram solução no âmbito da execução das penas.

O CEPMPL, aprovado pela Lei n.º 115/2009, 12 de outubro, no Título XV, epigrafado de «modificação da execução da pena de prisão de reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível ou de deficiência grave e permanente ou de idade avançada», dá resposta a algumas das questões de saúde dos reclusos.

Regressando ao principal argumento do recorrente para requerer a substituição da pena de prisão aplicada por uma pena não privativa da liberdade, ou seja, que a sua condenação em pena de prisão colocaria em risco a sua vida ou pelo menos a sua integridade física de forma grave e a de terceiros, é manifesto que o argumento não pode proceder, pois os factos que o sustentam não resultam demonstrados.

Bem pelo contrário.

A médica assistente de AA, no “Relatório com Esclarecimento adicional”, é perentória no sentido de que a pena de prisão efetiva aplicada ao seu paciente não põe em causa a sua integridade física, nem constitui situação de risco para a transmissão da doença aos restantes encarcerados.

Afastados os riscos para a saúde do ora recorrente e dos restantes reclusos numa situação de cumprimento de pena de prisão, invocados pelo recorrente AA, fica também sem sentido a afirmação do mesmo recorrente de que “tal circunstancialismo demonstra, de per si, no mínimo, graves dúvidas sobre a justiça da condenação, tratando-se em ambos os casos de doenças graves, evolutivas e irreversíveis.”.

Uma última nota se impõe, ainda, agora respeitante à junção aos autos, pelo recorrente, dos dois documentos mencionados na alínea F da fundamentação da presente decisão.

A homologação judicial do Plano de Reinserção Social, alude a uma condenação em processo criminal, por sentença de 2 de maio de 2022 e a “Informação clínica”, datada de 12 de janeiro de 2023, respeita ao acompanhamento do arguido AA, por médico e psicóloga, ao problema do alcoolismo do arguido no âmbito da medida judicial imposta naquele processo.  

Nem os factos ali descritos, nem os dois documentos juntos, se reportam à altura do julgamento da sentença revidenda.

Não constituem, pois, nem novos factos, nem novos meios de prova, mas sim factos e meios de prova supervenientes, posteriores à sentença revidenda.

Consequentemente, não permitem concluir, por si só ou conjugados com outros, pela existência de «graves dúvidas sobre a justiça da condenação» do arguido AA na sentença revidenda. 

Em conclusão, não se mostrando preenchidos os pressupostos enunciados na alínea d), n.º1, do art.449.º do Código de Processo Penal, mais não resta negar a revisão da sentença, que foi objeto de escrutínio e de confirmação pelo Tribunal da Relação, no âmbito dos meios comuns.   

       

III - Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão de sentença peticionada pelo recorrente AA.

Custas pelo recorrente, fixando em 4 UCs a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

 *

(Certifica-se que o acórdão foi  processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.). 

*

Lisboa, 25 de maio de 2023

Orlando Gonçalves (Relator)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)

Helena Moniz (Presidente da Secção)

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[1] Na sequência da notificação do parecer do Ministério Público neste Supremo Tribunal, veio o recorrente  reconhecer razão ao Ex.mo P.G.A. de haver cometido um manifesto lapso de escrita ao invocar como fundamento do recurso de revisão o constante da alínea b), n.º1 do art.449.º do C.P.P., uma vez que que queria referir a alínea d), n.º1 do art.449.º do C.P.P., como resulta de diversos passos da motivação do recurso.
[2] Cf. “II - Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, Coimbra Editora, 1983, pág.7
[3] Cf. In “Scientia Iuridica”, tomo XIV, n.ºs 75/76, págs. 520-521.
[4] Cf. “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, vol. V, pág. 158.
[5]  Cf. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal",3º Vol., pág. 364 e Maia Gonçalves, "Código de Processo Penal Anotado", 17ª Ed., pág.644). 
[6] In www.dgsi.pt
[7] In www.dgsi.pt.
[8] Cf. no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 17.12.2009 (Proc. n.º 330/04.2JAPTM-B.S1), in www.dgsi.pt e de 3-11-2016, publicados na C.J. ASTJ, n.º 275, pág. 178 e, ainda, o mais recente acórdão do S.T.J. do ora relator, de 9.12.2021, proferido no proc. n.º3103/15.3TDLSB-E.S1, consultável in www.dgsi.pt/stj.
[9] Cf. proc. n.º 1106/19.8PAOLH-A.S1, in www.dgsi.pt
[10] Cf. “Código de Processo Penal comentado”, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça, Almedina, 2014, pág. 1637.
[11]In www.dgsi.pt