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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PAGAMENTO INTEGRAL DE TODOS OS CRÉDITOS
ENCERRAMENTO DO INCIDENTE
JUROS DOS CRÉDITOS RECLAMADOS
Sumário
I. Verificando-se que o produto da venda da massa insolvente é suficiente para o pagamento integral de todos os créditos sobre a insolvência deve ser encerrado o incidente de exoneração do passivo restante, nos termos do nº4 do art. 243º do CIRE. II. Ao invés do que sucedia na vigência do CPEREF, o qual previa a cessação da contagem de juros com a declaração de falência, encerrando-se nessa data todas as contas correntes( art. 151º, nº1 e 2 do CPEREF) o CIRE no artº 48º b) classifica como créditos subordinados, a graduar depois dos restantes créditos sobre a insolvência, os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência, pelo que são devidos os juros vincendos dos créditos reclamados, desde que peticionados pelos credores.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
AA e BB instauraram acção especial de insolvência de insolvência pedindo a declaração da respectiva insolvência que foi decretada por sentença de 16.1.2012.
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Por despacho datado de 26.6.2012, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante pelos mesmos formulado, tendo sido fixado o rendimento mensal de €750,00 para o sustento minimamente digno de ambos os insolventes
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Por decisão proferida em 26.4.2018, transitada em julgado, foi indeferida a alteração do rendimento indisponível e declarado o encerramento do processo de insolvência para efeitos de início do período de cessão.
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Por decisão de 11.12.2019, foi recusada antecipadamente a exoneração do passivo restante dos insolventes, com fundamento na falta de entrega do rendimento disponível, ao abrigo do disposto no art. 243º/1/al. a) do CIRE. Os insolventes apelaram de tal decisão, apelação que foi julgada procedente por acórdão desta Relação datada 16.4.2020 que revogou a decisão recorrida, considerando que a mera omissão da entrega dos rendimentos objecto de cessão por banda dos insolventes não implica a recusa de concessão da exoneração do passivo restante, sendo para tal necessário uma actuação dolosa ou gravemente negligente dos mesmos, cuja verificação face à factualidade provada e à exiguidade dos rendimentos, não era possível afirmar.
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Entretanto, prosseguiu os seus trâmites o Apenso de Liquidação em ordem à venda da quota-parte dos insolventes num prédio urbano, bem como o procedimento de exoneração do passivo restante.
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Face à entrada em vigor da Lei 9/2022 de 11.1, em 21.4.2022, foi proferido despacho que considerou findo o período de cessão e, além do mais, ordenou a notificação dos credores reconhecidos, dos insolventes e da fiduciária para se pronunciarem nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244º/1do CIRE, em 10 dias, sendo a fiduciária ainda para juntar aos autos o relatório reportado ao último ano do período de gestão.
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Os credores notificados, quedaram-se inertes, nada tendo dito ou requerido.
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A Srª fiduciária juntou em 3.5.2022, o relatório relativo ao último ano, informando que os rendimentos objecto de cessão de maio de 2021 a março de 2022 deveriam ascender a € 4.104,47, não tendo os insolventes entregue qualquer quantia, alegando face que às despesas derivadas dos problemas de saúde e demais encargos com o rendimento indisponível fixado não conseguem assegurar a sua subsistência.
E considerando que os rendimentos auferidos pelos insolventes provenientes das respectivas pensões são inferiores ao salário mínimo nacional, pronunciou-se no sentido da inexistência de rendimentos a entregar pelos insolventes ao longo de todo o período de cessão.
Os credores notificados deste relatório nada disseram.
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Os insolventes por requerimento de 6.5.2022, disseram que durante o período de cessão não tinham entregue qualquer quantia à fidúcia porque não conseguiram atenta a situação de extrema carência económica que sempre justificaram nos autos.
Mais disseram que na sequência da liquidação, o saldo da massa insolvente era de € 32.041, 52, pelo que reduzidas as despesas, no valor de € 5.683,93, o saldo apurado era de € 26.357,57, valor suficiente para pagar todos os créditos reconhecidos, no valor € 14.000,00.
Terminam afirmando que cumpriram todas as obrigações a que estavam adstritos, devendo ser-lhe concedido a exoneração do passivo restante como preconizara a Srª Fiduciária.
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Face ao requerido pelos insolventes, a Exma Srª Juíza em 20.6.2022, mandou os autos à conta, tendo as custas sido calculadas em € 2.333,24.
E, em 19.9.2022 proferiu o seguinte despacho: “ Notifique a Exma Sra AI para em 10 dias proceder à junção aos autos de relação actualizada dos valores ( com os juros moratórios entretanto vencidos) dos créditos reconhecidos no âmbito do presente processo de insolvência. Oportunamente, se fixará a remuneração variável devida à Exma Sra AI e se proferirá decisão final reportada à exoneração do passivo restante.”, tendo esta apresentada tal relação em 3.10.2022.
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Em 3.10.2022, a AI juntou aos autos a tabela inserta a fls 691, com o cálculo dos juros vencidos após a data da declaração de insolvência em relação a cada um dos créditos reconhecidos e graduados, totalizando os créditos reconhecidos € 16.275,05 e os juros entretanto vencidos € 6.297,44, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
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Em 7.11.2022, a Exmª Srª Juíza fixou a remuneração variável da Srª administradora da Insolvência em €1.689,98 e, de seguida, proferiu o seguinte despacho:
“ Do incidente de exoneração do passivo restante
No seu requerimento de 06.06.2022 vieram os insolventes alegar que o valor obtido com a liquidação do seu activo será suficiente para liquidar todos os seus créditos reconhecidos bem como as custas com o presente processo. Caso se verificasse essa situação, o incidente de exoneração do passivo restante pendente extinguir-se- ia por inutilidade superveniente da lide pois que o objectivo do mesmo é exonerar o devedor dos créditos que não sejam pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores (período de cessão) (cfr. art. 235.º CIRE). Como resulta do apenso da liquidação (apenso D), o montante apurado para a massa insolvente foi de €32.042,51 (€150 pela venda dos bens móveis e €31.892,51 pela venda do imóvel apreendido). As despesas globais com o presente processo de insolvência (custas já contadas e pagas, despesas não abrangidas pela provisão para despesas, segunda prestação da remuneração fixa devida à Exma. Sra. AI e remuneração variável da Exma. Sra. AI, acrescida de IVA) ascendem a €10.825,85, pelo que disponível para distribuição pelos credores encontrar-se-ão somente €21.216,66. Informou a Exma. Sra. AI que o valor dos créditos reclamados à data de 03.10.2022, por força dos juros vencidos desde a data da declaração da insolvência, ascendia a €22.572,49. Não lograrão, assim, os créditos reconhecidos pagamento integral pelo produto da liquidação, já que existe uma diferença de €1.355 entre o valor disponível para pagamento e o valor dos créditos a considerar. Logo, notifique os insolventes para em 10 dias informarem os autos se se disponibilizam a efectuar o depósito dos €1.355 em falta em prazo razoável, sendo certo que o Tribunal entenderá que não pretendem efectuar esse depósito caso nada seja comunicado no prazo concedido.”
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Os insolventes notificados de tal despacho em 8.11.2022, responderam em 21.11.2022 alegando que inexistia qualquer quantia a entregar, sustentando, em síntese, que beneficiando de apoio judiciário, não havia qualquer redução a fazer ao produto da venda da massa insolvente a título de custas, nem a título de actualização de juros dos créditos reclamados e reconhecidos, pois nenhum dos credores tinha requerido a actualização do passivo por força dos juros vencidos desde a data da declaração de insolvência, não podendo o Tribunal condenar além do peticionado, sob pena de excesso de pronuncia.
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Em 7.12.2022, a Exma Srª Juíza, proferiu os seguintes Despachos :
Requerimento da Exma. Sra. AI de 17.11.2022 (fls.709ss)
Assiste razão à Exma. Sra. AI quando refere ser imediatamente aplicável ao caso dos autos o disposto no art. 23.º EAJ, na redacção que lhe foi dada pela L9/2022, de 11.01. Assim, ao abrigo do disposto no art. 616.º/2/al. a) CPC, aplicável ex vi art. 17.º CIRE, reformo a decisão de fixação da retribuição da remuneração variável devida à Exma. Sra. AI nos seguintes termos: Resulta do disposto no art. 23.º/1 e 4 EAJ que a remuneração do AI tem uma parte fixa, no valor de €2.000, e uma parte variável, cujo montante depende do resultado da liquidação da massa insolvente. Acrescenta o art. 23.º/6 EAJ que para estes efeitos considera-se resultado da liquidação “o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com excepção da remuneração referida no n.º 1 e das custas dos processos judiciais pendentes na data da declaração da insolvência.” Como resulta do apenso da liquidação (apenso D), o montante apurado para a massa insolvente foi de €32.042,51; as custas do presente processo de insolvência ascendem a €2.333,24, as quais incluem €1.230 da 1.ª prestação da remuneração fixa devida à Exma. Sra. AI (que deverão ser descontadas) a que haverá que adicionar o valor das despesas suportadas que excederam a provisão para despesas paga, no valor de €5.183,93. Logo, o resultado da liquidação é de €25.755,34. Para determinação da remuneração variável há que calcular 5% de tal montante (cfr. art. 23.º/4/al. b) EAJ), que corresponde a €1.287,77. Preceitua o art. 23.º/7 EAJ que “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos.” Assim, ao resultado da liquidação haverá que subtrair o valor da remuneração fixa, no montante de €2.460 (IVA incluído) bem como os €1.287,77 determinados nos termos e para os efeitos do disposto no art. 23.º/4/al. b) CIRE, pelo que chegamos a uma diferença de €22.007,57, que será potencialmente o montante dos créditos que obterão satisfação, 5% deste montante corresponde a €1.100,38. Pelo exposto, fixo à Exma. Sra. AI a remuneração variável de 2.338,1€. Notifique. Desde já se autoriza a Exma. Sra. AI a retirar da conta da massa insolvente o valor necessário ao pagamento da sua remuneração variável bem como da 2.ª prestação da sua remuneração fixa, caso ainda não o tenha feito, devendo juntar aos autos no prazo de 10 dias os recibos respectivos bem como os comprovativos dos aludidos descontos. Não sendo dada resposta no prazo concedido insista com cominação de multa.
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Notifique ainda a Exma. Sra. AI para dar cumprimento ao disposto no art. 182.º/3 CIRE no prazo de 10 dias, insistindo com cominação de multa caso não seja dada resposta no prazo concedido.
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Requerimento da Exma. Sra. Fiduciária de 03.05.2022 Constatou agora o Tribunal que não recaiu ainda despacho sobre o pedido formulado pela Exma. Sra. Fiduciária quanto à atribuição de remuneração pelo exercício do cargo. Na esteira da promoção do Exmo. Sr. Procurador, fixo em 1 (uma) UC/ano o valor da retribuição devida, no valor global de 4 (quatro) UC. Notifique.
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Da exoneração do passivo restante
Por sentença datada de 16.01.2012, a fls. 30ss, foi declarada a insolvência de AA e de sua esposa, BB, na sequência da apresentação à insolvência efectuada pelos insolventes. Ao efectuarem a apresentação à insolvência, os insolventes requereram, do mesmo passo, a exoneração dos respectivos passivos restantes. Por despacho datado de 26.06.2012, a fls. 169ss, pacificamente transitado em julgado, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência os insolventes deveriam ceder mensalmente ao fiduciário a quantia que excedesse os €750 mensais, globalmente considerado como rendimento do casal. Por requerimento datado de 03.10.2017, a fls. 212ss, vieram os insolventes solicitar a alteração do rendimento indisponível para um salário mínimo nacional por cada um deles. Tal pretensão foi indeferida por despacho datado de 26.04.2018, a fls. 301ss. Desta decisão recorreram os insolventes, tendo tal recurso sido julgado improcedente, com consequente manutenção do valor do rendimento disponível em toda a quantia que exceda os €750, globalmente considerado como rendimento do casal, por Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.11.2018, a fls. 81ss do apenso F, já transitado em julgado. Ante o disposto nos arts. 6.º/6 e 8.º DL79/2017, de 30.06, e uma vez que o presente processo de insolvência ainda não se encontra encerrado, o período de cessão tem-se por iniciado em 01.07.2017. Foram juntos aos autos os relatórios a que alude o art. 61.º/1 CIRE, ex vi art. 240.º/2 CIRE. Foram ouvidos insolventes, credores e Exm Sr. Fiduciária.
Cumpre decidir. Com relevo para a decisão do incidente encontram-se demonstrados os seguintes factos:
− Por sentença datada de 16.01.2012, a fls. 30ss, foi declarada a insolvência de AA e de sua esposa, BB, na sequência da apresentação à insolvência efectuada pelos insolventes; − Por despacho datado de 26.06.2012, a fls. 169ss, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência os insolventes deveriam ceder mensalmente ao fiduciário a quantia que excedesse os €750 mensais, globalmente considerado como rendimento do casal; − Entre Julho de 2017 (inclusive) e Abril de 2022 (inclusive) foram processados e pagos aos insolventes os seguintes valores líquidos a título de pensão (cfr. fls. 424ss, 521vss, 617vss e 657vss):
2017
2018
2019
2020
2021
2022
Janeiro
€859,99
€920,14
€926,59
€940,14
€1.394,39
Fevereiro
€859,99
€920,14
€926,59
€980,14
€1.076,69
Março
€859,99
€920,14
€926,59
€960,14
€1.076,69
Abril
€859,99
€920,14
€926,59
€960,14
€1.076,69
Maio
€859,99
€920,14
€940,14
€960,14
Junho
€859,99
€920,14
€940,14
€960,14
Julho
€1.764,90
€1.791,98
€1.840,28
€1.880,28
€1.920,28
Agosto
€916,16
€900,14
€920,14
€940,14
€960,14
Setembro
€916,16
€900,14
€920,14
€940,14
€960,14
Outubro
€1.066,16
€1.053,60
€1.076,81
€1.097,15
€1.117,15
Novembro
€916,16
€900,14
€920,14
€940,14
€960,14
Dezembro
€1.364,08
€1.800,28
€1.840,28
€1.880,28
€1.920,28
Os insolventes não cederam qualquer quantia à Exma. Sra. Fiduciária (cfr. relatórios de 17.07.2019, a fls. 360ss, de 02.10.2020, a fls. 527ss, de 29.09.2021, a fls. 604ss, e de 03.05.2022, a fls. 660ss); − Aos insolventes não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. fls. 668 e 668v); Porque invocada pelos insolventes ser o produto da liquidação suficiente para satisfação integral do passivo, há que considerar ainda a seguinte factualidade: − O incidente de liquidação do activo foi encerrado em 11.01.2022 (cfr. apenso D); − Com a venda dos bens apreendidos para a massa insolvente foi obtido um total de €32.042,51; − As custas do processo de insolvência ascendem a €2.333,24, que não incluem a 2.ª prestação da remuneração fixa devida à Exma. Sra. AI; (cfr. conta de custas de 08.09.2022, a fls. 679) − Foi fixada à Exma. Sra. AI uma remuneração variável de €2.338,15; − As despesas (suportadas pela massa) do presente processo ascenderam a €5.683,93, dos quais €500 se encontram abrangidos pela provisão para despesas paga à Exma. Sra. AI e incluída na conta de custas; (cfr. sentença de 21.04.2022, a fls. 30 do apenso G) − Foram reclamados e reconhecidos créditos no valor de €16.275,05; (cfr. apenso C) − Desde a apresentação das reclamações de créditos até 03.10.2022 os créditos reconhecidos aos credores venceram juros no valor de €6.297,44; (cfr. requerimento da Exma. Sra. AI de 03.10.2022, a fls. 691)
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A exoneração do passivo restante encontra-se especialmente prevista para os insolventes pessoas singulares e regulada nos arts. 235ss.º CIRE. A efectiva concessão da exoneração do passivo restante importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art. 245.º/1 CIRE), mesmo que não reclamados e/ou verificados, com excepção daqueles previstos no art. 245.º/2 CIRE. A exoneração do passivo restante proporciona, pois, ao insolvente, findo o período de cessão, um “fresh start”, uma possibilidade de recomeçar a sua vida do ponto de vista económico-financeiro. Contudo, pelas consequências que da exoneração do passivo restante advêm para os credores que não os incluídos no art. 245.º/2 CIRE, o legislador sujeitou a possibilidade de concessão da exoneração do passivo restante à observância de determinadas condições: −O pedido tem de ser formulado no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação (ou até ao momento da realização da assembleia de apreciação do relatório); − O devedor não pode, com dolo ou culpa grave, ter fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; − O devedor não pode ter já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; − O devedor não pode ter incumprido o dever de apresentação à insolvência; não estando obrigado a apresentar-se, não pode ter-se abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; − Inexistência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; − O devedor não pode ter já sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data; − O devedor não pode, com dolo ou culpa grave, ter violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência; − O devedor não pode ocultar ou dissimilar quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título; − O devedor é obrigado a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; − O devedor é obrigado a exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; − O devedor é obrigado a informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; − O devedor é obrigado a não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores; − O devedor é obrigado a, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), entregar ao fiduciário o rendimento disponível, fixado judicialmente, e integrando o conceito de “rendimento disponível” todos os rendimentos referidos no art. 239.º/3 CIRE. De todas as condições legalmente impostas para que, findo o período de cessão, ao insolvente seja concedida a requerida exoneração do passivo restante conclui-se que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) é exigidoao insolvente um esforço económico-financeiro elevado, para que os seus credores sejam satisfeitosna maior medida possível (até porque nas mais das vezes a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante é efectuada contra vontade expressa dos credores), já que, findo esse período, os créditos que não tiverem logrado pagamento ficarão por liquidar. Antes de terminado o período de cessão, o juiz deve recusar a exoneração (a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do AI ou do fiduciário) quando: − O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; − Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas no art. 238.º/1/als. b), e) e f) CIRE, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; − A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação da insolvência. Uma das obrigações previstas no referido art. 239.º CIRE é precisamente a de entrega ao fiduciário da parte dos rendimentos objecto de cessão, quando por si (insolvente) recebida (cfr. art. 239.º/4/al. c) CIRE).
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Começaram os insolventes por invocar, no seu requerimento de 06.05.2022 (fls. 665ss) que o produto da liquidação do seu activo seria suficiente para satisfação integral do seu passivo, o que, só por si, seria suficiente para lhes conceder a pretendida exoneração do passivo restante, não obstante nunca terem cedido qualquer quantia à fidúcia. Assim não é. Como se retira do disposto no art. 172.º/1 CIRE, antes de se dar pagamento a qualquer credor terá de se liquidar as dívidas da massa insolvente, que são aquelas previstas no art 51.º/1 CIRE, entre as quais as custas do processo de insolvência e as remuneração e despesas do Exmo. Sr. AI. As custas contadas do presente processo de insolvência ascenderam a €2.333,24. Como este valor não inclui o valor da 2.ª prestação da remuneração fixa decida à Exma. Sra. AI (€1.000 + IVA, num total de €1.230), haverá que somar tal montante separadamente. A considerar ainda, para efeito de pagamento das dívidas da massa, o valor da retribuição variável devida à Exma. Sra. AI, fixada nos €2.338,15, a qual, acrescida de IVA, ascende a €2.875,92, bem como das despesas judicialmente aprovadas, no montante de €5.183,93 (€5.683,93 - €500). O valor a pagar, antes de se poder efectuar qualquer pagamento a qualquer credor, é, assim, de €11.623,09. Com a venda dos bens apreendidos para a massa insolvente foi obtido um total de €32.042,51, pelo que disponível para distribuição pelos credores restarão €20.419,42. Em 03.10.2022 o valor dos créditos reconhecidos aos credores reclamantes ascendia a €22.572,49, por força dos juros vencidos após a data da declaração da insolvência. Verifica-se, pois, a insuficiência do produto da liquidação para satisfação integral das dívidas da massa insolvente e das dívidas e sobre a insolvência, ao contrário do alegado pelos insolventes. Cumpre, assim, aferir da concessão ou recusa da exoneração aos insolventes. Nos presentes autos, e considerando todo o condicionalismo subjacente à condição sócio-económica dos insolventes, por despacho pacificamente transitado em julgado foi fixado o rendimento disponível em montante que excedesse os €750 mensais, globalmente considerados enquanto rendimento do casal. Por requerimento datado de 03.10.2017, a fls. 212ss, vieram os insolventes solicitar a alteração do rendimento indisponível para um salário mínimo nacional por cada um deles. Tal pretensão foi indeferida por despacho datado de 26.04.2018, a fls. 301ss. Desta decisão recorreram os insolventes, tendo tal recurso sido julgado improcedente, comconsequente manutenção do valor do rendimento disponível em toda a quantia que exceda os €750,globalmente considerado como rendimento do casal, por Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de22.11.2018, a fls. 81ss do apenso F, já transitado em julgado. Como resulta dos factos dados como provados, os insolventes auferiram sempre rendimentos mensais líquidos superiores aos €750 mensais, pelo que deveriam ter entregado à Exma. Sra. Fiduciária um total de €22.276,67, sem que tenham procedido à entrega de qualquer montante. Notificados para se pronunciarem sobre a falta de entregas, os insolventes aduzem que os rendimentos auferidos não lhe permitem efectuar qualquer entrega. Como já se escreveu no aludido despacho de 26.04.2018, os insolventes não reagiram contra o despacho que havia fixado em tudo o que excedesse os €750 o rendimento disponível e sendo que na altura, para efeitos de quantificação desse valor, o Tribunal havia considerado a seguinte factualidade (cfr. despacho de 26.06.2012, a fls. 169ss): − O insolvente marido encontra-se reformado por invalidez desde há cerca de 6 anos e a insolvente mulher reformada por invalidez há cerca de 5 anos, auferindo, respectivamente, €477,67 e €379,04 mensalmente a título de pensão de reforma; − Os insolventes residem em casa arrendada, pagando mensalmente a título de renda €39; despendem ainda €145 mensais em medicamentos e €125 num centro de dia. Ou seja, com este quadro sócio económico (mormente atendendo ao reduzido valor da renda mensal paga) os insolventes não puseram em causa que os €750 fosse suficientes para suprir assuas necessidades diárias e correntes, não podendo o Tribunal deixar de acrescentar que há agregados familiares neste país compostos por casal com filhos que sobrevivem com valores a rondar o salário mínimo nacional por um dos seus membros adultos se encontrar desempregado, sendo essa a medida do salário auferido pelo outro. A argumentação dos insolventes (e com a qual fundaram o pedido de alteração do valor do rendimento disponível, no sentido da fixação de um salário mínimo nacional para cada insolvente como valor insusceptível de cessão) não ficou minimamente demonstrada. Transcrevendo aqui o que então se escreveu: “Começando pela apreciação deste pedido, não poderá deixar de se dizer que a alteração apenas se justificaria se se tivesse verificado uma alteração das necessidades do agregado familiar composto unicamente pelos insolventes. E desde já se adianta que não resulta dos autos que assim seja. Em primeiro lugar, e só após pedido de esclarecimentos, vieram os insolventes reconhecer que as alegadas despesas medicamentosas que quantificam em €400 se reportam unicamente a problemas de saúde da insolvente-mulher e não a problemas de saúde de ambos. Logo, e considerando que aquando da prolação da decisão de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante o Tribunal já havia valorado uma despesa medicamentosa elevada (€150/mês), a única hipótese de alteração do montante prender-se-ia com um eventual acréscimo entretanto verificado. Do atestado de doença junto aos autos a fls. 274 resulta que todas as patologias para as quais a insolvente-mulher toma medicação encontravam-se já diagnosticadas aquando da prolação do despacho que fixou em €750 o valor do rendimento indisponível, pelo que não se pode afirmar ter existido uma alteração significativa da situação clínica da devedora que tenha acarretado um acréscimo não despiciendo de despesas médicas. Por outro lado, e analisados os recibos de farmácia juntos aos autos, constata-se que alguns deles se reportam a aquisições que em nada se relacionam com a medicação que a insolvente-mulher tomará diariamente (é o caso de dulcogas, depuralina, luvas de latex, stagutt detox, moviprep ou o champô Dercos), pelo que naturalmente que tais aquisições não poderão ser valoradas como gastos médicos necessários. Acresce que igualmente não resulta minimamente demonstrado que as aquisições efectivas de medicamentos sejam mensais: só para se ter uma ideia, no recibo de farmácia de fls. 265 constam duas embalagens de prozac, num total de 112 cápsulas, quando, e segundo a informação do médico assistente da insolvente, esta apenas tomará 1 cápsula/dia. Sendo assim, as 112 cápsulas adquiridas pela insolvente mulher correspondem a medicação para quase 4 meses, obviando a que até ao natal voltasse a gastar quaisquer quantias na aquisição deste medicamento. Por fim, e no que se refere ao argumento do aumento do custo de vida, diga-se que o mesmo não tem correspondência com a realidade: de acordo com os dados disponíveis no INE, a taxa de inflacção, de 2012 a este ano, foi, respectivamente, de 0,3% (2013), 0,5% (2015), 0,6% (2016) e 1,4% (2017), tendo havido uma descida generalizada dos preços (com uma taxa negativa de 0,3%) no ano de 2014. Ou seja, os preços têm-se mantido praticamente inalterados nos últimos 5 anos.” Aliás, diga-se que ainda que o Tribunal tivesse atendido à pretensão de alteração do valor do rendimento disponível para tudo o que excedesse um salário mínimo nacional por cada um dos insolventes nem assim as obrigações para eles emergentes teriam sido cumpridas: nos meses de Julho e Dezembro de cada um dos anos do período de cessão ambos os insolventes auferiram um rendimento mensal superior ao salário mínimo nacional. Contudo, nem nesses meses os insolventes se dignaram a efectuar qualquer entrega. Tal inculca que se os insolventes não cumpriram integralmente as suas obrigações, nomeadamente a de entrega à Exma. Sra. Fiduciária de todos os valores por si recepcionados que ultrapassassem os €750 mensais foi opção sua, pois que, repete-se, teriam condições económicas para o efeito, nem que fosse nos meses de Julho e Dezembro de 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021. Aliás, os insolventes foram notificados para procederem à entrega à massa insolvente do valor necessário à satisfação integral dos créditos dos credores (valor esse que, por lapso, decorrente do deficiente cálculo da remuneração variável devida à Exma. Sra. Ai, foi indicado como sendo de €1.355) e recusaram fazê-lo. Daqui resulta a existência de, pelo menos, negligência grave na violação dessa obrigação de entrega. Acresce que a não entrega à Exma. Sra. Fiduciária do valor mencionado impossibilitá-la-á de dar cumprimento ao disposto no art. 241.º/1 CIRE, mormente de distribuir pelos credores reconhecidos os valores devidos, com evidente prejuízo para estes. Consequentemente, ao abrigo do disposto no art. 243.º/1/al.a) CIRE, ex vi art. 244.º/2 CIRE, recuso a exoneração do passivo restante requerida pelos insolventes. Custas pelos insolventes. Notifique. Cumpra o disposto no art. 247.º CIRE.”
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Inconformados com o decidido, os insolventes interpuseram o presente recurso, finalizando com as seguintes conclusões:
1. Os Recorrentes não se conformam, nem podem aceitar, o douto despacho recorrido que recusa, mais uma vez, a exoneração do passivo restante por ser absolutamente contrário ao Direito.
2. O presente recurso versa sobre matéria de facto e matéria de direito.
Antes de mais,
3. Na decisão sobre a matéria de facto, impõe-se que a sentença contenha o enunciado dos factos provados e não provados.
4. Ora, in casu, não consta na decisão proferida a indicação de qualquer facto
como não provado.
5. Tal omissão implica que a decisão proferida não seja clara, objectiva e discriminada e, como tal, não permite que os recorrentes saibam o que considerou o Tribunal como não provado e a respectiva justificação / fundamentação para que fosse proferida a decisão de recusa da exoneração do passivo restante.
6. Termos em que, a omissão do elenco dos factos não provados consubstancia nulidade, nos termos dos artigos 607º, nº4, e 615º, nº1, als. c) e d) do Código de Processo Civil que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
No mais,
7. O despacho recorrido constituiu uma decisão surpresa para os Insolventes.
8. Isto porque, notificou o Tribunal os Insolventes para que estes se “disponibilizassem” a entregar a quantia de 1.355,00€, aquando do seu despacho datado de 07 de novembro de 2022, mas a verdade é que nunca os Insolventes foram notificados para justificar a não entrega.
9. Além do mais, o Tribunal vem agora no despacho do qual se recorre admitir que, por lapso, não seria a quantia de 1.355,00 € o valor em falta e ainda a entregar pelos Insolventes, admitindo um erro no valor referente à remuneração variável da Sra. Administradora de Insolvência.
10. Ocorre que, nunca foram os Insolventes notificados disto.
11. Termos em que, não podia o Tribunal a quo decidir a questão de mérito sem prévia audição dos Recorrentes quanto à quantia eventual a ceder de 2.153,07 € e não de 1.355,00 €, pelo que violou o princípio do contraditório, o que constituiu uma nulidade que influi na decisão da causa e que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
No mais,
12. Conforme resulta dos autos, foram reclamados e reconhecidos créditos no valor de 16.275,05€.
13. Ocorre que, nenhum dos credores requereu a actualização dos juros.
14. Tendo tal sido uma iniciativa exclusiva do Tribunal no seu despacho datado de 19 de setembro de 2022.
15. O que significa que o Tribunal decidiu além daquilo que foi peticionado numa clara violação do princípio do dispositivo.
16. Na observância deste princípio, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objecto.
17. Termos em que, não podia o Tribunal a quo decidir a actualização dos juros, por si, sem tal ser requerido pelos credores, pelo que violou o princípio do dispositivo, o que constituiu uma nulidade que influi na decisão da causa e que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
No mais,
18. Conforme resulta dos autos, apresentaram os Recorrentes um Requerimento
datado de 21 de novembro de 2022.
19. Ocorre que, não foi tal Requerimento objecto de qualquer apreciação pelo Tribunal.
20. A verdade é que, com o devido respeito, fez o Tribunal “tábua rasa” de tudo
quanto é invocado pelos Insolventes.
21. Invocaram os Insolventes no seu Requerimento (quando notificados se pretendiam proceder à entrega voluntária de uma quantia que se revelou não ser a correcta de acordo com o entendimento do próprio Tribunal) que beneficiam de proteção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e, como tal, nenhum pagamento a título de custas com os presentes autos lhes poderia ser imputado e o mesmo se diria quanto às despesas e à remuneração da Sra. Administradora de Insolvência.
22. Pois, em momento algum, foi revogado o apoio judiciário que lhes tinha sido concedido e nem o poderia por inexistência de qualquer prova e ou garantia de que os Insolventes deixaram de estar numa situação de carência económica.
23. Ocorre que, nunca tal foi apreciado pelo Tribunal a quo que ignorou tal argumentação.
24. Argumentação que, procedendo, e pagando-se integralmente as quantias em causa originaria a extinção da exoneração do passivo restante pendente por inutilidade superveniente da lide pois que não haveria lugar a qualquer exoneração em face do pagamento integral.
25. Assim como o fez quanto ao facto de nenhum dos credores ter requerido a actualização dos juros, algo que também não foi objecto de qualquer apreciação.
26. Ora, a apreciação de tais questões era essencial para a decisão a proferir, pois que influem directamente sobre a obrigação, ou não, de os Insolventes terem, ainda, quantias a ceder.
27. Termos em que, de acordo com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (CPC), é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”, nulidade que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
Sem prescindir,
DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
28. A recorrente impugna, EM PRIMEIRO LUGAR, por incorrectamente julgado, a segunda frase do último ponto dos factos dados como provados, mormente “Desde a apresentação das reclamações de créditos até 03.10.2022 os créditos reconhecidos aos credores venceram juros no valor de € 6.297,44;”.
29. Conforme resulta dos autos e atento o já supra exposto, foram reclamados e reconhecidos créditos no valor de 16.275,05€.
30. Ocorre que, conforme já supra referido, nenhum dos credores requereu a actualização dos juros.
31. O constitui uma nulidade, por violação do princípio do dispositivo, já invocada.
32. Significa isto que deve ser retirado dos pontos dados como provados a segunda frase do último ponto dos factos dados como provados, mormente “Desde a apresentação das reclamações de créditos até 03.10.2022 os créditos reconhecidos aos credores venceram juros no valor de € 6.297,44;”.
33. Em SEGUNDO LUGAR, deveriam constar nos factos dados como provados os valores efectivamente a entregar aos credores impondo-se tais contas em face da natureza da decisão a proferir. Senão vejamos:
34. Como motivo de recusa da exoneração do passivo restante invoca o Tribunal
que com a venda dos bens aprendidos para a massa Insolvente foi obtido um total de 32.042,51 €; as custas do processo ascendem a 2.333,24 €; a remuneração variável da AI ascende a 2.338,15€; as despesas ascendem a 5.683,93 €, dos quais 500 € já se encontram incluídos na conta de custas e, por fim, que foram reclamados e conhecidos créditos no montante de 16.275,05 € com o acréscimo de 6.297,44 € a título de juros vencidos (esta última parte objecto de impugnação).
35. Perante isto, entende o Tribunal que para a distribuição pelos credores resta apenas a quantia de 20.419,42€ quando o valor dos créditos reconhecidos e reclamados ascende a 22.572,49€ e, como tal, ocorre insuficiência do produto da liquidação para satisfação integral das dívidas da massa insolvente.
36. Antes de mais, beneficiam os Recorrentes de proteção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
37. Apoio Judiciário que não foi revogado, porque, de facto, os Recorrentes continuam em situação de carência económica como resulta dos autos.
38. Logo, não podem ser responsabilizados pelo pagamento das custas, das despesas e da remuneração da Sra. AI que, salvo melhor entendimento, deverão ser pagas pelo IGFEJ.
39. E isto não está refletido nos factos provados da decisão da qual se recorre.
40. Pelo que, uma vez que não foi revogado tal apoio judiciário, porque, de facto,
continuam em situação de carência económica como resulta dos autos, as custas, as despesas e a remuneração da Sra. AI deverão ser pagas pelo IGFEJ.
41. Significa isto e uma vez que a decisão a proferir visa a concessão ou não da exoneração do passivo restante e, quiçá, a extinção do incidente de exoneração do passivo restante por inutilidade superveniente da lide no caso de todos os créditos serem integralmente pagos, que deverá constar no elenco de factos provados os valores concretamente a distribuir pelos credores, ficando, desta forma, demonstrado que todos os credores verão os seus créditos pagos, inexistindo, por isso, qualquer prejuízo.
42. Pelo que, tal distribuição deverá refletir, desde logo, que, em face do Apoio Judiciário de que beneficiam, não serão os Recorrentes a suportar as custas, despesas e, bem assim, a remuneração com a Sra. AI, mas sim o IGFEJ.
43. Termos em que, deverá ser acrescentado ao elenco de factos provados um outro facto com a distribuição concreta dos valores a entregar a cada um dos credores.
DA FALTA DOS PRESSUPOSTOS DO ARTIGO 243º, N.º 1, AL. A) DO CIRE:
44. Estabelece o artigo 235º do CIRE que se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (com a nova redacção dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro).
45. O instituto da exoneração do passivo restante, constituindo uma inovação no nosso sistema jurídico, baseia-se no princípio do “fresh start”, atribuindo aos devedores singulares insolventes a possibilidade de se libertarem de algumas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica, sem, no entanto, esquecer os interesses e o ressarcimento dos credores.
46. Nos termos do artigo 244º, n.º 2 do CIRE, a exoneração do passivo restante é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos da cessação antecipada prevista no artigo 243º do mesmo diploma legal.
47. Conforma supra referido, o tribunal a quo recusou a exoneração do passivo ao abrigo do disposto no artigo 243º, n.º 1, al. a) do CIRE, por considerar que os
Recorrentes violaram a obrigação imposta pelo artigo 239º, n.º 4, al. c), ou seja, a de “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão”.
48. A recusa da exoneração do passivo restante, nos termos dos artigos 243º, n.º 1, al. a) e 244º do CIRE, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma actuação dolosa ou com grave negligência do insolvente e c) verificação de um nexo causal entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
49. Quanto ao ónus da prova, a jurisprudência maioritária tem entendido que não
é sobre o insolvente que recai o ónus de alegação e da prova da não verificação dos requisitos de indeferimento liminar do incidente de exoneração, mas sim sobre os interessados, configurando os requisitos da norma do artigo 238º do CIRE um impedimento ao exercício do direito de exoneração do passivo, sendo por isso factos impeditivos, nos termos do artigo 342º do Código Civil, posição que, pelos mesmos motivos, deve igualmente ser sustentada em sede de cessação antecipada do procedimento de exoneração e de decisão final da exoneração.
50. Desta forma, não cabe ao insolvente alegar e provar factos dos quais decorra não se encontrarem preenchidos os mencionados fundamentos de recusa da exoneração, mas antes são os credores e/ou o fiduciário que, uma vez ouvidos no termo do período de cessão, sobre a concessão ou não da exoneração ao devedor, nos termos do artigo 244º, n.º do CIRE, terão de alegar e provar factos demonstrativos do preenchimento dos requisitos constitutivos dos fundamentos de recusa da exoneração.
51. Ora, no caso sub judice, nenhum credor se pronunciou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante à recorrente.
52. Já a fiduciária declarou não ter nada a opor quanto à concessão da exoneração.
53. Entendendo o tribunal que existe fundamento para recusar a exoneração do
passivo, e perante o silêncio dos credores, terá de recolher elementos de prova que lhe permitam concluir pela verificação desses três requisitos legais cumulativos para recusar a exoneração do passivo restante ao insolvente.
54. No presente caso, o despacho recorrido, limita-se a fundamentar genérica e vagamente tal recusa de concessão na alínea c), do nº 4, do artigo 239º do CIRE referindo que os Recorrentes deveriam ter entregue à Sra. Fiduciária um total de 22.276,67 €, pois que auferiram sempre rendimentos acima dos 750€ mensais, o que revela que não cumpriram essa obrigação por opção sua e que daí resulta, pelo menos, negligência grave na violação dessa obrigação de entrega e prejuízo para os credores.
55. Refere ainda que “a argumentação dos insolventes não ficou minimamente demonstrada”.
Ora vejamos:
56. Aos Insolventes foi fixada, em 2012, como quantia disponível a cifra de € 750,00 (Setecentos e cinquenta euros), ou seja, € 375,00 (Trezentos e setenta e cinco euros) para cada um.
57. Os Insolventes são, conforme já se referiu, pessoas idosas e como condição inerente à sua idade precisam de medicação diária, que se afigura imprescindível; de uma casa para habitar, à qual naturalmente se encontra associado o pagamento de uma renda; de comida para sobreviver; de água, de eletricidade, de gás e de roupa, tudo bens essenciais.
58. Não falamos aqui de luxos ou de caprichos. Falamos de dois idosos, aos quais não poderá ser exigida a privação de uma vida minimamente condigna.
59. Veja-se que, em 2017, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, o limiar de risco de pobreza cifrava-se no rendimento anual de € 5.607,00 (Cinco mil seiscentos e sete euros), o que corresponde a um rendimento mensal de € 467,25 (Quatrocentos e sessenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos). Em 2018, o limiar de risco de pobreza cifrava-se no rendimento anual de 6.014,00€ (501,17€ mensais); em 2019 no rendimento anual de 6.480,00€ (540€ mensais) e em 2020 em 6.653,00€ (557,47€ mensais). Em 2012, tal cifrava-se no rendimento anual de € 4.906,00 (Quatro mil novecentos e seis euros), o que consubstanciava a quantia mensal de € 408,00 (Quatrocentos e oito euros).
60. Mais, o Indexante de Apoio Sociais é o valor de referência para todos os apoios sociais que são prestados pelo Estado e cifra-se, para 2023, em 480,43€ mensais; em 2022 em 443,20€; em 2021 em 438.81€, assim como em 2020; em 2019 em 435,76€ e em 2018 em 429,90€;em 2017 em 421,32€ e em 2012 em 419,22€.
61. Ressalve-se, igualmente, o atual valor de 705€ referente ao salário mínimo nacional, em 2021 que era de 665€, em 2020 de 635€, em 2019 de 600€, em 2018 de 580€, em 2017 de 557€ e em 2012 de 485€.
62. Vejamos, portanto, nestes últimos anos todos os valores de referência sofreram alterações: o IAS aumentou, a RMMG aumentou e o limiar de risco de pobreza aumentou.
63. Só a situação dos Recorrentes se manteve inalterada.
64. Basta analisar os rendimentos dos Insolventes para concluirmos que sempre
viveram abaixo ou no limiar de risco de pobreza e agora pensemos no rendimento disponível dos Insolventes fixado na quantia de € 375,00 (Trezentos e setenta e cinco euros).
65. Os Insolventes não fizeram qualquer entrega, é facto, mas tal ocorreu por impossibilidade extrema, pois que, fazendo-o, viveriam sem condições mínimas.
66. Ademais, conforme se extrai dos autos, a Insolvente mulher padece de múltiplos problemas de saúde que têm sucessivamente agravado, implicando internamentos constantes, com acompanhamento frequente, com consultas e exames persistentes aliados à medicação essencial.
67. Veja-se que a Insolvente mulher esteve, inclusive, internada nos Cuidados Continuados do Centro Social da Paróquia de ..., o que consubstanciou mais um custo acrescido com uma cifra mensal variável, mas a rondar os € 300,00 (Trezentos euros).
68. A aliar a isto, tiveram os Insolventes apoio da ... (anteriormente da FUNDAÇÃO ...) o que implicou um custo mensal de € 195,00 (Cento e noventa e cinco euros).
69. Suportando, ainda, o pagamento mensal da renda na cifra de € 40.31 (Quarenta euros e trinta e um cêntimos), o pagamento da água na quantia variável de € 20,00 (Vinte euros), o pagamento da eletricidade na quantia aproximada de € 40,00 (Quarenta euros), o pagamento das telecomunicações na cifra aproximada mensal de € 50,00 (Cinquenta euros).
70. É evidente que, não obstante a diligência e ginástica orçamental dos Devedores, a verdade é que, as obrigações a que os mesmos se encontram adstritos e os seus parcos rendimentos não lhes permitem ceder a quantia fixada ao Sr. Fiduciário.
71. De tal, sempre deram o total conhecimento ao Tribunal, aos credores e à Sra. Fiduciária, sempre justificaram.
72. Uma coisa é os Insolventes recusarem-se a entregar qualquer valor, como erradamente refere o Tribunal, outra coisa é justificarem a não entrega, o que sempre fizeram.
73. Em 2012, é facto, conformaram-se os Insolventes com a quantia fixada, mas será tal motivo para que se conformem ad eternum e para que tal justifique a recusa da exoneração do passivo?
74. Ressalve-se que o período de cessão, no ano de 2017, aquando do requerimento dos Insolventes, não se havia sequer iniciado, tendo sido os próprios a requerer o encerramento com tal propósito.
75. Ou seja, aqui chegados e salvo melhor opinião, mais de dez anos após a fixação do supra referido montante, nunca poderia dizer-se que as condições de vida dos Insolventes se mantinham inalteradas.
76. Veja-se que independentemente da data em que os Insolventes requeiram a
exoneração do passivo restante, o momento que releva para as efetivas entregas das quantias a ceder é o da prolação do despacho inicial da exoneração do passivo restante e do encerramento do processo, despachos que, no caso dos autos, se encontram separados por mais de cinco anos.
77. Não se trata aqui, nem pretendem os Insolventes, prejudicar os seus credores querem apenas e só uma vida, um sustento minimamente digno que lhes está a ser negado.
78. Posto isto, ao contrário do que refere a decisão recorrida, os Recorrentes sempre justificaram os motivos das não entregas conforme supra exposto.
79. O Tribunal é que fez tábua rasa de todas as justificações.
80. Na realidade vem agora o Tribunal referir que os Insolventes deveriam ter entregue a quantia 22.276,67€, mas ignora que foi vendido um bem apreendido para a massa no qual foi obtida a quantia de 32.042,51 €.
81. Assim como ignora que beneficiam os Insolventes de proteção jurídica e, como tal, não têm de suportar os montantes a título de custas, despesas e com a remuneração variável com a Administradora de Insolvência, tal como já supra exposto.
82. Pois que, na realidade, deduzida a quantia de 16.275,05€ à quantia de 32.042,51€ sobraria o montante de 15.767,46€.
83. Sendo os credores integralmente pagos.
84. Quantia à qual, reitera-se, nunca poderiam ser deduzidas as custas e a remuneração fixa do Sr. Fiduciário em face do Apoio Judiciário de que beneficiam os Recorrentes e que não foi revogado.
85. Pelo que, face ao supra descrito, devidamente comprovado nos autos, os Recorrentes, ao contrário do que alega o tribunal a quo, não atuaram com negligência grave.
86. Muito pelo contrário, na realidade poderia a exoneração do passivo restante
extinguir-se por inutilidade.
87. A douta decisão recorrida limita-se a concluir que os Recorrentes ao não entregarem a quantia de 22.276,67€ actuaram, pelo menos, com negligência grave, sem, contudo, basear a aludida asserção em quaisquer actuações comportamentais dos Recorrentes que consubstanciem aquele requisito.
88. Isto para, posteriormente, referir que na realidade os Insolventes foram notificados para entregar a quantia em falta de 1.355,00 € (e afinal não de 22.276,67€) e que recusaram fazê-lo.
89. O que não corresponde à verdade, pois que os Insolventes justificaram essa não entrega, o que o Tribunal saberia se, conforme lhe competia, tivesse apreciado o Requerimento apresentado.
90. Isto para depois dizer que afinal não era a quantia de 1.355,00€ porque houve um lapso, mas, contas feitas, de 2.153,07€.
91. Com o devido respeito, não cabe aos Recorrentes provar que não actuaram com negligência grave, mas sim ao tribunal a quo, visto que o fiduciário não se opôs à concessão da exoneração e os credores nada disseram, o que manifestamente não está demonstrado no douto despacho recorrido.
92. Aliás, no douto despacho recorrido, atendendo à matéria de facto, não estão enunciados e provados factos que levam a concluir que os Recorrentes actuaram com negligência grave.
93. E não estão porque até o Tribunal se perde na busca de justificar o injustificável.
94. Muito pelo contrário, o que está demonstrado, atenta toda a prova constante
dos autos, é que os Recorrentes simplesmente não tinham condições económico
financeiras para fazer qualquer entrega e, bem assim, o produto da venda do bem apreendido seria suficiente para pagar aos credores.
95. E a realidade é que mesmo não fazendo qualquer entrega os seus credores não ficam prejudicados, pois que terão os seus créditos integralmente pagos.
96. Para além da actuação dolosa ou com negligência grave, a lei exige ainda que esse comportamento tenha causado um prejuízo na satisfação dos créditos sobre a insolvência.
97. O prejuízo para os credores, deve, em nosso entendimento, ser um prejuízo relevante, por equiparação com o regime previsto no artigo 246.º do CIRE, pois quer a recusa, quer a revogação da exoneração, geram a mesma consequência na esfera jurídica do insolvente.
98. Atendendo ao caso concreto, não podemos sequer falar em prejuízo para os credores, uma vez que todos os credores verão nos autos os seus créditos pagos.
99. Em suma, os Recorrentes não causaram qualquer prejuízo que coloque em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
100. Pois que, ainda que não procedendo a qualquer entrega a verdade é que o produto da venda do imóvel é mais do que suficiente para procederem ao pagamento de todos os créditos.
101. Sendo certo que, pagando-se integralmente as quantias em causa a exoneração do passivo restante pendente extinguir-se-ia por inutilidade superveniente da lide pois que não haveria lugar a qualquer exoneração em face do pagamento integral.
102. No entanto, sempre se dirá, por mera cautela, que, ainda que entenda o Tribunal da Relação a necessidade de entrega da quantia de 2.153,07€, este será sempre um valor diminuto em comparação com o valor total dos créditos reclamados, pelo que, a existir prejuízo, que não existiu, nunca se poderia falar em prejuízo relevante.
103. Assim, e em jeito de conclusão, não pretendem os Recorrentes serem
premiados, mas sim obter uma decisão justa que passa obrigatoriamente, atendendo a tudo o que foi dito no presente recurso, pela extinção do incidente de exoneração do passivo restante por inutilidade superveniente da lide ou, caso assim não se entenda, pela concessão da exoneração do passivo restante.
104. Face ao supra exposto, não estão verificados os pressupostos legais do artigo 243º, n.º1, al. a) do C.I.R.E.
105. Consequentemente, decidiu mal o tribunal a quo ao recusar aos Recorrentes a exoneração do passivo restante.
106. Viola, assim, o douto despacho recorrido os artigos 243º, n.º 1, al. a), 244º e 239º, n.º4, al. c) do CIRE.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e, em consequência, ser extinto o incidente de exoneração do passivo restante por inutilidade superveniente da lide ou, caso assim não se entenda, ser concedida a exoneração do passivo restante aos Recorrentes, fazendo-se assim a habitual JUSTIÇA!
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Não houve contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, tendo-se a Exma Srª Juíza no mesmo despacho pronunciado sobre as nulidades arguidas, sustentando a inexistência das mesmas.
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Foram colhidos os vistos legais.
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Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir, não podendo deixar de se assinalar que as alegações de recurso são prolixas e confusas, não obedecendo ao disposto no art. 639º, nº1 do C.P.Civil, porém, sendo perceptíveis as questões suscitadas e atenta a natureza urgente do processo, não se determina a correcção de tais deficiências, nos termos do nº3 do mesmo diploma legal.
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II. Delimitação do objecto do recurso
Face ao disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nºs 2 e 4 e 639º do CPCivil, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo das questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente.
Assim, no presente caso, tendo em conta as conclusões dos recorrentes, as questões a decidir são:
- apurar se ocorreu violação do princípio do contraditório, tendo sido proferida uma decisão surpresa.
- apurar se a sentença enferma das causas de nulidade invocadas.
- apreciar a impugnação da matéria de facto.
- saber se o produto da liquidação da massa insolvente é suficiente para a liquidação integral dos créditos reconhecidos.
- saber se se verificam os pressupostos para a recusa da exoneração do passivo restante
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III. Fundamentação
A- Fundamentos de facto
Os factos relevantes para a decisão são os constantes da decisão recorrida, os que emergem do antecedente relatório e ainda aos seguintes que resultam da consulta do apenso da reclamação de créditos, incluindo a pasta com as reclamações:
- Em 30.5.2022, foi proferia a sentença de graduação de créditos, transitada em julgado, com o seguinte teor:
“Não tendo sido qualquer dos créditos constantes da lista elaborada pela Exma. Sra. Administradora da Insolvência objecto de contestação, decido homologar essa mesma lista de créditos reconhecidos, ao abrigo do disposto no art. 130.º/3 CIRE.(…) Como resulta do apenso A, foram apreendidos para a massa insolvente apenas bens móveis. Nenhum dos créditos reclamados gozam de qualquer garantia, pelo que todos têm natureza comum, com excepção dos respectivos juros vencidos após a declaração de insolvência, os quais têm natureza subordinada (art. 48.º/al. b) CIRE). As dívidas da massa insolvente descritas no art. 51.º CIRE saem precípuas do produto da liquidação (art. 172.º/1 CIRE). Pelo exposto, e sem prejuízo da precipuidade dos créditos relativos às dívidas da massa insolvente, decido graduar os créditos reconhecidos nos seguintes termos: 1.º - Todos os créditos reclamados, rateadamente, na proporção dos respectivos montantes, com excepção dos elencados em 2.º; 2.º - Eventuais juros reclamados dos créditos referidos em 1.º. Custas do processo, remunerações e demais despesas a suportar pela massa insolvente, tendo-se em consideração o disposto no art. 51.º CIRE. Registe e notifique.”
2. Foram os seguintes os créditos reconhecidos na lista apresentada pela administradora da insolvência e homologada :
1. Banco 1..., S.A. = 1.082,27€, sem juros.
2. Banco 2..., S.A. = 409,10 €, com 1,48€ de juros, o que totaliza € 410,58.
3. Banco 3..., S.A. 648,35€, com 28,10 € de juros, o que totaliza € 676,45.
4. Banco 4... PLC = 4.776,57€, sem juros.
5.Banco 5..., S.A. = 7.436,80€, com 1.558,30 de juros, o que totaliza € 8.995,10.
6.G... - Instituição Financeira de Crédito, S.A.= € 332,35, com € 1,73 de juros, o que totaliza € 334,08 .
Tais créditos totalizam € 16.275,05 .
3. Nas respectivas reclamações peticionaram juros vincendos os seguintes credores: Banco 2..., S.A., Banco 3..., S.A. e G..., S.A.. B- Fundamentação de direito
- Da violação do princípio do contraditório/ decisão surpresa
Alegam os recorrentes que a decisão recorrida configura uma decisão surpresa, porquanto foram notificados do despacho de 7.11.2022 para entregarem a quantia de € 1.355,00, mas nunca foram notificados para justificarem a falta de entrega dessa quantia. E, além disso, alegam ainda que, por despacho de 7.12.2022, o Tribunal rectificou o valor da remuneração variável da Srª administradora judicial, apurando como valor a pagar €2.153,07, mas só com o despacho de recusa da exoneração do passivo foram notificados de tal alteração, o que viola o princípio do contraditório, constituindo uma nulidade susceptível de influir na decisão da causa.
É certo que o princípio do contraditório constitui um princípio estruturante do nosso sistema processual civil que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciarem.
Porém, no presente caso, não vemos que tenha ocorrido a violação de tal princípio.
Com efeito, os insolventes foram notificados para se pronunciarem sobre a decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante e responderam em 6.5.2022, tendo, além do mais, alegado que o produto da liquidação da massa insolvente seria suficiente para liquidar todos os créditos reconhecidos.
Face a tal alegação, o Tribunal mandou os autos à conta, determinou o apuramento do valor dos juros moratórios entretanto vencidos em relação aos créditos reconhecidos e fixou a remuneração da administradora da insolvência para apurar se o produto da liquidação era efectivamente suficiente para pagar as custas, encargos do processo e a totalidade dos créditos reconhecidos.
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Por despacho de 7.11.2022, operando os respectivos cálculos, apurou que faltava a quantia de € 1.355,00 para assegurar o pagamento integral da totalidade dos créditos reconhecidos, ordenando a notificação dos insolventes para em 10 dias informarem se se disponibilizavam a efectuar tal pagamento em prazo razoável, dias, com a advertência de que caso nada comunicassem no referido prazo seria entendido que não pretendiam efectuar o depósito.
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Os insolventes reponderam em 21.11.2022, dizendo que inexistia qualquer quantia a entregar, argumentando, em síntese, que beneficiando de apoio judiciário não tinha que ser reduzido ao produto da massa insolvente o valor das custas e também não deviam ser considerados os juros dos créditos reconhecidos vencidos após a declaração de insolvência porque nenhum dos credores tinha requerido tal actualização.
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Entretanto, a administradora da insolvência comunicou ser imediatamente aplicável ao cálculo da remuneração variável o disposto no art. 23º do EAJ, na redacção dada pela Lei 9/2022 de 11.1, e a SrªJuiz reformou o cálculo anterior, fixando em € 2.338,10 tal remuneração, e proferiu de imediato a decisão final do procedimento de exoneração do passivo.
Os recorrentes, não questionando tal cálculo, alegam agora que deviam ter sido notificados para justificarem a não entrega da quantia de € 1.355,00 e, após a rectificação da remuneração variável da administradora judicial de que o montante em falta aumentara para € 2.153,07.
Ora, atenta a resposta dada pelos insolventes em 21.11.2022, na qual indicaram as razões pelas quais entendiam que não tinham de entregar quantia alguma, não vemos qualquer fundamento legal para serem de novo notificados em ordem a justificarem a falta de entrega daquela quantia de € 1.355,00 ou da quantia de € 2.153,07 apurada após a rectificação da remuneração variável da administradora judicial. Com efeito, tendo eles já assumido que não tinham qualquer quantia a entregar , certamente manteriam tal posição, como aliás mantêm neste recurso, pelo que seria um acto inútil, não se verificando qualquer nulidade processual por violação do princípio do contraditório.
E não foi proferida qualquer decisão surpresa, com a qual os insolventes não pudessem razoavelmente contar, pois que já haviam sido notificados para se pronunciarem sobre a decisão final do procedimento de exoneração do passivo.
- Da nulidade da decisão
Os recorrentes arguiram a nulidade da decisão, por violação do disposto nas alíneas c) e d) , alegando que a mesma não apresenta o elenco dos factos não provados, determinou a actualização dos juros sem ter sido requerida pelos credores e não atendeu ao requerimento que apresentaram em 21.11.2022.
O art. 615º, nº 1, do CPC, aplicável ex vi art. 17º, nº 1, do CIRE, dispõe que a sentença é nula quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado. Tais vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença e são apreciados em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar no âmbito da impugnação da matéria de facto ou na apreciação da aplicação do direito.
Os recorrentes invocaram a falta do elenco dos factos não provados, mas não concretizam tal omissão. Quais os factos alegados relevantes para a decisão que o Tribunal deixou de apreciar? Nem sempre há factos não provados com relevância para a decisão e as nulidades têm que ser fundamentadas com base nos factos do processo e não arguidas em abstracto.
Além disso, é entendimento pacífico e consolidado quer da doutrina, quer da jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito é geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício, previsto na alínea b) e não c) do nº1 do art. 615º do CPCivil, nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Ora, analisando a decisão, vemos que a sua fundamentação, quer de facto, quer de direito é perfeitamente perceptível, , pelo que não apresenta a nulidade em apreço.
Por outro lado, os recorrentes sustentam que a decisão enferma da nulidade prevista na al. d), por não ter conhecido das questões que levantaram no requerimento de 21.11.2022 e por ter contabilizado os juros vencidos após a declaração de insolvência, sem requerimento dos credores.
Ora, o vício da decisão decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º, designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença, havendo, assim, de por ele ser integrado.
Da conjugação destes normativos resulta que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Importa, porém, não confundir questões com factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 9.2.2012, segundo o qual “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.”
“O conceito (questões) terá ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 5.4.2018, Relator Jorge Teixeira, in www.dgsi.pt).
A nulidade decorrente de o juiz apreciar ou conhecer questões de que não podia tomar conhecimento, vulgarmente denominada como excesso de pronúncia, ocorre quando o tribunal conhece de questões que não foram suscitadas pelas partes e que não são de conhecimento oficioso.
Ora, na vertente situação a Exma Juíza a quo tinha que conhecer de todas as questões relevantes para a decisão do procedimento de exoneração do passivo restante. E face à eventual suficiência do produto da liquidação da massa insolvente havia que apurar os montantes a pagar e nesse âmbito determinou o cálculo das custas e dos juros e proferiu o despacho de 7.11.2022. Os insolventes responderam em 21.11.2022, dizendo que não havia qualquer quantia a entregar, não tendo o tribunal que responder à argumentação aí exposta pelos insolventes, pelo que também não se verifica a nulidade da decisão prevista na al.d) do nº1 do art. 615º.
Questão absolutamente distinta é a de saber se a fundamentação e a subsequente decisão estão ou não corretas do ponto de vista da interpretação e aplicação do direito. A ocorrer incorreção ou desacerto da decisão tal configura um erro de julgamento e não uma nulidade da decisão.
Pelo exposto, declara-se improcedente a arguida nulidade da decisão.
- Da impugnação da matéria de facto
A impugnação da matéria de facto tem que obedecer aos requisitos do art. 640º que preceitua:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Pretendem os recorrentes que seja excluído o último ponto da matéria de facto dada como provada relativo ao montante dos juros vencidos após a apresentação das reclamações de créditos, afirmando que não tendo a actualização sido requerida pelos credores tais juros não são devidos e que beneficiando de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o valor das custas também não deve ser retirado do produto da liquidação.
E requerem ainda que seja aditado ao elenco dos factos provados um facto com a distribuição concreta dos valores a entregar a cada um dos credores, mas não indicam quais sejam tais valores, como impõe a alínea c) do normativo transcrito.
Ora, é manifesto que os recorrentes confundem reapreciação da decisão de facto, com questões de direito.
A determinação do montante a receber pelos credores tem de ser feita com base na sentença proferida no apenso de reclamação de crédito, transitada em julgado, e no âmbito deste procedimento constitui uma questão de direito, tal como é o saber se o benefício do apoio judiciário se aplica nos termos preconizados pelos recorrentes.
Assim, por não obedecer aos requisitos legais, rejeita-se a impugnação da matéria de facto.
- Da suficiência ou insuficiência do produto da liquidação da massa insolvente para a liquidação integral dos créditos reconhecidos.
Esta questão coloca-se no âmbito deste incidente de exoneração do passivo porque o nº4 do art. 243º do CIRE determina que o juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos da insolvência .
Os recorrentes sustentam que, ao invés do decidido, a quantia resultante da liquidação da massa insolvente é suficiente para pagar integralmente os créditos reconhecidos, com os seguintes argumentos:
1ª ) Beneficiando de apoio judiciário na modalidade de dispensa da taxa de justiça e demais encargos do processo, as custas do processo e a remuneração da administradora da insolvência devem ser suportadas pelo IGFEJ e não retiradas do produto da massa, invocando o Ac. do TC nº 418/2021( DR, nº142/2021, Série I, 23/7/2021, que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, por violação dos artigos 20.º, n.º 1 e 13.º, n.º 2 da Constituição, da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.
2ª) Não devem ser contados juros vencidos sobre os créditos reconhecidos após a declaração de insolvência porque não foram requeridos pelos credores.
- No que concerne ao primeiro argumento, desde já adiantamos que não assiste razão aos recorrentes.
Com efeito, nem da referida declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nem da subsequente revogação, do nº4 do art. 248º do CIRE, ocorrida com a Lei 9/2022, resulta que beneficiando os insolventes de apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos do processo as custas do processo de insolvência devam ser suportadas pelo IGFEJ.
Como decorre do disposto nos arts 303º , 304º e 51º, nº1, als a) a d) e 172º,nº1 do CIRE as custas do processo de insolvência, a remuneração do administrador da insolvência e as despesas emergentes da actuação deste no exercício das suas funções são dívidas da massa insolvente e são pagas com precedência sobre os créditos da insolvência.
E da dita declaração de inconstitucionalidade e posterior revogação do nº4 do art. 248º do CIRE não resultou qualquer alteração destas regras. A única consequência da eliminação daquele normativo foi permitir aos insolventes/ requerentes de exoneração do passivo, que nos termos do nº1 do artº 248º beneficiam do diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo, solicitarem apoio judiciário com vista à dispensa do pagamento das custas e despesas do processo no caso do produto da venda da massa insolvente e o rendimento disponível cedido no final do período de cessão não serem suficientes para tal, o que anteriormente lhes estava vedado.
No entanto, quer os insolventes tenham ou não apoio judiciário, o produto da venda da massa insolvente e o rendimento disponível cedido são sempre primeiramente afectados ao pagamento das custas e despesas do processo.
Como se explicita, na fundamentação do citado acórdão do Tribunal Constitucional “ O mecanismo de afetação do rendimento disponível cedido, ainda que funcionalmente orientado à satisfação dos interesses dos credores, torna precípuo o pagamento das custas do processo em todas as suas vertentes, seja relativamente às custas em sentido estrito do processo de insolvência ainda em dívida, seja relativamente aos encargos com a remuneração e despesas dos órgãos da insolvência com intervenção no processo principal ou nos procedimentos incidentais, designadamente aos montantes pagos ou a pagar ao administrador de insolvência e/ou ao fiduciário. Acautelou o legislador, desse modo, os casos em que a massa insolvente tenha sido insuficiente para satisfazer as custas da insolvência, pelas quais responde principalmente nos termos do n.º 1 do artigo 248.º, e, na perspetiva da obtenção de recursos financeiros imputáveis ao pagamento de créditos exigíveis ao insolvente por via da cessão do rendimento disponível durante cinco anos, atribuiu precedência ao pagamento da taxa de justiça e encargos do processo principal e incidentes, só depois podendo ser pagos os créditos da insolvência ainda por satisfazer. Trata-se, aliás, de solução normativa orientada pela garantia de pagamento das custas processuais, incluindo honorários, encargos e despesas, transpondo para o CIRE, enquanto disciplina de uma execução universal e de liquidação de todo o património do devedor, a regra de precipuidade das custas na destinação do produto dos bens penhorados, consagrada no âmbito do processo executivo (artigo 541.º do CPC). “
Por conseguinte, não há dúvida de que o produto da massa insolvente e o rendimento disponível cedido à fidúcia, quando existe, se destinam primeiramente ao pagamento das custas e demais encargos e despesas do processo de insolvência, ainda que os insolventes tenham apoio judiciário, como é o caso. O legislador no processo executivo e de insolvência cuidou de assegurar sempre o pagamento das custas e demais encargos do processo pelo produto dos bens apreendidos.
Assim, nesta parte nenhuma censura merece a decisão recorrida.
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Quanto à a exigibilidade dos juros vencidos após a declaração de insolvência, os recorrentes defendem que a decisão recorrida considerou indevidamente os juros sobre os créditos reconhecidos vencidos após a declaração de insolvência, alegando que os credores não os reclamaram.
Diferentemente do que sucedia na vigência do CPEREF, o qual previa a cessação da contagem de juros com a declaração de falência, encerrando-se nessa data todas as contas correntes( art. 151º, nº1 e 2 do CPEREF), havendo assim lugar a uma estabilização do passivo do devedor, o CIRE no artº 48.b) classifica como créditos subordinados, a graduar depois dos restantes créditos sobre a insolvência, os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência, com excepção dos abrangidos por garantia real e por privilégios gerais, até ao valor dos bens respectivos.
Portanto, os créditos continuam a vencer juros após a declaração de insolvência do devedor, podendo ser peticionados pelos credores. Se o não forem, não serão devidos.
Como refere, Rui Pinto, in CPC Anotado, Vol I, 2018, p.39, “ O processo civil “ assenta na disponibilidade do autor: quem carece de tutela pede-a se quiser.” E o tribunal não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que for pedido( art. 609º, nº1 do C.P.Civil)
Assim, há que ter em conta as reclamações de créditos apresentadas pelos credores e o decidido na sentença, transitada em julgado, proferida no apenso de verificação de créditos. Nesta fase há que cumprir o que aí foi decidido.
Sobre esta questão vide o Ac. da R.E. de 10-10-2019, Proc. 1561/16.8T8STB.H.E1 , in dgsi.pt., que reportando-se especificamente aos juros vincendos decidiu : “I- Se o credor reclamante incluiu na reclamação a dívida, juros vencidos e vincendos e nenhum destes pedidos foi incluído na lista de créditos não reconhecidos, na lista a que alue o artº 129º/1 do CIRE, vindo esta a ser homologada por sentença, isso significa que foram todos os créditos reconhecidos, devendo ser graduados no lugar que lhes competir. II.- Sempre que um crédito não é reconhecido tem que ser incluído na relação de créditos não reconhecidos e o credor respetivo ser avisado pelo Administrador da insolvência do não reconhecimento, indicando ainda quais os motivos desse não reconhecimento, ao abrigo do disposto nos números 3 e 4 do mesmo preceito legal.”
E também o Ac. do STJ de 21-06-2022, Proc. 5723/09.6TBVNG.P1.S1, in dgsi.pt, em cujo sumário se lê .“ I - Fundando-se a presente revista na previsão do art. 629.º, n.º 2, al. a), in fine, do CPC, conjugada com o disposto no art. 671º, n.º 2, al. b), do mesmo diploma legal, importará aferir se o acórdão recorrido, incidindo sobre a conformidade do mapa de rateio apresentado pelo administrador da insolvência, nos termos do art. 178.º do CIRE, com o conteúdo das reclamações de créditos (não impugnadas) das ora recorrentes, se encontra em necessária consonância com o teor da sentença proferida no apenso de verificação e graduação de créditos, sem o que se teria produzido ofensa de caso julgado . II - Não havendo a sentença de verificação e graduação de créditos procedido à concreta quantificação numérica dos créditos reconhecidos que, nesses termos, não discriminou, tal significa que esses créditos, ora em análise na sua vertente quantitativa, foram efectivamente reconhecidos e graduados em conformidade com a reclamação apresentada pelas credoras, suas titulares, e que não suscitou impugnação.”
Ora, no presente caso, na sentença classificaram-se todos os créditos reconhecidos como comuns, com excepção dos respectivos juros vencidos após a declaração de insolvência que ,nos termos do art. 48º, al.b) do CIRE, se classificaram como subordinados.
E operou-se a seguinte graduação:
Sem prejuízo da precipuidade dos créditos relativos às dívidas da massa insolvente, decido graduar os créditos reconhecidos nos seguintes termos:
1.º - Todos os créditos reclamados, rateadamente, na proporção dos respectivos montantes, com excepção dos elencados em 2.º;
2.º - Eventuais juros reclamados dos créditos referidos em 1.º.
E, ao invés do alegado pelos recorrentes, peticionaram juros vincendos os credores Banco 2..., S.A., Banco 3..., S.A. e G..., S.A.. Tais juros foram classificados como créditos subordinados e graduados em segundo lugar, pelo que devem ser pagos.
Sucede que, quando foi determinado à Srª administradora judicial que efectuasse o cálculo dos juros moratórios entretanto vencidos, esta efectuou tal cálculo em relação a todos os créditos reconhecidos, não teve em conta que alguns credores não haviam reclamado juros vincendos e que a sentença só se referia aos juros reclamados. E , após, a Srª Juíza, seguindo os cálculos apresentados pla Srª administradora também contabilizou os juros vincendos relativamente aos créditos dos credores Banco 1..., S.A., Banco 4... PLC e Banco 5..., S.A. que não os reclamaram.
Ora, não tendo tais juros sido reclamados, não foram graduados, nem são devidos, pelo que, em relação a estes credores assiste razão aos recorrentes, impondo-se a correcção dos cálculos efectuados na decisão recorrida.
Assim, excluindo os juros vincendos relativos aos três credores que os não peticionaram e que a Srª administradora judicial calculou em € 5.701,46, o valor dos juros dos créditos dos demais credores vencidos desde a apresentação das reclamações de créditos até 3.10.2022 é não de € 6.297,44 como consta na decisão recorrida mas de apenas € 575,98.
Portanto, tendo em conta que o valor obtido pela liquidação da massa insolvente foi de € 32.042,51 e que deduzido o valor das dívidas da massa o montante disponível para distribuição pelos credores é de € 20. 419, 42 tal valor mostra-se suficiente para o pagamento integral dos créditos reconhecidos que em 3.10.2022 ascendia a € 16.871,03 ( 16.275,05 + 595,98).
Destarte, face ao disposto nº 4 do art. 243º do CIRE , mostrando-se assegurado pelo produto da venda da massa insolvente o pagamento integral dos créditos da insolvência impõe-se o encerramento deste incidente de exoneração do passivo por inutilidade superveniente.
- Da verificação dos pressupostos legais para a recusa da exoneração do passivo restante
De qualquer modo, cremos que os factos apurados não permitiriam concluir pela verificação dos requisitos legais necessários para a recusa da exoneração do passivo restante dos insolventes.
Senão vejamos
O Tribunal recorrido baseou a sua decisão no disposto no art. 243º, nº1, al. a) do CIRE, ou seja , na violação pelos insolventes da obrigação imposta pelo art. 239º, nº2 de entregarem o rendimento disponível à fiduciária, sendo certo que os mesmos nunca entregaram qualquer quantia.
Porém, a violação das obrigações impostas pelo art. 239º não determina automaticamente a recusa da exoneração do passivo.
Dispõe art. 244º do CIRE : 1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor. 2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior. 3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores.
Como resulta do nº2 a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do art. 243º. E nos termos do nº1 do art. 243º o juiz só pode recusar a exoneração antes do termo do período de cessão a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se estiver ainda em funções ou do fiduciário quando este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor. Ou seja, a decisão compete ao juiz mas quem deve iniciar o procedimento são os referidos sujeitos processuais mediante requerimento onde devem especificar o facto que justifica a cessação antecipada do procedimento de exoneração, sendo entendimento pacífico que o tribunal não pode conhecer oficiosamente da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo.
Assim sendo, por força do aludido nº2 do art. 244º, entendemos que também a recusa da exoneração na decisão final do procedimento deve ficar subordinada a requerimento prévio nesse sentido dos credores ou do fiduciário que, nos termos do nº1 são previamente ouvidos.
Neste sentido se decidiu no Ac. esta Relação de 19.1.2023, Proc. 5708/16.6T8GMR.G1, in dgsi.pt (em que foi relator Fernando Barrroso Cabanelas, e adjuntos a aqui relatora e 1º adjunto) com a seguinte explicitação “ A questão que então se coloca é a de saber se essa impossibilidade de conhecimento oficioso pelo juiz de concretas causas de cessação previstas no artº 243º, nº1, do CIRE que não mereceram reação por parte do fiduciário e/ou dos credores, também vale para os casos em que não está em causa a cessação antecipada mas já a decisão final do artº 244º do CIRE. E a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, a remissão constante do artº 244º, nº2, do CIRE não faz qualquer ressalva. Depois, parece-nos carecer de sentido que ao juiz estivesse vedado o conhecimento oficioso ainda antes de decorrido o prazo de cessão, mas que já pudesse conhecer oficiosamente dessas mesmas causas em sede de decisão final, sem que, ouvidos o fiduciário e os credores qualquer deles haja requerido a não concessão da exoneração do passivo restante, ou seja, tinha de deixar decorrer o prazo todo para depois chegar a uma conclusão que antes lhe estava vedada. Manifestamente, tal seria uma interpretação desconforme ao imposto pelo artº 9º do Código Civil.”
E também no Ac. da R.P. de 19-05-2022, Proc. 58/14.5TBPNF. P1, in dgsi.pt. , se seguiu idêntico entendimento.
Ora, no caso subjudice , notificados os credores e a fiduciária, os primeiros nada disseram e a fiduciária manifestou-se a favor da concessão da exoneração, pelo que estava vedado ao tribunal recusar oficiosamente a exoneração do passivo aos insolventes.
Mas, ainda que considerássemos que a apreciação oficiosa era possível, nos termos do art. 243º a recusa da exoneração exige a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a violação de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artº 239º; um nexo causal consistente na circunstância de dessa violação decorrer um prejuízo efetivo para a satisfação dos créditos da insolvência; e um elemento subjetivo traduzido na prática do referido comportamento inadimplente com dolo ou negligência grave. E no caso em apreço os factos apurados não consentem a conclusão de que os insolventes tenham actuado com dolo ou negligência grave, causando prejuízo aos credores.
Assim, sem necessidade de mais considerações, na procedência do recurso, revoga-se o despacho recorrido e delibera-se declarar o encerramento do incidente mercê da satisfação integral dos créditos sobre a insolvência pelo produto da massa insolvente.
A responsabilidade pelo pagamento das custas, não tendo sido apresentadas contra-alegações, recai sobre os recorrentes que tiraram proveito do recurso, nos termos do disposto na última parte do nº1 do art. 527º do C.P.Civil
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IV. Decisão
Pelo exposto, os juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar procedente o recurso interposto pelos insolventes e revogando-se o despacho recorrido, declara-se encerrado o procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos do nº 4 do art. 243º do CIRE.
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Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique
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Guimarães, 22 de Junho de 2023
Os Juízes Desembargadores
Relatora : Maria Eugénia Pedro
1ª Adjunto: Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte