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SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE CERTOS MOVIMENTOS BANCÁRIOS
RENOVAÇÃO
CONSTITUIÇÃO COMO ARGUIDO
Sumário
I – A criminalidade económica e financeira pode ter (e normalmente tem) inúmeros crimes precedentes ou subjacentes (nomeadamente relacionados com tráfico de droga, de armas, extorsão, burla, fraude fiscal) cada vez mais sofisticados e geradores de avultados proventos ilícitos. Sendo esta uma criminalidade altamente organizada que utiliza o sistema financeiro nacional para a comissão de ilícitos, quando há suspeitas de tal suceder (nomeadamente atentas as avultadas quantias movimentadas, relativamente às quais se desconhece a respectiva origem e bem como o modo como foram angariadas) urge impedir, ainda que temporariamente, que tais fundos se dissipem e/ou sejam utilizados em benefício dos seus agentes, na economia legítima e/ou, até, canalizados para outro país, ficando fora do alcance da justiça. II – No âmbito da Lei que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira e atenta as sobreditas gravidade e complexidade dos ilícitos que podem estar envolvidos, bem como a sofisticação dos seus “modi operandi”, o legislador (deliberadamente) abdicou da constituição prévia como arguido das pessoas visadas pelo respectivo processo e pela suspensão temporária de operações financeiras e, também, abdicou de uma base factual indiciária no tocante à medida de suspensão e respectiva renovação, bastando as suspeitas materializadas nos sobreditos índices objectivos considerados, expressa e legalmente, como de risco de branqueamento. Tal opção legislativa foi tomada, precisamente, por se considerar tal medida de suspensão temporária de operações financeiras (com ou sem renovação temporária) necessária pela sua natureza preventiva no/do combate ao branqueamento de capitais e aos crimes que o precedem. III – Daí as especificidades deste regime legal especial (face às clássicas medidas preventivas e repressivas do CPP) que impõe às entidades bancárias (para além de outras entidades financeiras e, também, entidade não financeiras) mecanismos de prevenção, que permitem a utilização de meios de obtenção de prova em tempo real e sendo um deles a medida de suspensão temporária de certos movimentos bancários. Esta é uma medida cautelar reforçada que não se autonomiza face à sua principal finalidade de meio de obtenção de prova. IV – Decorridos os 3 meses iniciais desta medida cautelar (de suspensão temporária de certos movimentos bancários) não é exigível uma diferente e autónoma apreciação judicial, a reapreciação dos respectivos pressupostos rege-se pela cláusula “Rebus sic stantibus”. Enquanto se mantiverem os seus pressupostos, enquanto não ocorrer uma alteração ou novidade no quadro fáctico e ainda não tiver decorrido o limite temporal máximo de duração desse inquérito criminal, essa medida pode (e deve) manter-se – por se manterem as sobreditas necessidades que, em prol de um interesse superior (de prevenção e de repressão ao branqueamento de capitais com os inerentes crimes conexos, nefastos não só para o sistema financeiro nacional, como também para a realização da Justiça perante este tipo de criminalidade altamente organizada) justificam o sacrifício, temporário, de certos direitos individuais dos aqui recorrentes (temporariamente impedidos de movimentarem a débito certas e determinadas contas bancárias suas). V – Assim, o legislador encontrou um ponto de equilíbrio entre, por um lado, a restrição (suspensão) temporária do direito de movimentação a débito pelo respectivos titulares dessas contas bancárias privadas e, por outro lado, o superior valor (bem ou interesse geral de ordem pública) da administração da Justiça, na prevenção, combate e repressão da criminalidade económico-financeira e que, de outra forma, muito dificilmente seria alcançada ou que nem sequer seria alcançada.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo nº 140/22.5TELSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Instrução Criminal de Cascais – J1, na sequência de uma promoção (em 30/5/2022) do Ministério Público, foi proferido despacho (em 1/6/2022) a decidir a renovação da medida de suspensão de movimentação de conta a vigorar pelo período de 3 meses.
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Inconformados com tal decisão, dela vieram os recorrentes, AA, BB e CC, interpor o presente recurso que culmina com as seguintes conclusões e petitório (transcrição): “a) Vem o presente recurso interposto do Despacho com a Ref.137919491, no qual o Tribunal a quo decretou a renovação da medida de suspensão de movimentação das contas bancárias dos Recorrentes abertas junto do Banco Comercial Português, S.A (Millenium BCP), com os n.ºs..., ... e n.º ... por mais três meses, proferido no âmbito do inquérito n.2 140/22.5TELSB, que se encontra a correr termos no Ministério Público - Procuradoria da República da Comarca de Lisboa Oeste - Departamento de Investigação e Ação Penal – 1ª Secção de Oeiras; b) No douto Despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu o seguinte: «conforme promovido pelo MP e aderindo à fundamentação do digno magistrado, atenta a natureza da movimentação indiciado, nos termos do artigo 49º, nºs 1 e 2 e 48º, nº 3, alíneas a) e b) da lei 83/2017 de 17.08, renovo a medida de suspensão decretada, de movimentação sobre o saldo da conta identificada, a vigorar pelo período de 3 meses»; c) Na Promoção do Senhor Magistrado do Ministério Público (Despacho com a Refª. 137807259), que esteve na origem da prolação do Despacho recorrido, entendeu-se o seguinte: «Conforme se alcança do teor de fls. 34, nos presentes autos investigam-se factos susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática dos crimes de burla e branqueamento, p. e p. pelo art.º 368º-A, do Código Penal, tendo sido determinada a suspensão de operações bancárias a débito, sobre as contas bancárias identificadas a fls. 29, por um período de três meses (fls. 29 e 34). Na medida em que os pressupostos de facto e de direito que determinaram a referida suspensão de operações bancárias (SOB), descritos a fls. 22 a 30, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, se mantêm na atualidade, promovo que se determine a prorrogação da aludida suspensão de operações bancárias para as contas em causa por mais três meses, nos termos do disposto no art.º 49º, n.º 2, da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto.»; d) O Despacho recorrido padece do vício de falta de fundamentação, uma vez que não cumpre, minimamente, com a exigência legal e constitucional de fundamentação dos atos decisórios, prevista no Artigo 97.º, n.º 5, do Código do Processo Penal e no Artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; e) Decorre da referida exigência legal de fundamentação dos atos decisórios que a fundamentação do(s) mesmo(s) deve estar, necessariamente, devidamente exteriorizada no respetivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido; que se enumerem e expliquem as razões de facto e de direito que se mostraram determinantes para o Tribunal adquirir certa convicção; que a decisão seja clara e compreensível (ou, no mínimo, susceptível de ser compreendida) pelos respetivos destinatários, nomeadamente para efeitos, como é o caso, de recurso perante Tribunais superiores; tem de revelar que o Juiz procedeu à concreta ponderação dos interesses em causa, sopesando-os e decidindo em conformidade com essa ponderação; f) Ora, os Recorrentes desconhecem em absoluto quais os pretensos pressupostos de facto e de direito que, não só, estiveram na base da decisão inicial de suspender a movimentação das contas bancárias pertencentes aos Recorrentes, como também, se esses mesmos pressupostos — que, repete-se, se desconhecem — se mantêm na presente data; g) Os pressupostos, ou seja, as razões e fundamentos alegados pelo Ministério Público nas folhas 22 a 30 dos autos, têm que, obrigatoriamente, não só constar do Despacho recorrido como, também, serem do conhecimento dos Recorrentes; h) Devido à opacidade do iter decisório, não é minimamente possível garantir a imparcialidade do Juiz, bem como a própria legalidade da decisão, de forma a, por exemplo, se poder fazer uso dos mecanismos de recurso e/ou assegurar o controlo (ou a possibilidade de) da legalidade das decisões, o que constitui uma garantia inalienável e irrenunciável do princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa); i) O "procedimento" adoptado pelo Tribunal a quo no despacho recorrido, de simplesmente remeter para a promoção do Ministério Público, é incompatível com o juízo crítico e pessoal que é exigível ao despacho judicial em análise, devendo ser evitado quando a complexidade da questão exigir ponderação própria, como é o caso dos presentes autos; j) Ainda que mesmo que se possa compreender por razões de celeridade e economia processual em questões que sejam notoriamente simples e pouco relevantes, tais princípios devem ser cuidadosamente usados em questões de maior complexidade, como a dos presentes autos; k) Na verdade, analisando atentamente o Despacho em questão, com todo o respeito que temos, retiramos que o mesmo não fundamenta absolutamente nada, apenas se limitando a concordar, quiçá acriticamente, com a promoção do Ministério Público. 1) O Despacho recorrido deveria, pelo menos resumidamente, apreciar acerca do solicitado pelo Ministério Público, mostrando um notório distanciamento da investigação e, consequente, independência, porque só assim os direitos dos Recorrentes podem ser salvaguardados, acautelados e imparcialmente apreciados; m) A verdade é que a referida renovação da medida de suspensão das operações de movimentação dos saldos bancárias nunca deveria ser ordenada sem um juízo suficientemente objetivo acerca da necessidade desta medida, efetivamente ponderada e justificada, sendo que, pelo contrário, o Despacho ora em crise não exprime qualquer juízo crítico, objetivo e autónomo, passível de ser atribuído ao Juiz que assim concluiu; n) Do Despacho recorrido deveria obrigatoriamente constar em que moldes, como e qual o fundamento que determina que os saldos bancários dos Recorrentes necessitam de ser efetivamente apreendidos; o) Não tendo havido lugar a que os Recorrentes se pronunciassem acerca da determinação, ou não, da apreensão dos seus saldos bancários, toda e qualquer decisão que daí adviesse deveria ser absolutamente isenta e, para isso, deveria ser fundamentada conforme o que lhe é suposto; p) A falta de fundamentação do Despacho recorrido põe em causa o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, devido à total ausência de fundamentação, os Recorrentes têm dificuldades de compreensão da ratio decidendi do Tribunal a quo e, por conseguinte, em reagir, de forma fundamentada, ao despacho perante as instâncias superiores, o que também põe em causa o direito dos Recorrentes a um processo justo e equitativo, consagrado no Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa; q) Por outro lado, o Despacho recorrido lesa, de forma legalmente inadmissível, o direito de defesa dos Recorrentes, consagrado no Artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, os Recorrentes nem tiveram oportunidade para se pronunciar, declarar a apreensão dos saldos bancários, sem qualquer fundamentação que esclareça o sentido da decisão, aniquila por completo os direitos de defesa dos mesmos; r) Para além do mais, os Recorrentes não foram constituídos arguidos nos presentes autos de inquérito, conforme se impunha ao abrigo do disposto no Artigo 58.º n.º- 1 alínea b) do Código de Processo Penal; s)A falta de constituição dos Recorrentes como arguidos, aliada ao desconhecimento, não imputável aos Recorrentes, dos fundamentos de facto e de direito que determinar o decretamento da medida de suspensão das movimentações das suas contas bancárias e a renovação da mesma e à falta de fundamentação do Despacho recorrido importam uma violação grosseira do direito à tutela jurisdicional efetiva, do direito a um processo justo e equitativo e do direito à defesa, direitos constitucionalmente tutelados e protegidos nos Artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa; t) Desta forma, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou as normas dos artigos Artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal e dos Artigos 205.º, n. 1, 20.º e 32º da Constituição da República Portuguesa, o que se argui nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 402.º n.º 2, al. a), do CPP; u) O douto Despacho recorrido determinou a renovação da medida de suspensão de operações bancárias para as contas em causa por mais três meses ao abrigo do disposto nos Artigos 49º, n.ºs 1 e 2, e 48.º, n.º 3, alíneas a) e b), da Lei n.º 83/2017, de 17 de Agosto (Lei do Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo ou "LBCFT"), no pressuposto de que a medida de suspensão das contas bancárias tituladas pelos Recorrentes é o mecanismo adequado a investigar a eventual prática pelos Recorrentes dos crimes de burla e branqueamento de capitais; v) A Decisão recorrida, salvo o devido respeito, que é muito, não faz qualquer sentido, na medida em que não é adequada a prevenir a prática dos referidos crimes de burla e branqueamento de capitais, uma vez que, a haver burla e/ou branqueamento, estes já estariam mais do que consumados na data da medida decretada para o evitar; w) Assim, afigura-se-nos que, com o Despacho recorrido, o Tribunal a quo pretendeu evitar a dispersão do património dos Recorrentes, através do "congelamento" das contas bancárias supra identificadas, objetivo esse que a lei não consente, de modo algum, como fundamento para o decretamento e/ou para a renovação da medida de suspensão da realização de operações bancárias; x) A partir do momento em que estão identificadas as contas bancárias de que os Recorrentes são titulares, bem como os valores existentes nas mesmas, é suficiente e perfeitamente transparente o mero controle das referidas contas bancárias e suas movimentações por parte das entidades obrigadas, na aceção dos Artigos 2.º, n.º 1, al. r), 3.º e 4.º da LBCFT); y) A medida de suspensão dos movimentos das contas bancárias dos Recorrentes, acima identificadas, apresenta-se como manifestamente excessiva, desproporcional e desadequada face ao fim visado, gerando, ainda, graves prejuízos graves na esfera patrimonial e pessoal dos Recorrentes, os quais se encontram, quasi arbitrariamente, privados da livre movimentação das suas contas bancárias, z)Nem se argumente que a medida de bloqueio das contas bancárias se encontra suficientemente justificada e balizada pelos «superiores interesses da investigação criminal», os quais se encontram, sem margem para dúvidas, devidamente acautelados através do controle das contas bancárias e suas movimentações por parte das entidades obrigadas; aa) É, assim, manifestamente exagerado, desproporcional, desmesurado e desnecessário a lesão dos direitos e interesses legalmente protegidos dos Recorrentes aos continuarem a ser visados — sem fim à vista e sem qualquer fundamentação para o efeito — pela medida de suspensão de movimento das suas contas bancárias; bb) Qualquer intervenção das autoridades judiciárias, legalmente enquadrada, que resulte numa restrição de direitos fundamentais (e não só) deve, por imperativo constitucional, respeitar o princípio da proporcionalidade, nas suas múltiplas vertentes da necessidade, adequação e proporcionalidade, nos termos do disposto no Artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, o que manifestamente não sucede no caso vertente; cc) Atendendo ao exposto, e à densificação constitucional do princípio da proporcionalidade, nas suas múltiplas vertentes, facilmente se depreende que a renovação da medida de "congelamento" das contas bancárias dos Recorrentes, supra identificadas, não é um meio (i) exigível e, nessa medida, estritamente necessário; (ii) apropriado à prossecução do fim subjacente ao decretamento da medida; (iii) a justa medida face ao fim visado; dd) Antes pelo contrário, a renovação da medida de "congelamento" das contas bancárias dos Recorrentes apenas é apta, necessária e adequada a lesar, de forma legalmente inadmissível dos direitos fundamentais dos Recorrentes, mais concretamente a liberdade de iniciativa económica privada e o direito à propriedade privada, previstos nos Artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa, respetivamente; ee) Desta forma, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou as normas dos artigos Artigo 18.º n.º 2, 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa, o que se argui nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 402.º n.º 2, al. a), do CPP; ff) A acrescer ao supro exposto, é notório que a medida de suspensão de movimentações bancárias decretada nos autos, e os efeitos restritivos de direitos individuais inerentes a essa medida, permitem caracterizá-la como uma medida cautelar, sujeita, necessariamente, ao respetivo regime geral, previsto nos Artigos 191.º e seguintes do Código de Processo Penal; gg) Na verdade, as medidas com fins cautelares, em processo penal, podem também servir propósitos probatórios e de instrução da causa, o que parece estabelecer um perfeito paralelismo com a configuração geralmente atribuída à medida de suspensão de movimentações bancárias prevista nos Artigos 48.º e 49.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e que estiveram na base da decisão em causa nos presentes autos; hh)Conclusão contrária retiraria as medidas limitadoras das liberdades individuais das malhas apertadas do regime das medidas cautelares e, por conseguinte, deixaria totalmente desprotegidos os direitos e garantias fundamentais dos visados pelas medidas, o que não se aceita e se repudia expressamente, sob pena de total arbitrariedade (e não mera discricionariedade decisória) da investigação criminal levada a cabo ao abrigo Artigos 48.º e 49.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto; ii) Mais se refira que tal não foi — nem poderia ser, sob pena de manifesta inconstitucionalidade material — a intenção legislativa que presidiu a consagração do regime do Artigos 48.º e 49.º Lei n.2 83/2017, de 18 de agosto; ))) Os artigos 48.º e 49.º da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, inserem-se sistematicamente no regime do dever de abstenção aí previsto; previsto e regulado no artigo 35.º da Diretiva 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, a qual não prevê, nem poderia prever, nomeadamente no artigo 35.º, uma qualquer medida de âmbito processual-criminal destinada a investigar o crime de branqueamento, muito menos prevendo (e impondo aos Estados-Membros) um suposto meio de obtenção de prova consistente em suspensão temporária de operações ou movimentações bancárias, remetendo, ao invés, a atuação das autoridades judiciárias em contexto de prevenção de branqueamento de capitais para o ordenamento interno preexistente de cada Estado-Membro, nada prevendo ou acrescentando ao que já resultar de cada um desses ordenamentos internos; kk) Por conseguinte, nada justificaria, quer no plano do Direito interno, quer no plano do Direito da União Europeia, o entendimento de estarmos aqui perante uma medida com finalidade cautelar que, a título excecionalíssimo, se submetesse ao regime dos meios de obtenção de prova e pudesse ser posto em prática pelas autoridades à margem do regime das medidas cautelares; ll) Não há qualquer razão juridicamente atendível para conceder uma "carta branca" às autoridades judiciárias para prescindir de "fortes indícios" ou fundadas suspeitas da atividade delituosa, coartar o direito de defesa do(s) visado(s), bastando-se com fundamentações remissivas ou puramente conclusivas, não se encontrando, nem no Direito interno nem no Direito da União Europeia, quaisquer elementos interpretativos que militem a favor da qualificação desta medida como um "meio de obtenção de prova"; mm) O regime das medidas cautelares consagra especificamente, no Artigo 193.º do Código de Processo Penal, os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, que estabelecem a garantia do exercício e do respeito pelos direitos fundamentais concretamente afetados pela medida aplicada, limitam a atuação dos órgãos judiciários ao menor grau possível e necessário de interferência ou restrição dos direitos fundamentais, como contrapeso da atuação das autoridades e dos fins do inquérito; nn) O regime das medidas cautelares em processo penal consagra, ainda, outras normas que alicerçam a tutela devida à garantia da presunção de inocência, do direito de defesa do sujeito visado e dos direitos fundamentais concretamente afetados, qual seja, por exemplo, a imposição de constituição de arguido, anterior ou posterior ao decretamento de qualquer medida cautelar, prevista no Artigo 192.º do Código de Processo Penal; oo) Assim, a Decisão recorrida, atinente à renovação da medida de suspensão de contas bancárias, como medida cautelar que forçosamente é, incumpre os requisitos imperativamente estabelecidos no Artigo 194º n.º 6 do Código de Processo Penal, no que concerne ao respetivo conteúdo, nomeadamente ao falhar em indicar: i) os factos concretos em que se baseia; ii) os meios de prova considerados; iii) e o enquadramento jurídico pertinente, com destaque para a inobservância aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, sendo nula; pp) À luz do regime das medidas cautelares, o douto Despacho recorrido será ainda nulo porquanto a medida decretada não foi antecedida, e tão pouco sucedida, da constituição dos Recorrentes como arguidos, incumprindo assim uma condição essencial imposta pelo Artigo 58.º n.º 1 alínea b), Artigo 192.º n.º 1, ambos do Código de Processo Penal; qq) A falta de constituição dos Recorrentes como arguidos consubstancia a falta de inquérito ou de instrução, nulidade prevista no Artigo 120º, n.º 2 alínea d) do Código de Processo Penal, o que desde já se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no Artigo 122.º n.º 1 do Código de Processo Penal; rr) Desta forma, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou as normas dos Artigos 193.º, 194.º, n.º 6, 192.º n.º 1, Artigo 58.º n.º 1 alínea b), Artigo 120.º n.º 2 alínea d) e Artigo 122.º n.º 1, todos do Código de Processo Penal, o que se argui nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 402.º n.º 2, ai. a), do CPP. NESTES TERMOS, E nos mais de Direito aplicáveis, deverá o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, por provado, devendo o douto Despacho recorrido ser revogado na íntegra e, em consequência, ser revogada a medida de renovação da suspensão das contas bancárias dos Recorrentes, com todas as legais consequências.”
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Na primeira instância, o Digno Procurador do Ministério Público apresentou resposta em que pugna pela improcedência do recurso e manutenção do despacho recorrido, formulando as seguintes conclusões: “1. O despacho recorrido encontra-se devidamente fundamentado de facto e de direito. 2.Não existe, igualmente, nenhuma inconstitucionalidade na decisão judicial vertida nos autos nem procedem as interpretações das normas sustentadas pelos requerentes. 3. Falece, assim, a posição do recorrente, in totum.”
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e confirmado integralmente o despacho recorrido. Para o efeito, acompanhando a antecedente resposta e fazendo uma referência jurisprudencial.
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Não houve resposta a este parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo conhecer e decidir.
** Com relevo para a apreciação deste recurso, importa atentar ao teor da certidão constante dos presentes autos da qual constam quer as promoções das Dignas Procuradoras do Ministério Público, quer os despachos proferidos pela Exmª Juiz de instrução, quer a data de notificação do despacho recorrido, quer a data da expedição do requerimento de interposição do recurso, tudo a seguir transcrito (respectivamente):
Em 8/3/2022:
«… Da confirmação judicial da suspensão temporária de operações bancárias: O regime jurídico do branqueamento de capitais encontra-se previsto na Lei nº 83/2017, de 18/08 que revogou a Lei n.º 25/2008, de 05/06'. Este diploma vem estabelecer medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2015/849, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio, e 2016/2258/UE, do Conselho, de 6 de Dezembro, relativas à prevenção da utilização do sistema financeiro e das actividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo2. Este regime veio reforçar as medidas de combate ao referido fenómeno alterando o C.Penal, o C.Proc.Penal, o CPI, a Lei n.º 25/2008, de 05/06 e DL n.º 125/2008, de 21/06. O crime de branqueamento encontra-se p.p. pelo artigo 368.º-A do C.Penal, tendo sido alargado o catálogo de crimes precedentes e estabelecido a punição do branqueamento ainda que o crime subjacente assuma natureza semi-pública e não tenha sido apresentada queixa pela prática do mesmo. De acordo no nº 3 desse preceito, incorre numa pena de prisão de 2 a 12 anos quem "converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal (...)". E, no nº 4, acrescenta-se que "na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos". O Banco Comercial Português (BCP) efectuou uma comunicação ao abrigo do disposto no art. 47º da Lei 83/2017, de 18/08, dando conta da existência de movimentação financeira não justificada nas contas N.ºs 4.../EUR, ...e Nº ... (EUR). Com efeito, refere que AA e BB, ambos de nacionalidade portuguesa e a residir em Portugal abriram as contas N.ºs 4.../EUR, ...e ... para gestão do dia-a-dia. Em 20-12-2021, AA e BB constituíram a sociedade por quotas CC, com o CAE 68100 - Compra e venda de bens imobiliários, com capital social de 50.000,00€ e em 27-01-2022 abriram a conta N.º ... para gestão da tesouraria da sociedade. A conta de depósitos à ordem Nº4.../EUR foi creditada em 24-01-2022 com uma ordem de transferência recebida de uma sociedade sediada em Singapura — Geo Global Energy Pte. Ltd., no valor de €4.199.65,00 transacção que considerou suspeita. 1 Que transpunha para a ordem jurídica interna as Directivas n'ils 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro, e 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de agosto. 2 Esta Lei nº 11/2004 havia transposto para o ordenamento jurídico interno a Directiva n.º 2001/97/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de dezembro) e fora previamente alterada pela Lei nº 27/2004 de 16 de julho. AA apresentou documentação referente àquela transacção (Vide ANEXOS 1 a 9), da qual, segundo a entidade comunicante, resulta o seguinte: “O Sr. AA refere que a empresa ... é detida por si, contudo a informação obtida no site privado ORBIS diverge, sendo efetivamente detida por uma empresa denominada SCZ Group Inc, conforme relatório ORBIS em ANEXO 11. Na análise efetuada à documentação apresentada não se identificou evidência de que o Sr. AA tenha emprestado à empresa ... 20 Milhões de USD e esta, conforme relatório ORBIS em ANEXO 12, não regista informação financeira recente sendo os dados mais recentes relativos ao ano 2018. Na "Letter of Mandate" apresentada em ANEXO 2, celebrada entre AA e a empresa ...e só assinada por este em representação das duas entidades, vem referido que vendeu em agosto de 2018 a totalidade das ações da empresa venezuelana ... à ..., contudo não apresentou esse alegado acordo escrito. De notar que é na sequência desse acordo de venda de ações que o Sr. AA indica que a empresa ...vai pagará empresa ...8,6 Milhões de EUROS. Na consulta à fonte privada World-Check não foi apurada informação para as entidades mencionadas." A entidade obrigada referiu ainda que em fontes abertas apurou, relativamente a AA o seguinte: https://elplaneta.cominews/2020/jan/14/aseguran-que-empresas-de-AA..-lograro/ onde se lê: Aseguran que empresas de AA lograron contratos de CITGO de manera fraudulenta por Maibort Petit I Ene 14, 2020. Apurou igualmente que "A empresa mencionada, a ..., a qual detém a empresa ordenante ...consta no ICIJ Offshore Leaks Database — Paradise papers em: https://offshoreleaks.icij.org/nodes/200141637 a qual tem como agente no país onde se encontra sediada, São Cristóvão e Nevis, a Morning Star Holdings Limited. E a Morning Star Holdings Limited no site: httbs://www.tridenttrust.com/media/2479/msh-nevis-kf.pdf regista a seguinte informação: Morning Star Holdings Limited is the largest and oldest registered agent in Nevis and provides alI necessary corporate services for the establishment of corporations and LLCs u under the Nevis Offshore Ordinances and act as their Registered Agent after establishment. Pelo exposto a entidade comunicante considerou que: -"Desconhece a origem dos fundos e forma como foram angariados; - A empresa ordenante ...(Singapura) é detida pela ... (Saint Kitts and Nevis), sediada em país independente, correspondente a OFFSHORE não cooperante, localizado no Mar das Caraíbas. Conforme relação de movimentos da conta N.º 4... (ANEXO 13), titulada por AA e BB, do total de fundos recebidos no valor de 4.199.965,00€, em 24-01-2022, foram transferidos 4.100.000,00€, em 27-01-2022, para a conta N.º ... da sociedade CC (ANEXO 14) e na mesma data emitido um cheque bancário no valor de 3.650.000,00€ (ANEXO 15), destinado a compra de prédio urbano, correspondente ao "prédio para habitação" sito na Quinta da Marinha Lote 26, conforme CPCV em ANEXO 10." Assim, o BCP exerceu o dever de abstenção. A UIF elaborou informação, que aqui se dá por reproduzida. Junto da Autoridade Tributária e Aduaneira apurou-se a seguinte informação: A sociedade CC, NIPC ...: Desde 28.01.2022 é proprietária do prédio urbano, sito na União das Freguesias de Cascais e Estoril, ..., artigo 5267 do Serviço de Finanças de Cascais 1, com o valor patrimonial actual de €981.670,00 e adquirido pelo valor de € 3.700.000,00 a ..., NIF ..., de nacionalidade Sérvia, alvo de duas COS (2007 e 2014), por transferências recebidas, provenientes da ... (Offshore Leaks) e por conta por si titulada no Chipre. AA, NIF ...: - É Representante de ..., NIF ..., desde 28.05.2021; -Teve como representante ... de 04.11.2019 a 05.08.2020; - É locatário dos seguintes veículos: ...— Mercedes-Benz e ...— Land Rover; - É proprietário dos seguintes veículos ... — Rolls-Royce e ...— Fiat; - É proprietário do prédio urbano, sito na União das Freguesias de Cascais e Estoril, ..., artigo 17316 do Serviço de Finanças de Cascais 1, com o valor patrimonial atual de € 525.440,00 e adquirido aos 20.06.2020 pelo valor de € 2.175.000,00 à sociedade ... BB, NIF ...: - É proprietária do veículo com a matrícula ...— Ferrari. De todo o exposto a UIF conclui que, pese embora, AA refira que a empresa ...é detida por si, a informação obtida no site privado ORBIS diverge, sendo efectivamente detida por uma empresa denominada ... Acresce que na documentação apresentada não se identificou evidência de que AA tenha emprestado à empresa ...20 Milhões de USD e esta não regista informação financeira recente, sendo os dados mais recentes relativos ao ano 2018. Na "Letter of Mandate" apresentada, celebrada entre AA e a empresa ...e só assinada por este em representação das duas entidades, vem referido que vendeu em agosto de 2018 a totalidade das acções da empresa venezuelana ... à ..., contudo não apresentou esse alegado acordo escrito. De notar que é na sequência desse acordo de venda de acções que AA indica que a empresa ...vai pagar à empresa ...8,6 Milhões de euros. De acordo com a informação disponível, verificou-se que a empresa ordenante ...(Singapura) é detida pela ... (Saint Kitts and Nevis), sediada em país independente, correspondente a OFFSHORE não cooperante, localizado no Mar das Caraíbas. Conforme relação de movimentos da conta alvo de abstenção (...) titulada por AA e BB, do total de fundos recebidos a 24/01/2022 no valor de € 4.199.965,00, foram transferidos, a 27/01/2022, € 4.100.000,00 para a conta ... da sociedade CC e na mesma data emitido um cheque bancário no valor de € 3.650.000,00, destinado a compra de prédio urbano, correspondente ao "prédio para habitação" sito na Quinta da Marinha. Atento o exposto e por se desconhecer a origem dos fundos e forma como foram angariados, a UIF sugere a suspensão das contas BCP, sediadas no Taguspark: - Tituladas por AA e BB: - Nº 4... (EUR), com o saldo de € 55.299,23; e - Nº ... (USD) com o saldo de 165.644.40 USD. - Titulada pela sociedade CC, LOA: - Nº ... (EUR), com o saldo de € 123.044.55. Assim, conclui-se que se desconhecem as circunstâncias em que foram efectuadas as transferências bancárias e a proveniência dos montantes creditados nas referidas contas bancárias. Pelo que se indicia que os fundos existentes nas contas bancárias acima identificada são produto de ilícitos criminais. A factualidade comunicada é assim susceptível de integrar, em abstracto, a previsão do crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo disposto no art. 368-A, do C.Penal, e, eventualmente, do crime de burla, p.p. pelos arts. 217º e 218º do C.Penal, sem prejuízo de melhor enquadramento jurídico-penal, logo que melhor delineados os contornos da situação em apreço. Perante as fundadas suspeitas acima enunciadas, importa impedir que os fundos monetários existentes nas contas se dissipem e sejam utilizados em benefício do(s) agente(s) dos factos na economia legítima. * Nesta sequência entendeu o Ministério Público, perante tal factualidade, existirem indícios de estarmos perante contas bancárias utilizadas para a recepção de fundos com origem em ilícitos criminais, mormente burla e branqueamento de capitais, pelo que importa impedir a continuação dos movimentos das contas, e bem assim que os activos financeiros detectados se dispersem na economia legítima, enquanto se diligencia pela junção aos autos de elementos de prova que permitam esclarecer os factos e fortalecer os indícios, pois, caso os mesmos não sejam objecto de medida de suspensão de operação financeira nos termos do disposto no art.49º da Lei n.º 83/2017 de 18/08, certamente os fundos serão canalizados para outro país, ficando definitivamente fora do alcance da Justiça. Assim, considerando indiciar-se que o sistema financeiro nacional está a ser utilizado para a comissão de ilícitos criminais, mormente do crime de branqueamento de capitais p. p. pelo disposto no art. 368º-A do C. Penal, após a realização dos procedimentos adequados em sede de Averiguação Preventiva (cf. art. 81º n.ºS 2 e 3 do citado diploma legal), o MP veio a determinar a suspensão temporária da movimentação a débito das seguintes contas bancárias do BCP: - Nº 4... (EUR), com o saldo de €55.299,23; - Nº ... (USD) com o saldo de 165.644.40 USD; e - Nº ... (EUR), com o saldo de € 123.044.55. Porém, tal medida nos termos do artº 49 da citada Lei, carece de confirmação Judicial em 2 dias úteis após a sua prolação. * Assim, atento o supra exposto o Ministério Publico promove ao abrigo do artigo 49º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 83/2017: - Que se confirme a suspensão temporária e se determine o bloqueio, por três meses, das operações a débito sobre as contas: - Tituladas por AA e BB: - Nº 4... (EUR), com o saldo de €55.299,23; e - Nº ... (USD) com o saldo de 165.644.40 USD. - Titulada pela sociedade CC, LDA: - Nº ... (EUR), com o saldo de €123.044.55. * Mais se promove, caso a presente promoção obtenha deferimento, que seja o Banco informado do teor do despacho judicial de deferimento e seja advertido do dever de não divulgação do art. 54º n.ºs 1 e 5 da Lei n.2 83/2017. Remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal junto do Juízo de Instrução Criminal de Cascais para apreciação do supra exposto sob os pontos 1 e II da presente promoção, reportados ao segredo de justiça e suspensão temporária de operações bancárias. * III — Após o regresso dos autos a este DCIAP, comunique o teor do presente à Coordenação — ponto 26 do Regulamento para o Processamento das Acções de Prevenção de Branqueamento aprovado por despacho de 10/02/2016, proferido pelo Exm2 Sr. Director desde DCIAP. Após conclua.»
Em 9/3/2022: « Nos termos do artigo 86º, n.º3 do CPP, valido a decisão do MP de sujeitar os autos a segredo de justiça. Conforme promovido pelo MP, e aderindo à fundamentação do digno magistrado, atenta a natureza da movimentação indiciada, e investigando-se nos autos a prática dos crimes de burla e branqueamento de capitais, p.p. nos artigos 217º, 218º e 368A do CP, nos termos do artigo 49º, nºs 1 e 2 e 48º, n.º 3, alíneas a) e b) da lei 83/2017 de 17.08, confirmo a medida de suspensão decretada, de movimentação sobre o saldo das contas identificadas no BCP, pertencentes aos suspeitos, a vigorar pelo período de 3 meses. Informe o Banco pelo meio mais expedito, advertindo do dever de não divulgação nos termos do artigo 54º, n.s 1 e 5 do diploma acima mencionado.»
Em 30/5/2022: «Conforme se alcança do teor de fls. 34, nos presentes autos investigam-se factos susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática dos crimes de burla e branqueamento, p. e p. pelo art.º 368º-A, do Código Penal, tendo sido determinada a suspensão de operações bancárias a débito, sobre as contas bancárias identificadas a fls. 29, por um período de três meses (fls. 29 e 34). Na medida em que os pressupostos de facto e de direito que determinaram a referida suspensão de operações bancárias (SOB), descritos a fls. 22 a 30, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, se mantêm na actualidade, promovo que se determine a prorrogação da aludida suspensão de operações bancárias para as contas em causa por mais três meses, nos termos do disposto no art.º 49º, n.º 2, da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto. * Remeta os presentes autos ao Juízo de Instrução Criminal de Cascais para apreciação e decisão, avisando previamente o Sr. Escrivão da respectiva secção do envio, bem como da natureza urgente do presente processo, solicitando a abertura de conclusão imediata ao Meritíssimo Juiz de Instrução.»
Em 1/6/2022:
«Conforme promovido pelo MP e aderindo à fundamentação do digno magistrado, atenta a natureza da movimentação indiciada, nos termos do artigo 49º, nos 1 e 2 e 48º, n.º3, alíneas a) e b) da lei 83/2017 de 17.08, renovo a medida de suspensão decretada, de movimentação sobre o saldo da conta identificada, a vigorar pelo período de 3 meses. Informe o Banco pelo meio mais expedito.»
Mais certificado:
“O despacho recorrido foi exarado nos autos em 01/06/2022, e por via postal expedida em 24/06/2022, aos sujeitos processuais.”
O requerimento de interposição do recurso e respectiva motivação, deu entrada em 28/07/2022 (carta registada de 27/07/2022. (…)
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II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (Questões a decidir)
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, como CPP) - neste sentido e a título de exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª Edição Actualizada, UCE, 2009, págs. 1027/1028), António Henriques Gaspar e outros (em “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª Edição Revista, Almedina, 2021, , pág. 1265) e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 (em DR-I, de 28/12/1995).
Assim sendo, no caso vertente enunciam-se as seguintes questões que importa decidir: 1ª questão – Há vício do despacho recorrido por falta de fundamentação? 2ª questão – Há nulidade do despacho recorrido por inobservância do regime geral das medidas de coacção e de garantia patrimonial?
III – APRECIAÇÃO Nota prévia – Para responder a tais questão e como nota prévia, importa salientar que o despacho recorrido é, apenas e tão só, o despacho judicial de renovação, por mais 3 meses, da medida de suspensão temporária de movimentação a débito de contas dos recorrentes, proferido em 1/6/2022 e notificado, por via postal, em 24/06/2022.
Sendo que, cerca de 3 meses antes (neste inquérito criminal), o Ministério Público havia que decretado/determinado (pela primeira vez) a medida de suspensão temporária de movimentação (a débito de determinadas contas dos recorrentes), por um período de 3 meses e a qual havia sido confirmada judicialmente (pela primeira vez), por despacho do Juiz de Instrução, já transitado em julgado [com a inerente delimitação negativa ou exclusão do conteúdo temático do recurso em apreço ] - tudo nos termos e com os efeitos previstos pelos art.ºs 48º e 49º, nºs 1 e 2, e 81º, nºs 1 a 3, da Lei nº 83/2017, de 18-8 (doravante designada abreviadamente como Lei), art.ºs 97º, nº 1, al. b), 379º à contrário, 380º à contrário e 411º, nº 1, à contrário, do Código de Processo Penal (doravante designado com a abreviatura CPP) e art. 628º do Código de Processo Civil (doravante com a abreviatura de CPC) por remissão do art.º 4º do CPP.
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1ª questão – Há vício do despacho recorrido por falta de fundamentação?
Os recorrentes alegam (a este propósito e em suma) que o despacho judicial recorrido, ao remeter para a promoção antecedente e ao aderir a essa fundamentação do Ministério Público, não cumpre minimamente a exigência de fundamentação constante do art.º 97º, nº 5, do CPP e viola os art.ºs 2º, 20º, 32º e 205º da Constituição da República Portuguesa (doravante designada com a abreviatura CRP).
Para o efeito, argumentam (em suma):
Que não constam as razões de facto e de direito que determinaram a decisão judicial recorrida;
Que esta decisão não foi clara e compreensível para os seus destinatários, não permitindo o uso de mecanismos legais relativamente à mesma, tais como o recurso;
Que a remissão desta decisão do Juiz de instrução para a promoção do Ministério Público comprometeu a independência, a isenção, a imparcialidade, a objectividade e ponderação individual exigidas ao juiz, num Estado de Direito.
Por seu lado, o Ministério Público quer da 1ª instância quer desta instância superior, refutam a existência de tal vício (em suma):
Por tal decisão ser de mera renovação da suspensão temporária e remeter para promoção que tem por base a promoção inicial já confirmada pela decisão judicial inicial;
Só se sobreviessem circunstâncias modificativas, de facto ou de direito, relativamente a estas, promoção e decisão iniciais, é que seria exigida nova ponderação e nova fundamentação;
Mesmo que existisse tal falta, sempre seria uma mera irregularidade do processo já sanada por não ter sido invocada nos 3 dias seguintes à notificação do despacho recorrido;
E sendo o Ministério Público uma autoridade judiciária que colabora com o Tribunal na realização da justiça, o Juiz ao aderir à decisão ou promoção desse não está a aderir à tese de uma parte no processo.
Cumpre apreciar e decidir.
Afigura-se-nos que o despacho recorrido (supra transcrito e aqui dado como reproduzido) é um acto decisório da Senhora Juiz de Instrução que assumiu a forma escrita e suficientemente fundamentada para renovar a medida de suspensão temporária por mais 3 meses – dando cumprimento à exigência constitucional do art.º 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante com a abreviatura CRP) e às exigências legais contidas nos art.ºs 94º e 97º, nº 1, al. b), nº 4 e nº 5, do CPP e nos art.ºs 49º, nº 2, e 81º, nº 1, da Lei.
Pois, conforme resulta da leitura do seu texto escrito:
Há menção da respectiva fundamentação de facto através dos seguinte dizeres escritos: “Conforme promovido pelo MP e aderindo à fundamentação do digno magistrado, atenta a natureza da movimentação indiciada..”;
E há menção da respectiva fundamentação de direito através dos seguintes dizeres escritos: “..nos termos do art.º 49º, nºs 1 e 2 e 48º, nº 3, alíneas a) e b), da lei 83/2017 de 17-8..”.
Tal especificação dos motivos/razões de facto e de direito (quer expressamente, quer por remissão para a promoção), para além de suficiente, é clara e entendível para qualquer destinatário comum e para os destinatários aqui recorrentes em particular, pois – apesar da argumentação contrária destes –, o demais teor do recurso em apreço, por si só, desmente tal argumentação.
Aliás, os recorrentes não põem em causa que já haviam sido notificados do teor escrito dessa promoção do Ministério Público, contendo a menção das razões de facto e de direito, quer expressamente, quer por remissão para os elementos documentais constantes destes mesmos autos (incluindo a suspensão decretada pela primeira vez e a confirmação judicial proferida pela primeira vez) sem que sequer tivessem questionado a sua clareza, inteligibilidade e falta de fundamentação.
Para além disso, quer no regime especial contido na Lei nº 83/2017, quer na lei processual penal, quer na lei processual civil (com excepção nesta do art.º 154º, nº 2, 1ª parte) inexiste proscrição legal da fundamentação por remissão. Sendo que, até, é admitida a fundamentação por remissão, nomeadamente, no art.º 425º, nº 5, do CPP e no art.º 663º, nºs 5 e 6, do CPC.
E o Tribunal Constitucional, a propósito das exigências constitucionais de tal tipo de fundamentação, no caso de maior exigência dela como é a aplicação de prisão preventiva, já se pronunciou, nomeadamente, através do acórdão 147/2000 de 21-3-2000 (Artur Maurício) onde se lê: «O que a fundamentação visa – disse-se já também – é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir às partes – no caso, ao arguido – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos. (…) Mas se isto é assim, não é o facto de, na sua fundamentação, o despacho judicial remeter para as razões expressas noutras peças processuais que, só por si, põe em causa a razão de ser da imposição constitucional. Sucede, apenas, que a leitura do despacho em causa não é directa e imediata, como o seria se o acto decisório contivesse, ele mesmo, as razões do decidido; ela só se completa com o conhecimento das outras peças processuais para que o despacho remete, o que, de todo, não compromete as garantias de defesa do arguido… .»
E nem sequer esse Tribunal considerou, nem este Tribunal considera, que a fundamentação remissiva configure uma opacidade do “iter decisório” e/ou comprometa o juízo crítico e pessoal, a ponderação individual, a independência, a isenção, a imparcialidade e a objectividade exigidos ao Juiz de instrução num Estado de Direito (nos termos previstos pelos art.ºs 2º, 20º e 32º da CRP).
Tal adesão (do acto decisório judicial) aos fundamentos (de facto e de direito da promoção) pressupõe, sempre e necessariamente, que houve uma prévia ponderação e apreciação (crítica e pessoal) por parte do Sr. Juiz e que este (de forma isenta, independente, imparcial e objectiva) concordou que se justificava a renovação/prorrogação de tal medida.
Pois se, após essa ponderação e apreciação, não tivesse considerado que tal se justificava, com certeza que, não teria proferido decisão judicial nesse sentido.
A concordância ou a discordância de um acto decisório de um Juiz de instrução, relativamente a uma promoção do Ministério Público, não significa (nem pode significar), respectivamente, menor distanciamento ou maior distanciamento daquele relativamente à investigação e, muito menos, significa que tal prévia apreciação judicial seja acrítica ou crítica só porque, respectivamente, concordou ou discordou da promoção com a qual os recorrentes discordam.
Para além disso, a discordância dos recorrentes relativamente à promovida e decretada renovação da medida de suspensão provisória não significa, por si só, que o Ministério Público e o Juiz de Instrução sejam partes, neste processo criminal, contrapostas aos recorrentes.
Aliás, a Lei nº 83/17 faz questão de salientar (no seu art.º 81º) que o Juiz de instrução criminal e o Ministério Público são autoridades judiciárias que exercem as competências e beneficiam das demais prerrogativas conferidas pelas disposições específicas da presente lei.
Por último e não menos importante, o juízo inerente à decretada renovação da medida de suspensão temporária, por mais 3 meses (objecto do despacho recorrido) assentou na manutenção dos pressupostos, de facto e de direito, que haviam determinado o decretamento e a comprovação judicial (pela primeira vez) dessa medida e os quais já eram do conhecimento dos recorrentes (notificados dessa primitiva determinação e dessa primitiva comprovação judicial já transitadas em julgado) – conforme admite o art.º 49º, nº 2, da Lei com a seguinte redacção: «Compete ao juiz de instrução confirmar a suspensão temporária decretada por período não superior a três meses, renovável dentro do prazo de inquérito, bem como especificar os elementos previstos na alínea b) do nº 3 do artigo anterior».
O legislador apenas impõe um limite temporal à sua renovabilidade, por forma a que tal medida de suspensão (por natureza e definição) temporária não ultrapasse o prazo máximo da duração do inquérito criminal (previsto no art.º 276º, nomeadamente no seu art.º 3, al. a), do CPP).
Pelo que, decorridos os 3 meses iniciais, mantendo-se esses pressupostos inalterados e não sendo aduzidos novos argumentos, não é exigível uma diferente e autónoma apreciação.
Em suma, tendo sido dadas a conhecer (aos recorrentes) as razões de facto e de direito da decisão judicial em apreço, proferida pela forma adequada e por quem detém competência para o efeito e no uso do inerente poder-dever decisório, estão observadas as sobreditas estatuições constitucionais e legais.
Quando muito, poderia tal remissão configurar uma mera irregularidade, nos termos previstos pelo art.º 118º, nº 2, do CPP.
Pois, não se vislumbra que esteja sancionada como nulidade em qualquer norma legal (nomeadamente não o está no citado nº 5 do art. º97.º, nem nos art.ºs 119.º e 120.º todos CPP).
Mas, a existir tal irregularidade, estaria sanada pelo facto de não ter sido arguida pelos recorrentes no prazo de 3 dias após a notificação do despacho recorrido - conforme exige o art.º 123º, nº 1, do CPP e que foi largamente expirado neste caso (atento o hiato temporal desde a notificação em 24/6/2022 até à interposição do recurso em 27/7/2022).
Sendo que, face ao já exposto mais acima, tão pouco se considera ser caso que careça de qualquer reparação oficiosa, nos termos previstos pelo art.º 123º, nº 2, do CPP.
Pois, conforme já vimos, tal remissão não afectou o valor do acto judicial praticado que não omite a fundamentação – a fundamentação do despacho judicial (recorrido) ao remeter (também) para as razões expressas noutra peça processual aí citada e com expressa adesão à mesma que, por sua vez, contém a menção das razões de facto e de direito, quer expressamente, quer por remissão expressa para os elementos documentais constantes destes mesmos autos (incluindo a suspensão decretada pela primeira vez e a confirmação judicial proferida pela primeira vez e com trânsito em julgado), apenas, fez com que os seus destinatários/aqui recorrentes tivessem de atentar não só aos fundamentos nela expressos, directamente, como também aos nela expressos, remissivamente, para outras peças processuais deles já conhecidas anteriormente.
Assim e em conclusão, o despacho recorrido não padece de falta de fundamentação.
2ª questão – Há nulidade do despacho recorrido por inobservância do regime geral das medidas de coacção e de garantia patrimonial ?
Os recorrentes alegam (a este propósito e em suma) que não houve a sua constituição como arguidos e que tal medida é desnecessária, inadequada, desproporcional ou excessiva, tendo sido violadas as exigências contidas nos arts. 58º, nº 1, al. b), 192º, 193º e 194º, nº 6, do CPP e nos arts. 18º, nº 2, 61º e 62º da CRP, com a inerente nulidade prevista nos arts. 120º, nº 2, al. d), e 122º nº 1, do CPP.
Por seu lado, o Ministério Público quer da 1ª instância quer desta instância superior, refutam a existência de tais violações e nulidade (em suma), salientando que o Ministério Público é uma autoridade judiciária que colabora com o Tribunal na realização da justiça, no combate e na perseguição aos movimentos financeiros de proveniência ilícita que exige medidas eficazes que, perante esta suspeita, permitam a expedita recolha de prova, antes sequer de haver constituição de arguido e perante uma indiciação inferior à das medidas previstas no CPP, sob pena de poder ficar comprometida a natureza preventiva e repressiva das medidas de combate ao branqueamento de capitais de proveniência ilícita.
Cumpre apreciar e decidir.
Conforme sabemos, a criminalidade económica e financeira assume contornos nacionais e internacionais que justificaram, por um lado, a criação das Directivas nº 2015/849/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20-5-2015, e nº 2016/2258/EU, do Conselho, de 6-12-2016 e, por outro lado, a sua transposição parcial para o ordenamento jurídico português através da já referida Lei nº 83/2017, de 18-8.
Isto porque, as clássicas medidas preventivas e repressivas previstas no Código de Processo Penal não davam resposta adequada e suficiente a este tipo de criminalidade tão grave. Impunha-se a criação de instrumentos preventivos e repressivos próprios para este tipo de criminalidade que pode ter (e normalmente tem) inúmeros crimes precedentes ou subjacentes (nomeadamente relacionados com tráfico de droga, de armas, extorsão, burla, fraude fiscal) cada vez mais sofisticados e geradores de avultados proventos ilícitos e cujo branqueamento se incrimina através do tipo legal de crime previsto no art. 368º-A, nºs 1 e 2 , do CP.
Sendo esta uma criminalidade altamente organizada (segundo a previsão expressa do art.º 1º, al. m), do CP) que utiliza o sistema financeiro nacional para a comissão de ilícitos, quando há suspeitas de tal suceder (nomeadamente por se desconhecer a origem e o modo como foram angariados certos fundos) urge impedir, ainda que temporariamente, que tais fundos se dissipem e/ou sejam utilizados em benefício dos seus agentes, na economia legítima e/ou, até, canalizados para outro país, ficando fora do alcance da justiça - cfr. a este propósito Carlos Casimiro Nunes em “O Ministério Público na prevenção do branqueamento e do financiamento do terrorismo” (Revista do Ministério Público 153, Janeiro a Março de 2018, págs. 93-140) e José Damião da Cunha em “Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira” (Universidade Católica, Editora 2017, págs. 77-85).
Daí as especificidades deste regime legal especial (face às clássicas medidas preventivas e repressivas do CPP) que impõe às entidades bancárias (para além de outras entidades financeiras e, também, entidade não financeiras) mecanismos de prevenção, que permitem a utilização de meios de obtenção de prova em tempo real e sendo um deles a medida de suspensão temporária de certos movimentos bancários. Esta é uma medida cautelar reforçada que não se autonomiza face à sua principal finalidade de meio de obtenção de prova – conforme tão bem refere o Acórdão do TRL de 10/1/2012 (processo nº 169/10.6TELSB-A.L1-5).
Daí que este regime especial preveja (nomeadamente nos seus art.ºs 4º, 8º, 11º, 14º, 15º, 36º, 43º, 47º, 48º, 49º, 54º, 56º, 81º e 169º da Lei) que:
- Perante suspeitas materializadas em determinados índices objectivos aí previstos e considerados como de risco de branqueamento de capitais, as várias entidades financeiras e não financeiras aí elencadas têm um conjunto de deveres preventivos (que vão desde o controlo, identificação, comunicação, abstenção, recusa, conservação, colaboração, até à não divulgação) e cuja violação até é cominada com responsabilidade contraordenacional;
- A documentação e as informações obtidas no decurso dos procedimentos de averiguação preventiva de branqueamento de capitais ou de financiamento de terrorismo podem ser usados como meios de prova em processos judiciais;
- Em face daquela avaliação de risco, as entidades bancárias se abstenham de executar certas operações (que suspeitem poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de actividades criminosas) e de imediato informem o Departamento Central de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República (DCIAP);
- Em face disso, há lugar a um processo de inquérito criminal, no qual o DCIAP pode (mediante despacho) aceder directamente a toda a informação (financeira, fiscal, administrativa, judicial, policial) necessária aos procedimentos de averiguação preventiva subjacentes ao branqueamento de capitais. Também o DCIAP pode (mediante despacho) determinar a suspensão temporária da execução de certas operações bancárias, por um período não superior a 3 meses, notificando para o efeito a entidade bancária e submetendo esta decisão a uma confirmação judicial por Juiz de instrução criminal, no prazo de 2 dias úteis após a sua prolação, sob pena de caducidade;
- Competindo ao Juiz de instrução confirmar (ou não) essa suspensão temporária, assim como cabendo a este confirmar (ou não) a renovação ou renovações dessa medida, por iniciativa do Ministério Público, desde que sejam especificados certos elementos e que não seja ultrapassada a duração máxima temporal prevista no (art. 276º) CPP para a duração de um inquérito, sob pena de caducidade dessa medida;
- Não havendo prévio contraditório com o(s) titular(es) da(s) respectiva(s) conta(s) bancária(s);
- Durante este processo de inquérito criminal, as entidades bancárias estão sujeitas a um dever de não divulgação bem especificado e até um dever de prudência junto dos clientes relacionados com a execução de operações potencialmente suspeitas, evitando quaisquer diligências que, por qualquer razão possam suscitar suspeição de que estão em curso quaisquer procedimentos que visem averiguar suspeitas de práticas relacionadas com o branqueamento de capitais;
- Durante este processo de inquérito criminal, o Juiz de instrução criminal e o Ministério Público exercem as competências e beneficiam das demais prerrogativas conferidas pelas disposições específicas desta Lei.
Desta breve resenha ressaltam as especificidades deste regime legal especial perante o regime geral do CPP aludido pelos recorrentes e sem que esta especialidade legal consubstancie a nulidade processual invocada pelos recorrentes ou qualquer outra de conhecimento oficioso e sem que a mesma consubstancie violação de direitos e garantias constitucionais invocados pelos recorrentes.
Pois, se a medida de suspensão (temporária de execução de quaisquer operações bancárias a débito em certas contas bancárias), incluindo a sua renovação, não é um meio de obtenção de prova que se confunda com a apreensão (prevista nos art.ºs 178º e segs. do CPP) e, também, não é uma medida de coacção ou garantia patrimonial (nos termos previstos pelos art.ºs 191º e segs. do CPP), todo o raciocínio dos recorrentes (ao pretender submeter a estes regimes gerais do CPP) está – salvo o devido respeito – viciado ou inquinado, por partir de uma premissa errada sem cabimento legal e sem cabimento constitucional.
A este propósito não podemos deixar de salientar que o art.º 18º, nºs 2 e 3, da CRP, prevê expressamente a restrição de direitos, liberdades e garantias através de leis restritivas (como é o caso da Lei em apreço nos termos do art.º 165º, nº 1, al. b), da CRP), desde que sejam necessárias para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Também o art.º 61º, nº 1, da CRP ressalva que a iniciativa económica privada se exerce livremente, mas dentro dos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral (como é o caso das restrições operadas pela Lei em apreço).
E o art.º 62º, nº 1, da CRP também garante a tutela do direito à propriedade privada nos termos da Constituição (que, conforme acabamos de ver, consente restrições operadas por lei quando necessárias para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos).
Sendo que o art.º 20º, nº 3, da CRP também prevê a possibilidade legal de atribuição e definição do segredo de justiça.
Considerando que a medida já fora decretada (por 3 meses) e agora tão somente se renova/prolonga temporalmente (por mais 3 meses), estando o processo em apreço numa fase processual de recolha de prova, anterior à constituição de arguido e com uma exigência de indiciação inferior, não se reconhece tão pouco a alegada violação do princípio da presunção de inocência, previsto no art.º32, nº 2, CRP. Pois não existe (nem tem de existir neste tipo de processo) sequer arguido constituído nem juízo de culpabilidade.
Tudo isto, tendo sempre subjacente como razão de ser das sobreditas limitações ou restrições a certos direitos individuais (como será o caso da livre movimentação de uma ou várias contas bancárias por parte do seu titular ou titulares), o facto de tal suceder, temporariamente e justificado pela necessidade de tutela de direitos ou interesses superiores constitucionalmente protegidos.
Obedecendo (obviamente) esta necessidade aos critérios de idoneidade e adequação (por aptidão dessa temporária medida restritiva para alcançar o fim superior visado) e de proporcionalidade (dada a supremacia do fim visado justificar a lesão temporária que essa medida temporária gera nos direitos individuais restringidos) – enquanto subprincípios daquele princípio mais vasto previsto no já referido art.º 18º, nº 2, da CRP (conforme os ensinamentos de Gomes Canotilho em “Direito Constitucional”, 4ª edição, Almedina, págs. 482-489).
Também a jurisprudência dos nossos Tribunais se tem pronunciado neste sentido, sendo exemplo disso os Acórdãos do TRP de 14/7/2020 (processo nº 109/17.7TELSB-A.P1) e de 27/1/2021 (processo nº 109/17.7TELSB-B.P1), do TRE de 9/2/2021 (processo nº 479/20.4TELSB-A.E1) e do TRL de 6/10/2020 (processo nº 261/20.9TELSB-A.L1-5), de 9/2/2021 (processo nº 1183/19.1TELSB-B.L1) e de 9/11/2021 (processo nº 1181/19.5TELSB-B.L1-5).
Voltando ao caso em apreço, é inquestionável que (a 8/3/2022) fora determinada/decretada (pela primeira vez), pelo Ministério Público, a medida de suspensão temporária, por 3 meses, de execução de operações bancárias a débito em certas contas bancárias, com base nos fundamentos de facto e de direito explanados na respectiva decisão (constante de fls. 22-30 que correspondem às actuais fls. 2-10 já transcritas e aqui dadas por reproduzidas) e a qual fora confirmada (pela primeira vez) por despacho do Juiz de instrução (a 9/3/2022) que, para além das menções específicas, aderiu a toda essa mesma fundamentação (conforme consta de fls. 34 que corresponde à actual fl. 11 já transcrita e aqui dada por reproduzida) e com trânsito em julgado (tudo nos termos e com os efeitos previstos pelos art.ºs 48º e 49º, nºs 1 e 2, e 81º, nºs 1 a 3, da Lei, art.º 97º, nº 1, al. b), 379º à contrário, 380º à contrário e 411º, nº 1, à contrário, do CPP e art. 628º do CPC por remissão do art.º 4º do CPP).
Também é inquestionável que, antes de esgotados esses 3 meses, o Ministério Público (a 30/5/2022) requereu a renovação dessa medida decretada, por mais 3 meses, por se manterem os pressupostos de facto e de direito que a haviam determinado, também remetendo para os termos descritos naquela sua decisão inicial, para além das demais referências constantes de fls. 82 (à qual corresponde a actual fl. 12 já transcrita e aqui dada por reproduzida) e tendo o Juiz de instrução (a 1/6/2022) renovado essa mesma medida por mais 3 meses, aderindo a essa fundamentação, para além das demais referências constantes de fl. 84 (à qual corresponde a actual fl. 13 já transcrita e aqui dada por reproduzida).
Sendo este último despacho, inquestionavelmente, o despacho recorrido.
Ora, este tem como objecto a mera renovação ou prorrogação, por mais 3 meses, da medida de suspensão provisória já decretada e ao abrigo do disposto no art.º 49º, nº 2, da Lei.
Pelo que (e conforme já vimos aquando da 1ª questão) as menções nele constantes quer expressamente, quer por remissão, são suficientes para fundamentar em termos de facto e de direito tal decisão judicial (de mera renovação da medida já decretada).
E – contrariamente ao entendimento dos recorrentes – tal reapreciação dos respectivos pressupostos rege-se pela cláusula “Rebus sic stantibus”, ou seja, “enquanto as coisas estão assim”. Aliás, tal como sucede a propósito do caso de maior exigência, porque mais atentatório dos direitos e liberdades individuais, que é a prisão preventiva (nos termos do art. 213º do CPP).
Quer isto dizer que, enquanto se mantiverem os seus pressupostos (já conhecidos dos recorrentes e melhor explanados na decisão inicial do Ministério Público confirmada, judicialmente, pelo Juiz de instrução) enquanto não ocorrer uma alteração ou novidade no quadro fáctico já explanado e ainda não tiver decorrido o sobredito limite temporal máximo de duração desse inquérito criminal (prazo de 14 meses atenta a natureza dos crimes em investigação e o disposto no art.º 276º, nº 3, al. a), do CPP), essa medida pode (e deve) manter-se, por se manterem as sobreditas necessidades que, em prol de um interesse superior (de prevenção e de repressão ao branqueamento de capitais) justificam o sacrifício, temporário, de certos direitos individuais dos aqui recorrentes (temporariamente impedidos de movimentarem a débito certas e determinadas contas bancárias suas).
E, por isso, a renovação ou prorrogação dessa medida temporária, apesar de gerar um prolongamento temporal e temporário, na restrição dos direitos dos aqui recorrentes (que continuam impedidos de movimentar aquelas suas conta bancárias por mais 3 meses) continua a justificar-se como necessária (porque apta, adequada e proporcional), atenta a enorme relevância e supremacia dos interesses superiores inerentes à prevenção, combate ou repressão do crime de branqueamento de capitais com os inerentes crimes conexos (nefastos não só para o sistema financeiro nacional, como também para a realização da Justiça perante este tipo de criminalidade altamente organizada).
Não sendo necessária sequer uma indiciação tradicional ou clássica (nomeadamente como “indícios objectivos” aludida no nº 5 do art.º 192º do CPP ou como “fortes indícios” aludida nos art.ºs 200º a 202º do CPP), bastando haver suspeitas fundadas.
Quer isto dizer que bastam as suspeitas já explanadas na determinação inicial com confirmação judicial já transitada em julgado – suspeitas essas que não são (meramente) subjectivas ou arbitrárias.
São, sim, suspeitas materializadas em determinados índices objectivos previstos expressamente na Lei em apreço e considerados como de risco de branqueamento de capitais, atentas as avultadas quantias movimentadas (na ordem dos €4.199.965,00 relativamente às quais se desconhece a respectiva origem e bem como o modo como foram angariadas – conforme consta explanado na determinação inicial a fls. 22-30 a que correspondem as actuais fls. 2-10 (nomeadamente, os dois primeiros recorrentes (AA e BB, com nacionalidade portuguesa e a residirem em Portugal) terem aberto as contas nºs 4.../EUR e ...para gestão do dia-a-dia; terem constituído a terceira recorrente (a sociedade por quotas “CC” em final de Dezembro de 2021, com o capital social de €50.000,00) e aberto a conta desta nº ... para gestão da tesouraria da mesma; tendo aquela primeira conta sido creditada com o valor de €4.199.965,00, em Janeiro de 2022, por transferência de uma sociedade sediada em Singapura e que é detida por outra sociedade em país independente, correspondente a offshore não cooperante, localizado no Mar das Caraíbas; 3 dias depois, terem sido transferidos desta conta para aquela conta da terceira recorrente €4.100.000,00 e nesta mesma data ter sido emitido um cheque bancário no valor de €3.650.000,00 para compra de um prédio para habitação na Quinta da Marinha; ultimamente tendo aquela primeira conta o saldo de €55.299,23, aquela segunda conta o saldo de 165.644.40 USD e aquela terceira conta o saldo de €123.044,55).
Pelo que, enquanto se mantiver esse carácter suspeito relativamente à proveniência dos fundos existentes nestas contas, permanece activa a necessidade de a presente investigação criminal continuar a suspender, temporariamente, as respectivas movimentações bancárias a débito naquelas contas bancárias.
Sob pena de poder haver comportamentos branqueadores desses montantes que – contrariamente ao argumento dos recorrentes – não seriam susceptíveis de ser impedidos e, muito menos, perseguidos com uma mera identificação dessas contas bancárias.
Pois, a mera identificação e até a mera sinalização dessas contas não surtiriam efeitos, podendo o agente fazer desaparecer os valores através de transferências internacionais facilmente exequíveis, dada fluxo rápido e intrincado deste tipo de criminalidade económico-financeira. Muitas vezes, envolvendo agentes experientes em actividades económico-financeiras internacionais e, também, contas bancárias offshore e/ou sociedades em paraísos fiscais.
Sendo que tal movimentação além fronteiras comprometeria, seriamente, os superiores interesses da investigação criminal que já chegaria tarde de mais.
E, assim, os comportamentos branqueadores de capitais (esses sim) teriam uma espécie de “carta branca” para, muito fácil e arbitrariamente, escaparem à Justiça e à repressão e/ou ao combate à criminalidade económico-financeira.
Sendo de salientar, também que – contrariamente ao argumento dos recorrentes – esta medida renovada tem cariz preventivo no combate ao crime de branqueamento de capitais e este (conforme ressalta da conjugação do art.º 1º, alíneas e) e m), do CPP com o art.º 368º-A do CP) é um crime complexo que, em regra, não se confina a um só acto ou operação.
E, pelos elementos constantes dos autos com as respectivas suspeitas, não se pode afirmar nem concluir que, aquando desta renovação da medida de suspensão, já estivesse mais do que consumado e/ou que não houvesse qualquer possibilidade de reiteração ou continuação.
Aliás, dada a sua complexidade, também a investigação relativamente a comportamentos branqueadores se afigura complexa, daí que o legislador tivesse previsto a renovabilidade da medida em apreço quando ainda permanecem as suspeitas e a necessidade de continuar a recolha de prova, findos os 3 meses iniciais.
Podendo haver uma ou várias renovações, desde que, sejam respeitadas as exigências previstas no art.º 49º, nº 2, da Lei = sejam indicados os elementos previstos na al. b) do nº 3 do art.º 48º da Lei e não seja excedido o prazo máximo de duração temporal do respectivo inquérito previsto no art.º 276º, nº 3, al. a), do CPP, tendo em conta a natureza do suspeito crime.
Não sendo necessária a constituição dos recorrente como arguidos, nem a audição prévia dos recorrentes, a propósito desta renovação da medida, pois (à luz deste já descrito regime especial) nem sequer é necessária tal constituição nem tal audição, aquando da decretação inicial da medida e nem aquando da sua confirmação judicial pela primeira vez.
Isto porque – contrariamente à maioria dos outros crimes, em que a investigação criminal se inicia com a notícia da prática do crime –, atentas a complexidade e a gravidade do crime de branqueamento de capitais com os inerentes desafios e obstáculos que se colocam à sua investigação criminal, esta Lei permite que a actividade de recolha de informações se inicie e desenvolva em momento anterior: Precisamente, visando a obtenção de informações pertinentes à própria aquisição dessa notícia, para a qual bastando (como já vimos) uma análise de risco de uma comunicação, nomeadamente bancária; (e), Simultaneamente, permitindo que se providencie pela obtenção de meios de prova que permitam reconstituir, cronologicamente, nesse processo, as actividades averiguadas.
Note-se que, neste tipo de criminalidade, as actividades averiguadas podem ser (nomeadamente): Os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de certos factos ilícitos típicos e/ou os bens obtidos através daqueles outros bens (nos termos conjugados dos nº 1 e nº 2 do art.º 368º- A do CP).
E podendo tais factos ilícitos:
consistir na prática de algum dos crimes previstos no nº 1 deste art.º 368º- A do CP (tais como, burla informática, tráfico de influência, fraude fiscal, tráfico de armas, associação criminosa): e/ou consistir na prática de actos de conversão, transferência, auxílio ou facilitação de alguma operação de conversão ou transferência de vantagens - bens nos termos sobreditos -, para si ou para terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita ou com o fim de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido (nos termos previstos pelo nº 3 do mesmo artigo); e/ou na prática de ocultação ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens – bens nos termos sobreditos – ou os direitos a ela relativos (nos termos previstos pelo nº 4 do mesmo artigo); e/ou, mesmo não sendo autor de qualquer um dos sobreditos factos ilícitos típicos de onde provenham, directa ou indirectamente, tais vantagens – bens nos termos sobreditos – as/os adquira, detenha ou utilize, com conhecimento dessa qualidade, no momento da respectiva aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização (nos termos previstos pelo nº 5 do mesmo artigo);
mesmo que, aquando dos factos aludidos nestes nºs 3, 4 e 5, seja ignorado o local da respectiva prática e/ou a identidade dos seus autores (nos termos pelo nº 6 do mesmo artigo).
No âmbito desta Lei e atenta as sobreditas gravidade e complexidade dos ilícitos que podem estar envolvidos, bem como a sofisticação dos seus “modi operandi”, o legislador (deliberadamente):
abdicou da constituição prévia como arguido das pessoas visadas pelo respectivo processo e pela suspensão temporária de operações financeiras; e, também,
abdicou de uma base factual indiciária no tocante à medida de suspensão e respectiva renovação, bastando as suspeitas materializadas nos sobreditos índices objectivos considerados, expressa e legalmente, como de risco de branqueamento.
Tal opção legislativa foi tomada, precisamente, por se considerar tal medida de suspensão temporária de operações financeiras, com ou sem renovação temporária, necessária pela sua natureza preventiva no/do combate ao branqueamento de capitais e aos crimes que o precedem.
E, conforme resulta da sua natureza e definição legais, tal medida tem sempre cariz temporário, assim como o seu prolongamento respectivo, e tem sempre um limite máximo de duração temporal.
Assim, o legislador encontrou um ponto de equilíbrio entre, por um lado, a restrição (suspensão) temporária do direito de movimentação a débito pelo respectivos titulares dessas contas bancárias privadas e, por outro lado, o superior valor (bem ou interesse geral de ordem pública) da administração da Justiça, na prevenção, combate e repressão da criminalidade económico-financeira e que, de outra forma, muito dificilmente seria alcançada ou que nem sequer seria alcançada.
Conforme tão sugestivamente refere o Acórdão do TRL de 7/5/2019 (processo nº 963/18.0TELSB-B.L1-5 disponível na dgsi.pt): « …Exigir a constituição como arguido e a indiciação neste tipo de instrumento de recolha de prova seria até inverter a lógica do mesmo (…) as restrições aos direitos do visado estão justificadas pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (…) O crime de branqueamento constitui criminalidade derivada, só há necessidade de “branquear” dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilícitas, estas podem não estar sob a alçada da nossa ordem jurídica, mas tendo os movimentos financeiros ocorrido em Portugal, não há dúvida sobre a justificação da intervenção do nosso direito penal, através da punição do branqueamento, pois com essa punição visa-se proteger a sociedade, o Estado e as suas instituições contra o uso das fortunas ilicitamente acumuladas, que podem corromper e contaminar as próprias estruturas do Estado e as actividades comerciais e financeiras legítimas».
Também o Tribunal Constitucional no seu Acórdão 387/19 de 26/6/2019 (acessível na dgsi.pt) fez questão em salientar: «…A Constituição não garante, pois, o direito à propriedade em termos absolutos, o que exige a compatibilização com outras exigências constitucionais (…) como o Tribunal Constitucional tem afirmado, a tutela constitucional do direito à propriedade não é incompatível com a compressão desse direito, «desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional» (Acórdão n.º 391/2002, 2.ª Secção, ponto 5).»
Voltando ao caso em apreço [considerando as já apontadas suspeitas da prática de crime de branqueamento de capitais e atenta a sua inerente complexidade e gravidade nos termos já explanados], a apreciada renovação [da medida de suspensão temporária de movimentação a débito de certas contas bancárias dos recorrentes] por mais três meses, além de necessária, apresenta-se como proporcional e adequada.
Pois, por um lado, permanece activa a respectiva necessidade preventiva daquele tipo de criminalidade e, por outro lado, a renovação da restrição ou prolongamento temporal e temporário da restrição por mais três meses a mesma, implica um compressão transitória nos direitos (privados) dos recorrentes que é considerada como inferior, relativamente aos valores que com ela se pretendem assegurar (realização da justiça em relação a criminalidade económico-financeira ou ao branqueamento de capitais).
Daí a prevalência deste regime legal especial sobre as normas gerais processuais penais e sem que a remissão do art.º 49º, nº7, da Lei (para a legislação do processo penal) prejudique a decidida renovação em apreço, pois tal remissão é meramente subsidiária e apenas no que não se encontre especificamente previsto nesse artigo.
Pelo que, este teor literal não suscita dúvidas e uma sua leitura contrária seria pôr em causa um meio de obtenção de prova que esta Lei pretendeu criar em relação a um concreto tipo de criminalidade.
Por último, não podemos deixar de salientar que, para além da medida em apreço (e muito embora não esteja em questão neste autos recursivos), esta Lei admite – contrariamente ao alegado pelos recorrentes – também o congelamento de fundos, nos termos previstos pelo art.º 49º, nº 6, da mesma e para a qual (aqui sim) já o legislador exige prova indiciária de que esses fundos sejam provenientes ou estejam relacionados com a prática de actividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e, cumulativamente, se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima.
Também nos resta salientar que, diferentemente da pretensão recursiva em apreço e enquanto tal medida de suspensão provisória vigorar, com ou sem mais renovações, as pessoas e entidades por ela abrangidas têm o direito (expressamente previsto no art.º 49º, nºs 4 e 5, da Lei) de suscitar, no respectivo inquérito criminal e a todo o tempo, a revisão ou alteração da medida e/ou o direito de solicitar autorização para realizarem uma operação pontual no âmbito da medida aplicada (nomeadamente, através de alegação e comprovação, por parte das mesmas, de novos factos respectivos que sejam susceptíveis de justificar tal pretensão).
Em jeito de conclusão final, e porque o despacho recorrido respeita os princípios legais e constitucionais, impõe-se afirmar a sua validade.
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes, da 9.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelos recorrentes e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (art.º 513º, nºs 1 e 3, do CPP).
Notifique.
(Texto elaborado pela relatora, revisto pelos adjuntos e com assinatura electrónica de todos )
Lisboa, 24 de novembro de 2022, Paula de Sousa Novais Penha Carlos da Cunha Coutinho Raquel Correia de Lima