I - Os fundamentos do «habeas corpus» são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão
II - A providência de habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida, não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis.
III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no artº. 222.º, n.º 2, do CPP.
IV - A medida de habeas corpus não se destina pois a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo.
V- A alegação de más condições prisionais, doença grave ou o não uso de meios de tratamento adequado deve ser efectuada na fase de execução da medida perante as entidades que a controlam e aplicam, podendo sempre ser solicitada a mudança de estabelecimento prisional, se com fundamentos atendíveis, perante o EP ou o próprio tribunal que decretou a medida, quiçá a sua alteração, mas nunca por nunca pode servir de fundamento para habeas corpus.
VI- O incumprimento de convenções ou acordos internacionais em matéria de condições prisionais é problema que se coloca apenas a jusante da medida de coação ou das penas aplicadas e deve ser aferido em sede de responsabilidade extracontratual do Estado Português e/ou pelas entidades que supervisionam os termos de execução das medidas de detenção/ aprisionamento, podendo o recluso reclamar junto do EP e ou da Direcção-Geral dos Serviços prisionais ( ou mesmo do TEP quando se trate de execução de penas) bem como da Provedoria de Justiça para que lhe sejam asseguradas as condições devidas mas não como requisito de admissibilidade (a montante) de aplicação da prisão preventiva.
Relator; Agostinho Torres
Tribunal Judicial da Comarca de Viseu Juízo Central Criminal ... - Juiz ...
Providência de Habeas Corpus
Requerente: arguido AA
Artº 222º nº2, alínea b) do CPP; condições de saúde e prisionais;
*
Acordam em audiência os juízes Conselheiros na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
I - A providência de Habeas corpus requerida.
1.1. No processo 155/20.8JELSB-M o arguido AA, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ... veio peticionar providência de habeas corpus em relação a si próprio aduzindo a seguinte fundamentação:
1-O arguido AA encontra-se detido à ordem do processo 155/20.8JLESB desde 22/02/2021.
2-A detenção do arguido foi efectuada fora de flagrante delito com a justificação de que o peticionante seria o mandante vulgo " patrão" de toda a operação
3-Acontece porém que não existiu flagrante delito e todas as circunstâncias descritas no auto e relatório da polícia judiciária são falsas conforme se pode aferir pelas contradições e adulterações nos autos de flagrante delito e relatório da polícia judiciária juntos aos autos (auto de flagrante delito e relatório bombeiros)
4-Efectivamente conforme a prova produzida em julgamento conjugada com os documentos juntos ao processo podemos retirar a seguinte conclusão: que não existiu
flagrante delito e que a acusação é nula.
5-Com a não inclusão em relatórios da polícia judiciária e nos autos de flagrante delito da intervenção dos Bombeiros Voluntários ..., a acrescer o facto de virarem o contentor, supostamente com produto estupefaciente, com recurso a meios externos e não inscrevendo ou declarando nada nos autos ou relatórios configura-se uma falsidade de documento que conduz á invalidade dos documentos juntos pela Polícia judiciária.
6- Ora os factos relatados no despacho de acusação não são verídicos mormente o arguido nunca praticou qualquer acto dos que vem sendo acusado e nenhuma prova se fez em audiência de julgamento
7-A Acusação deduzido nos presentes Autos é Nula, na medida em que contém a narração de atos que o arguido nunca praticou conforme se pode aferir pelas testemunhas de acusação e de defesa e dos documentos juntos.
8-Com efeito da narração fáctica da Acusação deduzida ou da Prova Indiciária existente nos Autos não se retira o mais leve sinal que o arguido tenha de alguma forma praticado quaisquer factos subsumíveis à previsão típica do Crime de Tráfico de Estupefacientes seja na modalidade simples seja na agravada.
9-Podemos sem dúvida afirmar que a prova indiciaria recolhida pelas autoridades policiais nomeadamente pelos elementos da polícia judiciária além de insuficiente foi deliberadamente alterada para incriminar o arguido no presente processo não apresentando de forma clara e transparente a realidade dos factos
10-Sendo que a totalidade dos factos que lhe são imputados são-no de forma manifestamente genérica e abstrata sendo que sabemos agora que existiram factos que não foram careados para o processo e outros que são falsos.
11- O aqui peticionante/ arguido nunca contactou ou teve qualquer ligação com cartºeis de droga, o peticionante não solicitou ou requereu qualquer alteração ao transporte do contentor ...81 ou sequer pressionou ninguem para a libertação do contentor , nunca alugou qualquer monta cargas, nunca arrendou pavilhões, com nenhum dos outros arguidos do processo, não foi encontrado na posse de qualquer produto estupefaciente, nem nas suas habitações foi encontrado qualquer produto dessa natureza.
12. O aqui peticionante desconhece até os dias de hoje as razoes efectivas da sua detenção e no decurso do julgamento nenhuma prova foi apresentada para fundamentar a acusação de que foi alvo.
13. O aqui peticionante vê-se confrontado com uma detenção há cerca de dois anos e meio e não se conformando vem requerer o presente habeas corpus.
14- A sua suposta intervenção relativamente ao contentor ...81 foi deliberadamente descrita de forma incriminadora e com base em falsos pressupostos senão vejamos:
- O peticionante nunca solicitou qualquer alteração de morada para descarregar o contentor até porque não tinha qualquer intervenção NÃO ERA O IMPORTADOR, O EXPORTADOR OU SEQUER TRANSITARIO
- O peticionante nunca efetuou qualquer pagamento de contentor
- O peticionante nunca contratou empresas de transporte de contentores
15-Um facto relevante é o de que não foi o peticionante que requereu a alteração do contrato, nem sequer existem provas que esta alteração foi solicitada por algum dos arguidos, até porque a alteração de um contrato de transporte tem de ser obrigatoriamente efetuada pelo importador da mercadoria neste caso a empresa da ...
16- O peticionante foi detido fora de flagrante delito, cerca de 6 horas após os demais arguidos na sua habitação em ... e considera a esta altura que se encontra ilegalmente preso uma vez que o facto que determinou a sua prisão - a apreensão de produto estupefaciente- baseou-se em factos alterados pela entidade policial com a intenção de incriminar o peticionante
17- Refere o artº 222.º do Código de Processo Penal, com a epígrafe Habeas corpus em virtude de prisão ilegal, que:
«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.».
18- Em sede de previsão constitucional, o acento tónico do habeas corpus é posto na ocorrência de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, na protecção do direito à liberdade, constituindo uma providência a decretar apenas nos casos de atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integrem as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais que desenvolvem o preceito constitucional.
19-Mas nesse caso é necessária a invocação do abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, do atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integre as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas na lei ordinária, para desencadear o exame da situação de detenção ou prisão em sede da providência de habeas corpus, invocação que obrigatoriamente aponte os factos em que se apoia, incluindo os referentes à componente subjectiva imputada à autoridade ou magistrado envolvido.
20-Sendo a detenção inicial nula, nula terá de ser considerada a subsequente prisão
II-
21-A acrescer à sua prisão ilegal o arguido ainda sofre no Estabelecimento Prisional, pois sofre de graves problemas de saúde, tais como: hipertensão arterial, psoríase cutânea, hiperplasia adenomatosa da próstata, esteatose hepática e diverticulose, gastrite e duodenite, tendo sofrido um enfarte, embora não recente, mas que determina vigilância constante além da idade de 71 anos.
22-Ora os artº.ºs 1.º, - 3, 5.º e 6.º -1 da Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho devem ser interpretados no sentido de que perante elementos objectivos, fiáveis, precisos e devidamente actualizados que confirmam a existência de deficiências sistémicas ou generalizadas que grassam no estabelecimento prisional e que a pessoa presa corre risco real de trato desumano ou degradante na fórmula do artº.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000/C 364/01) Portugal não a pode manter em cativeiro; na verdade,
23-Portugal foi condenado pelos Senhores Juízes de Estrasburgo no affaire PETRESCU– application n.º 23190 de 3-12-2019 pelas más condições prisionais, de conhecimento oficioso e publicado em http:gdde.ministeriopublico.pt/faq/acordaos-relativos-portugal
24-Nos processos contra PÃL ARANYOSI e ROBERT CALDADARU C-404/15 e C- 659/15 PPU o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que uma pessoa não pode ser entregue a outro Estado membro quando resulte risco real de trato desumano degradante (§ 88 e ss- Acórdão Torreggiani contra Itália, TEDH de 8-01-2013, § 65)
25- O peticionante vegeta numa cela sem ventilação com outro recluso, em espaço inferior a 3m2 de área útil, passa fome graças ao orçamento do Governo de Portugal de um euro e vinte e nove cêntimos (1,29 €) por dia por recluso para três refeições, não existe higiene, os banhos quando ocorrem é num balneário colectivo sem privacidade, são frequentes as agressões de um grupo de Guardas prisionais a reclusos , é manifesta a sobrelotação prisional, com reclusos amontoados nos corredores e celas; não existe acesso à internet para consultar os “sites” do Governo e dos Tribunais nem apoio psíquico; a cela minúscula é fria e húmida nos meses de inverno e sufocante no verão, esvoaçam pombos pela janela que, perante a ausência de máscaras, fazem proliferar doenças entre os reclusos; o risco de perder a vida é real;
26-A sobrelotação prisional qua tale a alimentação insuficiente e sem qualidade, o risco de vida e a idade do peticionante de 71 anos e constituem tratamento degradante – sob as luzes dos artº.s 3.º da CEDH e 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais que este Alto Tribunal deve apreciar e julgar face à Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e da COUR. (affaires PETRUSCU contra Portugal e MURSIC contra Croácia) e se sobrepõem aos artº.ºs 220. E 222 do CPP; pelo que:
DO DIREITO:
27--O direito fundamental à liberdade pessoal:
28-O direito à liberdade individual é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais sobre direitos fundamentais e na generalidade dos regimes constitucionais dos países civilizados.
29-A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artº III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.
30-Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.
31-No artigo XXIX (29º) admite-se que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.
32--O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.
33-Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.
34-A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais), no artº. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.
35-Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
36-O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artº 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artº 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artº 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artº 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artº 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. Reino Unido. Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.
37- E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artº 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artº 5.º, n.º 1, alínea a).
38-No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas
39--Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no artº. 6º, o direito à liberdade individual.
40-Não consagrando expressamente o habeas corpus, contudo, no artº. 47º reconhece o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.
41-Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus.
42-A Constituição da República, no artº 27º n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos.
43-A providência de habeas corpus: A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica, consagra no artº. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal.
44-A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal, contendo-se nos estritos parâmetros do artº. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição.
45-“Não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. Esta providência pressupõe uma prisão ilegal, decretada ou mantida abusivamente. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas”.
46-A prisão é ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido efetuada por forma irregular; ultrapassar a duração da medida de coação aplicada ou da pena concretamente fixada pelo tribunal; ocorra em locais ou estabelecimentos que não sejam os oficialmente destinados à sua execução; não respeite o regime jurídico da execução das medidas de coação ou as penas ou medidas de segurança privativas da Liberdade.
47-O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade individual, permitindo reagir, imediata e expeditamente, “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”.
48-“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.
49--Regime legal e procedimento:
Dando expressão legislativa ao texto constitucional , o artº. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Tem como denominador comum configurar situações extremas de detenção ou prisão determinadas com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.
50-A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”
51-Entende o aqui peticionante que não existem quaisquer indícios de crime praticados pelo arguido e que a privação da liberdade é inadmissível sendo como consequência ilegal.
52--Invoca, o peticionante uma prisão ilegal atual, atualidade reportada ao momento em
que é apreciado aquele pedido.
53- O habeas corpus tem, em sede de direito ordinário, como fundamentos, que se reconduzem todos à ilegalidade da prisão: a incompetência da entidade donde partºiu a prisão; a motivação imprópria; e o excesso de prazos, sendo ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja atual, atualidade reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido o que ocorre no caso em apreço.
54-Em sede de previsão constitucional, o acento tónico do habeas corpus é posto na ocorrência de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, na proteção do direito à liberdade, constituindo uma providência a decretar apenas nos casos de atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integrem as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais que desenvolvem o preceito constitucional.
55- Mas nesse caso é necessária a invocação do abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, do atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integre as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas na lei ordinária, para desencadear o exame da situação de detenção ou prisão em sede da providência de habeas corpus, invocação que obrigatoriamente aponte os factos em que se apoia, incluindo os referentes à componente subjetiva imputada à autoridade ou magistrado envolvido ocorrendo esta circunstancia no caso concreto pois o arguido foi detido pela polícia judiciária sem mandato de detenção e sem flagrante delito
56-Sendo a detenção inicial nula, ilegal terá de ser considerada a subsequente prisão.
57-A qualquer pessoa que se encontre ilegalmente presa, o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência do Habeas Corpus, (artº.º 222 n.º 2 alínea b) do CPP).
Requer-se, por isso:
a) - a concessão da referida providência do Habeas Corpus, com a declaração de ilegalidade da detenção e subsequente ilegalidade da prisão do peticionante (que se mantém actual) por ter sido motivada por facto pelo qual a Lei a não permite (artºº 222.º n.º2 alínea b) do CPP) e por ter sido efectuada com abuso de poder.
b) - a imediata restituição à liberdade do peticionante.
1.2- A Exº Sra Juíza do processo prestou a seguinte informação (aqui em síntese) ao abrigo do artºº 223º nº1 do CPP:
(…)Cumpre informar sobre as condições em que foi determinada e, posteriormente mantida, a prisão preventiva do arguido – artº. 223.º, n.º 1 do Código do Processo Penal.
▪ A investigação nos presentes autos teve início na sequência de informação polícial lavrada em 11/03/2020, e desenvolveu-se, desde então, com recurso a diversos meios de recolha de prova, entre os quais a recolha de imagem e som nos termos do artº. 6.º da Lei n.º 5/2002, intercepções telefónicas, vigilâncias políciais e inspecções judiciárias efectuadas com a colaboração dos elementos da Autoridade Tributária e Aduaneira;
▪ O ora arguido surgiu como suspeito nos autos, pelo menos em 28/09/2020, então ainda apenas identificado como “BB”, o que sustentou a autorização para realização de intercepções telefónicas ao contacto por ele utilizado – cfr fls. 145 a 149, 151, 152, 155 e v.º;
Desde então as movimentações deste arguido e as interacções deste com os demais arguidos nos autos, passaram a ser acompanhadas pelos inspectores da polícia judiciária a cargo de quem estava a investigação;
▪ Com base nos indícios que foram sendo recolhidos, a Polícia Judiciária optou por seguir o contentor ...81 proveniente da ..., desde o porto ... (onde chegou no dia 05/02/2021) até ao destino final, tendo desde logo sido solicitada autorização (que viria a ser concedida) para realização de buscas domiciliárias, entre outras, às moradas conhecidas do arguido AA – cfr. relatório de fls. 545 a 556;
▪ O seguimento do contentor culminou, em 22/02/2021, na chegada do contentor ao armazém situado no lote n.º ...5 da Zona Industrial ... onde ocorreu a abordagem da Polícia Judiciária a outros arguidos, que vieram a ser detidos pelas 14:30 horas, na sequência de busca efectuada no interior do armazém e ao contentor, em cujas longarinas foram encontradas dissimuladas 356 placas de cocaína, no total superior a 90 kg. – cfr. auto de diligência de fls. 718 a 720 e auto de busca e apreensão de fls. 724 a 726 e correspondente reportagem fotográfica a fls. 727 a 732;
▪ Na sequências das referidas diligências foi lavrado auto de detenção em flagrante delito – fls. 734 a 739 – dos arguidos CC, DD, EE, FF, GG e HH;
▪ Já arguido ora requerente, viria a ser constituído arguido no mesmo dia e, após cumprimento dos mandados de busca emitidos, detido fora de flagrante delito na execução de mandados emitidos por autoridade de polícia criminal – fls. 868 a 872 e 909 a 920;
▪ Os arguidos (GG, FF, CC, AA, HH, DD e EE) foram presentes a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, mediante requerimento do Ministério Público de fls. 962 a 983, em 24/02/2021, no qual apenas prestaram declarações quanto aos factos, os arguidos GG e FF;
▪ Na mesma data, e por despacho judicial proferido no âmbito da mesma diligência, foi aplicada a todos os arguidos a medida de coacção de prisão preventiva – fls. 1073 a 1298;
▪ Deste despacho interpuseram recurso vários arguidos, entre os quais o arguido AA, recurso que foi apreciado por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/08/2021, no qual foi negado provimento, mantendo-se o despacho proferido – fls. 225 a 237 do Apenso C;
▪ Os pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva foram reexaminados e aquela mantida por despachos de 21/05/2021 (este também objecto de recurso pelo ora requerente, ao qual foi negado provimento por Acórdão da Relação de Lisboa de 14/09/2021 – fls. 264 a 272 do Apenso D), 18/08/2021, 12/11/2021, 01/02/2022, 23/02/2022 (este na sequência da dedução da acusação), 11/05/2022 (este em sede de decisão instrutória), 20/06/2022 (aquando do recebimento da pronúncia) 19/09/2022, 12/12/2022, 10/03/2023 e 06/06/2023 (este último relativamente ao qual foram já apresentados requerimentos de interposição de recurso, um dos quais pelo arguido AA);
▪ Por despacho de 09/07/2021 (também confirmado em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa) foi declarada a excepcional complexidade do processo;
▪ O arguido mostra-se pronunciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artº.os 21.º, n.º 1, e 24 als. b), c), e f), do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-B anexa ao mesmo diploma, um crime de detenção de armas e munições proibidas, p. e p. pelo artº. 86.º, n.º 1, als a), c), d) e e) e n.º 2, por referência aos artº.os 2.º n.º 1 als. p) e q) e 3.º, todos da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro e um crime de branqueamento de capitais p. e p pelo artº. 368.º-A, n.os 1, 2, 3 e 6 do Código Penal.
É ao abrigo dos mencionados despachos judiciais que o arguido se encontra actualmente sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.
Elencadas que estão as condições em que se procedeu ao interrogatório e subsequente aplicação e manutenção da medida de coacção de prisão preventiva, importa ponderar a respectiva manutenção.
Entendo, desde logo que, devendo-se a privação de liberdade do arguido, no momento actual, a decisão judicial nesse sentido proferida em 24/02/2021 e sucessivamente renovada em sede de reexames dos pressupostos da prisão preventiva, não pode ter-se por ilegal a sua prisão, pois que assente em despachos judiciais, devidamente fundamentados (dois dos quais, aliás, já oportunamente impugnados, por via de recurso, pelo requerente).
Constituem fundamento do decretamento da providência de habeas corpus, nos termos do artº. 222.º, n.º 2 do Código de Processo Penal: 1) ter a prisão sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; 2) ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou 3) manter-se a prisão para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
O requerente não invoca, nem se verificam os 1.º e 3.º pressupostos.
E no tocante ao segundo, dir-se-á que no despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva ao arguido, foi considerado estar fortemente indiciada a prática por este de crimes que – tal como aqueles pelos quais veio a ser deduzida acusação e proferido despacho de pronúncia, admitem prisão preventiva, como decorre do disposto no artº. 202.º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal.
Tudo o mais invocado pela Defesa é, salvo melhor opinião, matéria que não cabe apreciar no âmbito da providência de habeas corpus.
Note-se que, como principal fundamento para o requerido, a Defesa vem invocar a falsidade do teor do auto de detenção (e tanto quanto se percebe, apenas daquele respeitante aos seus co-arguidos). E a conclusão quanto a essa alegada falsidade, retira-a da análise que faz daquilo que, em seu entender, resultou da prova produzida em audiência de julgamento.
Ora, como vem sendo entendido pela jurisprudência, “implicando o habeas corpus uma decisão verdadeiramente célere, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, estando a providência reservada aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/2007.
“Não se destina a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede apropriada. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artº. 222.º do CPP.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/11/2011 (ambos com sumários acessíveis em anotação ao artº. 222.º, em www.pgdlisboa.pt)
Cremos, por isso, que a matéria invocada deverá ser ponderada e decidida no âmbito da apreciação da prova, de forma crítica e conjugada com a recolhida nos autos, a efectuar na decisão final.
Note-se que o requerente não questiona (pelo menos nesta sede), o teor dos autos de apreensão (e, designadamente, que tivessem sido apreendidos mais de 90 kg de cocaína dissimulados nas longarinas de um contentor importado da ... e transportado para o armazém sito no lote ...5 da Zona Industrial ...). E também não coloca em crise os mandados que deram origem à própria detenção. O que o requerente alega é que a detenção dos co-arguidos não foi efectuada em flagrante delito, e que não existe prova bastante para sustentar a acusação contra si deduzida.
Matérias que não podem deixar de ser objecto de análise probatória, a que haverá de se proceder em sede decisória, ponderando os depoimentos produzidos em audiência, em conjugação com todos os demais elementos probatórios carreados para os autos desde o início da investigação (quase um ano antes da data da detenção).
Assim, por se entender que, por ora, não ressalta dos autos qualquer situação de flagrante, manifesta ou indiscutível ilegalidade da prisão preventiva a que o requerente se encontra sujeito – salvo melhor entendimento de V. Ex.as – não se encontram razões para determinar a libertação do arguido no âmbito desta providência.
(…)”
1.3 - Foi designada audiência de julgamento nos termos do artºº 223º, nº2 do CPP com a tramitação prevista no nº3 do artº supra, com produção de alegações finais do MPº e defensor(a) do arguido, tendo este mantido a sua posição e, aquele, defendido a improcedência da providência por falta de verificação do (único) fundamento invocado, cumprindo então deliberar e decidir.
II- O Direito
2.1- Vistos os autos, confirma-se a exactidão da narrativa processual constante da informação da Mmª Srª Juíza do processo e que já anteriormente se reproduziu.
2.2- Como tem sido sublinhado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus não se destina a apreciar erros, de facto ou de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (cfr., v.g, o acórdão de 04.01.2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt).
Tem sedimentado ainda a interpretação de que nela não se cuida da reanálise do caso trazido à sua apreciação, mas tão só se pretende almejar a constatação de uma ilegalidade patente, em forma de erro grosseiro ou de manifesto abuso de poder.
E, como se sublinha na anotação 4 ao artº 222.º, do CPP (em “Código de Processo Penal – Comentado”, Almedina, 2014, pág. 909), “o que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário”.
Podemos ainda afirmar ser consensual que, no âmbito da providência de habeas corpus não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça verificar a existência ou não de fortes indícios da prática dos factos imputados ao arguido (artº. 202.º do CPP) e dos requisitos gerais de aplicação da medida de coação (artº. 204.º), ou se foram corretamente ponderados os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (artº. 193.º).
O controlo efetuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, na providência de habeas corpus, tem como objeto a situação existente tal como promana da decisão que aplica a medida de coação, taxada de ilegal pelo requerente, não envolvendo a valoração dos elementos de prova com base nos quais a mesma foi proferida.
O STJ pode e deve verificar se a medida de coação de prisão preventiva foi aplicada por juiz competente, e foi-o no caso; se a aplicação ocorreu em relação a facto praticado pelo requerente que em abstrato admite essa medida ( de igual modo tal foi aferido e confirmado, até em recurso) e se foram respeitados os limites temporais da privação da liberdade fixados pela lei ou em decisão judicial (e que, in casu, não se discutem nem se verifica estarem ultrapassados sendo o processo, até, declarado já de especial complexidade)-artºº. 222.º/2, e 215º, nº3 com referência ao nº 1, alínea c) do CPP( vide entre outros, ac. STJ 5.9.2019 Carlos Almeida).
A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis.
Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no artº. 222.º, n.º 2, do CPP.
Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida. O habeas corpus não é pois, meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que terão de ser impugnadas através do meio próprio.(Ac. STJ de 16-03-2015)
Na verdade, a providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente, com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: as primeiras previstas nas quatro alíneas do n.º 1 do artº. 220.º do CPP e as segundas, nos casos extremos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do referido preceito. Ac. STJ de 13-02-2008 (idem Ac. STJ de 18-10-2007 )
O habeas corpus não conflitua com o direito ao recurso, pois que (…) visa, reagir, de modo imediato e urgente - com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual «grave, grosseiro e rapidamente verificável» integrando uma das hipóteses previstas no artº 222º nº 2, do Código de Processo Penal.- cfr AC. STJ de 12-12-2007
A medida de habeas corpus não se destina pois a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede apropriada. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artº. 222.º do CPP.
O artº. 222.º, n.º 2, do CPP, constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.( Ac. STJ de 9-11-2011 )
Os fundamentos de Habeas Corpus devem ser apenas os enunciados nos artºs 220 e 222º do CPP. Relativamente a outras vicissitudes terá de se utilizar formas de reacção distintas , destarte , de índole processual, como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso (…) é um instituto de natureza extraordinária (cfr Milheiro, Tiago Caiado in Comentário Judiciário do CPP, Tomo III, pagª 547, § 13 , 14 e 16.
Não obstante a sua inserção sistemática no CPP a providência de Habeas Corpus não é um verdadeiro modo de impugnação visto que o seu objecto se prende com a situação de objectiva ilegalidade e não com a decisão que lhe deu causa.- (cfr Ac STJ de 7.3.2019 (Júlio Pereira, procº 72/15.3GAAVZ-K.S1 5ª Sec; idem, Maia Costa, 2016, Habeas Corpus, passado, presente e futuro, Julgar, 29, pag 48).
A apreciação de habeas corpus pelo STJ coloca-se em patamar supra processual. A apreciação de indícios ou sua insuficiência para aplicar o manter medida de coação não lhe pode servir de fundamento (ibidem, Comentário citº, §26)- cfr Ac STJ 9.6.2020 (Helena Moniz) bem como assim será apurar se a prova foi ou não válida, se houve nulidades processuais ( do auto de interrogatório ou outras, erro de valoração de prova, etc (cfr Ac. STJ de 31.1.2018 (M. Matos), Ac STJ de 3.1.2018 (Raúl Borges)
Assim, enquanto ao tempo do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus era um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não houvesse qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao artº. 219.º do CPP, o instituto não deixou de ser um remédio, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (artºs. 219.º/2, 212.º, no respeitante a medidas de coação)- (citº do Ac STJ de 19.11.2020 ( A. Gama).
Além do mais, os fundamentos do «habeas corpus» são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão- (cfr Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196)
2.3- Neste sentido e, mutatis mutandis, quanto ao fundamento das más condições prisionais para convocação desta providência, vide o citado Ac STJ de 19.11.2020 :- “(…)os pressupostos do habeas corpus por detenção ilegal (artº. 220.º/1/a/b/c/d) são taxativos e as invocadas más condições de detenção não integram qualquer dos pressupostos legais.(…)”
A alegação de más condições prisionais, doença grave ou o não uso de meios de tratamento adequado deve ser efectuada na fase de execução da medida perante as entidades que a controlam e aplicam, podendo sempre ser solicitada a mudança de estabelecimento prisional, se com fundamentos atendíveis, perante o EP ou o próprio tribunal que decretou a medida, quiçá a sua alteração, mas nunca por nunca pode servir de fundamento para habeas corpus. A jurisprudência internacional citada pelo requerente é a eventualmente aplicável em caso de cooperação penal internacional ou quando estejam em causa pedidos de entrega a outros estados, o que não é o caso.
O incumprimento de convenções ou acordos internacionais em matéria de condições prisionais é problema que se coloca apenas a jusante da medida de coação ou das penas aplicadas e deve ser aferido em sede de responsabilidade extracontratual do Estado Português e/ou pelas entidades que supervisionam os termos de execução das medidas de detenção/ aprisionamento, podendo o recluso reclamar junto do EP e ou da Direcção-Geral dos Serviços prisionais ( ou mesmo do TEP quando se trate de execução de penas) bem como da Provedoria de Justiça para que lhe sejam asseguradas as condições devidas mas não como requisito de admissibilidade (a montante) de aplicação da prisão preventiva. (por todos, vide Comentário Judiciário do CPP citado, pags 330 e 331, anotação 11º ao artºº 202º do CPP)
Em conclusão, os argumentos do requerente da presente providência não se inscrevem no escopo da alínea b) do artºº 222º do CPP sendo certo que nenhum dos outros fundamentos ali elencados foi invocado ( e que, de todo o modo, também nunca estariam verificados)
III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 5ª Secção criminal deste STJ em julgar manifestamente improcedente o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente arguido AA.
Custas pelo peticionante/requerente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s, a que acresce o pagamento da soma de 6 UC´s, nos termos do artº. 223.º, n.º 6, do CPP.
Lisboa, 22 de Junho de 2023
[Texto Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artº. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos restantes Senhores Juízes Conselheiros infra indicados].
Os juízes Conselheiros
Agostinho Torres (relator)
Orlando Gonçalves (1º adjunto)
Leonor Furtado (2ª adjunta)
Helena Moniz (Presidente de Secção)