INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Sumário


I- Compete ao Juízo do trabalho apreciar e julgar uma ação declarativa de condenação intentada por uma companhia de seguros contra determinado empregador, na qual aquela pretende exercer o direito de regresso contra o mesmo, para reaver as quantias pagas ao sinistrado em consequência de acidente de trabalho (nos termos previstos no art.º 126º, nº 1, al. c) da Lei de Organização do Sistema Judiciário).
II- Por consequência, o Juízo local cível é materialmente incompetente para apreciar tal causa.

Texto Integral


I- RELATÓRIO: 

Da incompetência absoluta:

F... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., NIF ..., instaurou a presente ação declarativa com processo comum contra M..., LDA., NIF ..., tendo pedido que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 15.136,39€, acrescida de juros de mora vincendos após a citação, alegando em síntese que, em cumprimento das obrigações que assumiu no âmbito de um contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado com a ré, veio a proceder ao pagamento das despesas originadas pelo acidente de trabalho que vitimou um seu funcionário, verificado no dia 1/10/2019, acidente esse que alega ter-se ficado a dever à falta de cumprimento das regras sobre segurança no trabalho a que a ré estava adstrita, assistindo-lhe assim o direito de regresso sobre a ré, para desta reaver todos os montantes que despendeu na regularização do sinistro.

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Na contestação, a ré veio, ademais, acusar a incompetência absoluta deste tribunal, para o que aduziu que a competência para o conhecimento da causa está deferida à seção laboral do tribunal territorialmente competente, nos termos do art.º 126.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 62/2013, de 26/8, por estar em causa a apreciação de uma questão emergente de um acidente de trabalho.
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Em resposta, a autora propugnou pela competência dos tribunais cíveis para o conhecimento da causa, para o que alegou que a ação visa apurar a responsabilidade civil extracontratual da ré pela reparação do dano causado ao lesado, e a consequente sub-rogação da autora no direito creditício do lesado, não convocando a decisão da causa a aplicação de normas substantivas relativas a acidentes de trabalho e deveres laborais.
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Foi então proferido, no Despacho Saneador, a seguinte decisão (da qual se recorre):

“…Em suma, s.m.o, entendemos que, ao abrigo do disposto na al. c) do nº 1 do art.º 126º da LOSJ, o Juízo do Trabalho é o materialmente competente para o conhecimento do pedido formulado pela autora, não podendo, por isso, considerar-se residualmente atribuída aos Juízos Locais Cíveis a competência para o seu conhecimento. Termos em que, ao abrigo do disposto nos arts. 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, 577.º, al. a), 278.º, n.º 1, al. a), todos do CPC, julgo este tribunal materialmente incompetente para o conhecimento da presente ação e, em consequência, absolvo a ré da instância. Custas pela autora (cfr. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Fixo à ação o valor de 15.136,39€ (cfr. arts. 296.º, 297.º e 306.º, n.º 2, do CPC)”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a A. interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1. A Recorrente não se conforma com o facto de o Douto Tribunal a quo se ter declarado incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção.
2. A Recorrente visa realizar nesta acção o direito de regresso contra a Recorrida, na medida do que pagou em virtude do contrato de seguro celebrado com aquela, por o acidente de trabalho ter sido causado por omissão (por parte da Recorrida) das regras de segurança.
3. A questão a dilucidar consiste em saber se, face ao objecto da acção, a competência material é atribuída ao tribunal comum, ou se é atribuída ao tribunal do trabalho.
4. A aferição do pressuposto processual da competência em razão da matéria, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida, tal como se encontra configurada na petição inicial.
5. Os presentes autos consistem numa acção de regresso instaurada pela seguradora que pagou a indemnização e despesas ao lesado por acidente de trabalho, conforme fora definido em processo especial emergente de acidente de trabalho, no âmbito de um contrato de seguro que havia celebrado com a tomadora do seguro, entidade patronal daquele trabalhador.
6. Apesar de se apresentar dividida a jurisprudência dos tribunais superiores entre a atribuição da competência aos juízos cíveis e aos juízos do trabalho, entendemos, s.m.o. que o juízo cível é o competente para decidir a presente causa.
7. De facto, o direito de regresso é um direito novo que tem por base o próprio contrato de seguro e que surge na esfera patrimonial da seguradora com o pagamento da indemnização.
8. Como tal, a relação invocada na P.I., visando o exercício daquele direito, consubstancia uma relação jurídica autónoma e independente, embora conexa com a relação laboral.
9. Nela pretende discutir-se em via principal o contrato de seguro de acidente de trabalho celebrado entre as partes e a violação pela entidade patronal de normas imperativas de segurança no trabalho.
10. Nos presentes autos, não está em causa o acidente de trabalho, nem questão dele emergente, mas o exercício de um direito novo fundado num contrato de seguro e que surgiu na esfera patrimonial da Recorrente com o pagamento da indemnização ao sinistrado.
11. A relação material controvertida, tal como foi delineada pela ora Recorrente na petição inicial não configura uma relação de natureza infortunístico-laboral, afecta ao foro laboral, mas sim uma relação jurídico-material creditícia, atinente à responsabilidade civil extracontratual, afecta ao foro comum.
12. Devendo, por isso mesmo, ser o Juízo Local Cível ... competente para apreciar a acção.
13. Pelo que, deve a Douta Sentença ora recorrida ser revogada, julgando-se o Juízo Local Cível ... competente em razão da matéria…”
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A recorrida veio apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:  

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), a questão a decidir no presente recurso é apenas a de saber se o Juízo Local Cível ... é materialmente competente para conhecer da presente ação (ou se competente é o Juízo do Trabalho).
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III- FUNDAMENTAÇÃO:      

Os factos a considerar para a decisão da questão colocada são os constantes do relatório deste acórdão, assim como os da decisão recorrida, que não são postos em causa por nenhuma das partes.
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Da competência do Juízo Local Cível ... para conhecer da presente ação:

Veio a Cª de Seguros F..., S.A. demandar a ré nesta ação, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 15.136,39€, acrescida de juros de mora vincendos após a citação, a título de direito de regresso, em virtude de ter pago aquela quantia a um funcionário da ré, vítima de acidente de trabalho, por força de contrato de seguro de acidentes de trabalho com ela celebrado, acidente esse que foi, no entanto, causado por violação das regras de segurança no trabalho, da responsabilidade da ré.
O tribunal recorrido declarou-se absolutamente incompetente em razão da matéria, para conhecer da questão que lhe foi colocada nos autos pela Seguradora, pelo que, considerando tratar-se de uma exceção dilatória insuprível e de conhecimento oficioso, absolveu a R da instância, nos termos e ao abrigo do disposto nos artºs  96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, 577.º, al. a), e 278.º, n.º 1, al. a), todos do CPC.
É desta decisão que a A recorre, considerando ser competente para dirimir o conflito em causa nos autos, o Juízo Local Cível ..., onde a ação foi intentada.
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Mas não podemos concordar com a recorrente, adiantamos já.
Em jeito de introdução diremos que a Competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal (relacionado com a jurisdição atribuída a cada tribunal), cabendo desde logo às leis de Organização Judiciária do Estado definir a divisão jurisdicional do território, e estabelecer as regras da organização e da competência dos tribunais do país, em conformidade com os arts 209º e seguintes da Constituição da República Portuguesa, surgindo as leis processuais como complemento ou emanação da Lei da Organização do Sistema Judiciário (atual Lei nº 62/2013, de 26 de agosto – LOSJ).
Aliás, a emanação desse princípio encontrámo-lo no art.º 60º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que “a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código”, acrescentando o nº 2 do mesmo art.º que “na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais, segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária, e o território” (o mesmo prescrevendo o art.º 37º nº 1 da LOSJ).
Ora, nos termos do art.º 64º do CPC (em sintonia com o art.º 40º, nº 1, da LOSJ) “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” - o que se tem considerado ser uma competência residual -, sendo os tribunais judiciais de 1ª instância, em regra, os tribunais de comarca (art.º 79º da LOSJ), integrados por juízos de competência especializada, juízos de competência genérica, e juízos de proximidade.
No que aos Juízos Locais Cíveis respeita, trata-se de juízos de competência especializada (art.º 81º, nºs 1 e 3, al. b), da LOSJ), os quais (a par dos juízos locais criminais, e de competência genérica), nos termos definidos no nº1 do art.º 130º da LOSJ, possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, “quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”, possuindo ainda as competências especificamente definidas no nº2 do preceito legal citado.
No que aos Juízos do Trabalho respeita, trata-se também de Juízos de competência especializada (art.º 81º, nºs 1 e 3, al. h), da LOSJ), definindo-se no art.º 126º, nº 1, al. c), da LOSJ, que “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.
Ora, do confronto de ambos os precitos resulta, cremos que de forma clara, que em matéria cível, a competência dos Juízos Locais Cíveis é residual, relativamente aos Juízos do Trabalho, no sentido de que só devem ser apreciadas nos Juízos Locais Cíveis as matérias (cíveis) que não competirem aos Juízos de competência especializada, no caso, aos Juízos do Trabalho, pelo que a decisão da questão colocada nos autos há-de passar necessariamente pela análise das normas que definem a competência especializada dos Juízos do Trabalho, de modo a atribuir-lhes “a competência legal principal”, excluindo essa competência dos Juízos locais cíveis, onde essa “competência é apenas residual”.
Dito isto, entende a ré que é aplicável ao caso a norma do art.º 126.º, n.º 1, al. c), da LOSJ, acima citada, na medida em que compete aos Juízos do Trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho, sendo questões dessa natureza com as quais nos debatemos nesta ação.
E de facto, o tribunal recorrido aderiu a essa tese, na sequência da qual se declarou incompetente para conhecer da matéria que lhe foi apresentada pela A, com o fundamento de que a mesma revestia caráter especializado, da competência do respetivo Juízo do Trabalho.
Consta do despacho recorrido, concretamente, o seguinte (o qual reproduzimos em parte, dada a clareza e assertividade com que a matéria é nele exposta): “…é manifesto que a jurisprudência dos tribunais superiores se vem dividindo a respeito do assunto em apreciação, havendo quem entenda que compete aos juízos cíveis conhecer da ação proposta pela seguradora que, no exercício do direito de regresso contra a tomadora do seguro, pretende obter a sua condenação no reembolso das quantias pagas, em virtude de acidente de trabalho causado por violação das regras de segurança do trabalho (…) e aqueles que entendem que a ação destinada a conhecer do  “direito de regresso” invocado pela seguradora da entidade patronal do trabalhador sinistrado, alegando violação das normas sobre segurança no trabalho, absorve-se na apreciação das questões emergentes dos acidentes de trabalho, sendo, por isso, competência especializada dos juízos do Trabalho (…). Os seguidores da primeira corrente defendem que o direito de regresso invocado é um direito novo, que tem por base o próprio contrato de seguro e que surge na esfera patrimonial da seguradora com o pagamento da indemnização e, como tal, a relação invocada na petição inicial, visando o exercício daquele direito, consubstancia uma relação jurídica autónoma, embora conexa com a relação laboral, não havendo que apurar qualquer questão do direito do trabalho, mais concretamente emergente de acidente de trabalho. Já os seguidores da segunda corrente jurisprudencial defendem que embora o direito de regresso seja um direito nascido ex novo na titularidade daquele que, com o pagamento das indemnizações e despesas cobertas pela apólice do seguro celebrado, extinguiu a relação creditória-indemnizatória anterior e à custa de quem essa relação foi considerada extinta, a constituição desse direito está condicionado pela averiguação dos pressupostos de imputação e responsabilidade do acidente de trabalho, residindo o busílis da ação regressiva na averiguação da factualidade inerente ao acidente de trabalho e à sua relevância jurídica em termos de desconformidade com o quadro normativo-legal em sede de segurança laboral, do que decorre que o conhecimento da questão cível incidente sobre a restituição a título de regresso terá em consideração todo um contexto global fáctico jurídico de absorver na “competência exclusiva” dos Juízos do Trabalho para “a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho”.
Por nós, revemo-nos nos fundamentos desta segunda corrente jurisprudencial. De facto, como se refere no Ac. do STJ de 5/4/2022 (…), terá na presente ação de tomar-se em consideração todo um conjunto de factos e considerações do âmbito do direito laboral, com ênfase para a caracterização e a explicitação das causas do acidente de trabalho, para o que há que apurar se houve efetiva violação das regras de segurança, da culpa e do nexo de causalidade entre o acidente e a violação das ditas regras (cfr. Ac. da RC de 29/9/2016, disponível in www.dgsi.pt), tudo problemáticas atinentes ao direito laboral, que o legislador quis que fossem decididas pelos tribunais especializados na matéria, tanto assim que, no art.º 154.º do Código de Processo de Trabalho, previu que o processo destinado à efetivação de direitos conexos com acidente de trabalho sofrido por outrem, fosse processado por apenso ao processo resultante do acidente, acabando por expressamente consagrar que as decisões transitadas em julgado que tivessem por objeto a qualificação do sinistro como acidente de trabalho, ou a determinação da entidade responsável, teriam valor de caso julgado para estes processos. Como se diz no Ac. do STJ de 30/4/2019 (…) “Seria uma incongruência concluir-se que o Tribunal de Trabalho era o competente para se aferir da responsabilidade da entidade seguradora nesta sede, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho, e, já não o seria, para averiguar, afinal das contas, se teria ou não ocorrido uma efetiva responsabilidade funcional desta na ocorrência do sinistro, por forma a desonerar aquela das obrigações assumidas, porquanto o que está em causa, a jusante e a montante, é o acidente de trabalho e as circunstâncias em que o mesmo se verificou…”.
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Pouco mais teremos a acrescentar ao que consta da decisão recorrida, a não ser que a competência do tribunal se afere pelo pedido do autor, correlacionado, como é evidente, pela causa de pedir subjacente a esse pedido, como é defendido, cremos que forma pacífica, quer na doutrina, quer na jurisprudência, de que, para a determinação do tribunal competente em razão da matéria - assim como para a determinação da verificação dos demais pressupostos processuais -, deve atender-se ao pedido formulado, mas também à causa de pedir que lhe está subjacente, seja quanto aos seus elementos objetivos, seja quanto aos seus elementos subjetivos – os elementos identificadores da causa, tal como o A a configura: pedido e causa de pedir (Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, edição de 1993, reimpressão, págs. 90 e 91, e Acs. do STJ, de 18.3.2004, de 13.5.2004, de 10.4.2008, de 14.12.2017, de 10.4.2019, e de 30-04-2019, todos disponíveis em www.dgsi.pt., e Ac. RP, de 7.11.2000: CJ, Tomo V, pág. 184).
Ora, no caso dos autos a A invoca, como causa de pedir da ação, além do mais, um acidente que vitimou um trabalhador da ré, quando o mesmo prestava trabalho subordinado àquela, o que constitui um acidente de trabalho, na qualificação que lhe é dada pelo art.º 8º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro (a qual regulamenta o Regime Jurídico de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais), segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho, e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença, de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho, ou a morte”.
Mais alega a A que celebrou com a ré um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, abrangendo os seus trabalhadores, incluindo o trabalhador sinistrado, tendo sido no âmbito daquele contrato que efetuou o pagamento àquele, das prestações decorrentes do acidente do qual ele foi vítima, mas que, segundo a A, são apenas da responsabilidade da ré, enquanto entidade patronal, porquanto a mesma terá violado as regras de segurança e saúde no trabalho, o que lhe confere o direito a obter daquela, por via de regresso, a devolução das quantias pagas.
Em suma, e pegando nas palavras da recorrente, a mesma, enquanto seguradora do ramo de acidentes de trabalho, pretende fazer valer nesta ação o seu direito de regresso contra a sua segurada, por aquilo que pagou ao sinistrado, enquanto trabalhava por conta daquela, por o acidente de trabalho ter sido causado por omissão (por parte da recorrida) das regras de segurança no trabalho.
E de facto, nos termos do art.º 18.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 04.09 (LAT), “quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”, prevendo-se por sua vez no art.º 79.º, n.º 3 do mesmo diploma legal, que “verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso”.
Ora, é efetivamente no âmbito e ao abrigo das disposições legais transcritas que a seguradora vem demandar a ré, pedindo àquela, por via da ação de regresso, a devolução do que pagou ao sinistrado (indemnização e despesas), no âmbito de um contrato de seguro que havia celebrado com a tomadora do seguro, a entidade patronal daquele trabalhador.
E concordamos com a recorrente que o direito de regresso é um direito novo que tem por base o próprio contrato de seguro, e que (apenas) surge na esfera patrimonial da seguradora com o pagamento da indemnização.
Mas já não concordamos com ela quando afirma que a relação jurídica por si invocada na P.I., visando o exercício daquele direito, consubstancie uma relação jurídica autónoma, embora conexa com a relação laboral.
Acompanhamos nesta matéria o que foi decidido no Ac. STJ de 30-04-2019 (que consultamos em www.dgsi.pt), de que “…O exercício do direito de regresso por parte de uma seguradora (…) contra uma entidade patronal (…), por haver satisfeito uma indemnização a um trabalhador desta, vitima de um acidente de trabalho, no âmbito das obrigações existentes entre ambas em sede de contrato de seguro de acidentes de trabalho, na medida em que lhe imputa o incumprimento das normas de segurança no trabalho, com a violação de normas imperativas destinadas à proteção e segurança dos trabalhadores, não visa discutir uma situação autonomizada – o direito de crédito da Recorrida acionado em sede de regresso -, mas antes a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho…”
Efetivamente, para obter êxito na ação, a A vai ter de provar tudo quanto alegou, desde a verificação do próprio acidente, à validade e âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado, e, mais importante ainda, a conduta culposa da ré, quanto à alegada violação das regras de segurança no trabalho, facto essencial da causa de pedir (complexa) da ação. Não se pode de facto ignorar que a presente ação tem uma causa de pedir complexa, dela fazendo parte, além do mais, o acidente de trabalho ocorrido, o qual, face à alegação da A., vai ter de ser discutido no âmbito desta ação.
Ou seja, há várias questões a resolver nesta (nova) ação de regresso, que são verdadeiras “questões emergentes de acidentes de trabalho”, questões que se reportam (também) à própria ocorrência do acidente, e que demandam conhecimentos específicos dos tribunais do trabalho - como tribunais de competência especializada -, para apreciarem e dirimirem essas questões.
Aliás, sobre a questão da competência do tribunal de trabalho, é de referir o que escreveu Luís Azevedo Mendes (em “Apontamentos em torno do artigo 18.º da LAT de 2009: entre a clarificação e a inovação na efetividade da reparação dos acidentes de trabalho” in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ/ Coimbra Editora, n.ºs 88/89, p. 143) de que “…o art.º 18.º da LAT de 2009 ajuda o intérprete e aplicador  da lei a considerar que todos os casos de responsabilidade objectiva e subjectiva nela previstos são agora inequivocamente da competência material dos tribunais do trabalho, compreendendo os pedidos de reparação de danos e a apreciação das questões da responsabilidade individual ou solidária do empregador e das entidades dele representantes que tenham uma actuação na produção do acidente de trabalho…”.
Ora, como se disse, face ao alegado pela recorrente, sempre a mesma terá o ónus de provar a causa de pedir da ação: que ocorreu um acidente de trabalho, e que o mesmo foi causado por culpa da entidade patronal, a qual negligenciou as regras de segurança no trabalho, que lhe eram impostas enquanto entidade patronal do sinistrado.
É claro que não é relevante, neste momento, para efeitos de averiguação da competência material do tribunal, apurar se a ação vai ou não vai ter sucesso; se a A vai ou não lograr provar os factos alegados. Mais importante é o por ela afirmado, de que as prestações pagas ao sinistrado resultaram diretamente do acidente de trabalho do qual ele foi vítima, visando-se com a presente ação a condenação da Ré a repará-las, por via de regresso, decorrente do facto de ter sido ela a causadora do acidente.
Ora, é por demais evidente que as questões relacionadas com esta matéria são da competência especializada dos Juízos do Trabalho, nos termos previstos no citado art.º 126º, nº 1, al. c), da LOSJ, já que é àquele tribunal que competirá qualificar juridicamente os factos como integradores de um acidente de trabalho; averiguar a validade e âmbito de cobertura do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado; e da responsabilidade subjetiva do empregador quanto à falta de verificação das regras de segurança no trabalho. São, de facto, os Juízos do Trabalho, pela sua especialização, os que estão mais vocacionados (comparativamente com os Juízos Cíveis) para apreciar e decidir as questões elencadas, e mesmo outras que possam surgir, direta ou indiretamente relacionadas com o acidente de trabalho ocorrido.
Trata-se, sem dúvida, de questões emergentes de acidentes de trabalho, que o legislador quis prever na estatuição do art.º 126º, nº 1, al. c), da LOSJ.
Tem sido essa, de resto, a orientação seguida por boa parte da nossa jurisprudência  (como verificamos, entre outros, nos Acs. do STJ de 30/4/2019 e de 5/4/2022, e no Ac. RC de 22-06-2021, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Como se decidiu também no recentíssimo Ac. RL de 16-05-2023 (também disponível em www.dgsi.pt), “…o invocado direito de regresso só será de acolher se se verificar o seu fundamento substantivo que foi alegado pela seguradora autora (…) isto é, que o acidente ocorreu por não ter sido garantida a observância das regras de segurança no trabalho e, por isso, ter infringido culposamente o disposto no artigo 18º da Lei 98/2009 de 04 de Setembro. E essa alegada responsabilidade da ré e o consequente direito de regresso da seguradora autora, cuja previsão legal se encontra no art.º 79.º, n.º 3, com remissão para o art.º 18.º, ambos da LAT, não poderá deixar de ser considerada como uma questão emergente de acidente de trabalho, para os efeitos da al. c) do n.º 1 do art.º 126.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).
A questão nuclear a discutir nesta ação, e que integra a causa de pedir, será a de saber se o acidente ocorreu ou não devido à violação pela entidade empregadora do sinistrado, ré neste processo, das regras de segurança e saúde no trabalho, conforme se prevê no n.º 1 do art.º 18.º da LAT, e as consequências em termos de responsabilidade previstas no mesmo artigo e no n.º 3 do art.º 79.º, se se der como verificada essa violação. O direito que a seguradora se arroga, e que suporta o pedido de condenação deduzido contra a ré, depende da decisão a proferir quanto à imputação da responsabilidade pela ocorrência do acidente à empregadora aqui ré. E os créditos de que a seguradora quer ser ressarcida mais não são do que o reembolso de quantias que a mesma despendeu com a reparação do acidente e que têm todos origem em prestações reparatórias previstas na Lei de Acidentes de Trabalho. O que significa que quer a causa de pedir quer o pedido emergem de um acidente de trabalho.
O fundamento jurídico que subjaz ao direito de regresso que a seguradora autora pretende exercer radica na ocorrência de um acidente e na alegação de que o mesmo se ficou a dever à violação de normas de segurança pela entidade empregadora do sinistrado, sendo  esta a matéria sobre a qual incidirá a produção de prova e sobre a qual o tribunal se deverá pronunciar a  final. Ora, de acordo com as razões que presidem à afetação da atividade judiciária a tribunais com competência especializada, será, naturalmente, a justiça do trabalho aquela que estará vocacionada para apreciar a ação…”.
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Tudo visto, à luz do pedido e da causa de pedir da ação, tal como a A os configura, estamos perante uma situação fundamentadora da atribuição da competência material ao Juízo do Trabalho, ao abrigo da al. c) do nº 1 do art.º 126º da LOSJ, pelo que o Juízo Local Cível ..., onde a ação foi instaurada, não é o tribunal competente para conhecer da ação, como bem se decidiu, em nosso entender, no tribunal recorrido.
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IV – DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a Apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente (art.º 527º, nº 1, do CPC).
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Sumário do acórdão (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):

I- Compete ao Juízo do trabalho apreciar e julgar uma ação declarativa de condenação intentada por uma companhia de seguros contra determinado empregador, na qual aquela pretende exercer o direito de regresso contra o mesmo, para reaver as quantias pagas ao sinistrado em consequência de acidente de trabalho (nos termos previstos no art.º 126º, nº 1, al. c) da Lei de Organização do Sistema Judiciário).
II- Por consequência, o Juízo local cível é materialmente incompetente para apreciar tal causa.
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Guimarães, 22.6.2023