I - O bem jurídico tutelado pelo crime de ofensa à integridade física é a integridade física e psíquica.
II - O tipo objetivo do crime de ofensa à integridade física simples previsto no artigo 143º do Código Penal, consiste em causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem.
III - «Ofensa corporal é qualquer alteração desfavorável produzida no organismo de outrem, anatómica ou funcional, local ou generalizada, física ou psíquica, seja qual for o meio empregue para produzi-la».
IV - Certo setor da doutrina e jurisprudência, vem defendendo que, quando se tratem de ofensas insignificantes, deverão ser excluídas do tipo de crime do artigo 143º do Código Penal, por não terem dignidade para lesar o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço.
V - O preenchimento do tipo legal do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto no artigo 145º do Código Penal, no que ao presente caso importa, pressupõe a verificação de uma lesão da integridade física simples (artigo 143º do CP), sendo necessário, ainda, que a conduta do agente revele uma censurabilidade ou perversidade acrescida, a qual poderá decorrer das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, entre outras.
VI - À semelhança do que ocorre com o crime de homicídio, a qualificação do crime de ofensa à integridade física, tem lugar, em virtude do maior grau de culpa que se considera existir sempre que o resultado, no caso a ofensa, seja causado em circunstâncias reveladoras de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando, o n.º 2 do artigo 132º do CP, a título exemplificativo, algumas dessas circunstâncias, as quais não são de funcionamento automático. Tal significa que uma vez verificada qualquer dessas circunstâncias, não se pode, desde logo, concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
VII - Existe especial censurabilidade para efeitos do disposto no artigo 132º do Código Penal, suscetível de qualificar o crime de ofensa à integridade física, ex vi do estatuído no artigo 145º, n.º 2 do Código Penal, se as circunstâncias em que a ofensa foi causada forem de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. E existirá especial perversidade do agente, se a conduta empreendida revelar uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade.
VIII - Para que o tipo subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada se mostre preenchido é necessário que o resultado seja imputado ao agente a título de dolo, já que se exige um verdadeiro dolo de dano ou de resultado. Por outras palavras, o dolo tem de abranger não só o delito fundamental, como as consequências que o qualificam.
IX - O bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de poder previsto no artigo 382º do Código Penal, é a «a autoridade e credibilidade da administração do Estado, ao ser afetada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços.».
X - O preenchimento do tipo objetivo do crime de abuso de poder poderá ter lugar através do abuso de poderes ou da violação de deveres pelo funcionário, inerentes à sua função.
XI - A violação dos deveres funcionais traduz-se na ação ou na decisão do funcionário que fere os deveres a que está adstrito pelo exercício da sua função.
XII - O preenchimento do tipo subjetivo do crime de abuso de poder exige, para além do dolo genérico, um dolo específico, qual seja a intenção, por parte do agente, de obter para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa. Esse benefício ou prejuízo pode ser patrimonial ou não patrimonial.
XIII - O crime de abuso de poder consuma-se com a execução dos atos típicos, sendo irrelevante que o resultado pretendido - obtenção da vantagem para o agente ou para terceiro ou causação de prejuízo a outrem – se chegue a alcançar/concretizar: trata-se de um crime de mera atividade, e não de resultado.
XIV - O militar da GNR é considerado funcionário, para efeito da lei penal, designadamente, do crime de abuso de poder, previsto no artigo 382º do Código Penal.
XV - Cometem o crime de abuso de poder, p. e p. no artigo 382º do Código Penal e não o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, por referência à alínea m) do n.º 2 do artigo 132º, todos do Código Penal, os militares da GNR que, no interior do Posto Territorial onde prestavam funções, tendo disposto três cidadãos lado a lado, ordenaram-lhes que se agachassem e permanecessem em silêncio, tendo de seguida, um desses militares, utilizando uma régua de plástico, transparente, de pequenas dimensões (aparentando não ter mais de 20 cm de comprimento), desferido reguadas na palma das mãos dos mesmos cidadãos, ao mesmo tempo lhes foi ordenado que dissessem “thank you”, o que fizeram e tendo, ainda, sido ordenado, por aqueles militares, aos mesmos cidadãos que se colocassem na posição de “prancha”, tendo um dos militares desferido palmadas no corpo dos mesmos.
XVI - Conquanto para o preenchimento do tipo objetivo do crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º não se exija que da agressão resulte uma lesão física, nem sequer dor, torna-se necessário que seja produzida uma alteração desfavorável no corpo ou na saúde, física ou psíquica, em consequência da atuação/agressão.
XVII - Ora, no presente caso, em face da factualidade provada, com referência à situação enunciada em XV, não é possível considerar que essa alteração desfavorável tivesse ocorrido relativamente a qualquer dos ofendidos.
XVIII - O que emerge da matéria factual provada é que as condutas levadas a cabo, referidas em XV, ocorrem num quadro onde o propósito era de humilhação, achincalhamento e subjugação dos três cidadãos visados, colocando-os na posição de ter de obedecer a ordens ilegítimas e totalmente despropositadas que lhes foram dirigidas, por militares da GNR, nas instalações do respetivo Posto Territorial, rindo-se e divertindo-se com toda a situação e subjugação imposta aos ditos cidadãos, sujeitando-os a humilhação e vexação, o que só logrou concretizar pelo facto de estarem investidos do poder que a sua condição de militares da GNR lhes conferia.
XIX - Ao atuarem da forma descrita, os arguidos que o fizeram violaram os deveres legais e estatutários a que estavam vinculados, inerentes às suas funções de militares da GNR, designadamente, os deveres de proteção e respeito para com os cidadãos e de preservação da confiança da GNR, enquanto força de segurança e de autoridade.
XX - Com a sua descrita conduta referida em XV, os arguidos que a empreenderam, colocaram em crise a credibilidade da administração do Estado, no respeitante à atuação das forças de segurança, no caso, da Guarda Nacional Republicana.
XXI – Conquanto o crime de abuso de poder possa ser cometido por omissão, não se tratando de um crime de omissão puro, nem de um tipo de crime que compreenda um certo resultado, em termos de poder funcionar a cláusula de equiparação da omissão à ação, nos termos previstos no artigo 10º, n.º 1 do Código Penal, o militar da GNR que assistiu aos atos mencionados em XV e nada fez para os impedir, não pode ser considerado coautor do crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do CP praticado pelos coarguidos.
XXII - A aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função, prevista no artigo 66º, n,º 1 do Código Penal, exige dois pressupostos, sendo um formal, qual seja, a condenação do arguido em pena de prisão superior a 3 anos, e outro material, reportando às circunstâncias em que o facto/crime é praticado, referidas nas alíneas a), b) e c), do n.º 1, do artigo 66º do CP e cuja verificação tem de ser aferida , pelo tribunal, em cada caso, em face da factualidade que resultar provada.
XXIII - Constitui entendimento jurisprudencial consolidado que em caso de concurso de crimes é necessário que, pelo menos, um dos crimes tenha sido punido com pena de prisão superior a três anos.
XXIV - No caso dos autos, não sendo nenhuma das penas parcelares, englobadas no cúmulo jurídico, superior a três anos de prisão, não pode ser aplicada a enunciada pena acessória de proibição do exercício de função.
2.2. Para que possamos apreciar as questões suscitadas nos recursos, importa ter presente o teor do acórdão recorrido, nos segmentos que relevam para esse efeito e que se passam a transcrever:
«(...)
III- Os factos.
1- Resultaram provados os seguintes factos com interesse para a causa:
1.1 No dia ... de ... de 2018, cerca das ...h..., o arguido AA, sem estar escalado de serviço para aquela hora, estava no interior do Posto territorial da GNR em ....
1.2 Nesse local, este, acompanhado de terceiros não identificados, dirigiu-se a um cidadão de nacionalidade presumivelmente ..., cuja identidade não se logrou apurar e que ali se encontrava por causa desconhecida, não reportada em expediente de serviço, e obrigou-o a dizer correctamente em português “VV fode-me os cornos”.
1.3 Enquanto tal sucedia, AA dava gargalhadas, juntamente com os terceiros não identificados e o indivíduo permanecia em atitude submissa.
1.4 AA voltou a instar tal indivíduo a dizer “Mestre, és uma máquina” “desgraça” e “VV, eu quero ir para ...”, o que aquele, em atitude submissa, fez.
1.5 Enquanto isto sucedia, AA filmava, com o seu telemóvel, em sete vídeos, todos os actos a que sujeitava aquele indivíduo.
1.6 O arguido AA agiu com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugou, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentava – autoridade policial.
1.7 O arguido AA sabia que ao agir sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como o fez, na qualidade de funcionário, nas instalações do Posto da GNR ..., fê-lo em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhe confere, que devia respeitar e honrar.
1.8 Actuou o arguido AA em manifesto aproveitamento da situação precária, frágil e desprotegida do visado, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daquele em a tal se opor, o que sabia facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhe incumbiam na protecção e respeito pela população.
1.9 Actuou o arguido AA em evidente prejuízo do visado, subjugando-o às condutas que por caprichos torpes lhe impôs.
1.10 Ao actuar da forma como actuou, o arguido AA visou e conseguiu atingir a dignidade da vítima, causando-lhe a consequente humilhação, ciente que o mesmo tinha nacionalidade estrangeira e que estava numa situação fragilizada perante si, tornando-o um alvo fácil.
1.11 Agiu de forma livre e deliberada, consciente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
1.12 No dia ... de ... de 2018, no horário das ...h... às ...h..., estavam escalados de serviço no Posto da GNR ..., PP no atendimento e os arguidos MM e AA em patrulha.
1.13 Nesse dia, cerca das ...h..., os arguidos MM, conhecido por “VV”, AA e um terceiro militar cuja identidade não foi possível apurar, devidamente fardados e em comunhão de esforços e intentos, em local não identificado, por motivos não apurados e não reportados em expediente, algemaram, atrás das costas, indivíduo não identificado, mas de nacionalidade presumivelmente ....
1.14 Após, ambos os arguidos e aquele terceiro militar, em comunhão de esforços e intentos, sentaram tal indivíduo, algemado, a chorar e contra a sua vontade, no banco de trás do veículo de matrícula L-...., ..., propriedade do Estado Português e que se encontrava adstrito ao serviço de patrulha daquele Posto.
1.15 Enquanto isto, o individuo não identificado permanecia a chorar e repetia “português nô malo, nô português” ao que um dos militares presentes responde “tu és uma miséria”, tendo de imediato aquele indivíduo sido atingido por uma forte palmada na cabeça.
1.16 A vítima repetiu “português nô malo, nô português” ao que os militares lhe disseram “então põe-te no caralho daqui para fora moço!” e “mata-te caralho!” “cala-te caralho, são duas e meia da manhã!”.
1.17 A vítima insistiu em desespero “nô português, no inglês” ao que um dos militares lhe disse “be quiet!” e, acto contínuo, desferiu diversas palmadas na cabeça daquele, o qual começou a chorar e a gemer, dobrando-se sobre os seus joelhos, e para que este se calasse o militar que seguia imediatamente ao seu lado encostou e esfregou repetidamente uma espingarda shotgun ao rosto daquele, que permanecia dobrado sobre os seus joelhos, a chorar e aterrorizado.
1.18 A vítima foi mantida pelos arguidos dentro do carro por período não determinado, mas sempre contra a sua vontade.
1.19 A referida espingarda shotgun é propriedade do Estado e fica depositada no Posto para ser usada, se necessário e unicamente em serviço e, não obstante, foi usada naquela ocasião para o referido fim.
1.20 Nenhum dos militares presentes fez algo para impedir que fossem levadas a cabo tais condutas.
1.21 Os arguidos MM, AA e o terceiro militar presente agiram com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugaram, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentavam – autoridade policial – sem que qualquer deles tivesse tomado uma qualquer medida para terminar com tais condutas.
1.22 Os arguidos MM, AA e o terceiro militar presente sabiam que ao agirem sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como fizeram, quando se encontravam ao serviço do Estado, na qualidade de funcionários, fardados, faziam-no em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhes confere e que exerciam, que deviam respeitar e honrar.
1.23 Os arguidos MM, AA e o terceiro militar presente fizeram-no em manifesto aproveitamento da situação precária, frágil e desprotegida do visado, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daquele em se defender, o que sabiam facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhes incumbiam na proteção e respeito pela população.
1.24 Os arguidos MM, AA e o terceiro militar presente agiram em evidente prejuízo do visado, subjugando-o às condutas que por caprichos torpes lhe impuseram.
1.25 Os arguidos MM, AA e o terceiro militar presente ao actuarem da forma como actuaram, visaram e conseguiram, em conjugação de esforços e intentos, atingir o corpo e a dignidade da vítima, causando-lhe as consequentes dores, sofrimento e humilhação, cientes que o mesmo tinha nacionalidade estrangeira e que estava numa situação fragilizada perante si, tornando-o um alvo fácil.
1.26 Os arguidos AA, MM e o terceiro militar presente ao algemarem o indivíduo visado nas suas condutas, meterem-no dentro do carro da GNR, forçando-o a ali permanecer, contra a sua vontade e em terror e desespero, quer pelo facto de estar algemado, quer pelo facto de ter uma espingarda “shotgun” encostada ao rosto, quiseram unir a sua vontade e os seus esforços para privarem aquele da sua liberdade ambulatória, o que concretizaram.
1.27 Os arguidos MM, AA e o terceiro militar presente actuaram de forma livre e deliberada, conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
1.28 No dia .../.../2019, no horário das ...h... às ...h..., estavam escalados de serviço no Posto da GNR ..., os arguidos DD no atendimento, AA, JJ e SS em patrulha.
1.29 Em circunstâncias não concretamente apuradas encontravam-se no interior do Posto da GNR ... pelo menos três indivíduos cuja identidade não se conseguiu apurar, mas presumivelmente de nacionalidades ..., sem que tal tenha sido reportado em expediente de serviço.
1.30 No referido Posto estava, ainda, o arguido GG, com roupa civil.
1.31 No pátio/estacionamento interior, os arguidos DD, GG e AA, em comunhão de esforços e intentos, dispuseram os três indivíduos lado a lado e AA ordenou-lhes que se agachassem e que se remetessem ao silêncio.
1.32 De seguida, o arguido GG, empunhando uma régua, desferiu diversas reguadas nas mãos de cada um daqueles indivíduos e obrigou-os a repetirem “thank you”, o que aqueles fizeram.
1.33 Ordens e agressões que ambos os arguidos AA e GG dirigiram àqueles por várias vezes.
1.34 Enquanto tal decorria, o arguido DD disparou gás pimenta na direcção da nuca de um daqueles indivíduos.
1.35 Os arguidos GG e AA, ordenaram então aos três indivíduos que se colocassem na posição “prancha” e acto contínuo, o arguido GG desferiu várias palmadas no corpo daqueles.
1.36 Durante todos estes actos os arguidos riam-se e divertiam-se com a subjugação que impunham àqueles três indivíduos, sem qualquer justificação e sem que qualquer deles levasse a cabo qualquer acção para fazer cessar tais condutas.
1.37 O arguido JJ assistiu a tais actos e nada fez para os impedir.
1.38 Os arguidos DD, GG e AA agiram com satisfação e desprezo pelos indivíduos que subjugaram, obrigando-os a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentavam – autoridade policial – sem que qualquer deles tivesse tomado uma qualquer medida para terminar com tais condutas.
1.39 Os arguidos DD, GG e AA sabiam que ao agirem sobre os indivíduos vítimas das suas condutas, da forma como fizeram, quando se encontravam ao serviço do Estado, na qualidade de funcionários, fardados e/ou no interior do Posto da GNR ..., faziam-no em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhes confere e que exerciam, que deviam respeitar e honrar.
1.40 Os arguidos DD, GG e AA fizeram-no em manifesto aproveitamento da situação precária, frágil e desprotegida dos visados, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daqueles em se defenderem, o que sabiam facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhes incumbiam na proteção e respeito pela população.
1.41 Os arguidos DD, GG e AA agiram em evidente prejuízo dos visados, subjugando-os às condutas que por caprichos torpes lhes impuseram.
1.42 Os arguidos DD, GG e AA ao actuarem da forma como actuaram, visaram e conseguiram, em conjugação de esforços e intentos, atingir o corpo e a dignidade das vítimas, causando-lhe as consequentes dores, sofrimento e humilhação, cientes que os mesmos tinham nacionalidade estrangeira e que estavam numa situação fragilizada perante si, tornando-os um alvo fácil.
1.43 Os arguidos DD, GG e AA actuaram de forma livre e deliberada, conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
1.44 O arguido JJ sabia que por força do exercício das suas funções de militar da GNR estava obrigado a intervir por forma a não permitir ou fazer cessar a actuação daqueloutros.
1.45 O arguido JJ estava ciente que ao nada fazer contribuía para que os demais levassem a cabo as descritas condutas, atitude que tomou de forma livre, voluntária e consciente de que era proibida e punida por lei penal.
1.46 No dia ... de ... de 2019, no horário das ...h... às ...h..., estavam escalados de serviço no Posto da GNR ..., GG no atendimento, e os arguidos PP, AA e SS em patrulha.
1.47 Os arguidos PP, AA e SS deslocaram-se no veículo de matrícula L-...., ..., propriedade do Estado Português, e parquearam na rotunda da entrada de ..., na EN ...0, km ....
1.48 Previamente e cerca das ...H..., os referidos arguidos, em comunhão de esforços e intentos, colocaram gás pimenta no tubo de plástico de um aparelho de medição de taxa de alcoolemia e, após, mandaram parar um indivíduo não identificado, mas de nacionalidade presumivelmente ..., e um destes arguidos deu-lhe tal aparelho a usar, como se de uma fiscalização de álcool se tratasse.
1.49 Tal indivíduo colocou o tubo de plástico na boca e enquanto isso um dos arguidos dizia-lhe “filho de uma ganda puta” e “gás pimenta aí, oh animal, filho de uma ganda puta…. animal”.
1.50 Ao inspirar o gás pimenta que os arguidos haviam colocado no tubo de plástico daquele aparelho, o indivíduo visado sentiu-se mal, tendo ainda um destes arguidos, em resposta, dito àquele “seu burro do caralho!”
1.51 No decurso desta situação, o telefone da vítima tocou por duas vezes, tendo sido impedida de atender por ordem destes arguidos.
1.52 Os arguidos PP, AA e SS agiram com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugaram, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentavam – autoridade policial – não havendo um que tivesse tomado uma qualquer medida para terminar com tais condutas.
1.53 Os arguidos PP, AA e SS sabiam que ao agirem sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como fizeram, quando se encontravam ao serviço do Estado, na qualidade de funcionários, fardados, faziam-no em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhes confere e que exerciam, que deviam respeitar e honrar.
1.54 Os arguidos PP, AA e SS agiram em manifesto aproveitamento da situação precária, frágil e desprotegida do visado, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade deste em se defender, o que sabiam facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhes incumbiam na proteção e respeito pela população.
1.55 Os arguidos PP, AA e SS agiram em evidente prejuízo do visado, subjugando-o às condutas que por caprichos torpes lhe impuseram.
1.56 Os arguidos PP, AA e SS ao actuarem da forma como actuaram, visaram e conseguiram, em conjugação de esforços e intentos, atingir o corpo e a dignidade da vítima, causando-lhe as consequentes dores, sofrimento e humilhação, cientes que o mesmo tinha nacionalidade estrangeira e que estava numa situação fragilizada perante si, tornando-o um alvo fácil.
1.57 Os arguidos PP, AA e SS actuaram de forma livre e deliberada, conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Mais se provou
Quanto ao arguido AA
1.58 Por acórdão transitado em julgado no dia ... de ... de 2021, o arguido foi condenado na pena única de quatro anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática em ... de ... de 2018, de um crime de violação de domicílio por funcionário, dois crimes de sequestro e dois crimes de ofensa à integridade física qualificada – Proc. .../18;
1.59 AA reside na morada dos autos. Trata-se de moradia geminada, de tipologia ..., com satisfatórias condições de habitabilidade. Desde o final de 2021, passou a residir nesta morada a atual companheira do arguido, ZZ, também militar da G.N.R, com quem mantém relacionamento afetivo há cerca de dois anos. À data dos factos, AA exercia funções como militar da G.N.R., no Posto ..., tendo sido este o primeiro local onde exerceu funções, após o curso de 6 (seis) meses para militar da GNR e do estágio de 3 (três) meses, que realizou no posto da G.N.R .... Actualmente, e desde o final de 2020, o arguido está colocado na Unidade de Emergência Proteção e Socorro da G.N.R. de ..., adstrito ao Posto de Intervenção Proteção e Socorro de ..., actividade direccionada para o combate a incêndios florestais, desenvolvida num horário de seis dias de trabalho e três dias de folga, auferindo um salário que pode variar entre 1000€ e 1300€ mensais, (que inclui subsídio de alimentação e suplementos inerente à função). AA encontra-se actualmente ausente do serviço por baixa médica. O arguido encontra-se bem integrado e não há qualquer procedimento disciplinar ou comportamental a registar desde que iniciou funções. Nos últimos dois anos, o arguido tem vindo a conciliar a sua atividade profissional com os estudos Universitários que iniciou no ano letivo de 2020/2021, no ... (...) em ..., onde frequenta o curso de Direito, tendo completado recentemente o 2º ano dessa licenciatura. A sua companheira exerce atividade laboral como militar da G.N.R, no Posto ... auferindo um vencimento de cerca de 1000€ por mês. Em termos de despesas mensais, suporta o valor da renda com habitação (250€ por mês), além das despesas de água, eletricidade e gás, a que acresce a prestação automóvel, no valor de 214€ mensais além do valor de 200€ mensais (total de 10 prestações anuais) relativas às propinas e ainda as despesas de deslocação para o estabelecimento de ensino. Beneficia do apoio da progenitora. A sua convivência social à data dos factos, fazia-se sobretudo com colegas de trabalho. Esta situação alterou-se desde que foi indiciado como arguido no processo anterior (Proc..../18), privilegiando desde então o convívio com a actual companheira e com a família de origem, essencialmente com a mãe. AA viveu, desde sempre, em ..., localidade onde decorreu o seu processo de socialização, junto da progenitora e do padrasto na sequência da separação dos pais, quando este tinha 11 anos de idade. Descreve uma infância pautada por padrões normativos que lhe transmitiram o valor das regras sociais. Tem um irmão consanguíneo e mantém boa relação familiar com ambos os progenitores, bem como com a família alargada.
O arguido concluiu o 12º ano, no final da adolescência e frequentou o 1º ano da licenciatura em ..., cujos estudos abandonou para frequentar o Curso de Formação na Guarda Nacional Republicana, profissão que ambicionava exercer, aparentemente por influência de um tio. O momento do início da sua carreira profissional, coincidiu com a sua autonomização relativamente ao agregado de origem, passando a residir na morada atual, com a namorada que tinha à data. Nos tempos livres, AA costuma ter por hábito praticar desporto, desde canoagem, futebol e corrida/jogging. Na sequência de processo disciplinar interno (Ministério Administração Interna) por regência aos factos do Proc. .../18, o arguido foi igualmente afastado do exercício de funções determinado por 90 dias (punição que cumpriu entre ... de 2021 e ... de 2022). Durante esse período o arguido foi alvo de corte no vencimento, passando a receber 250€ mensais. Na sequência dos presentes autos, AA, foi também suspenso provisoriamente de funções (180 dias), entre ... e ... do corrente ano por decisão interna da G.N.R. Durante esse tempo, sofreu também corte no vencimento, auferindo nesse período, cerca de 800€ mensais.
Quanto ao arguido DD
1.60 Por acórdão transitado em julgado no dia ... de ... de 2021, o arguido foi condenado na pena única de três anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática em ... de ... de 2018, de dois crimes de sequestro e dois crimes de ofensa à integridade física qualificada – Proc. .../18;
1.61 À data dos factos, DD residia com a atual companheira, numa casa arrendada, (..., ...) de onde saíram porque adquiriram casa própria, com recurso a crédito bancário em ... – .... Contudo há cerca de meio ano, o arguido e a companheira venderam o referido imóvel e adquiriram outro, que se situa perto do anterior, mas que representa um encargo mensal menor. A actual morada corresponde a uma habitação de tipologia ... com garagem, da qual pagam cerca de 450€mensais, (prestação crédito e seguros). O arguido retomou funções no posto da G.N.R ... a .../.../2022, após suspensão de funções provisória (180 dias) por decisão interna da G.N.R, na sequência da acusação de que foi alvo nos presentes autos. Sendo que, desde Março último até ao momento, sofreu corte no vencimento, tendo auferido nos últimos meses cerca de 750€ mensais. Quando se encontra no exercício das suas funções aufere, habitualmente um salário de cerca de 950€ mensais. Nos últimos meses, esporadicamente o arguido realizou algumas atividades, de bricolage /construção civil, na sua habitação, para se manter ocupado. A sua companheira exerce actividade laboral num escritório da A... em ..., auferindo cerca de 800€ mensais. No último ano, AAA suspendeu a sua formação académica (...) para poder exercer actividade como explicadora, em part-time, de forma a fazer face às despesas que possuem e à perda de rendimento do arguido. À data dos factos agora em julgamento, DD exercia funções como militar da G.N.R., no Posto ..., desde 2017. Este foi inclusive o primeiro posto onde exerceu funções após o curso de 6 (seis) meses e do estágio de 3 (três) meses, que se seguiu, realizado em .... Após, pediu transferência para o posto da G.N.R ..., local onde foi colocado em ... de 2020, e onde actualmente exerce funções (patrulha). DD e a companheira, AAA, mantêm relacionamento afetivo desde ... de 2018. O casal mantém convivência próxima com a família de origem da companheira. DD é natural d..., onde cresceu junto dos progenitores e da sua única irmã, actualmente, com 26 anos de idade. O pai é ..., profissão que ainda hoje exerce. A mãe dedicou-se inicialmente à educação dos filhos e mais tarde começou a trabalhar como ..., profissão que actualmente não está a exercer por motivos de saúde. O desenvolvimento do arguido decorreu num seio familiar conservador e com padrões de educação rígidos. Teve uma infância pautada por padrões normativos, que lhe transmitiram o valor das regras sociais. O agregado é de origem modesta, mas com condição económica suficiente, embora com pouca proximidade afetiva com os progenitores. O arguido iniciou a escolaridade em idade própria, tendo concluído o 12º ano, com 18 anos de idade, registando um percurso escolar normativo e com aproveitamento satisfatório. Logo de seguida integrou o Exército Português, no Regimento ..., onde permaneceu durante cerca de 6 anos. Em 2016, com 24 anos de idade, deixou o seio familiar e a ... onde foi criado e veio viver para ..., onde iniciou o curso de Formação de Guarda. Na sequência do Processo .../18, o arguido DD foi afastado do exercício de funções, na sequência de processo disciplinar interno (Ministério Administração Interna), que determinou uma punição de 90 dias (que cumpriu entre ... de 2021 e ... de 2022). Durante esse período o arguido sofreu um corte significativo no vencimento auferindo apenas 250€ mensais. Desde que foi colocado no posto da GNR ..., não há registo de qualquer sanção disciplinar no âmbito das funções aí exercidas, e o arguido integrou-se na equipa e adaptou-se às tarefas que foram atribuídas.
Quanto ao arguido GG
1.62 Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
1.63 À data dos factos, GG, de 29 anos de idade, residia na Rua ..., ..., em .... Desde 2020 que integra o agregado da sua companheira, BBB, de 36 anos de idade, e da filha desta CCC de 12 anos de idade, na localidade de .... Ocupam um apartamento que foi adquirido por BBB, com recurso a crédito bancário pelo qual paga 300€ (trezentos euros) mensais, dispondo o mesmo de dois quartos e boas condições de habitabilidade e conforto. O imóvel fica localizado num bairro de moradias, em zona urbana sem prevalência de criminalidade. GG iniciou a relação com BBB há cerca de dois anos e meio, sendo o relacionamento sentido, por ambos, como gratificante. O arguido à altura dos alegados factos, exercia funções como militar da G.N.R., no Comando Distrital ..., destacamento de ..., Posto da GNR .... A seu pedido foi transferido para o Posto da G.N.R., do ..., onde exerce funções desde Setembro último, sendo que o seu vencimento ronda habitualmente os 1020€ (mil e vinte euros) mensais. Em consequência da instauração do presente processo judicial e no âmbito do inquérito interno da GNR que o precedeu, foi suspenso da actividade profissional durante 180 (cento e oitenta) dias, entre .../.../2021 e .../.../2022. A companheira exerce actividade laboral numa empresa de ... “B...”, como chefe de linha, na localidade de .../..., aufere um vencimento aproximado aos 1000€ (mil euros) mensais. GG é natural de ..., viveu e cresceu na localidade de ..., junto dos pais e um irmão quatro anos mais velho. A família detinha uma situação económica modesta, embora ambos os progenitores se encontrassem, laboralmente activos, na .... GG descreve uma infância e adolescência vivida num ambiente familiar harmonioso, tendo-lhe sido passados valores e normas sociais que sempre respeita, tendo o presente processo sido sentido por todos como penoso e humilhante, embora possa contar com o apoio dos mesmos. Iniciou a escolaridade em idade própria, tendo concluído o 12º ano com 19 anos de idade, registando uma retenção no 8º ano de escolaridade, por desinteresse pelas matérias leccionadas. Aos 16 anos de idade, ingressou no 10º ano num curso técnico profissional, /Apoio Psicossocial. Em simultâneo começou a trabalhar, em part-time, na cadeia de supermercados “C...” de .... Após conclusão da escolaridade passou a integrar, a tempo inteiro, aquela superfície comercial. Com 25 anos de idade, em 2018, deixou o seio familiar e foi viver para ... onde iniciou o curso de Formação de Guarda Nacional Republicana com a duração de 11 (onze) meses, onde se inclui 3 (três) meses de estágio, que se realizou em .... GG passou a exercer as suas funções como militar da G.N.R., no Comando Distrital ..., destacamento de ..., Posto da GNR ..., onde é referenciado pelos seus superiores hierárquicos como um indivíduo humilde, cordial e educado, que executa as suas actividades com empenho e responsabilidade. Esta situação processual tem sido vivida por si e pela família de origem com sofrimento, revolta e vergonha. Os seus tempos livres são dedicados ao desporto, sobretudo ao futebol, corrida e bicicleta na companhia de residentes da localidade onde vive.
Quanto ao arguido JJ
1.64 Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
1.65 À data dos factos, JJ era Guarda no Posto Territorial ..., cargo que ocupava há 24 dias, desde ... de ... de 2018, após um período de formação que decorreu de ... a ... de 2018 em ..., enquanto Guarda Provisório. Não apresentou dificuldades em atingir os objetivos do período formativo, facto para o qual contribuíram os sete anos de experiência adquirida no Exército Português, em que foi incorporado em .../.../2011, após a conclusão do 12º ano de escolaridade. O arguido passou à situação de Reserva de Disponibilidade em .../.../2018 e, no mês seguinte, a .../.../2018, ingressou na GNR como Guarda Provisório, força de segurança para a qual já tinha concorrido quando ainda estava incorporado no Exército Português. Auferia um ordenado base líquido no valor de 840.00€, com o qual fazia face ao pagamento de dois créditos pessoais, no valor de 194.00€ e ao pagamento de uma mensalidade relativa a um plano de poupança reforma no valor de 126.00€. Durante a semana permanecia no Quartel em ... e nos períodos de folga, integrava o agregado de origem, constituído pelos pais, trabalhadores ..., e o irmão em .... O agregado apresentava uma situação económica precária, pelo que o arguido comparticipava nas despesas familiares. Os seus períodos de folga eram e continuam a ser, também, passados na companhia da namorada, residente na .... O casal tem como projeto de vida fixar residência em .... Em .../.../2020 o arguido, num processo de colocação normal, passou a exerceu funções no posto da GNR .... Actualmente e desde .../.../2022, o arguido exerce funções no quartel da GNR ... - Comando da GNR de ... – exercício que retomou após um período de doença, ocorrido entre .../.../2021 e .../.../-2021, devido a uma ruptura de ligamento, seguido do cumprimento da suspensão preventiva de funções de 180 dias, que lhe foi aplicado a ... de ... de 2021, no decurso da instauração de processo disciplinar, na sequência dos factos subjacentes ao presente ao processo. Durante este período permaneceu em ..., integrado no agregado familiar de origem, situação que mantém, nas folgas e fins de semana, já que durante a semana permanece no Quartel .... No período supra referido continuou a beneficiar do seu salário no valor líquido de 840€, com o qual assumiu os seus encargos. Este tempo de inactividade reaproximou-o dos amigos e permitiu-lhe praticar ciclismo, como actividade de lazer. O seu salário aproxima-se actualmente dos 1000€ mensais líquidos, embora em alguns meses aufira um valor superior, avaliando a sua situação económica como suficiente para o suporte das despesas, continuando, conjuntamente com o irmão, a comparticipar nas despesas do agregado familiar de origem. No plano das características pessoais, o arguido é descrito como humilde, provido de sentido de responsabilidade e habitualmente respeitador e cordial nas suas interacções pessoais, apresentando, nos vários contextos sociais, uma imagem equilibrada e ajustada. No contexto laboral é descrito como um “bom militar”, um indivíduo “pacato, tranquilo”. Na sua folha de matrícula do Exército Português consta uma condecoração com a medalha de comportamento exemplar, dois louvores e duas referências elogiosas e menções honrosas. Possui apoio familiar estruturado por parte da família de origem e da namorada, que expressam preocupação face à situação jurídico-penal que enfrenta. Também o seu grupo de amigos, alguns de infância, durante o período da suspensão preventiva em que permaneceu em ..., mantiveram contacto regular com o arguido, por forma a ajudá-lo a ultrapassar impacto emocional gerado.
Quanto ao arguido MM
1.66 Por acórdão transitado em julgado no dia ... de ... de 2021, o arguido foi condenado na pena única de cinco anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática em ... de ... de 2018, de um crime de violação de domicílio por funcionário, dois crimes de sequestro, dois crimes de ofensa à integridade física qualificada e um crime de falsificação de documento – Proc. .../18;
1.67 O arguido concedeu uma entrevista televisiva à D..., a qual foi transmitida nos telejornais daquela estação do dia ... de ... de 2022, onde aponta supostos erros em relação aos factos que lhe são imputados e conclui que o desfecho dos presentes autos apenas pode ser a sua absolvição;
1.68 MM é o segundo elemento, mais novo 4 anos, de uma fratria de dois, oriundo de casal de média condição socioeconómica; o pai de 62 anos é empregado ..., durante 26 anos exerceu o cargo de presidente da Junta ... e a mãe de 63 anos .... O período de infância e adolescência foi passado junto dos progenitores e irmã, beneficiando de um ambiente estruturado, transmissor de valores socialmente aceites e emocionalmente gratificante. A nível escolar/formativo ingressou na escola em idade própria, sem registo de problemas no ensino primário. No ensino secundário regista 3 retenções por desinteresse e falta de empenho nas actividades lectivas, mas sem registo de problemas disciplinares. Com 20 anos, enquanto frequentava a disciplina de matemática a fim de concluir o ensino secundário (que acabou por não concluir) fez uma formação de nadador-salvador, atividade que exerceu durante 3 anos. Em 2012 e em 2014, por opção, concorreu ao corpo da GNR, tendo ficado apto em todas as provas, mas não foi colocado por falta de vagas. Como forma de subsistir passou a exercer a actividade de recepcionista num hotel em ... e em 2015, no âmbito de um novo concurso, foi admitido no curso de formação da Guarda. Nesse mesmo ano frequentou o curso teórico em ... e o estágio foi realizado em .... Em ... de 2017 foi colocado em ..., posto onde permaneceu 2 anos. Em ... de 2018 foi admitido no posto da .... A nível afectivo mantém uma relação desde 2018 com a companheira, também GNR, tendo iniciado vivência em comum em ..., onde ambos exerciam actividade profissional, e mais tarde na .... Em ... de 2020 MM alterou de residência para casa dos pais, por ter sido colocado no posto da GNR ..., em Novembro desse ano a companheira foi colocada no posto da GNR ..., tendo o casal passado a viver de novo em regime de comunhão de bens em ..., situação que se mantém, tendo sido pais em ... de 2021. O arguido foi suspenso de funções de forma preventiva entre ... de 2019 e ... de 2021, tendo-se apresentado em funções no dia ... no posto da GNR ..., onde permanece. Durante os 20 meses de suspensão manteve o vencimento referente ao ordenado base no valor de 789 euros, acrescido do suplemento por serviço nas forças de segurança. Entre ... de 2021 e ... de 2022 esteve a cumprir 210 dias de suspensão no âmbito do processo interno instaurado na sequência do processo nº .../18, auferia um terço do ordenado (280 euros/mensais). A companheira desde o términus da licença de maternidade que é GNR em ... afecta ao programa escola segura, actualmente recebe 730 euros, pelo facto, de estar a repor um montante de 240 euros à GNR relativo à baixa de maternidade. Como despesas apresenta a renda da habitação no valor de 300 euros mês, um crédito pessoal de 58 euros, a mensalidade do infantário no valor de 100 euros, acrescido das despesas /consumos domésticos. A companheira tem um empréstimo mensal de 160 euros; a situação económica do agregado é descrita, actualmente, como frágil, mas capaz de colmatar as despesas. O arguido foi acompanhado em consultas de psicologia através da entidade patronal até ... de 2020, em 2022 foi a nova consulta por se sentir emocionalmente instável e frágil. A relação conjugal é tida como muito gratificante e de interajuda. A instauração do presente processo foi uma surpresa e um choque para esta, tendo tido necessidade de recorrer a ajuda psiquiátrica, intervenção da qual já teve alta médica, e ao nível da psicologia, acompanhamento que mantém dentro da estrutura militar. Os pais residem próximo do arguido, mostram-se apoiantes e totalmente disponíveis para o apoiar em tudo o que for necessário, assim como companheira.
Quanto ao arguido PP
1.69 Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
1.70 À data dos factos, PP, de 32 anos de idade, residia na localidade da ... - ..., com a mulher, DDD, de 31 anos de idade, uma enteada, EEE, de 9 anos de idade, fruto dum relacionamento anterior do seu cônjuge, e FFF, de 4 anos de idade, filha do casal. O casal contraiu matrimónio em ... do ano de 2019, relacionamento sentido por ambos, como gratificante. Em 2020, o agregado mudou a sua residência para a morada que consta dos autos, por adquirir um apartamento de tipologia ... com recurso a empréstimo bancário do qual despende mensalmente a quantia de 350€ (trezentos cinquentas euros). O imóvel dispõe de condições de habitabilidade e situa-se na localidade de ..., em zona urbana sem prevalência de criminalidade. O arguido exerce funções como militar da G.N.R., presentemente integrado no Comando Distrital ..., destacamento de ..., posto da GNR .... Esteve suspenso provisoriamente da atividade profissional entre ... de 2021 e ... de 2022, em consequência de decisão interna da G.N.R, na sequência da acusação de que foi alvo no presente processo judicial; o seu vencimento actual ronda os 1100€ (mil e cem euros) mensais. O cônjuge exerce actividade profissional como ... no E..., em ..., e aufere o ordenado mínimo. PP é natural de ..., pertence a uma fratria de dois elementos. O seu processo de crescimento decorreu em contexto familiar não isento de conflitos, havendo referência a discussões constantes protagonizadas pelos progenitores, por existência de uma relação extraconjugal do progenitor da qual existe um filho. A família detinha uma situação económica modesta, mas estável, com ambos os elementos do casal laboralmente activos, o pai exercia a profissão de ... e a mãe na área da prestação de serviços de .... PP contava 22 anos quando os progenitores de separaram, em razão dos conflitos existentes, tendo nesta altura o progenitor assumido o agregado do relacionamento extraconjugal. PP iniciou a escolaridade em idade própria, com algumas reprovações, no 8º, 9º e 10º ano de escolaridade, preferindo dedicar-se a outras tarefas que não as lectivas, nomeadamente jogos de futebol com os amigos. Frequentou o curso de Formação Profissional em ..., tendo concluído o mesmo na área do ..., no qual viria a obter equivalência ao 12º ano de escolaridade em 2011. Ingressou no mercado de trabalho, aos 21/22 anos de idade, colaborando com o progenitor na actividade que este desenvolvia. Por influência do irmão mais velho, militar da GNR, com o qual mantém uma relação de proximidade, ingressou em 2015 no curso de Formação de Guardas no centro de formação de ..., com a duração de 11 (onze) meses, incluído o estágio de 3 (três) meses que realizou no posto da GNR .... Após o estágio, PP passou a exercer as suas funções no Comando Distrital ..., destacamento de ..., posto da GNR .... Em 2017, foi inserido no Posto ..., onde permaneceu até 2020, altura em que foi transferido, a seu pedido, para o Comando Distrital ..., destacamento de ..., posto da GNR ..., onde se mantém até ao presente. Ocupa os seus tempos livres a executar alguns trabalhos na área da electricidade, para aumentar o orçamento familiar.
Quanto ao arguido SS
1.71 Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
1.72 O arguido integra o agregado familiar de origem, composto pelo pai, trabalhador ..., e pela mãe, ..., existindo entreajuda entre os diferentes elementos. À data dos factos, por se encontrar profissionalmente afecto a um Posto Territorial distante geograficamente, integrava o agregado de origem apenas nos períodos de descanso. Estudou até ao 12º ano, tendo ingressado na GNR há cerca de quatro anos, como guarda de infantaria, organismo ao qual possui vínculo laboral em regime de efetividade, afeto ao Comando Territorial .... Decorrente do presente processo judicial SS foi suspenso de funções, desde o mês de Janeiro do corrente ano, por decisão hierárquica. Perante o sucedido, apresenta desmotivação/frustração pessoal. Aufere 850 Euros líquidos mensais, sendo que o agregado aufere 705 Euros líquidos mensais, com despesas que ascendem a 1085Euros mensais, beneficiando o arguido de apoio dos pais face ao corte salarial de que foi alvo na sequência de tal suspensão de funções. À data dos factos possuía como rendimento líquido mensal o montante de 1000 EUR, situação que lhe permitia fazer face à sua sustentabilidade quotidiana e auxiliar o agregado de origem, de forma mais significativa e equilibrada. No presente, o arguido ocupa o seu quotidiano prestando auxílio aos seus progenitores na residência, bem como também através do convívio regular com a namorada, elemento com quem possui um relacionamento afetivo há cerca de três anos. Frequenta também, com alguns pares, um ginásio da área de residência ocupação que contribui, também, para que possua algumas rotinas diárias, tendo em conta a sua atual condição de inactividade.
2 - Com relevância para a causa não se provou que:
Factos comuns a todas as situações:
- Os indivíduos visados na actuação dos arguidos estavam ilegais em território nacional, o que era do seu conhecimento, e isso facilitou a execução e consumação das suas condutas.
- Os arguidos agiram em manifesto ódio pelos visados nos seus actos, ódio esse claramente dirigido às nacionalidades que tinham e apenas por tal facto.
Relativamente à situação do dia ... de ... de 2018:
- O arguido AA estava devidamente fardado.
Relativamente à situação do dia ... de ... de 2018:
- O arguido MM ocupou o lugar do condutor e o arguido AA sentou-se imediatamente ao lado do indivíduo que transportavam, mas apenas o que resultou provado;
- Foi o arguido AA que desferiu as palmadas na cabeça do indivíduo e era este arguido que empunhava a “shotgun”, mas apenas o que resultou provado.
- Cada um dos arguidos AA e MM proferiu as palavras e expressões que lhes eram imputadas, mas apenas o que resultou provado.
Relativamente à situação do dia ... de ... de 2019:
- Foram os arguidos AA e JJ que conduziram os três indivíduos para o interior do Posto da GNR ..., mas apenas o que resultou provado;
- O arguido DD deu ordem aos três indivíduos para se colocarem em posição de “prancha”;
- Os arguidos AA e DD desferiram pancadas no corpo dos três indivíduos;
- O arguido JJ participou de forma diferente da que resultou provada.
Relativamente à situação do dia ... de ... de 2019:
- Foi o arguido SS que deu o aparelho a usar ao indivíduo ali mencionado, mas apenas o que resultou provado;
- Após inspirar o gás pimenta, o indivíduo pediu socorro, o qual lhe foi negado pelos arguidos;
- A vítima tentou pedir socorro usando o seu telemóvel, o que lhe foi impedido pelos arguidos, mas apenas o que resultou provado;
- Foi o arguido AA que proferiu as expressões “filho de uma ganda puta” e “gás pimenta aí, oh animal, filho de uma ganda puta…. animal”, mas apenas o que resultou provado;
- Foi o arguido PP que proferiu a expressão “seu burro do caralho!”, mas apenas o que resultou provado.
3 – Motivação da Decisão de Facto:
Saliente-se, em primeiro lugar, que toda a prova produzida na audiência de julgamento se encontra gravada. Essa gravação, permitindo a ulterior reprodução de toda a referida prova e, assim, um rigoroso controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, legitima uma mais sucinta fundamentação desta convicção e que nos concentremos nos aspectos mais importantes em matéria de prova, tornando desnecessário tudo o que vá além disso.
Como atrás se disse, os arguidos limitaram-se a oferecer o merecimento dos autos. Por outro lado, no decurso da audiência de julgamento nenhuma questão foi colocada por qualquer das defesas relativamente à prova documental/pericial adquirida na fase de inquérito. Surpreendentemente, veio a defesa do arguido AA desenvolver em sede de alegações finais uma intrincada teoria de árvore de frutos envenenados, tendo como pressuposto a prova supostamente nula (mas que o tribunal validou por acórdão transitado em julgado) adquirida no .../18, através da qual se chegou à apreensão do telemóvel deste arguido, e de onde foram extraídas as imagens que deram azo aos presentes autos, meio de prova esse que, assim, estaria envenenado.
A defesa do arguido AA faz letra morta dos efeitos do trânsito em julgado da decisão condenatória proferida no .../18. Porventura devido ao facto deste processo estar a ser julgado no mesmo tribunal e pelo mesmo colectivo de juízes, olvida que o único elo entre os dois processos é o facto deste ter nascido de uma certidão (fls. 01 e sgs.) daquele e que toda a prova posteriormente adquirida, nomeadamente a apreensão do telemóvel daquele arguido e pesquisa de ficheiros (fls. 132 e 137/138), exame de extracção de ficheiros e respectiva apreensão e validação (fls. 693 e sgs. e 711), e demais prova documental/pericial, teve apenas por base essa certidão e não quaisquer outros meios de prova cuja validade vem pôr em causa, que simplesmente não integram os presentes autos, e sobre os quais não se pode pronunciar este tribunal.
Pelo que, inexiste qualquer vício.
Veio também em sede alegações suscitar dúvidas, reservas, sobre o teor do relatório pericial de extracção dos vídeos do telemóvel (fls. 693 e sgs.), sem nunca ter suscitado, nos momentos próprios para o efeito, qualquer esclarecimento.
O tribunal, como é óbvio, não partilha de tais dúvidas, caso contrário teria oficiosamente diligenciado pelo seu esclarecimento. Fácil é de ver que as informações data/hora constantes na informação dos ficheiros extraídos são metadados gerados automaticamente pelo sistema do telemóvel apreendido ao arguido. Por outro lado, esses ficheiros foram localizados na pasta do sistema que está predefinida para a câmara do aparelho, e não em qualquer pasta de ficheiros transferidos/recebidos/partilhados, etc.
Nos casos em que aqueles mesmos vídeos foram manipulados/utilizados para qualquer finalidade, designadamente partilha na aplicação WhatsApp, o próprio relatório se encarrega de o esclarecer na coluna “Caminho”, em que a pasta de extracção deixa de ser a que está associada à câmara do telemóvel, e passa a ser outra consoante a utilização que foi dada ao ficheiro (“Vídeo Editor” fls. 697, 698, 700; “WhatsApp Vídeo/Sent” fls. 702).
Ou seja, não tem o tribunal quaisquer dúvidas de que aqueles vídeos, entenda-se, os que foram extraídos da pasta associada à câmara do aparelho, foram realizados pelo telemóvel do arguido AA nos dias e horas em causa.
E se dúvidas houvessem, o próprio teor do vídeo que respeita ao cidadão transportado na carrinha da GNR é esclarecedor quando, a dada altura, um dos militares diz “cala-te caralho, são duas e meia da manhã!”. Ora, conforme resulta do relatório pericial, tal vídeo foi realizado no dia .../.../2018, às ...:... (fls. 703).
Pelo que, também aqui não assiste qualquer razão à defesa do arguido AA, mantendo toda a validade e efeitos o teor do relatório pericial de fls. 693 e sgs.
Avançando,
Apenas os arguidos DD e GG prestaram declarações. Em suma, e sem prejuízo de mais à frente as analisarmos com maior detalhe, procuraram desvalorizar a gravidade da situação em que ambos intervieram, o que classificaram de brincadeira parva, sem maldade.
Foram convocados para a audiência de julgamento os dois peritos que subscreveram o relatório de comparação facial de fls. 177 e sgs., nada tendo acrescentado em relação ao teor do mesmo.
Foram ouvidas as seguintes testemunhas:
- WW, à data comandante do Posto ..., que privava diariamente com os arguidos, começou o seu depoimento com uma tentativa vã de se livrar do embaraço/pressão/incómodo que lhe causou o facto de ter de se pronunciar sobre a actuação dos seus subordinados. Uma vez chamado à razão, nomeadamente face à possibilidade de ter de enfrentar um processo crime por falsidade de depoimento, a testemunha passou a apresentar uma postura colaborante mas, de cada vez que era pressionado, principalmente pela defesa dos arguidos, de novo procurava o caminho mais fácil, não se querendo comprometer. Tal implicou que sempre que isso aconteceu o tribunal tivesse de o chamar à razão, pelo que, quando depôs de forma serena, focada, espontânea e objectiva, as suas declarações mereceram inteira credibilidade. –
GGG, militar da GNR, que também privou de perto com os arguidos, ao contrário da testemunha anterior nem o requerimento do MP para extracção de certidão para efeitos de procedimento criminal pelo crime de falsas declarações o demoveu da sua clara intenção de proteger aqueles, ao afirmar que não era capaz de identificar quem quer que fosse apenas pela voz.
- HHH, militar da GNR em ..., abonou a favor do arguido AA;
- YY, comandante do Posto ..., abonou a favor dos arguidos DD e PP;
- III, militar da GNR em ..., abonou a favor do arguido DD;
- AAA, companheira do arguido DD, abonou a favor deste;
- JJJ, comerciante em ..., abonou a favor do arguido GG;
- KKK, amigo do arguido GG, abonou a favor deste;
- NN e LLL, respectivamente pai e “cunhado” do arguido MM, abonaram a favor deste e transmitiram a sua convicção de que a voz dele não é audível no vídeo relativo à situação que lhe é imputada;
- MMM, NNN e OOO, militares da GNR em ..., abonaram a favor deste e transmitiram a sua convicção de que a voz dele não é audível no vídeo relativo à situação que lhe é imputada;
- PPP, amigo do arguido SS, abonou a favor deste;
- QQQ, militar da GNR em ..., abonou a favor do arguido PP.
Importa, então, fazer a análise crítica da prova relativamente a cada um dos episódios que vêm descritos na pronúncia. Todavia, cabe desde já referir, com respeito a todos eles, que os vídeos que os suportam foram exibidos em audiência, pelo que o conjunto de factos relativos ao que ali é visível/audível, dispensa quaisquer outros considerandos. Também relativamente a todas as situações, nada nos autos permite inferir, com o grau de certeza exigível, que os indivíduos de nacionalidade estrangeira visados pela actuação dos arguidos se encontravam ilegalmente em território nacional, que isso era do conhecimento dos arguidos e por eles foi aproveitado para os subjugarem.
Situação do dia ... de ... de 2018:
A testemunha WW, não teve quaisquer dúvidas em identificar a voz do arguido AA como sendo a de quem está a filmar e a dar as ditas ordens ao referido indivíduo, no interior do Posto ..., sendo que não foi lavrado qualquer expediente relativo à presença/condução daquele ao Posto. Apesar de não ter prestado declarações, extrai-se do requerimento de abertura de instrução apresentado que o arguido admite a autoria de tais factos, apenas contesta a autoria da agressão de que aquele indivíduo foi vítima assim que conseguiu dizer “VV, fode-me os cornos”.
Não podemos deixar de dizer que este tribunal discorda em absoluto da análise desta situação feita quer pelo MP, quer pela JIC. Para nós apresenta-se como óbvio que o arguido MM também ali se encontrava (que tem a alcunha “VV”, como afirmou a testemunha WW). Por outro lado, como é do conhecimento comum, o calão “foder os cornos” a alguém significa bater, mais propriamente bater na cabeça de alguém, e com algum grau de violência. Donde, assim que o indivíduo, seguindo as instruções do arguido AA, consegue dizer “VV, fode-me os cornos”, o “VV” atinge-o com uma violenta pancada na cara.
Fechado este parêntesis, a subjugação a que o indivíduo em causa foi sujeito resulta evidente do visionamento dos respectivos vídeos. E não se diga que se tratou de mera brincadeira com um desfecho inesperado. Não só pelo que acima se disse a propósito do previsível desfecho das ordens que iam sido dadas, como a aparente colaboração do visado, que se encontrava no interior de um Posto da GNR, perante vários militares (apesar de apenas um ter sido identificado), perante uma actuação tão despropositada como aquela, era a melhor hipótese que aquele cidadão tinha para evitar males maiores.
Considerou-se ainda a informação prestada pela GNR a fls. 280 e 280vº, donde resulta que o arguido AA não estava, àquela hora, de serviço, e que não existe qualquer expediente relativo à presença daquele cidadão no Posto.
Relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência do arguido na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de um militar da GNR, sendo também evidente que o arguido AA utilizou essas funções para criar ascendente sobre a vítima, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de um cidadão estrangeiro, que não sabia sequer o alcance das expressões cuja repetição lhe estava a ser determinada, sem qualquer hipótese de fuga/reacção. Também o ambiente de gáudio que reinou entre os militares presentes, protagonizado pelo arguido AA, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade da vítima de se opor a tal comportamento, representando os vídeos um troféu dessa actuação.
A vítima não foi identificada, consequentemente não foi ouvida. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foi sujeita, pelo receio que sentiu e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelo arguido AA.
Quanto aos factos não provados a respeito desta situação, não foi produzida prova que os sustentasse. Uma última palavra apenas para afirmar que, não obstante a actuação do arguido AA ter sido dirigida um cidadão estrangeiro e de ter tirado partido da situação de fragilidade em que o mesmo se encontrava perante si, importaria um salto muito grande, que não tem suporte factual, concluir que o arguido agiu num contexto de ódio racial ou xenófobo.
Situação do dia ... de ... de 2018:
Importa desde logo abordar o tema da fidedignidade dos registos de escala da GNR. Isto porque, na perspectiva da defesa dos arguidos, nesta situação com mais veemência do arguido MM, tal registo, por si só, não é suficiente para comprovar quais os militares que naquele dia, àquela hora, intervieram nessa situação. E, assim, na falta de prova directa, restaria a dúvida.
O tribunal não partilha de tal visão. Como referiu a testemunha WW, os registos de escala determinam quem estará de patrulha ou de atendimento, e qualquer eventualidade, ausência ao serviço ou troca, ficará registada, o que não ocorreu em qualquer das situações a que nos reportaremos.
Acresce que, os factos foram investigados meses depois de terem sido captados aqueles vídeos, pelo que à data os arguidos não tinham qualquer desconfiança de que iriam ser alvo de investigação, tendo inclusive o cuidado de não elaborar qualquer expediente relativamente a tais situações. Ou seja, não fora a apreensão do telemóvel ao arguido AA e a extracção daqueles ficheiros, jamais se teria sabido da ocorrência dos factos objecto dos presentes autos. Caso desconfiassem que tais registos os poderiam comprometer, poderiam tê-los adulterado ou diligenciado pela fabricação de algum tipo de expediente que os desresponsabilizasse, à semelhança da actuação levada a cabo pelo arguido MM no âmbito do processo .../18, cujo acórdão condenatório se mostra junto por certidão a fls. 1252 e sgs, o que não sucedeu.
Donde não há qualquer razão para questionar a correcção e veracidade de tais registos.
Com respeito à situação em apreço, temos o registo de fls. 283 que, conjugado com o teor da informação de fls. 280, atesta que no serviço de “Patrulha às Ocorrências” do dia ... de ... de 2018, no período das ...h... às ...h..., estavam os arguidos MM e AA, com a viatura de matrícula L-..6 (..., fls. 332 e 821). Já no decurso da audiência foi junta informação relativa à requisição da dita espingarda “shotgun” (fls. 1363) donde resulta, com recurso à identificação do número de ordem do militar em causa, e ajuda à sua interpretação por parte da testemunha WW, que quem levantou pelas ...H... e a entregou às ...H... desse mesmo dia foi o arguido MM.
Acresce que, como já se disse, o vídeo foi realizado pelo telemóvel do arguido AA.
Por outro lado, este vídeo não pode ser visto isoladamente. Isto porque, surge na sequência de um outro, captado pelas ...h..., que também foi exibido em audiência e onde é visível que os militares percorrem as divisões de uma habitação onde se encontram cidadãos estrangeiros, sendo que a dado ponto se ouve a interjeição “Ó MM, chega aqui”. Confrontada com este vídeo, a testemunha WW não teve dúvidas em identificar os arguidos AA e MM como sendo intervenientes em tal situação.
Também no vídeo do que se passou no interior da carrinha, à passagem do minuto e trinta e cinco segundos, imediatamente após um dos militares dizer “vomitar não”, ouve-se (excepto para quem não quer ouvir!), embora num tom mais baixo, de novo a interjeição “Ó MM…”.
Desta sequência de vídeos, não resultam dúvidas de que, após terem estado naquela habitação, estes arguidos levaram “detido” um desses cidadãos estrangeiros e transportaram-no na carrinha afecta ao serviço de patrulha às ocorrências, sem que, no entanto, tenham lavrado qualquer expediente (como mais uma vez resulta da informação de fls. 280 vº.). Também da visualização destes vídeos não restam dúvidas de que estava presente um terceiro militar. Tudo indicia que se trataria do arguido PP, uma vez que era quem também se encontrava de serviço naquela noite, embora no atendimento, cujo apoio poderá ter sido solicitado pelos demais, sendo que a testemunha WW a ele se referiu quando lhe foi pedido para identificar as vozes, mesmo que sem grande convicção. De todo o modo, a autoria dos factos relativos a esta situação não lhe vem imputada na pronúncia, pelo que o tribunal se bastou com a menção da presença de um terceiro militar.
Especificamente quanto ao que se passou no interior da carrinha, pela postura do cidadão estrangeiro transportado, com os braços para trás, e pela ausência de qualquer acção defensiva com recurso às mãos/braços em relação às agressões na cabeça de que foi vítima, não restam dúvidas de que se encontrava algemado e que seguramente não era essa a sua vontade.
Pelo facto de serem três, e não apenas dois, os militares ali presentes, de não se saber qual o lugar que cada um ocupava, sendo ouvidas vozes quase em simultâneo, às vezes sobrepostas, não foi possível ao tribunal determinar qual dos arguidos disse ou fez o quê, sendo que a este respeito o depoimento da testemunha WW foi marcado por avanços e recuos.
Como é sabido, a dúvida que em processo penal beneficia os arguidos é a dúvida razoável. Em face do que ficou dito, qualquer dúvida que se pudesse suscitar acerca da participação dos arguidos AA e MM seria absolutamente irrazoável, apenas concebível no domínio do absurdo, esotérico ou sobrenatural.
Felizmente os arguidos abstiveram-se de desenvolver tais teorias. Já da parte das respectivas defesas o mesmo não se pode dizer. A defesa do arguido AA apostou na dúvida relacionada com a extracção dos ficheiros do respectivo telemóvel, e à qual já acima demos resposta. A defesa do arguido MM apostou na pronúncia do arguido. Concretizando: na perspectiva desta defesa, o arguido MM terá uma acentuada pronúncia ..., inconfundível, e que não é audível no vídeo em causa, acrescentando mesmo que houve uma perícia de comparação de vozes, realizada pelo LPC, com resultado inconclusivo. Abordando este último aspecto, não existiu perícia alguma com tal finalidade (vide fls. 514). Por outro lado, independentemente do desfile de testemunhas de defesa (pai, “cunhado”, camaradas de serviço, como acima se referiu), que procuraram de forma absolutamente parcial, suportar a tese da defesa, certo é que, além da sua identificação, o arguido MM não se dispôs a falar em tribunal, não tendo, por isso, o tribunal forma de comprovar se o mesmo tem ou não tem uma acentuada pronúncia.
Ainda assim, sempre se dirá que, exibida em audiência a entrevista que concedeu à D..., não se detecta qualquer pronúncia, muito menos acentuada.
Mas, tudo isto apenas para dar resposta às defesas dos arguidos, para que não argumentem que o tribunal se absteve de abordar essas putativas grandes questões, uma vez que, face ao que acima ficou dito quanto à nossa convicção, e os meios de prova que a sustentam, o arguido MM até pode ter estado calado o tempo todo em que se desenrolou aquela acção, mas que estava presente, disso não resta qualquer dúvida.
Relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência dos arguidos na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de militares da GNR, sendo também evidente que estes arguidos utilizaram essas funções para concertadamente criar ascendente sobre a vítima, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de um cidadão estrangeiro, que não dominava sequer o português, para o privarem da liberdade, algemando-o atrás das costas, assim lhe retirando qualquer hipótese de fuga/reacção, nomeadamente em relação às palmadas na cabeça que ia sofrendo. Também o ambiente de desprezo e insensibilidade que reinou entre os três militares, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade da vítima de se opor a tal comportamento, representando o vídeo um troféu dessa actuação.
A vítima não foi identificada, consequentemente não foi ouvida. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foi sujeita, pelas dores que sofreu, pelo receio que sentiu, ao ponto de ter uma “shotgun” encostada à cabeça, e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelos arguidos.
Não obstante a actuação destes arguidos ter sido dirigida um cidadão estrangeiro e de terem tirado partido da situação de fragilidade em que o mesmo se encontrava perante si, importaria um salto muito grande, que não tem suporte factual, concluir que agiram num contexto de ódio racial ou xenófobo.
Situação do dia ... de ... de 2019:
Os vídeos respectivos são claros quanto a quem teve intervenção nesta situação (AA, DD, GG e JJ, o que é ainda reforçado pelo relatório pericial de comparação facial, de fls. 177 e sgs., e a informação da GNR de fls. 1139) e de que forma actuou. Daí que o tribunal concretizou mais em detalhe essas intervenções, por comparação ao descrito na pronúncia (com o consequente reflexo nos não provados), não havendo aqui necessidade de qualquer comunicação de alteração não substancial de factos, dado que foi ao encontro do pugnado pelas defesas dos respectivos arguidos em sede de alegações.
Mais uma vez, o tribunal socorreu-se da informação prestada pela GNR a fls 280 vº, e secundada pela testemunha WW, que também aqui não foi lavrado qualquer expediente relativo à presença daqueles três indivíduos no Posto ....
Subsiste, contudo, um facto objectivo que cumpre desenvolver, face à posição assumida em audiência pelo arguido DD e respectiva defesa: na versão, absurda, diga-se desde já, deste arguido, o gesto que efectuou na direcção da nuca de um dos indivíduos que se encontravam no posto a ser objecto de humilhação e agressões físicas não passou de uma simulação sem propósito algum, empunhando um qualquer objecto, também ele despropositado, como seja uma lanterna ou o carregador de munições. Até porque, também defendeu, se tivesse usado gás pimenta isso seria visível na imagem, porque é cor-de-laranja, e o indivíduo em causa teria ficado aflito, o que não é visível, devido à queimadura provocada pelo contacto do gás com a pele. Juntou imagens de objectos que poderão ter sido utilizados (fls. 1348 e 1349).
Que dizer?!!
Não faz sentido algum que alguém, no contexto que é visível nas imagens, passe por detrás de outrem para lhe apontar uma lanterna à nuca, muito menos empunhar e apontar um carregador de munições. Por outro lado, resulta da experiência comum, e isso mesmo foi atestado pela testemunha WW, que o jacto do spray de gás pimenta é incolor. Também resulta da experiência comum que, como arma de defesa que é, o gás pimenta destina-se principalmente a provocar ardor, irritação, nos olhos e vias respiratórias. Naturalmente que, dadas estas características, o simples contacto com a pele, para mais numa zona com cabelo, não terá efeitos tão imediatos e exuberantes. Instado a pronunciar-se sobre a actuação do arguido DD naquele vídeo, a testemunha WW não teve qualquer dúvida, sequer hesitação, em afirmar que o arguido usou gás pimenta contra aquele indivíduo, certeza que extrai da forma do objecto e da maneira como foi empunhado, apontado e premido. É certo, como também afirmou esta testemunha, que aquele modelo, de pequena botija, não corresponde ao que existia no Posto ..., que se assemelha a uma caneta. Mas, é frequente os militares adquirirem por si aquele tipo de arma, uma vez que tal lhes é legalmente possível, referindo a testemunha que possui um spray desse tipo. Pelo que não teve o tribunal dúvidas de que o arguido DD utilizou gás pimenta contra um dos indivíduos.
Finalmente, cumpre abordar um outro aspecto, mais de cariz subjectivo, suscitado pelas declarações e defesa dos arguidos DD e GG, também ele desprovido de qualquer sentido. Segundo estes arguidos, o que se passou naquela situação foi apenas uma brincadeira, sem maldade, na qual, pasme-se, aqueles três indivíduos até alinharam. O arguido DD deu o exemplo da praxe a que foi sujeito na tropa, como quem diz “Isso sim, foi maldade a sério!”, e o arguido GG referiu que se fosse para fazer mal, aleijar, tinha ido buscar um bastão, não uma régua.
Mais uma vez, que dizer?!!
Os esgares de incredulidade, submissão, são patentes na expressão facial de tais indivíduos, sendo que o esboço tímido de um sorriso, qualquer manifestação de aparente colaboração, nada mais representa senão uma tentativa, vã, por sinal, de colher simpatia junto dos agressores para que aquelas humilhações e sevícias terminem o mais rápido possível.
Assim, relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência dos arguidos AA, DD e GG na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de militares da GNR, sendo também evidente que estes arguidos utilizaram essas funções para concertadamente criar ascendente sobre as vítimas, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de cidadãos estrangeiros, que não dominavam sequer o português, para os subjugarem, os levar a obedecer aos seus comandos, sem qualquer hipótese de fuga/reacção, ao mesmo tempo que os agrediam. Também o ambiente de gáudio, desprezo e insensibilidade que reinou entre os três militares, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade das vítimas de se oporem a tais comportamentos, representando os vídeos um troféu dessa actuação.
As vítimas não foram identificadas, consequentemente não foram ouvidas. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foram sujeitas, pelas dores que sofreram, pelo receio que sentiram, e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelos arguidos.
Quanto ao arguido JJ, resulta também da prova dos factos objectivos conjugados com as regras da experiência comum que este arguido sabia que era despropositado e violador dos mais elementares princípios éticos e disciplinares o comportamento que estava a ser adoptado pelos demais arguidos, estando também ciente que por força das funções em que estava investido, para mais encontrando-se de serviço, tinha a obrigação moral, ética e legal de intervir e fazê-los cessar, e que, ao nada fazer, contribuiu para que os demais desenvolvessem aquele seu desígnio pelo tempo e forma que quiseram.
Não obstante a actuação de todos estes arguidos ter sido dirigida a cidadãos estrangeiros e de terem tirado partido da situação de fragilidade em que os mesmos se encontravam perante si, importaria um salto muito grande, que não tem suporte factual, concluir que agiram num contexto de ódio racial ou xenófobo.
Situação do dia ... de ... de 2019:
Uma vez que as imagens não permitem a identificação dos militares que ali se encontram e a testemunha WW apresentou algumas hesitações na identificação das vozes, novamente a convicção do tribunal assentou nos registos fornecidos pela GNR quanto à identificação dos elementos que integravam a patrulha às ocorrências (PP, AA e SS, fls. 280 vº, 282 vº e 1239), o local onde se encontravam (cf. fotogramas de fls. 88 a 91 do auto de visionamento de imagens), conjugados com o dia e hora a que se reporta o vídeo em causa, e ainda o facto de ter sido realizado e extraído do telemóvel apreendido ao arguido AA (relatório pericial de fls. 693 e sgs.), dando-se aqui por reproduzido tudo o que acima ficou dito quanto às razões pelas quais o tribunal considera absolutamente correctos e fidedignos tais elementos probatórios.
Pelo mesmo motivo apontado, não foi possível atribuir concretamente a qualquer dos arguidos as palavras e expressões que são audíveis no vídeo, nem afirmar que foi o arguido SS que deu o aparelho a usar ao indivíduo.
Ao contrário do que vinha descrito na pronúncia, da visualização do vídeo resulta que o indivíduo apresenta manifestações de ardor na boca (abana a mão junto à boca), mas não é visível nem audível qualquer pedido de socorro. Por outro lado, o telefone da vítima toca duas vezes em sinal de recepção de chamada, sendo impedida de atender pelos arguidos. Ou seja, a vítima não tentou pedir socorro usando o telemóvel.
Relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência destes arguidos na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de militares da GNR, sendo também evidente que estes arguidos utilizaram essas funções para concertadamente criar ascendente sobre a vítima, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de cidadão estrangeiro, que não dominava sequer o português, para o subjugarem, o levar a obedecer aos seus comandos, sem qualquer hipótese de reacção, levando-o a inspirar gás pimenta que subrepticiamente haviam colocado no tubo de plástico utilizado na realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, desta forma lhe provocando dores. Também o ambiente de gáudio, desprezo e insensibilidade que reinou entre os três militares, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade da vítima de se opor a tais comportamentos, representando o vídeo um troféu dessa actuação.
A vítima não foi identificada, consequentemente não foi ouvida. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foi sujeita, pela dor que sofreu, pelo receio que sentiu, e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelos arguidos.
Não obstante a actuação destes arguidos ter sido dirigida um cidadão estrangeiro e de terem tirado partido da situação de fragilidade em que o mesmo se encontrava perante si, importaria um salto muito grande, que não tem suporte factual, concluir que agiram num contexto de ódio racial ou xenófobo.
Quanto à demais factualidade, com respeito à personalidade e condições pessoais de cada um dos arguidos, considerou-se o teor dos certificados de registo criminal, dos relatórios sociais, e os depoimentos das testemunhas abonatórias a que supra se aludiu, sendo que nenhuma delas alguma vez presenciou, como é óbvio, qualquer actuação dos arguidos semelhante àquela que está em apreço. Daí que, tendo em conta a actuação de cada um dos arguidos, por si ou concertadamente, aliada à total ausência de qualquer manifestação de arrependimento, não pôde o tribunal integrar no elenco dos factos provados a opinião puramente subjectiva daquelas testemunhas de que os arguidos são pessoas honestas e íntegras, bons profissionais.
Com respeito ao arguido AA, considerou-se ainda o documento de fls. 1075.
Com respeito ao arguido MM, considerou-se ainda o teor da entrevista que o mesmo concedeu à D..., que, como se disse, foi exibida em audiência, uma vez que é reveladora da sua personalidade, procurando influenciar a opinião pública a seu favor, em detrimento da imagem da Justiça.
IV- Aplicação do direito aos factos
Importa, em primeiro lugar, enquadrar a função de militar da GNR no conceito de “funcionário”.
Nos termos do disposto no art. 386º nº.1 d) do Cód. Penal (redacção vigente à data dos factos), «Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange: (…) d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar (…)».
Como se refere do Ac. RL de 11-02-2009, disponível em www.dgsi.pt, «(…) Dúvidas não têm restado de que os militares da GNR, para efeitos penais, são funcionários, enquadrando-se abrangidos por aquele transcrito preceito legal.
Este enquadramento fundamenta-se no facto dos militares da GNR serem estatutariamente e em particular órgãos de polícia criminal, colocando-os a desempenho numa actividade compreendida na função pública jurisdicional.(…)
Não há, assim, dúvidas de que todos os arguidos actuaram na qualidade de funcionário, mesmo em relação ao arguido GG, que trajava à civil e fora do exercício normal de funções na situação que lhe é imputada, dado que assumiu e arrogou-se da qualidade de militar de GNR, no interior do Posto, para levar a cabo tais condutas. O mesmo se diga em relação à primeira situação imputada ao arguido AA, em que não se provou que o mesmo se encontrava fardado, encontrando-se, contudo, nas instalações do Posto ....
Do crime de abuso de poder:
Este crime tem a sua tipicidade definida no artº 382º, do CP, segundo o qual «o funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».
Como se refere no Ac. RL de 21-03-2018, 32/14.1S9LSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt «Numa apreciação global do tipo, diga-se, acompanhando Paula Ribeiro de Faria, que:
- Este é um tipo que pune o abuso de funções, em termos genéricos e subsidiários, na medida em que, conforme consta da norma, se reporta a actos ou omissões não tipificados nos tipos de crime anteriormente definidos pelo CP. «Está em causa a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços. Corresponde esta exigência, de resto, a um princípio fundamental da organização do Estado consagrado constitucionalmente nos arts. 266°, 268° e 269°-1 da CRP»
- «De uma forma geral poder-se-á definir o abuso de poderes como uma instrumentalização de poderes (inerentes à função), para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo (ou melhor dizendo, ilegítimas). Várias situações são susceptíveis de configurar esse mesmo abuso de poderes por parte do funcionário. Desde logo, abusa dos poderes que lhe são conferidos, o agente que (…) desrespeita formalidades impostas por lei, ou actua fora dos casos estabelecidos na lei (violação da lei). Na definição empregue por Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo 501: "A violação de lei é o vício de que enferma o acto administrativo cujo objecto, incluindo os respectivos pressupostos, contrarie as normas jurídicas com as quais se devia conformar". (…)
- O tipo legal poderá também ser preenchido através da violação de deveres por parte do funcionário. Estamos a falar, como é evidente, de deveres funcionais, deveres que estão relacionados com o exercício da função, e que por regra só subsistem enquanto o funcionário está em actividade (cf. Marcello Caetano, cit. 730). Aqui se incluem deveres funcionais específicos impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço, e relativos a uma função em particular, e deveres funcionais genéricos que se referem a toda a actividade desenvolvida no âmbito da administração do Estado. Integram-se aqui o dever de zelo (…), o dever de isenção e o dever de lealdade, entre outros (cf. o art. 3° do DL 24/84, de 16-1, que veio rever o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração). Mostra-se particularmente relevante neste âmbito, pela ameaça que apresenta para o bem jurídico protegido (caracterizado em § 2), a violação por parte do funcionário do dever de isenção definido da seguinte forma, no já citado art. 3°-3 do DL 24/84, de 16-1: "O dever de isenção consiste em não retirar vantagens directas ou indirectas, pecuniárias ou outras, das funções que exerce, actuando com independência em «relação aos interesses e pressões particulares de qualquer índole, na perspectiva do respeito pela igualdade dos cidadãos". (…)
- O tipo pode ser cometido por acção e omissão o que «parece mais consentâneo com a intenção do legislador ao pretender proteger com este tipo legal a imparcialidade e o bom andamento da administração (…)».
E, acompanhado o acórdão do STJ, prolatado no âmbito do recurso 07P4279, em www.dgsi.pt, mais se diga que:
- «No crime de abuso de poder, que constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais. Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.
Há, com efeito, tipos de crimes em que o tipo de ilícito é construído de tal forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza.
A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertencendo ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo.
A intenção tipicamente requerida tem por objecto uma factualidade que não pertence ao tipo objectivo de ilícito.
Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe para além do dolo de tipo a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, p. 329-330).
Nos delitos de intenção verificam-se elementos de atitude interna de agente, que são elementos subjectivos que caracterizam a vontade de acção, referidos á modalidade de acção, ao bem jurídico ou ao objecto da acção protegida pelo tipo; o autor persegue um resultado que tem em consideração para a realização do tipo, e deve querer causar com a sua própria conduta um resultado que vai para além do tipo objectivo (cfr. H. H. Jesheck e T. Weigend, “Derecho Penal”, p. 341-342). O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática.
A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função. Mas, para além do tipo objectivo exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, mas que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo –a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
A integração do crime de abuso de poder, p. no artigo 382º do Código Penal, supõe, pois, por um lado, o preenchimento dos elementos do tipo objectivo (o mau uso ou uso desviante dos poderes da função), e, em conjugação, a verificação de uma intenção específica que está para além do tipo objectivo. (…) O contexto, como modo de interpretação da conjunção de elementos de ambiência, deve, aqui, revelar-se de particular importância».
Para se verificar a comissão do crime de abuso de poder, o benefício ilegítimo não tem que se substanciar em vantagem patrimonial bastando a sua ilegitimidade. Está abrangido na intenção da norma o simples favoritismo ou compadrio (…)»
Da nossa parte acrescentamos que, reduzir o crime de abuso de poder às situações em que ficasse demonstrada a intenção de obter benefício ou causar prejuízo apenas de carácter patrimonial, tratando-se de um crime que, na própria letra da lei, frequentemente surge numa relação de concurso aparente, de consumpção e subsidiariedade, em relação a outros tipos legais, então o seu espectro de enquadramento factual seria residual ou nulo.
A letra da lei, por comparação a outros tipos legais (v.g. recebimento ou oferta indevidos de vantagem art. 372º; corrupção arts. 373º e 374º; participação económica em negócio art. 377º; concussão art. 379º), não deixa dúvidas de que sempre que o legislador quis especificar que o benefício/prejuízo visado pelo agente do crime é de carácter patrimonial, fala em vantagem patrimonial/lesão de interesses patrimoniais; quando o benefício/prejuízo visado é de qualquer natureza (que também pode ser de carácter patrimonial) ou não o caracteriza, como sucede no crime de abuso de poder, ou então refere “vantagem patrimonial ou não patrimonial”.
Donde, fica desde logo afastada a tese defendida por algumas das defesas dos arguidos, em alegações, de que não poderia haver lugar ao cometimento dos imputados crimes de abuso de poder por não existir intenção de obter benefício/causar prejuízo de carácter patrimonial.
Do crime de ofensas à integridade física qualificada:
Nos termos do disposto no artigo 143.º n.º 1 do Cód. Penal «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
Como refere Paula Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, «por ofensa no corpo deve entender-se qualquer alteração ou perturbação da integridade corporal ou do bem-estar físico ao passo que, a ofensa na saúde abrange toda a alteração ou perturbação do normal funcionamento do organismo, relevando-se para este efeito uma dimensão de cariz patológico.»
Ainda a este propósito dever-se-á esclarecer, de acordo com jurisprudência pacífica dos Tribunais superiores, que este ilícito criminal consuma-se independentemente da provocação de dor, mal-estar corporal ou incapacidade para o trabalho, aleijão ou marca física da vítima – veja-se, entre outros, Ac. RL de 12-04-2011, processo n.º 3705/08.4TDLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.
Relativamente ao elemento subjectivo do ilícito exige-se o dolo do agente, em qualquer modalidade (dolo directo, necessário ou meramente eventual) consistindo este na consciência e vontade de ofender o corpo e/ou saúde de terceiro, inexistindo qualquer elemento subjectivo específico, como seja, a motivação do agente, que pode ser sopesada, contudo, em sede de determinação da medida da pena.
Por sua vez, estabelece o art. 145.º, do Código Penal, que: «1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;(…)
2 – São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º».
Entre elas está a circunstância de o agente ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade - al. m) do referido preceito legal.
Importa, neste ponto, abrir um parêntesis: para além desta qualificativa, vem imputada ainda aos arguidos a prevista na alínea f) – ódio racial, e relativamente a alguns deles (os que intervieram na situação de ... de ... de 2019) a prevista na alínea h) – facto praticado conjuntamente com duas ou mais pessoas. Ora, quanto à primeira, não resultaram provados os factos que seriam susceptíveis de a integrar. Quanto à segunda, que faz apelo à intensidade da agressão e ao perigo que essa actuação conjunta representa para o bem jurídico tutelado, no caso a integridade física, dos factos extrai-se que a gravidade e maior desvalor da actuação dos arguidos está sobretudo ligada ao facto de serem militares da GNR, no âmbito do exercício dessas funções ou por causa delas, e não em relação às agressões, propriamente ditas, a que as vítimas foram sujeitas.
Donde, ficam arredadas, à partida, as duas qualificativas a que nos acabámos de referir.
Do crime de sequestro agravado:
O artigo 158.º nº.1 do Cód. Penal prevê que «Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»
Nos termos do nº. 2 g) do mesmo preceito legal, «O agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos se a privação da liberdade (…) For praticada mediante simulação de autoridade pública ou por funcionário com grave abuso de autoridade».
O crime de sequestro é um crime de execução permanente e não vinculada, em que se tutela o bem jurídico da liberdade de locomoção, sendo a privação da liberdade e o constrangimento daí resultante uma das possibilidades de execução do crime.
Neste sentido, escreve TAIPA DE CARVALHO In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 406, «O bem jurídico protegido é a liberdade de locomoção, ou seja, a liberdade física de mudar de lugar, a possibilidade de se deslocar de um local para outro, ou dito de outra forma, a conduta pelo tipo de sequestro consiste me privar outra pessoa da liberdade de se deslocar, da liberdade de mudar de lugar. Mais se dirá que, diferentemente do que sucede no crime de coacção, onde poderá existir o objectivo de afectação da liberdade de movimentos, impedindo alguém de dirigir-se para determinado local ou constrangendo a abandonar determinado local, já, diferentemente, no crime de sequestro não se trata de uma mera restrição da liberdade de movimentos, mas da sua (total) privação.”
A conduta prevista neste tipo criminal consiste em privar outra pessoa da liberdade de se deslocar ou de mudar de lugar, podendo consubstanciar uma acção (deter, prender) ou uma omissão (manter preso ou detido), aludindo-se ainda à cláusula geral “de qualquer forma”.
Quanto ao tipo subjectivo exige-se o dolo em qualquer das suas modalidades.
Para efeitos do preenchimento do tipo de abuso de poder e da qualificativa/agravante dos crimes de ofensa à integridade física e sequestro, respectivamente, há que ter em conta que, enquanto militares da GNR, todos os arguidos estavam sujeitos aos seguintes deveres de acordo com o respectivo Regulamento de Disciplina (Lei 145/99, de 01 de Setembro):
Art. 2º
1 - A disciplina, na Guarda, consiste na exata observância das leis e regulamentos (…).
2 - A disciplina, na Guarda, impõe o respeito e a adesão por parte dos seus membros a um conjunto de normas específicas, baseadas no respeito pela legalidade democrática, como forma de prosseguimento do interesse público (…).
3 - A atuação dos militares da Guarda deve pautar -se por critérios de competência profissional, justiça, lealdade, integridade, honestidade e imparcialidade.
Art. 8º
1 - O militar da Guarda deve ter sempre presente que, como agente de força de segurança e como autoridade e órgão de polícia criminal, deve adotar, em todas as circunstâncias, irrepreensível comportamento cívico, e atuar de forma íntegra e profissionalmente competente, por forma a suscitar a confiança e o respeito da população e a contribuir para o prestígio da Guarda e das instituições democráticas. (…)
Art. 10º
1- O dever de lealdade consiste na obrigação do desempenho de funções em subordinação aos objetivos do serviço e na prossecução do interesse público.
2 - No cumprimento do dever de lealdade, cabe ao militar da Guarda, designadamente: (…)
b) Desde que não seja da sua competência a assunção dos procedimentos exigíveis, comunicar imediatamente aos seus superiores hierárquicos quaisquer faltas de serviço ou atos que outros militares tenham praticado contra disposições expressas da lei (…).
e, bem assim, todos os factos suscetíveis de pôr em perigo a ordem pública, a segurança de pessoas e bens, o normal funcionamento das instituições democráticas e, em geral, os valores penalmente protegidos; (...)
Art. 11º
1 - O dever de proficiência consiste na obrigação genérica de idoneidade profissional, a revelar -se no desempenho eficiente e competente, pelo militar da Guarda, das suas funções.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, deve o militar da Guarda, designadamente:
a) Assumir -se como exemplo de respeito pela legalidade democrática, agindo de forma a incutir na comunidade a confiança na ação desenvolvida pela instituição de que faz parte;
(…)
c) Usar, dentro dos limites da lei, os meios que a prudência, a sensatez e as circunstâncias lhe ditarem para, como agente da força pública, manter ou restabelecer a ordem, acautelando, no entanto, em todos os momentos, o respeito pela vida, pela integridade física e moral e pela dignidade das pessoas, utilizando a persuasão como regra de atuação e só fazendo uso da força esgotados que sejam os restantes meios e nos casos expressamente previstos na lei; (…)
Art. 12º
1 - O dever de zelo consiste na dedicação integral ao serviço, a revelar -se no conhecimento e cumprimento diligente dos preceitos legais e regulamentares (…).
2 - No cumprimento do dever de zelo, cabe ao militar da Guarda, designadamente: a) Empenhar toda a sua capacidade, brio e saber no serviço de que esteja incumbido;
b) Conhecer, cumprir e fazer cumprir as disposições legais e regulamentares em vigor (…).
Art. 13º
(…)
2 - No cumprimento do dever de isenção, cabe ao militar da Guarda, designadamente:
a) Não se valer da sua autoridade ou posto de serviço nem invocar o nome de superior para haver lucro ou vantagem, exercer pressão, vingança ou tomar desforço por qualquer ato ou procedimento oficial ou particular; (…)
Art. 14º
1 - O dever de correção consiste no trato respeitoso com o público em geral (…) tendo sempre presente que as relações a manter se devem pautar por regras de cortesia, justiça, igualdade, imparcialidade e integridade.
2 - No cumprimento do dever de correção, cabe ao militar da Guarda, designadamente: (…)
f) Usar de toda a deferência e respeito nas suas relações com a comunidade em que a sua ação se inscreve, tratando com as atenções devidas todas as pessoas, adotando, sempre, procedimentos justos e ponderados, linguagem correta e atitudes firmes e serenas, e não lhes fazendo exigências contrárias à lei e ao decoro;
(…)
h) Não perturbar a ordem, nem transgredir os preceitos que vigorem no lugar em que se encontre, no País ou no estrangeiro, jamais maltratando os habitantes ou ofendendo os seus legítimos direitos, crenças, costumes e interesses, ainda que se encontre fora de situação de serviço, quando de folga ou mesmo em gozo de licença;
(…)
Art. 17º
1 - O dever de aprumo consiste na assunção, no serviço e fora dele, dos princípios, atitudes e comportamentos através dos quais se exprimem e reforçam a dignidade da função cometida à Guarda, o seu prestígio, a sua imagem externa e a dos elementos que a integram.
2 - No cumprimento do dever de aprumo, cabe ao militar da Guarda, designadamente:
a) Não praticar, no serviço ou fora dele, ações contrárias à moral pública, ao brio e ao decoro, comportando -se, em todas as circunstâncias, em estrita conformidade com a dignidade da sua função e posto; (…)
Para além do Regulamento de Disciplina da GNR, os militares estão ainda sujeitos ao Código Deontológico do Serviço Policial (Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2002, de 7 de Fevereiro de 2002), que constitui «(…) um módulo de formação em matéria de deontologia do serviço policial, com carácter obrigatório, nos currículos dos cursos de formação, prática e superior, ministrados aos agentes das forças de segurança.(…)»
Nos termos do qual:
Art. 3º
1. No cumprimento do seu dever, os membros das Forças de Segurança promovem, respeitam e protegem a dignidade humana, o direito à vida, à liberdade, à segurança e demais direitos fundamentais de toda a pessoa, qualquer que seja a sua nacionalidade ou origem, a sua condição social, as suas convicções políticas, religiosas ou filosóficas.
2. Em especial, têm o dever de, em qualquer circunstância, não infligir, instigar ou tolerar actos cruéis, desumanos ou degradantes.
Art. 4º
1. Os membros das Forças de Segurança têm o especial dever de assegurar o respeito pela vida, integridade física e psíquica, honra e dignidade das pessoas sob a sua custódia ou ordem.
2. Em especial devem abster-se, em qualquer circunstância, de praticar qualquer acto de tortura ou qualquer outro castigo ou tratamento cruel, desumano ou degradante, bem como opor-se, pronta e determinadamente, à prática de tais actos.
3. Os membros das Forças de Segurança devem zelar pela saúde das pessoas que se encontram à sua guarda e tomar, imediatamente, todas as medidas para assegurar a prestação dos cuidados médicos necessários.
Art. 5º
1. Os membros das Forças de Segurança devem actuar com zelo e imparcialidade, tendo sempre presente a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
2. Em especial, têm o dever de, no uso dos poderes de autoridade de que estão investidos, se abster da prática de actos de abuso de autoridade, não condizente com um desempenho responsável e profissional da missão policial.
3. Os membros das Forças de Segurança abstêm-se de qualquer acto que possa por em causa a liberdade da sua acção, a independência do seu juízo e a credibilidade da Instituição a que pertencem.
Art. 7º
1. No desempenho da sua função, os membros das Forças de Segurança devem agir com determinação, prudência, tolerância, serenidade, bom senso e autodomínio na resolução das situações decorrentes da sua actuação profissional.
2. Os membros das Forças de Segurança devem comportar-se de maneira a preservar a confiança, a consideração e o prestígio inerentes à função policial, tratando com cortesia e correcção todos os cidadãos, nacionais, estrangeiros ou apátridas, promovendo a convivencialidade e prestando todo o auxílio, informação ou esclarecimento que lhes for solicitado, no domínio das suas competências.
3. Os membros das Forças de Segurança exercem a sua actividade segundo critérios de justiça, objectividade, transparência e rigor; actuam e decidem prontamente para evitar danos no bem ou interesse jurídico a salvaguardar.
Art. 8º
1. Os membros das Forças de Segurança usam os meios coercivos adequados à reposição da legalidade e da ordem, segurança e tranquilidade públicas só quando estes se mostrem indispensáveis, necessários e suficientes ao bom cumprimento das suas funções e estejam esgotados os meios de persuasão e de diálogo.
2. Os membros das Forças de Segurança evitam recorrer ao uso da força, salvo nos casos expressamente previstos na lei, quando este se revele legítimo, estritamente necessário, adequado e proporcional ao objectivo visado.(…)
Art. 10º
1. Os membros das Forças de Segurança assumem, prontamente, os seus erros e promovem a reparação dos efeitos negativos que, eventualmente, resultem da acção policial. (…)
Art. 14º
1. Todo o membro das Forças de Segurança prepara-se física, psíquica e moralmente para o exercício da sua actividade e aperfeiçoa os respectivos conhecimentos e aptidões profissionais, de forma a contribuir para uma melhoria do serviço a prestar à Comunidade.
2. Em especial, interioriza e pratica as normas deontológicas contidas no presente Código, que deverão ser parte integrante da sua formação profissional.
Importa, então, analisar separadamente cada uma das situações concretas imputadas aos arguidos.
Situação do dia ... de ... de 2018:
Em causa está, apenas, a imputação ao arguido AA da prática de um crime de abuso de poder.
Os factos provados a respeito, conjugados com a simples leitura dos deveres éticos e profissionais pelos quais o arguido devia ter pautado a sua conduta, para mais no interior do Posto da GNR, não deixam dúvidas quanto à verificação do elemento objectivo do tipo de crime imputado.
Quanto ao elemento subjectivo, ficou demonstrado tanto o benefício ilegítimo como o prejuízo para a vítima. Quanto ao benefício, o arguido agiu sob uma motivação torpe, para seu gáudio e de terceiros, com desprezo para com o indivíduo que subjugou e humilhou, registando em vídeo essa humilhação, que passou a constituir um troféu. Quanto ao prejuízo, a vítima padeceu humilhação, receio, vendo atingida a própria dignidade.
Donde, não se tendo apurado causas de exclusão da ilicitude/culpa, será o arguido AA condenado pela prática do crime de que vem pronunciado.
Situação do dia ... de ... de 2018:
Em causa está a imputação aos arguidos AA e MM da prática, em coautoria e em concurso real, de um crime de abuso de poder, um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de sequestro agravado.
Cumpre, em primeiro lugar, referir que para que o tribunal dê, como dará, por verificada a prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e sequestro agravado terá de concluir, como concluirá, que a actuação dos arguidos se desenrolou num quadro de grave abuso de autoridade.
Assim sendo, repristinando o que acima ficou dito quanto à relação do crime de abuso de poder com outros tipos legais, de concurso aparente por consumpção ou subsidiariedade, teremos que concluir que este crime fica consumido pela punição dos demais.
Donde, serão os arguidos AA e MM absolvidos do crime de abuso de poder. Quanto ao sequestro agravado, resultou provado que os arguidos, sem qualquer justificação para tal, algemaram a vítima com as mãos atrás das costas e a transportaram, contra a sua vontade, na carrinha da GNR com uma espingarda “shotgun” encostada ao rosto, ficando assim privada da liberdade de se deslocar ou movimentar de um sítio para o outro.
Mais resulta dos factos provados que os arguidos actuaram conjunta e concertadamente, na execução de um plano comum, de forma livre, deliberada e consciente. Ou seja, com dolo directo.
Manifestamente que os arguidos agiram com grave abuso de poder, dado que violaram todos os deveres supra elencados, colocando em crise elementares princípios e direitos constitucionalmente consagrados, como sejam a dignidade da pessoa humana (art. 1º) e o direito à liberdade pessoal (art. 27º) – ambos da CRP.
E quando tais violações são praticadas por aqueles cuja missão é precisamente prevenir e combater esse tipo de práticas, para isso se servindo da autoridade em que estão investidos e dos meios que o Estado coloca à sua disposição, então não há como não considerar que agiram em manifesto e grave abuso dessa autoridade.
Para mais, agiram em relação a um imigrante que sequer domina a língua portuguesa, disso tirando partido para o mais facilmente subjugarem.
E tudo isto sem lavrarem qualquer expediente de serviço a respeito da detenção daquele indivíduo, donde se pode concluir que inexiste qualquer réstia de fundamento válido que, de alguma forma, pudesse atenuar a especial censura de que é merecedora toda a descrita actuação dos arguidos.
Pelo que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude/culpa, serão os arguidos AA e MM condenados pela prática em coautoria do crime de sequestro agravado que vêm pronunciados.
Quanto à ofensa à integridade física, dos factos provados resulta que, durante o transporte do indivíduo na carrinha da GNR, o mesmo indivíduo foi vítima de várias palmadas na cabeça. Não se apurou qual dos militares presentes o agrediu. Todavia, considerando o quadro geral em que se desenrolou a actuação dos arguidos, surgindo aquelas agressões num contexto de sequestro em que o indivíduo, algemado, se expressava no seu idioma, e como forma de o castigarem (“és uma miséria”) e calarem (“be quiet”), sem que qualquer deles tenha feito cessar a acção criminosa que decorria, tendo o domínio do facto, manifestamente que está verificada a comissão em coautoria, com dolo directo, por acção ou omissão (art. 10º nºs. 1 e 2 do Cód. Penal), do crime de ofensas à integridade física.
Com respeito à qualificativa, em que se apela à especial censurabilidade ou perversidade das circunstâncias, concordamos em absoluto com a posição assumida no Ac. TRL de 15-12-2009, Proc. 1884/06.4TABRR.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, quando se afirma: «(…) Quanto a nós, a essência daquela al. l) – actualmente alínea m) – do n.º 2, do art. 132.º do Cód. Penal, não se aterá tanto à reprovação e desvalor social externo do acto praticado, mas antes, na quebra das exigências funcionais de pessoas dotadas de determinados poderes e deveres públicos, mormente, no seu relacionamento enquanto autoridade com os demais cidadãos. (…)
Depois, (…) no que concerne à especificamente constante da al. l) – actualmente alínea m) – do n.º 2, daquele art. 132.º (que recorde-se, foi introduzida pela reforma do Código Penal de 1998), verifica-se uma particularidade que não ocorre nas anteriores: Tal como o anota o Prof. Figueiredo Dias no Comentário (cfr. obra e local já citados), “se um funcionário nessa qualidade, mata outra pessoa fora dos casos de justificação ou de exclusão de culpa (…) terá existido sempre abuso de autoridade e este terá sido sempre grave”, donde se poder “duvidar da adequação desta circunstância à técnica dos exemplos-padrão. A ter-se por bom o fundamento de política criminal da qualificação, por insuficientemente considerado nos outros exemplos-padrão (nomeadamente nos relacionados com o “meio” e com a “motivação”), parece que melhor fora que o caso conduzisse a uma qualificação a nível do tipo objectivo de ilícito”.»
Continuando a seguir a fundamentação do acórdão citado, os arguidos agiram com dolo directo e intenso, não podendo desconhecer os deveres a que estavam vinculados. A sua actuação ocorreu em condições que denunciam um acentuado desvalor da conduta relativamente ao padrão normal de actuação suposto pelo tipo matriz, dela resultando uma imagem global do facto que convoca um especial juízo de censura agravada.
Donde se conclui que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa serão os arguidos AA e MM condenados, em coautoria material e em concurso real, efectivo, pela prática do crime de ofensas à integridade física qualificada de que vêm pronunciados.
Situação do dia ... de ... de 2019:
Em causa está a imputação aos arguidos DD, AA, GG e JJ da prática, em concurso real, de um crime de abuso de poder e quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada.
Quanto ao crime de abuso de poder, vale o que acima ficou dito quanto ao facto de se considerar consumido pela verificação do cometimento dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, dispensando-se assim a repetição, importando a absolvição dos arguidos.
Quanto aos crimes de ofensa à integridade física, resultou provado que naquele episódio os arguidos DD, AA, GG, em simultâneo ou à vez, no mesmo espaço, levaram a cabo condutas que atentaram contra o bem-estar físico e psíquico daqueles três indivíduos, como sejam, agachamentos e “pranchas” forçados, reguadas (que tiveram de agradecer), disparo de gás pimenta e pancadas no corpo.
Não há, assim, dúvidas de que se mostra preenchido o elemento objectivo do tipo de crime.
Também quanto ao elemento subjectivo, provando-se factos donde se extrai que os arguidos agiram com dolo directo, está igualmente preenchido.
Quanto à comparticipação criminosa, apesar de o arguido DD apenas ter dirigido a sua acção em relação a um dos indivíduos, tomou parte na acção que estava a ser desenvolvida pelos arguidos GG e AA em relação aos três (o primeiro agredia o segundo dava as ordens de submissão física), sendo que nada fez para fazer cessar essa actuação, antes assegurando com a sua presença a impossibilidade de aqueles indivíduos esboçarem qualquer reacção. Ou seja, quer seja por acção, quer seja por omissão, o arguido DD agiu conjunta e concertadamente com aqueloutros.
Sendo três as vítimas, cometeram em coautoria três crimes (art. 30º nº.1 do Cód.Penal), não se compreendendo assim o raciocínio subjacente à acusação/pronúncia ao imputar a cada um destes arguidos quatro crimes.
Quanto à qualificativa, vale novamente o que já acima ficou dito, concluindo-se que os arguidos agiram com grave abuso de autoridade, para mais no interior do Posto da GNR.
Quanto ao arguido JJ, diversamente do que se concluiu em relação ao arguido DD, os factos provados permitem concluir por uma omissão pura. Não tomou parte na actuação levada a cabo pelos outros arguidos, limitou-se a estar presente, observar e nada fazer. Por força das funções em que estava investido, para mais encontrando-se de serviço, tinha a obrigação legal de intervir e não permitir, ou fazer cessar, aquela actuação. Absteve-se de forma intencional de o fazer, ciente que essa sua conduta contribuía para que os demais concretizassem os seus intentos. Ou seja, agiu com dolo directo.
Donde, por omissão, mostram-se também aqui preenchidos os elementos do tipo de ofensas à integridade física.
Quanto à qualificativa, temos por certo que o grave abuso de autoridade compreende tanto o grave abuso de poderes como a grave violação de deveres inerentes às funções dos militares da GNR. Assim, considerando que o arguido violou flagrante, grosseira e intencionalmente deveres elementares que devia observar e fazer cumprir, e não se apurando causas de exclusão da ilicitude/culpa, será condenado pela prática, em coautoria, de três crimes de ofensas à integridade física qualificadas.
Situação do dia ... de ... de 2019:
Em causa está a imputação aos arguidos PP, AA e SS da prática, em concurso real, de um crime de abuso de poder e um crime de ofensa à integridade física qualificada.
Quanto ao crime de abuso de poder, uma vez mais, vale o que acima ficou dito quanto ao facto de se considerar consumido pela verificação do cometimento do crime de ofensa à integridade física qualificada, dispensando-se assim a repetição, importando a absolvição dos arguidos.
Quanto à ofensa à integridade física, dos factos provados resulta que, durante uma operação stop em que se encontravam presentes os três arguidos, colocaram gás pimenta num tubo de plástico utilizado no teste de pesquisa de álcool no sangue e deram-no a inspirar a um indivíduo que mandaram parar. Tal fez com que a vítima passasse mal, naturalmente devido à irritação e ardor provocados pela aspiração de tal substância.
Não se apurou qual dos militares presentes colocou o gás pimenta e o deu a utilizar à vítima. Todavia, considerando o quadro geral em que se desenrolou a actuação dos arguidos, em que todos estavam presentes e iam insultando ou dando instruções à vítima para colocar o tubo na boca ou para não atender o telemóvel, sem que qualquer deles tenha feito algo para impedir ou fazer cessar aquela actuação, tendo o domínio do facto, manifestamente que está verificada a comissão em coautoria, com dolo directo, por acção ou omissão, do crime de ofensas à integridade física.
Também quanto à qualificativa vale o que acima ficou dito.
Pelo que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude/culpa, serão estes três arguidos condenados pela prática, em coautoria, do crime de ofensa à integridade física qualificada de que vêm pronunciados.
V - Determinação da medida concreta das penas principais:
A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e das exigências da prevenção, tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido (art. 71º do CP). Sendo que, em caso algum, a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, n. 2, do CP).
Dispõe, ainda, o art.º 40.º, do CP, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1). Acrescenta o art.º 71.º, n.º 1: «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Em suma, a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena (neste sentido, acórdão do STJ de 17-03-1999, Proc. n.º 1135/98 - 3.ª Secção).
É, pois, à luz de tais princípios, que terá de ser encontrada a pena adequada ao caso concreto.
Na condenação deve dar-se prevalência a penas não privativas da liberdade (art. 70º do CP), atendendo às finalidades da punição.
Entendemos, contudo, que esta prevalência deve aferir-se, em regra, na pena única, preservando a unidade e coerência lógicas da punição. Ou seja, por regra devem evitar-se penas mistas porquanto não alcançam as finalidades da punição. É, de resto, o que resulta do n. 4 do preâmbulo do DL 48/95, de 15-3, ao justificar a extinção de penas cumulativas de multa e prisão.
Ainda assim, sempre se dirá que, colocando-se tal alternativa no crime de abuso de poder cometido pelo arguido AA, considerando o especial desvalor da actuação, o cometimento posterior de outros factos mais graves, sempre com grave abuso de autoridade, inclusive já condenado com trânsito em julgado em relação a alguns deles, sem qualquer manifestação de arrependimento, é para nós óbvio que só a condenação em pena de prisão satisfará as finalidades da punição.
Importa ainda afastar a possibilidade, suscitada pela defesa do arguido JJ em alegações, de este poder beneficiar de uma atenuação especial da pena. Com efeito, tendo por referência as circunstâncias elencadas no art. 72º nº 2 do Cód. Penal, não agiu sob ameaça ou em cumprimento de um dever de obediência; não houve motivo honroso ou provocação das vítimas; não demonstrou arrependimento, e seguramente que, perante factos ocorridos em ... de 2019, decorreu algum tempo, mas não muito.
Assim, para a determinação da medida concreta das penas, importa ter em consideração:
- As exigências em termos de prevenção geral são muito elevadas uma vez que este tipo de actuação entre agentes da autoridade mina por completo o sentimento de confiança comunitária, podendo ser fonte de tumultos sociais caso vingue na opinião pública a convicção de que estes comportamentos correspondem a uma prática corrente ou generalizada. Daí que, para salvaguardar tal confiança, a intervenção do Tribunal tenha de ser vista e percebida pela comunidade no sentido de que o sistema de justiça funcionou e funcionará sempre que ocorram condutas desviantes, mesmo quando levadas a cabo por agentes das forças de segurança, e que os mesmos são alvo de censura e de consequências jurídicas proporcionais à sua culpa, sem condescendências. Para mais, colocaram em crise o bom-nome e reputação da instituição em que se inserem;
- Todos agiram com dolo directo;
- Presidiu sempre à actuação dos arguidos um profundo desprezo pela dignidade das vítimas, divertindo-se à custa da humilhação a que as sujeitavam, subjugando-as e obrigando-as a suportar/cumprir as ordens que lhes determinavam, em seu próprio prejuízo, revelador de uma motivação torpe;
- Quanto ao grau de ilicitude, e por referência às respectivas molduras abstractas:
• médio-baixo no crime de abuso de poder cometido pelo arguido AA considerando as circunstâncias em que decorreu tal actuação e as consequências daí decorrentes, sem grande gravidade;
• médio-baixo nos crimes de sequestro agravado e ofensa à integridade física qualificada a que respeita a situação do dia ... de ... de 2018, tendo em conta que se desconhece quanto tempo esteve aquele cidadão privado da liberdade, sem esquecer contudo as circunstâncias da acção levada a cabo pelos arguidos AA e MM (mãos algemadas atrás das costas, “shotgun” encostada ao rosto), e suas consequências (pânico, receio), bem como a baixa intensidade das agressões físicas infligidas (palmadas na cabeça), situando-se o dano mais no plano psíquico, o qual, contudo, não pode ser desvalorizado, antes pelo contrário;
• baixo relativamente à situação do dia ... de ... de 2019, atendendo à reduzida intensidade das agressões (jacto de gás pimenta na nuca, reguadas, palmadas, agachamentos e “pranchas” forçados), sendo as consequências a nível psíquico de grau inferior à situação anterior, atendendo ao diferente contexto em que ocorreram, ao estilo praxe;
• médio na situação do dia ... de ... de 2019, uma vez que a agressão com gás pimenta por aspiração, já de si grave pelo ardor e aflição que provoca, ocorreu no decurso de uma operação de fiscalização, e com recurso a meio utilizado na pesquisa de álcool no sangue, ou seja, com aproveitamento da confiança e colaboração da vítima por julgar estar a ser sujeita a uma normal fiscalização;
- A ausência de qualquer manifestação de arrependimento;
- O tempo decorrido desde a prática dos factos, a que os arguidos são alheios;
- A conduta posterior dos arguidos, afastados da prática de crimes, conjugado com o que relativamente a cada um resultou demonstrado em termos de condições pessoais e socioeconómicas, designadamente a sua juventude e adequado enquadramento social e familiar.
Especificamente em relação a cada um dos arguidos:
- Os arguidos GG, JJ, PP e SS não têm antecedentes criminais;
- Os arguidos AA, DD e MM foram condenados pela prática de crimes de idêntica natureza e circunstâncias, cometidos em ... de ... de 2018, revelando assim um padrão de comportamento que não se cingiu aos actos ora em apreço;
- A intensidade do dolo do arguido AA é muito superior à dos demais, uma vez que é o elemento comum a todas as situações, persistindo naquele tipo de actuação ao longo de vários meses;
- Na situação em que intervieram os arguidos GG, DD, AA e JJ, há que ter em conta a concreta actuação de cada um deles, nomeadamente foi o primeiro quem agrediu os indivíduos, o segundo disparou o gás pimenta na nuca de um deles, o terceiro deu ordens para realizarem exercícios forçados, e o quarto nada fez, o que implica distinção de culpas nos termos do art. 29º do Cód.Penal, com reflexos na medida concreta das respectivas penas;
- Nas outras duas situações em que ficou demonstrada a coautoria (AA e MM / AA, PP e SS), não se tendo demonstrado quais os concretos actos levados a cabo por cada um dos comparticipantes, não é possível fazer tal distinção;
- A postura assumida em audiência pelos arguidos DD e GG é reveladora da respectiva personalidade, que não milita a seu favor, já que procuraram desvalorizar os seus actos, chegando a sugerir que as vítimas também se estavam a divertir, continuando, assim, a revelar absoluta insensibilidade para com as mesmas;
- A entrevista concedida pelo arguido MM à D..., procurando condicionar a seu favor a opinião pública em detrimento da imagem da Justiça, é reveladora de uma personalidade manipuladora, avessa à assumpção de responsabilidades, aliás em tudo coerente com os actos pelos quais foi condenado no Proc. .../18, nomeadamente a falsificação de relatório de serviço e de um auto de inquirição, conforme resulta da certidão junta aos autos.
Tudo visto e ponderado, considera-se adequada a condenação dos arguidos nas seguintes penas de prisão parcelares:
AA
- Um ano de prisão pelo crime de abuso de poder a que respeita a situação do dia ... de ... de 2018;
- Três anos e seis meses de prisão pelo crime de sequestro agravado, e um ano e seis meses de prisão pelo crime de ofensas à integridade física qualificada a que respeita a situação do dia ... de ... de 2018;
- Um ano e três meses de prisão por cada um dos três crimes de ofensas à integridade física qualificada a que respeita a situação do dia ... de ... de 2019;
- Dois anos de prisão pelo crime de ofensas à integridade física qualificada a que respeita a situação do dia ... de ... de 2019.
DD
- Um ano e seis meses de prisão com respeito ao crime de ofensas à integridade física qualificada tendo como vítima o indivíduo que foi alvo do gás pimenta, e um ano e três meses de prisão por cada um dos outros dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
GG
- Um ano e dois meses de prisão por cada um dos três crimes de ofensas à integridade física qualificada.
JJ
- Oito meses de prisão por cada um dos três crimes de ofensas à integridade física qualificada.
MM
- Três anos e seis meses de prisão pelo crime de sequestro agravado;
- Um ano e seis meses de prisão pelo crime de ofensas à integridade física qualificada.
PP/SS
- Um ano e seis meses de prisão para cada um pelo crime de ofensas à integridade física qualificada.
Procedendo ao cúmulo jurídico das penas aplicadas aos arguidos AA, DD, GG, JJ e MM, temos então os seguintes limites (art. 77º do Cód.Penal):
AA
Mínimo: Três anos e seis meses de prisão Máximo: Onze anos e nove meses de prisão
DD
Mínimo: Um ano e seis meses de prisão Máximo: Quatro anos de prisão
GG
Mínimo: Um ano e dois meses de prisão Máximo: Três anos e seis meses de prisão
JJ
Mínimo: Oito meses de prisão Máximo: Dois anos de prisão
MM
Mínimo: Três anos e seis meses de prisão Máximo: Cinco anos de prisão
Na fixação da pena única o tribunal deverá ter em consideração, no seu conjunto, os factos e a personalidade dos arguidos.
Os factos em questão, apreciados na sua globalidade, foram todos praticados no mesmo contexto, sob a mesma motivação.
Todavia, no que respeita aos arguidos GG e JJ, estamos perante uma actuação isolada, limitada temporalmente ao episódio em questão, e não perante uma actuação repetida, prolongada no tempo, que pudesse apontar para uma tendência dos arguidos para a prática de crimes.
O mesmo já não se pode dizer dos demais. O arguido AA interveio em todas as situações e já foi alvo de uma condenação por crimes da mesma natureza, que se integram temporalmente no período de ... de 2018 a ... de 2019 em que perdurou a sua actividade criminosa. Os arguidos DD e MM, pese embora nos presentes autos tenham tido intervenção respectivamente em apenas um dos episódios em apreço, também contam com uma condenação por crimes de idêntica natureza num período temporal muito próximo.
Por outro lado, todos eles são jovens, uns mais que outros, sem que até à data da prática dos crimes lhes seja conhecida qualquer mácula no percurso pessoal e profissional, beneficiando de adequada integração social e familiar.
Assim, e não obstante a total ausência de qualquer manifestação de arrependimento que permitisse assegurar um juízo de prognose favorável, a sua adequada conduta posterior aliada ao tempo decorrido desde a prática dos factos leva-nos a considerar que a pena única não deverá ter uma duração que comprometa o esforço de reintegração que terão necessariamente de fazer. Claro está que não poderá situar-se nos mínimos sob pena de se comprometerem as finalidades de prevenção e retribuição.
Pelo que, a pena única será fixada em relação a todos os arguidos num patamar médio-inferior.
Donde, serão os arguidos condenados nas seguintes penas únicas:
AA: seis anos de prisão;
DD: dois anos e seis meses de prisão;
GG: dois anos de prisão;
JJ: um ano e três meses de prisão;
MM: quatro anos e dois meses de prisão.
Com excepção da pena única fixada ao arguido AA, as demais admitem a suspensão da sua execução, o mesmo sucedendo em relação aos arguidos PP e SS.
Como já acima se disse, apesar de os arguidos não revelarem arrependimento nem demonstrarem ter interiorizado o desvalor das suas condutas, a sua juventude e conduta posterior, aliada ao tempo decorrido desde a prática dos factos permite concluir, mesmo em relação àqueles que têm antecedentes criminais (DD e MM) que a ameaça da execução da pena satisfaz o sentimento jurídico da comunidade e as exigências de prevenção geral.
E, em termos de prevenção especial, a sujeição da suspensão a um regime de prova implicará que os arguidos tenham sempre presente, pelo período que aquela perdurar, a condenação de que foram alvo e as consequências a que se expõem se reincidirem.
Ou seja, considera-se que censura inerente à condenação em pena de prisão e a ameaça da sua execução, acompanhada de um plano de reinserção social, realiza de forma adequada as finalidades da punição – arts. 50º, 53º e 54º do Cód.Penal.
Pelo que as penas únicas fixadas a cada um destes arguidos serão suspensas por correspondente período de tempo, sujeitas a regime de prova a elaborar pela DGRSP.
VI - Pena acessória de proibição de exercício de função
Nos termos do disposto no art. 66º do Cód.Penal, «1 - O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:
a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou
c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.(…)»
Quanto aos pressupostos de aplicação de tal pena acessória, importa atentar no Ac. TRP de 15-12-2019, Proc. 176/09.1T3AVR.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Invocada no recurso a tese seguida pelo acórdão da Relação de Évora de 19 de dezembro de 2013, proc. n.º 11/09.0TASLV.E1, onde se afirma que a pena acessória em causa supõe a punição com pena de prisão efectiva superior a três anos; que se a pena de prisão aplicada for suspensa na sua execução, ganhando autonomia como pena de substituição, fica vedada a aplicação dessa pena acessória; e que se se optar por tal suspensão da execução da pena de prisão, o juízo que tal permitiu é adequado a coexistir com uma pena acessória de tal gravidade, contrapôs-se a seguinte argumentação:
«(…) Nos termos do mencionado artigo 66.º, n.º 1, do Código Penal, o titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração que, no exercício da atividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a três anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de dois a cinco anos quando o facto for praticado com flagrante e grave abuso da função e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes (alínea a)); revelar indignidade no exercício do cargo (alínea b)); ou implicar a perda de confiança necessária ao exercício da função (alínea c)). Afigura-se-nos que a letra da lei, ao mencionar «pena de prisão superior a três anos», pode abranger, como pressuposto formal de aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função, quer a pena de prisão efetiva, quer a pena de prisão suspensa na sua execução (que tem – é certo - autonomia como pena de substituição).
Mas decisivo é saber se a ratio da lei (o seu espírito) também abrange a pena de prisão suspensa na sua execução.
Como bem salienta o Ministério Público na sua resposta à motivação do recurso, será até nas situações de pena de prisão suspensa na sua execução que a pena acessória em causa tem maior acuidade, pois a pena de prisão efetiva já acarreta, por si mesma, nos termos do artigo 67.º do mesmo Código, a suspensão do exercício de funções públicas durante o cumprimento dessa pena.
Por outro lado, não se nos afigura, ao contrário do que se sustenta no citado acórdão da Relação de Évora, que sejam contraditórias, nos seus pressupostos, a suspensão da execução da pena de prisão e a proibição do exercício da função. É pressuposto da suspensão de execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50,º, n.º 1, do Código Penal, um juízo de prognose favorável a respeito da prática de outros crimes no futuro. Poderá ser pressuposto da proibição do exercício da função o perigo de prática de futuros crimes nesse exercício (como se verificará na situação referida na acima citada alínea c) do n.º 1, do artigo 66.º do Código Penal), mas não necessariamente. Tal pena será também aplicada quando o facto for praticado com flagrante e grave abuso da função e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes (alínea a) do n.º 1 desse artigo 66.º) e quando o facto revelar indignidade no exercício do cargo (alínea b) do n.º 1 desse artigo 66.º). E podemos dizer que se verificam estas últimas situações no caso em apreço.
Também se impõe afirmar que os malefícios, na perspetiva da inserção social do condenado, que se pretendem evitar com a suspensão da execução da pena de prisão são substancialmente mais graves do que os que decorrem da pena acessória da proibição do exercício de função.
Podem ver-se, no sentido de que não obsta à aplicação desta pena acessória a suspensão da execução da pena de prisão superior a três anos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República e da CEDH, pg. 259, e o acórdão da Relação de Lisboa de 12 de abril de 2016, proc. n.º 619/12.7TABNV.E1.L1.5, relatado por Luís Gominho, in www.dgsi.pt.» Com o devido respeito por posição contrária, temos por mais acertada a posição acabada de transcrever.
No caso concreto, e tendo em conta o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação de Évora no Proc. .../18, deste mesmo Juízo Central e aqui disponível para consulta, a aplicação desta pena acessória terá de se reportar às penas parcelares, e não à pena única aplicada em cúmulo jurídico. Ou seja, no caso concreto apenas podem ser condenados em tal pena acessória os arguidos AA e MM, cada um condenado na pena de três anos e seis meses de prisão pela prática do crime de sequestro agravado.
E, assim, tendo em consideração o que já ficou dito a respeito da actuação dos arguidos com manifesto e grave abuso de autoridade, da qual decorre flagrante violação da maior parte dos deveres funcionais, deontológicos, inerentes à sua condição de militares da GNR, por força do que necessariamente comprometeram a confiança que a comunidade neles depositava para o exercício das respectivas funções, quebrando de forma ostensiva e irremediável o juramento que solenemente prestaram, sendo indignos de envergar a farda e representar a GNR.
Pelo que, considera-se necessária e adequada a condenação destes dois arguidos na pena acessória de proibição de exercício de funções pelo tempo correspondente à pena fixada para o crime que a fundamenta, ou seja, três anos e seis meses.
VII - Bens apreendidos:
Mostra-se apreendido o telemóvel pertencente ao arguido AA, utilizado para a realização dos vídeos que documentam os factos objecto dos presentes autos. Ou seja, foi utilizado na prática dos crimes.
Pelo que, nos termos do disposto no art. 109º nº.1 do Cód. Penal, será declarado perdido a favor do Estado e ordenada a sua destruição.
(...).».
2.3.1.3. Da impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 1.3 a 1.11, 1.13, 1.14, 1.17, 1.18, 1.21 a 1.27, 1.35, 1.47 a 1.50 e 1.52 a 1.57, por erro de julgamento
Considera o recorrente terem os enunciados factos sido incorretamente julgados/dados como provados, por não ter sido produzida prova que permitisse decidir nesse sentido.
Neste enfoque, alega o recorrente que os vídeos visualizados na audiência de julgamento, o relatório de exame pericial ao telemóvel que lhe foi apreendido – abrangendo o relatório de extração dos ficheiros referentes a tais vídeos – e o depoimento da testemunha WW, não permitem sustentar a prova dos factos impugnados, pelo que, deviam ser dados como não provados.
O Ministério Público defende ter o Tribunal a quo valorado corretamente a prova e, como tal, devendo ser mantida a matéria de facto fixada na 1.ª instância.
Apreciando:
O recorrente impugna a matéria de facto provada nos pontos especificados, invocando o erro de julgamento, relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
O erro de julgamento ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste domínio, importa reter alguns aspetos fundamentais que vêm sendo reiteradamente afirmados pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores:
O erro de julgamento não pode ser confundido com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção que o tribunal formou. Neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A impugnação ampla da matéria de facto, em sede de recurso, não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos, que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse. O que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, cabendo ao tribunal de recurso confrontar o juízo que sobre esses concretos pontos foi realizado pelo tribunal recorrido com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente indique nas conclusões da motivação[7].
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos da matéria de facto impugnados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando, especificadamente, os meios de prova enunciados nessa decisão e as concretas provas indicadas pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa da proferida.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3, do artigo 412º do CPP).
A decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e da oralidade, sobretudo quando tem de se debruçar sobre a valoração da prova por declarações e/ou testemunhal, efetuada na 1.ª instância.
Outro aspeto a salientar é que a atribuição de credibilidade, ou não, à prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que o tribunal de recurso só poderá censurar se for contrária às regras da experiência comum e lógica[8].
Conforme supra referimos, neste âmbito, o tribunal de recurso limita-se a aferir do processo de motivação e de conformidade com as regras legais de apreciação de prova e só pode determinar a alteração da matéria de facto fixada se concluir que os elementos de prova indicados pelo recorrente impõem uma decisão diversa e não se apenas permitem uma outra decisão.
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Não pode admitir-se que haja uma inversão de papéis do juiz e do recorrente, em termos de a convicção pessoal deste último se poder afirmar ou sobrepor à convicção formada pelo julgador, logo que esta se mostre alicerçada nas provas produzidas, respeitando os princípios e as normas legais do direito probatório e que seja devidamente fundamentada.
Relativamente à livre apreciação da prova, conforme bem refere o Prof. Germano Marques da Silva[9], deve ser entendida como «valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.»
Existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
Como se faz notar no Acórdão do STJ de 17/03/2004[10] «Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.».
Posto isto, tendo o recorrente observado o ónus de especificação estabelecido no artigo 412º, n.ºs 3, alíneas a) e b) e 4 do CPP, passamos a apreciar os diversos pontos da matéria de facto provada que são objeto de impugnação.
Assim:
Com referência à situação de ... de ... de 2018 – pontos 1.3. a 1.11, da matéria factual provada:
Alega o recorrente que os sete ficheiros vídeo (...8_1; ...08; ...2_1; ...12; ...49; ...6_1; ...16), visualizados, na audiência de julgamento, não permitem suportar a prova da enunciada factualidade.
Sustenta o recorrente que a visualização desses vídeos, desapegada de qualquer prejuízo repulsivo permite ver “alguém que se movimenta, sorri e contribui em certa medida para uma encenação, levantando-se e teatralizando a conduta” (ficheiro ...16 aos ...:... a ...:... e ...:... a ...:...), não deixando transparecer, em momento algum, receio, medo ou outra emoção negativa – que, na ótica do recorrente, sempre seria percetível da expressão facial e eventuais trejeitos do visado –, nem a sua postura corporal denotando quaisquer sinais de proteção ou defesa – por exemplo braços cruzados, recuo em face dos interlocutores ou “encolhimento” –.
Aduz, ainda, o recorrente, que o depoimento da testemunha WW – nas passagens da respetiva gravação especificadas –, também não permite sustentar a factualidade dada como provada e agora impugnada, não podendo o reconhecimento de vozes gravadas fazer-se através de prova testemunhal, como aconteceu.
Neste conspecto entende o recorrente que não se estando perante um reconhecimento por filme ou gravação, o qual teria de obedecer às formalidades previstas no artigo 147º, n.ºs 2 e 5 do CPP, a identificação/reconhecimento de vozes gravadas só é possível e válida, com recurso a prova pericial, cuja realização no presente caso, apesar de determinada, revelou-se inviável – porquanto “não se lograram pistas de som em quantidade e qualidade suficiente que permitissem a comparação” –.
Por último, manifesta o recorrente, que o depoimento da testemunha WW se revelou, de alguma forma, condicionado, ao afirmar reconhecer a voz do arguido/recorrente. Esse reconhecimento só aconteceu após a prévia exibição das guias de patrulha e escalas de serviço respeitantes às datas indicadas e na sequência da advertência feita pelo Tribunal de incorrer em responsabilidade criminal, além de não poder deixar de se estranhar o facto de a testemunha WW não conseguir reconhecer a quem pertence a voz feminina audível no dito vídeo.
Vejamos:
O Tribunal a quo fundamentou a decisão de facto, no respeitante à situação de ... de ... de 2018, nos seguintes termos:
«Importa, então, fazer a análise crítica da prova relativamente a cada um dos episódios que vêm descritos na pronúncia. Todavia, cabe desde já referir, com respeito a todos eles, que os vídeos que os suportam foram exibidos em audiência, pelo que o conjunto de factos relativos ao que ali é visível/audível, dispensa quaisquer outros considerandos.
(...)
A testemunha WW, não teve quaisquer dúvidas em identificar a voz do arguido AA como sendo a de quem está a filmar e a dar as ditas ordens ao referido indivíduo, no interior do Posto ..., sendo que não foi lavrado qualquer expediente relativo à presença/condução daquele ao Posto. Apesar de não ter prestado declarações, extrai-se do requerimento de abertura de instrução apresentado que o arguido admite a autoria de tais factos, apenas contesta a autoria da agressão de que aquele indivíduo foi vítima assim que conseguiu dizer “VV, fode-me os cornos”.
Não podemos deixar de dizer que este tribunal discorda em absoluto da análise desta situação feita quer pelo MP, quer pela JIC. Para nós apresenta-se como óbvio que o arguido MM também ali se encontrava (que tem a alcunha “VV”, como afirmou a testemunha WW). Por outro lado, como é do conhecimento comum, o calão “foder os cornos” a alguém significa bater, mais propriamente bater na cabeça de alguém, e com algum grau de violência. Donde, assim que o indivíduo, seguindo as instruções do arguido AA, consegue dizer “VV, fode-me os cornos”, o “VV” atinge-o com uma violenta pancada na cara.
Fechado este parêntesis, a subjugação a que o indivíduo em causa foi sujeito resulta evidente do visionamento dos respectivos vídeos. E não se diga que se tratou de mera brincadeira com um desfecho inesperado. Não só pelo que acima se disse a propósito do previsível desfecho das ordens que iam sido dadas, como a aparente colaboração do visado, que se encontrava no interior de um Posto da GNR, perante vários militares (apesar de apenas um ter sido identificado), perante uma actuação tão despropositada como aquela, era a melhor hipótese que aquele cidadão tinha para evitar males maiores.
Considerou-se ainda a informação prestada pela GNR a fls. 280 e 280vº, donde resulta que o arguido AA não estava, àquela hora, de serviço, e que não existe qualquer expediente relativo à presença daquele cidadão no Posto.
Relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência do arguido na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de um militar da GNR, sendo também evidente que o arguido AA utilizou essas funções para criar ascendente sobre a vítima, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de um cidadão estrangeiro, que não sabia sequer o alcance das expressões cuja repetição lhe estava a ser determinada, sem qualquer hipótese de fuga/reacção. Também o ambiente de gáudio que reinou entre os militares presentes, protagonizado pelo arguido AA, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade da vítima de se opor a tal comportamento, representando os vídeos um troféu dessa actuação.
A vítima não foi identificada, consequentemente não foi ouvida. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foi sujeita, pelo receio que sentiu e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelo arguido AA.
Quanto aos factos não provados a respeito desta situação, não foi produzida prova que os sustentasse. Uma última palavra apenas para afirmar que, não obstante a actuação do arguido AA ter sido dirigida um cidadão estrangeiro e de ter tirado partido da situação de fragilidade em que o mesmo se encontrava perante si, importaria um salto muito grande, que não tem suporte factual, concluir que o arguido agiu num contexto de ódio racial ou xenófobo.»
Que dizer?
Relativamente ao argumento do recorrente de que a visualização do vídeo em causa não permite extrair a conclusão de o indivíduo visado ter sido subjugado a proceder de acordo com o que lhe foi ordenado, o mesmo “cai por terra”, à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, nas concretas circunstâncias em que os factos ocorrerem. Com efeito, como considerou o Tribunal a quo «a aparente colaboração do visado, que se encontrava no interior de um Posto da GNR, perante vários militares (apesar de apenas um ter sido identificado), perante uma actuação tão despropositada como aquela» revela-se consentânea com a atitude de quem interiorizou ter de fazê-lo, para evitar males maiores.
No tocante à alegada inobservância das formalidades da prova por reconhecimento, não sendo visualizado no vídeo reportado à situação de .../.../2018, a imagem de quem dá as ordens ao visado, nem de outras pessoas presentes [ainda que se observe a imagem de uma pessoa refletida num vidro existente no compartimento onde os factos ocorreram (cf. fotograma de fls. 102, parte superior), no estudo comparativo realizado pelo LPC, das imagens captadas nos vídeos e a fotografia aposta no cartão de cidadão dos ora arguidos, aquela imagem foi descartada, por se encontrar desfocada e ser reduzida a informação digital útil disponível, como decorre do relatório pericial junto a fls. 177 a 199 dos autos], não houve lugar a prova por reconhecimento de pessoas
Quanto ao reconhecimento da voz do arguido AA, pela testemunha WW, no registo áudio concernente aos vídeos em apreço, contrariamente ao que entende o recorrente, salvo o devido respeito, não estamos perante um facto, que só possa ser provado através de perícia à voz, no caso, por comparação entre a(s) voz(es) audíveis nos vídeos em apreço e o registo da gravação da voz do arguido.
Tal como sucede no reconhecimento de pessoas, se uma testemunha conhece o suspeito ou arguido, anteriormente aos factos e o identifica como sendo autor dos mesmos, essa identificação não se insere no âmbito da prova por reconhecimento, que deva obedecer ao formalismo previsto no artigo 147º e seguintes, do CPP, mas da prova testemunhal, sujeita à livre apreciação do tribunal[11].
De igual modo, se uma testemunha afirma reconhecer a voz de determinada pessoa (por ser das suas relações de amizade, familiares, trabalho, etc., privando amiúde com a mesma), numa gravação áudio, estamos perante prova testemunhal, que o tribunal apreciará livremente, tratando-se de prova válida.
É o que sucede no presente caso, em relação à testemunha WW ao identificar/reconhecer a voz, audível nos referenciados vídeos, da pessoa que dá as ordens ao visado, como sendo a do arguido/recorrente AA. Sendo a testemunha, à época, comandante do Posto Territorial ..., da GNR, onde o arguido AA estava colocado, há meses, é perfeitamente normal que conseguisse reconhecer a sua voz, ainda que gravada.
O Tribunal a quo atribuiu credibilidade ao depoimento da testemunha WW explicitando as razões pelas quais assim decidiu, consignando: «WW, à data comandante do Posto ..., que privava diariamente com os arguidos, começou o seu depoimento com uma tentativa vã de se livrar do embaraço/pressão/incómodo que lhe causou o facto de ter de se pronunciar sobre a actuação dos seus subordinados. Uma vez chamado à razão, nomeadamente face à possibilidade de ter de enfrentar um processo crime por falsidade de depoimento, a testemunha passou a apresentar uma postura colaborante mas, de cada vez que era pressionado, principalmente pela defesa dos arguidos, de novo procurava o caminho mais fácil, não se querendo comprometer. Tal implicou que sempre que isso aconteceu o tribunal tivesse de o chamar à razão, pelo que, quando depôs de forma serena, focada, espontânea e objectiva, as suas declarações mereceram inteira credibilidade.».
Conforme supra referimos, a atribuição de credibilidade, ou não, à prova testemunhal assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que o tribunal de recurso só poderá censurar se for contrária às regras da experiência comum e lógica.
Ora, não se descortinando, antes pelo contrário, no juízo alcançado pelo tribunal recorrido, subjacente à tomada de decisão no sentido de atribuição de credibilidade ao depoimento da testemunha WW, qualquer afronta às regras da experiência comum e da lógica racional, passível de poder constituir violação do princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no artigo 127º do CPP, não pode esta Relação censurar esse juízo.
Termos em que, no referente à matéria factual provada constante dos pontos 1.3. a 1.11, se conclui não existir qualquer erro de julgamento, pelo que, se mantém inalterada.
No tocante à situação de ... de ... de 2018 – pontos 1.13, 1.14, 1.17, 1.18 e 1.21 a 127, da matéria factual provada:
Alega o recorrente que nesta situação, tal como nas situações referentes a .../.../2019 e a .../.../2019, não consta da matéria de facto provada terem as filmagens sido feitas por si ou com recurso ao seu telemóvel e constituindo essa factualidade antecedente lógico, não poderia concluir-se pela presença do ora recorrente nos episódios onde não são visíveis os rostos.
Por outro lado, aduz o recorrente, relativamente ao relatório de extração dos ficheiros do telemóvel que lhe foi apreendido, junto a fls. 693 e ss., o Tribunal a quo apenas atentou a parte desse relatório, não o analisando na sua globalidade. A análise da totalidade desse relatório, na ótica do recorrente, impõe decisão diversa relativamente à autoria e data dos vídeos em causa ou, pelo menos, leva a que exista uma dúvida inultrapassável em face dos elementos disponíveis.
Neste conspecto, alega o recorrente que, pese embora a perícia não tenha sido posta em causa, o relatório de extração, a fls. 693 e 694, não pode ser ignorado, dele resultando o período de tempo em que o seu telemóvel, foi utilizado, concretamente, de ... de ... de 2019 a ... de ... de 2019, caindo fora dessa baliza temporal as filmagens que se imputam aos dias .../.../2018, .../.../2019 e .../.../2019, pelo que, necessariamente, ter-se-á de concluir que não foram efetuadas pelo arguido AA nem com o seu telemóvel.
Alega, ainda, o recorrente que, no relatório de extração, onde são descriminados os vários ficheiros retirados do seu telemóvel, em nenhum daqueles com relevo para estes autos, se mostra indicada a data da criação do ficheiro, somente a data da respetiva modificação. Donde, considera o recorrente, o Tribunal a quo não podia dar como provadas as datas da prática dos factos, com base nas datas daqueles ficheiros e, consequentemente, fazer o cruzamento de dados com as escalas de serviço, por forma a apurar a autoria das gravações e o local dos factos. Tal não era possível, em conformidade com a lógica e a certeza reclamadas pela condenação penal.
Ademais, o aparelho utilizado para as filmagens, android, com a possibilidade de alterar a localização de ficheiros, pode constituir um indício, mas não prova inabalável.
Por último, reitera o recorrente, o anteriormente aduzido relativamente ao reconhecimento de vozes por parte da testemunha WW e à falta de espontaneidade do seu depoimento.
Entende, assim, o recorrente que se impunha fossem dados como não provados os factos referentes à situação de ... de ... de 2018, constantes dos pontos 1.13, 1.14, 1.17, 1.18 e 1.21 a 127, da matéria factual provada:
Atentemos na motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, respeitante ao relatório de exame pericial de extração dos vídeos do telemóvel apreendido ao arguido/recorrente AA e à situação de ... de ... de 2018:
«Veio também em sede alegações suscitar dúvidas, reservas, sobre o teor do relatório pericial de extracção dos vídeos do telemóvel (fls. 693 e sgs.), sem nunca ter suscitado, nos momentos próprios para o efeito, qualquer esclarecimento:
O tribunal, como é óbvio, não partilha de tais dúvidas, caso contrário teria oficiosamente diligenciado pelo seu esclarecimento. Fácil é de ver que as informações data/hora constantes na informação dos ficheiros extraídos são metadados gerados automaticamente pelo sistema do telemóvel apreendido ao arguido. Por outro lado, esses ficheiros foram localizados na pasta do sistema que está predefinida para a câmara do aparelho, e não em qualquer pasta de ficheiros transferidos/recebidos/partilhados, etc.
Nos casos em que aqueles mesmos vídeos foram manipulados/utilizados para qualquer finalidade, designadamente partilha na aplicação WhatsApp, o próprio relatório se encarrega de o esclarecer na coluna “Caminho”, em que a pasta de extracção deixa de ser a que está associada à câmara do telemóvel, e passa a ser outra consoante a utilização que foi dada ao ficheiro (“Vídeo Editor” fls. 697, 698, 700; “WhatsApp Vídeo/Sent” fls. 702).»
(...)
«Situação do dia ... de ... de 2018:
Importa desde logo abordar o tema da fidedignidade dos registos de escala da GNR. Isto porque, na perspectiva da defesa dos arguidos, nesta situação com mais veemência do arguido MM, tal registo, por si só, não é suficiente para comprovar quais os militares que naquele dia, àquela hora, intervieram nessa situação. E, assim, na falta de prova directa, restaria a dúvida.
O tribunal não partilha de tal visão. Como referiu a testemunha WW, os registos de escala determinam quem estará de patrulha ou de atendimento, e qualquer eventualidade, ausência ao serviço ou troca, ficará registada, o que não ocorreu em qualquer das situações a que nos reportaremos.
Acresce que, os factos foram investigados meses depois de terem sido captados aqueles vídeos, pelo que à data os arguidos não tinham qualquer desconfiança de que iriam ser alvo de investigação, tendo inclusive o cuidado de não elaborar qualquer expediente relativamente a tais situações. Ou seja, não fora a apreensão do telemóvel ao arguido AA e a extracção daqueles ficheiros, jamais se teria sabido da ocorrência dos factos objecto dos presentes autos. Caso desconfiassem que tais registos os poderiam comprometer, poderiam tê-los adulterado ou diligenciado pela fabricação de algum tipo de expediente que os desresponsabilizasse, à semelhança da actuação levada a cabo pelo arguido MM no âmbito do processo .../18, cujo acórdão condenatório se mostra junto por certidão a fls. 1252 e sgs, o que não sucedeu.
Donde não há qualquer razão para questionar a correcção e veracidade de tais registos.
Com respeito à situação em apreço, temos o registo de fls. 283 que, conjugado com o teor da informação de fls. 280, atesta que no serviço de “Patrulha às Ocorrências” do dia ... de ... de 2018, no período das ...h... às ...h..., estavam os arguidos MM e AA, com a viatura de matrícula L-..6 (..., fls. 332 e 821). Já no decurso da audiência foi junta informação relativa à requisição da dita espingarda “shotgun” (fls. 1363) donde resulta, com recurso à identificação do número de ordem do militar em causa, e ajuda à sua interpretação por parte da testemunha WW, que quem levantou pelas ...H... e a entregou às ...H... desse mesmo dia foi o arguido MM.
Acresce que, como já se disse, o vídeo foi realizado pelo telemóvel do arguido AA.
Por outro lado, este vídeo não pode ser visto isoladamente. Isto porque, surge na sequência de um outro, captado pelas ...h..., que também foi exibido em audiência e onde é visível que os militares percorrem as divisões de uma habitação onde se encontram cidadãos estrangeiros, sendo que a dado ponto se ouve a interjeição “Ó MM, chega aqui”. Confrontada com este vídeo, a testemunha WW não teve dúvidas em identificar os arguidos AA e MM como sendo intervenientes em tal situação.
Também no vídeo do que se passou no interior da carrinha, à passagem do minuto e trinta e cinco segundos, imediatamente após um dos militares dizer “vomitar não”, ouve-se (excepto para quem não quer ouvir!), embora num tom mais baixo, de novo a interjeição “Ó MM…”.
Desta sequência de vídeos, não resultam dúvidas de que, após terem estado naquela habitação, estes arguidos levaram “detido” um desses cidadãos estrangeiros e transportaram-no na carrinha afecta ao serviço de patrulha às ocorrências, sem que, no entanto, tenham lavrado qualquer expediente (como mais uma vez resulta da informação de fls. 280 vº.). Também da visualização destes vídeos não restam dúvidas de que estava presente um terceiro militar. Tudo indicia que se trataria do arguido PP, uma vez que era quem também se encontrava de serviço naquela noite, embora no atendimento, cujo apoio poderá ter sido solicitado pelos demais, sendo que a testemunha WW a ele se referiu quando lhe foi pedido para identificar as vozes, mesmo que sem grande convicção. De todo o modo, a autoria dos factos relativos a esta situação não lhe vem imputada na pronúncia, pelo que o tribunal se bastou com a menção da presença de um terceiro militar.
Especificamente quanto ao que se passou no interior da carrinha, pela postura do cidadão estrangeiro transportado, com os braços para trás, e pela ausência de qualquer acção defensiva com recurso às mãos/braços em relação às agressões na cabeça de que foi vítima, não restam dúvidas de que se encontrava algemado e que seguramente não era essa a sua vontade.
Pelo facto de serem três, e não apenas dois, os militares ali presentes, de não se saber qual o lugar que cada um ocupava, sendo ouvidas vozes quase em simultâneo, às vezes sobrepostas, não foi possível ao tribunal determinar qual dos arguidos disse ou fez o quê, sendo que a este respeito o depoimento da testemunha WW foi marcado por avanços e recuos.
Como é sabido, a dúvida que em processo penal beneficia os arguidos é a dúvida razoável. Em face do que ficou dito, qualquer dúvida que se pudesse suscitar acerca da participação dos arguidos AA e MM seria absolutamente irrazoável, apenas concebível no domínio do absurdo, esotérico ou sobrenatural.
Felizmente os arguidos abstiveram-se de desenvolver tais teorias. Já da parte das respectivas defesas o mesmo não se pode dizer. A defesa do arguido AA apostou na dúvida relacionada com a extracção dos ficheiros do respectivo telemóvel, e à qual já acima demos resposta. A defesa do arguido MM apostou na pronúncia do arguido. Concretizando: na perspectiva desta defesa, o arguido MM terá uma acentuada pronúncia ..., inconfundível, e que não é audível no vídeo em causa, acrescentando mesmo que houve uma perícia de comparação de vozes, realizada pelo LPC, com resultado inconclusivo. Abordando este último aspecto, não existiu perícia alguma com tal finalidade (vide fls. 514). Por outro lado, independentemente do desfile de testemunhas de defesa (pai, “cunhado”, camaradas de serviço, como acima se referiu), que procuraram de forma absolutamente parcial, suportar a tese da defesa, certo é que, além da sua identificação, o arguido MM não se dispôs a falar em tribunal, não tendo, por isso, o tribunal forma de comprovar se o mesmo tem ou não tem uma acentuada pronúncia.
Ainda assim, sempre se dirá que, exibida em audiência a entrevista que concedeu à D..., não se detecta qualquer pronúncia, muito menos acentuada.
Mas, tudo isto apenas para dar resposta às defesas dos arguidos, para que não argumentem que o tribunal se absteve de abordar essas putativas grandes questões, uma vez que, face ao que acima ficou dito quanto à nossa convicção, e os meios de prova que a sustentam, o arguido MM até pode ter estado calado o tempo todo em que se desenrolou aquela acção, mas que estava presente, disso não resta qualquer dúvida.
Relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência dos arguidos na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de militares da GNR, sendo também evidente que estes arguidos utilizaram essas funções para concertadamente criar ascendente sobre a vítima, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de um cidadão estrangeiro, que não dominava sequer o português, para o privarem da liberdade, algemando-o atrás das costas, assim lhe retirando qualquer hipótese de fuga/reacção, nomeadamente em relação às palmadas na cabeça que ia sofrendo. Também o ambiente de desprezo e insensibilidade que reinou entre os três militares, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade da vítima de se opor a tal comportamento, representando o vídeo um troféu dessa actuação.
A vítima não foi identificada, consequentemente não foi ouvida. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foi sujeita, pelas dores que sofreu, pelo receio que sentiu, ao ponto de ter uma “shotgun” encostada à cabeça, e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelos arguidos.
Não obstante a actuação destes arguidos ter sido dirigida um cidadão estrangeiro e de terem tirado partido da situação de fragilidade em que o mesmo se encontrava perante si, importaria um salto muito grande, que não tem suporte factual, concluir que agiram num contexto de ódio racial ou xenófobo.».
A fundamentação explicitada pelo Tribunal a quo é pormenorizada e inequívoca, sobre as provas e respetiva apreciação crítica consideradas para sedimentar a convicção, segura e à margem de qualquer dúvida, no sentido de o arguido/recorrente AA, em conjugação de esforços e de intentos com o arguido MM e outro, terem praticados os factos dados como provados com referência à situação ocorrida no dia .../.../2018.
Importa fazer notar os seguintes aspetos:
- Tal como refere o Tribunal recorrido as informações data/hora constantes dos ficheiros extraídos do telemóvel apreendido ao arguido/recorrente AA constituem dados gerados automaticamente pelo sistema operativo do aparelho;
- Os aludidos ficheiros foram localizados na pasta que está predefinida para a câmara do aparelho e não em qualquer pasta de ficheiros transferidos/recebidos/partilhados, etc..
- Foram consultados/acedidos os dados gerados pelo sistema operativo do telemóvel apreendido ao arguido AA, aquando da extração dos ficheiros vídeo desse telemóvel, conforme resulta do teor do relatório de exame pericial realizado pela PJ, no âmbito do proc. .../18 – do qual foi extraída a certidão que deu origem aos presentes autos – estando esse relatório, 2ª via, em suporte/pen drive, acondicionado no envelope, a fls. 278 e cujo resumo e informação relevante, com referência aos ficheiros vídeo, que ao caso importam, constam do auto de fls. 690 a 703. Do aludido relatório do exame pericial de extração constam informações não só respeitantes à data da criação, como da modificação dos ficheiros vídeo, datas essas que são coincidentes.
- A informação da modificação de um ficheiro não significa que o mesmo haja sido alterado no seu conteúdo. Sempre que há uma ação realizada sobre o ficheiro, o sistema gera a informação sobre a data da hora em que ocorreu. E essa modificação pode respeitar a operações tais como o ficheiro ter sido movido para uma determinada pasta, copiado, visionado, etc.
- A circunstância invocada pelo recorrente, de o telemóvel/equipamento que lhe foi apreendido, de acordo com a informação do dispositivo constante do relatório de extração, figurar como data da ativação do telefone .../.../2019 e como data do último uso conhecido .../.../2019 – fls. 694 – e os vídeos reportados às datas de .../.../2018, .../.../2019 e .../.../2019, não se situarem dentro daquele período temporal, não permite retirar a conclusão pretendida pelo recorrente, no sentido de não poderem ter sido gravados com a câmara desse telefone e nas datas indicadas. Com efeito, analisado o aludido relatório de extração, não se poderá considerar que a data de ativação do telefone e do último uso conhecido – obtida no “sistema de ficheiros” –, respeitam ao equipamento propriamente dito, sendo que, na “extração lógica avançada”, constam a data/hora de telefone: .../.../2018, ...:...:... – cf. fls. 694 –.
Uma última nota se impõe para referir que os dados gerados pelo sistema operativo de um telemóvel, no caso estando relacionados a imagens, designadamente, referentes à data e hora em que foram captadas, sendo o telemóvel apreendido e realizado exame pericial, com a extração dos ficheiros de vídeo e obtenção das informações a eles respeitantes, não estão abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, emanada do Acórdão do TC, n.º 268/2022. Apenas os dados de tráfego e localização conservados/armazenados pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações estão abrangidos por essa declaração de inconstitucionalidade.
Concluímos, assim, inexistir erro de julgamento, por parte do Tribunal a quo, ao dar como provados os factos constantes dos pontos 1.13, 1.14, 1.21 a 127, referentes à situação de ... de ... de 2018, pelo que, se mantêm inalterados.
Quanto à situação de situação de ... de ... de 2019 – pontos 1.35, da matéria factual provada:
Sustenta o recorrente que o visionamento dos três ficheiros vídeo (...57; ...23; ...44), que serviram para o Tribunal a quo sedimentar a convicção formada dando como provados os factos agora impugnados, não suportam essa convicção.
Nesse enfoque, alega que a imagem dos três visados em posição “prancha” apenas é visível no ficheiro ...57 e nela o recorrente não aparece, surgindo apenas o arguido GG, na proximidade dos visados. Donde, não podia o Tribunal a quo dar como provado que o ora recorrente ordenou aos três indivíduos que se colocassem na posição de “prancha”, antes tendo de concluir que essa ordem foi dada pelo arguido GG.
Com referência à atuação empreendida no dia ... de ... de 2019 e ao concreto ponto da matéria de facto provada impugnado pelo recorrente, releva o segmento da motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, que se transcreve: «Os vídeos respectivos são claros quanto a quem teve intervenção nesta situação (AA, DD, GG e JJ, o que é ainda reforçado pelo relatório pericial de comparação facial, de fls. 177 e sgs., e a informação da GNR de fls. 1139) e de que forma actuou. Daí que o tribunal concretizou mais em detalhe essas intervenções, por comparação ao descrito na pronúncia (com o consequente reflexo nos não provados), não havendo aqui necessidade de qualquer comunicação de alteração não substancial de factos, dado que foi ao encontro do pugnado pelas defesas dos respectivos arguidos em sede de alegações.
Mais uma vez, o tribunal socorreu-se da informação prestada pela GNR a fls 280 vº, e secundada pela testemunha WW, que também aqui não foi lavrado qualquer expediente relativo à presença daqueles três indivíduos no Posto .... (...).»
Da visualização dos três vídeos mencionados, sequenciais dos acontecimentos ocorridos na concreta situação reportada ao dia .../.../2019, resulta que as ordens dirigidas aos três visados/ofendidos, para que se colocassem em determinada posição, foram sendo dadas pelo arguido/recorrente AA, por palavras e assobios. Nas imagens visualizadas, em que os visados surgem já em posição “prancha”, estando o arguido/recorrente AA junto dos mesmos, tal como o arguido GG, a inferência de terem sido estes dois arguidos a darem as ordens para que os visados se colocassem/mantivessem nessa posição, revela-se lógica.
Donde, também nesta parte, não assiste razão ao recorrente e, como tal, mantém-se inalterada a matéria factual dada como provada no ponto 1.35.
Por último, quanto à situação de ... de ... de 2019 – pontos 1.47 a 1.50 e 1.52 a 1.57 da matéria factual provada:
Alega o recorrente que relativamente ao local da ocorrência dos factos em causa, não foi produzida qualquer prova, na audiência de julgamento, de que resultasse ser «a rotunda da entrada de ..., na EN ...0, km ...».
Considera o recorrente que a única forma de o Tribunal a quo poder ter dado esse facto como provado, no ponto 1.47, era tomando conhecimento e valorando o depoimento prestado pela testemunha WW, em sede de inquérito, perante a Polícia Judiciária. A ser esse o caso, não tendo a leitura desse depoimento, em audiência, sido requerida, nem autorizada, não podia ser valorado, constituindo prova proibida, tendo sido violado o disposto nos artigos 355º e 356º, ambos do CPP, com a consequente existência de nulidade daí decorrente.
No tocante à impugnação dos demais factos dados como provados respeitantes à situação de .../.../2019, o recorrente reitera os fundamentos anteriormente invocados, atinentes à identificação de vozes pela testemunha WW e à incorreta análise do relatório pericial de extração dos vídeos em questão.
Considera o recorrente que não se fazendo constar dos factos provados ter sido ele quem procedeu às filmagens ou consentiu que outrem as fizesse com recurso ao seu telemóvel, sendo essa factualidade antecedente lógico, não poderia concluir-se pela sua presença neste episódio.
Donde, pugna o recorrente para que sejam dados como não provados os factos constantes dos pontos 1.47 a 1.50 e 1.52 a 1.57, da matéria factual provada.
Vejamos:
O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a factualidade dada como provada, com referência à situação de ... de ... de 2019:
«Uma vez que as imagens não permitem a identificação dos militares que ali se encontram e a testemunha WW apresentou algumas hesitações na identificação das vozes, novamente a convicção do tribunal assentou nos registos fornecidos pela GNR quanto à identificação dos elementos que integravam a patrulha às ocorrências (PP, AA e SS, fls. 280 vº, 282 vº e 1239), o local onde se encontravam (cf. fotogramas de fls. 88 a 91 do auto de visionamento de imagens), conjugados com o dia e hora a que se reporta o vídeo em causa, e ainda o facto de ter sido realizado e extraído do telemóvel apreendido ao arguido AA (relatório pericial de fls. 693 e sgs.), dando-se aqui por reproduzido tudo o que acima ficou dito quanto às razões pelas quais o tribunal considera absolutamente correctos e fidedignos tais elementos probatórios.
Pelo mesmo motivo apontado, não foi possível atribuir concretamente a qualquer dos arguidos as palavras e expressões que são audíveis no vídeo, nem afirmar que foi o arguido SS que deu o aparelho a usar ao indivíduo.
Ao contrário do que vinha descrito na pronúncia, da visualização do vídeo resulta que o indivíduo apresenta manifestações de ardor na boca (abana a mão junto à boca), mas não é visível nem audível qualquer pedido de socorro. Por outro lado, o telefone da vítima toca duas vezes em sinal de recepção de chamada, sendo impedida de atender pelos arguidos. Ou seja, a vítima não tentou pedir socorro usando o telemóvel.
Relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência destes arguidos na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de militares da GNR, sendo também evidente que estes arguidos utilizaram essas funções para concertadamente criar ascendente sobre a vítima, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de cidadão estrangeiro, que não dominava sequer o português, para o subjugarem, o levar a obedecer aos seus comandos, sem qualquer hipótese de reacção, levando-o a inspirar gás pimenta que subrepticiamente haviam colocado no tubo de plástico utilizado na realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, desta forma lhe provocando dores. Também o ambiente de gáudio, desprezo e insensibilidade que reinou entre os três militares, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade da vítima de se opor a tais comportamentos, representando o vídeo um troféu dessa actuação.
A vítima não foi identificada, consequentemente não foi ouvida. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foi sujeita, pela dor que sofreu, pelo receio que sentiu, e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelos arguidos.
Não obstante a actuação destes arguidos ter sido dirigida um cidadão estrangeiro e de terem tirado partido da situação de fragilidade em que o mesmo se encontrava perante si, importaria um salto muito grande, que não tem suporte factual, concluir que agiram num contexto de ódio racial ou xenófobo.
(...).».
Relativamente ao local da ocorrência dos factos, decorre da motivação da decisão de facto que o Tribunal a quo formou a sua convicção com base nos fotogramas de fls. 88 a 91 do auto de visionamento de imagens. Consta-se que nessas imagens, de onde foi extraído o fotograma inserto a fls. 91, perceciona-se, além do mais, a existência de sinais de trânsito de aproximação de rotunda e uma placa, tornando fácil, para quem conhece o local em questão, identificá-lo.
Assim e neste conspecto, conquanto a testemunha WW possa não se ter referido ao local dos factos, no depoimento prestado, na audiência de julgamento, as imagens captadas no local através das filmagens vídeo efetuadas permitem identificá-lo, para quem, o conheça, como o Coletivo de Juízes, certamente, dado tratar-se da área da Comarca onde exercem funções.
Donde, concluir-se não ter sido utilizada/valorada prova proibida, na formação da convicção do Tribunal a quo, quanto ao local dos factos em referência, nem existir a nulidade arguida, por violação dos artigos 355º e 356º, ambos do CPP.
Quanto à participação do arguido/recorrente AA no cometimento dos factos de que se trata, a convicção sedimentada pelo Tribunal a quo, formada com base nas provas enunciadas e respetiva apreciação crítica nos termos explicitados no acórdão recorrido, mostra-se devidamente sustentada.
Reiteramos aqui tudo o que supra referimos, refutando a argumentação expendida pelo recorrente relativamente ao exame pericial de extração dos vídeos do telemóvel apreendido ao recorrente, bem como no referente ao depoimento da testemunha WW.
Resultando do teor do aludido relatório pericial a informação obtida respeitante aos dados automaticamente gerados pelo sistema operativo do telemóvel, a data e hora da criação do vídeo em apreço, bem como a respetiva localização/caminho reportado à câmara do mesmo telemóvel, elementos probatórios que conjugados com a escala de serviço/patrulha às ocorrências, respeitantes a essa data e horário, confirmada pelo depoimento da testemunha WW, constituída por três militares, um deles, o ora recorrente AA, sendo visível nas imagens filmadas estarem dois militares da GNR devidamente fardados e dispondo de equipamentos, designadamente, de um aparelho “alcoolímetro”, que foi utilizado na prática dos factos, o raciocínio lógico-dedutivo seguido pelo Tribunal a quo, dando como provado esse facto, mostra-se sustentado em prova bastante para que assim decidisse, com a segurança exigível e para além de qualquer dúvida.
Termos em que, também no referente à matéria factual dada como provada nos pontos 1.48 a 1.50 e 1.52 a 1.57, da matéria factual provada, se conclui não existir qualquer erro de julgamento, pelo que se mantém inalterada.
2.3.1.4. Da violação do princípio in dubio pro reo
Sustenta o recorrente ter sido violado o princípio in dubio pro reo, ao darem-se como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido. Nesta situação, conquanto o Tribunal a quo não tenha manifestado dúvida, do confronto com a prova produzida, ter-se-á de concluir que se impunha um estado de dúvida.
Neste enfoque, alega o recorrente que analisado o relatório pericial, na sua totalidade, abrangendo o relatório de extração que o integra, não desconsiderando nenhuma das suas páginas, não podem ser consideradas provadas as datas aí referidas como sendo as da prática dos factos e, consequentemente, o cruzamento de dados com eventuais escalas de serviço, daí se alcançando a autoria das gravações e o local onde ocorrem, não é possível com a lógica e certezas reclamadas pela condenação penal.
Entende, por isso, o recorrente não ser possível, para além de toda a dúvida razoável, alcançar a convicção probatória da sua presença e intervenção nos factos descritos nos pontos 1.13, 1.14,1.15, 1.18, 1.21, 1.22, 1.23, 1.24, 1.25, 1.26, 1.27, 1.47, 1.48, 1.49, 1.50, 1.51, 1.52, 1.53, 1.54, 1.55, 1.56, 1.57 e como tal, impunha-se a aplicação do princípio in dubio pro reo, dando-se tais factos como não provados com a consequente absolvição do arguido quanto aos crimes por que foi condenado referentes às situações de ... de ... de 2018 e ... de ... de 2019.
Apreciando:
O princípio in dubio pro reo, enquanto decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, a resolva em sentido favorável ao arguido.
Conforme vem enfatizado pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso apenas pode censurar o não uso do princípio in dubio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[12].
Noutra vertente – a que é colocada pelo recorrente –, a violação do princípio do in dubio pro reo, verificar-se-á, quando, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, resulte demonstrado, o erro na apreciação da prova produzida, em termos de se concluir que o julgador, ao condenar o arguido, com base na prova a que atendeu e na valoração a que procedeu, contrariou as regras da experiência comum, quando, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido[13].
Como se refere no Acórdão do STJ, de 15/06/2000[14] «O princípio in dubio pro reo acha-se intimamente ligado ao da livre apreciação da prova do qual constitui faceta e este último apenas comporta as exceções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida ou ofensiva das regras da experiência comum.»
Ora, atentando-se nas razões que presidiram à valoração da prova produzida, enunciadas na motivação da decisão de facto, que se revelam consentâneas com a regras da experiência comum e não se descortinando a violação de quaisquer normativos ou princípios relativos ao direito probatório, decidindo o Tribunal a quo, de acordo com a livre convicção, nos termos do disposto no artigo 127º do CPP, fica afastada a possibilidade de a prova produzida determinar que o Tribunal a quo, devesse ter sido confrontado com dúvida razoável e fundada, em termos de valoração da prova, que devesse resolver em sentido favorável ao arguido/recorrente.
Nesta conformidade, impõe-se concluir não existir violação, por parte do Tribunal a quo, do princípio in dubio pro reo.
Improcede, assim, também este fundamento do recurso.
2.3.1.5. Do erro de subsunção
Sustenta o recorrente existir erro na qualificação jurídica dos factos provados.
Concretamente:
No respeitante aos factos reportados à situação ocorrida no dia .../.../2019, estando em causa agachamentos e reguadas desferidas com uma pequena régua de plástico (que nem foi usada pelo recorrente), os mesmos têm de reputar-se como insignificantes do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime previsto no artigo 143º n.º 1 do CP, não estando, por isso, preenchido, desde logo, o tipo objetivo desse crime.
Quantos aos demais factos, cuja subsunção ao crime de ofensa à integridade física qualificada, foi efetuada pelo Tribunal a quo, entende o recorrente não estar preenchida a circunstância qualificativa prevista na al. m) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, não sendo a mesma de funcionamento automático.
No atinente ao crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, defende o recorrente não estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo.
Segundo entende o recorrente, quando o resultado pretendido pelo arguido é humilhar, ofender física e psiquicamente as vítimas, sendo o prejuízo e inerente ofensa na saúde e na dignidade destes, são outros os tipos de legais de crime preenchidos, v.g. ofensa à integridade física, injúria ou coação, não o crime de abuso de poder.
Aduz, ainda, o recorrente, não está demonstrado que tivesse agido com intenção de obter um benefício ou causar prejuízo, não bastando um mau uso ou um uso abusivo dos poderes por parte do agente para se verificar o preenchimento do tipo.
Manifesta, por último, o recorrente, ter no acórdão recorrido sido dada como provada uma intenção/objetivo que não constava da pronúncia – qual seja «a humilhação a que a vítima foi sujeita, pelo receio que sentiu e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe proteção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelo arguido AA» –, contrariando a jurisprudência estabelecida no Acórdão uniformizador n.º 1/2015, do STJ, proferido em 20/11/2014, publicado no DR, I-Série, de 27/01/2015.
Apreciando:
Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada:
Sob a epígrafe “Ofensa à integridade física simples”, dispõe o artigo143º, n.º 1 do Código Penal: «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
Estatui o artigo 145º do CP, na parte que aqui releva:
«1. Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143º;
(...).
2. São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132º.».
Por último, dispõe o artigo 132º, n.º 2, al. m) do CP que: «É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (...), entre outras, circunstância de o agente:
m) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.».
O bem jurídico tutelado pelo crime e ofensa à integridade física é a integridade física e psíquica.
O tipo objetivo do crime de ofensa à integridade física simples consiste em causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem.
«Ofensa corporal é qualquer alteração desfavorável produzida no organismo de outrem, anatómica ou funcional, local ou generalizada, física ou psíquica, seja qual for o meio empregue para produzi-la[15]»
Não se exige que em resultado de tal ofensa seja provocada lesão corporal ou sequer que a mesma tenha causado dor[16].
Certo setor da doutrina e jurisprudência vem defendendo que, quando se tratem de ofensas insignificantes, deverão ser excluídas do tipo de crime do artigo 143º do Código Penal, por não terem dignidade para lesar o bem jurídico protegido pela incriminação em apreço[17].
Perfilhamos este entendimento.
Com efeito, como se refere no Acórdão da RC de 24/05/2023[18]:
«III - Para preencher o tipo objectivo do crime de ofensa à integridade física é admissível qualquer meio de ofender o corpo ou a saúde desde que se verifique, como resultado, a lesão do corpo ou da saúde de alguém com alguma expressão ou significado, isto é, é necessário que o dano produzido pela acção do agente seja juridicamente apreciável.
IV - Não adquirem dignidade penal, sob o ponto de vista do bem jurídico tutelado, as situações em que ocorre ausência de consequências da agressão ou em que estas sejam insignificantes.
V - Por isso o crime de ofensa à integridade física configura-se como um crime de dano quanto ao bem jurídico tutelado, uma vez que o tipo exige a verificação do resultado lesão do corpo ou da saúde de outrem sendo, por isso, necessário fazer a imputação objectiva desse resultado à conduta ou à omissão do agente, nos termos do artigo 10.º do Código Penal.»
Em determinadas situações para se poder aferir se a atuação do agente para com o sujeito passivo, tem, ou não, relevância bastante para lesar o bem jurídico tutelado pelo crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º n.º 1 do CP, não se poderá perder de vista o contexto e circunstancialismo em que ocorreu.
O preenchimento do tipo legal do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto no artigo 145º do Código Penal, pressupõe a verificação de uma lesão da integridade física simples (artigo 143º), grave (artigo 144º) ou a verificação das condutas típicas previstas no artigo 144º-A (mutilação genital feminina) ou no artigo 144º-B (tráfico de órgãos humanos), todos do CP, sendo necessário, ainda, que a conduta do agente revele uma censurabilidade ou perversidade acrescida, a qual poderá decorrer das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132º, entre outras.
Como refere Paula Ribeiro de Faria[19] «a especial censurabilidade ou perversidade do agente em relação ao crime de ofensa à integridade física, para cujo preenchimento se remeta para as circunstâncias previstas a propósito do tipo legal de homicídio, artigo 132° C. Penal, terá que ser apreciada em função do bem jurídico ali tutelado – a integridade física – e não do bem jurídico tutelado por este último – a vida.»
Existe especial censurabilidade para efeitos do disposto no artigo 132º do Código Penal, suscetível de qualificar o crime de ofensa à integridade física, se as circunstâncias em que a ofensa foi causada forem de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. E existirá especial perversidade do agente, se a conduta empreendida revelar uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade[20].
À semelhança do que ocorre com o crime de homicídio, a qualificação do crime de ofensa à integridade física, tem lugar, em virtude do maior grau de culpa que se considera existir sempre que o resultado, no caso a ofensa, seja causado em circunstâncias reveladoras de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando, o n.º 2 do artigo 132º do CP, a título exemplificativo, algumas dessas circunstâncias, as quais não são de funcionamento automático. Tal significa que uma vez verificada qualquer dessas circunstâncias, não se pode, desde logo, concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Este entendimento, que acolhemos, vem sendo sufragado pela doutrina e jurisprudência maioritárias[21].
Como se refere no Acórdão da RG de 11/03/2019[22]: «A enumeração das circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade feita no artº 132º do Código Penal, aplicável ao crime de ofensa à integridade física qualificada, ex vi artº 145º, nº 2, do mesmo diploma legal, não é taxativa, mas exemplificativa, sendo certo que as enunciadas no nº 2 não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa. O que significa que não são de funcionamento automático, bem podendo dar-se o caso de se verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas, e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.».
Em todos os casos de qualificação do crime de ofensa à integridade física – tal como no homicídio –, impõe-se uma análise das circunstâncias que o rodearam e a conclusão de que elas exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou são merecedoras de um severo juízo de censura. Por conseguinte só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo positivo ou negativo sobre o requisito da agravação especial.
Haverá, ainda, que ponderar todas as circunstâncias do caso concreto, porquanto será deste conjunto, no contexto da atuação do agente que se há-de retirar essa especial censurabilidade ou perversidade, ou seja um grau de culpa agravado.
Para que o tipo subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada se mostre preenchido é necessário que o resultado seja imputado ao agente a título de dolo, já que se exige um verdadeiro dolo de dano ou de resultado. Por outras palavras, o dolo tem de abranger não só o delito fundamental, como as consequências que o qualificam.
Baixando ao caso dos autos, o Tribunal a quo operou a subsunção das condutas do arguido/recorrente, enquanto coautor, no que agora releva, a cinco crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Código Penal.
Fundamentou o assim decidido, nos seguintes termos:
«(...)
Situação do dia ... de ... de 2018:
Em causa está a imputação aos arguidos AA e MM da prática, em coautoria e em concurso real, de um crime de abuso de poder, um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de sequestro agravado.
Cumpre, em primeiro lugar, referir que para que o tribunal dê, como dará, por verificada a prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e sequestro agravado terá de concluir, como concluirá, que a actuação dos arguidos se desenrolou num quadro de grave abuso de autoridade.
Assim sendo, repristinando o que acima ficou dito quanto à relação do crime de abuso de poder com outros tipos legais, de concurso aparente por consumpção ou subsidiariedade, teremos que concluir que este crime fica consumido pela punição dos demais.
Donde, serão os arguidos AA e MM absolvidos do crime de abuso de poder.
Quanto ao sequestro agravado, resultou provado que os arguidos, sem qualquer justificação para tal, algemaram a vítima com as mãos atrás das costas e a transportaram, contra a sua vontade, na carrinha da GNR com uma espingarda “shotgun” encostada ao rosto, ficando assim privada da liberdade de se deslocar ou movimentar de um sítio para o outro.
Mais resulta dos factos provados que os arguidos actuaram conjunta e concertadamente, na execução de um plano comum, de forma livre, deliberada e consciente. Ou seja, com dolo directo.
Manifestamente que os arguidos agiram com grave abuso de poder, dado que violaram todos os deveres supra elencados, colocando em crise elementares princípios e direitos constitucionalmente consagrados, como sejam a dignidade da pessoa humana (art. 1º) e o direito à liberdade pessoal (art. 27º) – ambos da CRP.
E quando tais violações são praticadas por aqueles cuja missão é precisamente prevenir e combater esse tipo de práticas, para isso se servindo da autoridade em que estão investidos e dos meios que o Estado coloca à sua disposição, então não há como não considerar que agiram em manifesto e grave abuso dessa autoridade.
Para mais, agiram em relação a um imigrante que sequer domina a língua portuguesa, disso tirando partido para o mais facilmente subjugarem.
E tudo isto sem lavrarem qualquer expediente de serviço a respeito da detenção daquele indivíduo, donde se pode concluir que inexiste qualquer réstia de fundamento válido que, de alguma forma, pudesse atenuar a especial censura de que é merecedora toda a descrita actuação dos arguidos.
Pelo que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude/culpa, serão os arguidos AA e MM condenados pela prática em coautoria do crime de sequestro agravado que vêm pronunciados.
Quanto à ofensa à integridade física, dos factos provados resulta que, durante o transporte do indivíduo na carrinha da GNR, o mesmo indivíduo foi vítima de várias palmadas na cabeça. Não se apurou qual dos militares presentes o agrediu. Todavia, considerando o quadro geral em que se desenrolou a actuação dos arguidos, surgindo aquelas agressões num contexto de sequestro em que o indivíduo, algemado, se expressava no seu idioma, e como forma de o castigarem (“és uma miséria”) e calarem (“be quiet”), sem que qualquer deles tenha feito cessar a acção criminosa que decorria, tendo o domínio do facto, manifestamente que está verificada a comissão em coautoria, com dolo directo, por acção ou omissão (art. 10º nºs. 1 e 2 do Cód. Penal), do crime de ofensas à integridade física.
Com respeito à qualificativa, em que se apela à especial censurabilidade ou perversidade das circunstâncias, concordamos em absoluto com a posição assumida no Ac. TRL de 15-12-2009, Proc. 1884/06.4TABRR.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, quando se afirma: «(…) Quanto a nós, a essência daquela al. l) – actualmente alínea m) – do n.º 2, do art. 132.º do Cód. Penal, não se aterá tanto à reprovação e desvalor social externo do acto praticado, mas antes, na quebra das exigências funcionais de pessoas dotadas de determinados poderes e deveres públicos, mormente, no seu relacionamento enquanto autoridade com os demais cidadãos. (…)
Depois, (…) no que concerne à especificamente constante da al. l) – actualmente alínea m) – do n.º 2, daquele art. 132.º (que recorde-se, foi introduzida pela reforma do Código Penal de 1998), verifica-se uma particularidade que não ocorre nas anteriores: Tal como o anota o Prof. Figueiredo Dias no Comentário (cfr. obra e local já citados), “se um funcionário nessa qualidade, mata outra pessoa fora dos casos de justificação ou de exclusão de culpa (…) terá existido sempre abuso de autoridade e este terá sido sempre grave”, donde se poder “duvidar da adequação desta circunstância à técnica dos exemplos-padrão. A ter-se por bom o fundamento de política criminal da qualificação, por insuficientemente considerado nos outros exemplos-padrão (nomeadamente nos relacionados com o “meio” e com a “motivação”), parece que melhor fora que o caso conduzisse a uma qualificação a nível do tipo objectivo de ilícito”.»
Continuando a seguir a fundamentação do acórdão citado, os arguidos agiram com dolo directo e intenso, não podendo desconhecer os deveres a que estavam vinculados. A sua actuação ocorreu em condições que denunciam um acentuado desvalor da conduta relativamente ao padrão normal de actuação suposto pelo tipo matriz, dela resultando uma imagem global do facto que convoca um especial juízo de censura agravada.
Donde se conclui que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa serão os arguidos AA e MM condenados, em coautoria material e em concurso real, efectivo, pela prática do crime de ofensas à integridade física qualificada de que vêm pronunciados.
Situação do dia ... de ... de 2019:
Em causa está a imputação aos arguidos DD, AA, GG e JJ da prática, em concurso real, de um crime de abuso de poder e quatro crimes de ofensa à integridade física qualificada.
Quanto ao crime de abuso de poder, vale o que acima ficou dito quanto ao facto de se considerar consumido pela verificação do cometimento dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, dispensando-se assim a repetição, importando a absolvição dos arguidos.
Quanto aos crimes de ofensa à integridade física, resultou provado que naquele episódio os arguidos DD, AA, GG, em simultâneo ou à vez, no mesmo espaço, levaram a cabo condutas que atentaram contra o bem-estar físico e psíquico daqueles três indivíduos, como sejam, agachamentos e “pranchas” forçados, reguadas (que tiveram de agradecer), disparo de gás pimenta e pancadas no corpo.
Não há, assim, dúvidas de que se mostra preenchido o elemento objectivo do tipo de crime.
Também quanto ao elemento subjectivo, provando-se factos donde se extrai que os arguidos agiram com dolo directo, está igualmente preenchido.
(...)
Sendo três as vítimas, cometeram em coautoria três crimes (art. 30º nº. 1 do Cód.Penal), (...)
Quanto à qualificativa, vale novamente o que já acima ficou dito, concluindo-se que os arguidos agiram com grave abuso de autoridade, para mais no interior do Posto da GNR.
(...)
Quanto à qualificativa, temos por certo que o grave abuso de autoridade compreende tanto o grave abuso de poderes como a grave violação de deveres inerentes às funções dos militares da GNR. Assim, considerando que o arguido violou flagrante, grosseira e intencionalmente deveres elementares que devia observar e fazer cumprir, e não se apurando causas de exclusão da ilicitude/culpa, será condenado pela prática, em coautoria, de três crimes de ofensas à integridade física qualificadas.
Situação do dia ... de ... de 2019:
Em causa está a imputação aos arguidos PP, AA e SS da prática, em concurso real, de um crime de abuso de poder e um crime de ofensa à integridade física qualificada.
Quanto ao crime de abuso de poder, uma vez mais, vale o que acima ficou dito quanto ao facto de se considerar consumido pela verificação do cometimento do crime de ofensa à integridade física qualificada, dispensando-se assim a repetição, importando a absolvição dos arguidos.
Quanto à ofensa à integridade física, dos factos provados resulta que, durante uma operação stop em que se encontravam presentes os três arguidos, colocaram gás pimenta num tubo de plástico utilizado no teste de pesquisa de álcool no sangue e deram-no a inspirar a um indivíduo que mandaram parar. Tal fez com que a vítima passasse mal, naturalmente devido à irritação e ardor provocados pela aspiração de tal substância.
Não se apurou qual dos militares presentes colocou o gás pimenta e o deu a utilizar à vítima. Todavia, considerando o quadro geral em que se desenrolou a actuação dos arguidos, em que todos estavam presentes e iam insultando ou dando instruções à vítima para colocar o tubo na boca ou para não atender o telemóvel, sem que qualquer deles tenha feito algo para impedir ou fazer cessar aquela actuação, tendo o domínio do facto, manifestamente que está verificada a comissão em coautoria, com dolo directo, por acção ou omissão, do crime de ofensas à integridade física.
Também quanto à qualificativa vale o que acima ficou dito.
Pelo que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude/culpa, serão estes três arguidos condenados pela prática, em coautoria, do crime de ofensa à integridade física qualificada de que vêm pronunciados.».
Entendemos ser correta a qualificação jurídica dos factos provados, com referência às situações ocorridas em ... de ... de 2018 e ... de ... de 2019, como integrando, no que agora importa considerar, o tipo legal de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Código Penal.
Importa realçar os seguintes aspetos:
A circunstância qualificativa prevista na al. m) do n.º 2 do artigo 132º aplicável ao crime de ofensa à integridade física, ex vi do disposto no n.º 2 do artigo 145º, ambos do Código Penal, que se refere ao cometimento do facto/crime por funcionário com grave abuso de autoridade, conquanto se perfilhe o entendimento de que não é de funcionamento automático[23], conforme supra se expôs, mostra-se preenchida em ambas as enunciadas situações.
Com efeito, tendo em conta, o contexto em que os factos foram praticados, sem que estivesse em causa qualquer ocorrência que justificasse a intervenção dos identificados arguidos, enquanto militares da GNR, no legítimo exercício das suas funções – só assim se compreendendo que não tivesse sido elaborado expediente dando conta da ocorrência –, é reveladora, em relação às situações referentes a ... de ... de 2018 e a ... de ... de 2019, de uma especial perversidade dos arguidos, coautores, refletindo uma particular indiferença e, na situação referente ao dia ... de ... de 2019, mesmo desprezo, pela integridade física das respetivas vítimas.
Concluímos, assim, não existir erro, na subsunção dos factos praticados em ... de ... de 2018 e ... de ... de 2019, ao tipo legal crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Código Penal.
No respeitante aos factos provados, relativos a ... de ... de 2019 e respetiva subsunção jurídica efetuada pelo Tribunal a quo, entendemos que, neste concreto ponto, o acórdão recorrido enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP.
Explicitando:
O assinalado vício - que é de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso - ocorre quando os factos provados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou de dispensa da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda, porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência.
Dito de outro modo, o vício previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, ocorre quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, desde logo, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição[24].
No caso vertente, com referência aos factos ocorridos a ... de ... de 2019, consta da factualidade provada, ponto 1.32, ter sido utilizada uma régua com a qual foram desferidas reguadas nas mãos de cada um dos três indivíduos aí mencionados.
Não são referidas nem as características dessa régua nem qual a parte das mãos atingida pelas reguadas, factualidade relevante para se poder aquilatar se esses atos integram, ou não, o crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º, n.º 1 do CP.
Dado que a decisão de facto foi impugnada, nos termos do n.º 3 do artigo 412º do CPP e tendo-se procedido, nesse âmbito, à visualização dos vídeos em questão, dispõe esta Relação dos elementos necessários para sanar o assinalado vício, sem necessidade de reenvio (cf. artigo 426º n.º 1, a contrario e artigo 431º al. b), ambos do CPP).
Assim, visualizados os aludidos vídeos, constata-se que a régua utilizada pelo arguido GG nas circunstâncias descritas no ponto 1.32, com a qual desferiu as reguadas nas mãos dos ditos três indivíduos - régua essa que também surge nos fotogramas extraídos daqueles vídeos, constantes a fls. 79 e 81 dos autos - é de plástico, transparente, aparentando não ter mais de 20 cm de comprimento, sendo esse tipo de régua utilizado como material escolar. E a zona das mãos dos três indivíduos atingida pelas reguadas foi a palmar.
Nesta conformidade, decide-se alterar a redação do ponto 1.32 da matéria factual provada, nos seguintes termos:
«(...), empunhando uma régua de plástico, transparente, de pequenas dimensões, desferiu diversas reguadas na palma das mãos de cada um daqueles indivíduos e (...).»
Na decorrência dessa alteração e não tendo sido possível obter o depoimento dos ofendidos, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, não resulta evidenciado que, em consequência das aludidas reguadas, os três ofendidos hajam sofrido dores.
A idêntica conclusão se chega, no tocante às palmadas mencionadas no ponto 1.35, uma vez que nada se refere quanto à intensidade com que foram desferidas, nem à(s) zona(s) do corpo atingida(s).
Assim sendo, a expressão «dores» deve ser eliminada do ponto 1.42 da matéria factual provada, passando a integrar o elenco dos factos não provados, com referência à situação ocorrida em ... de ... de 2019.
Neste contexto, entendemos que a factualidade dada como provada com referência à situação de ... de ... de 2019, levando em linha de conta a modificação a que agora se procedeu, não é suscetível de integrar o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Código Penal, mas antes, o crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, conforme infra se explicitará.
Começaremos por apreciar se existe errada subsunção dos factos provados ocorridos em ... de ... de 2018, ao crime de abuso de poder.
O crime de abuso de poder, previsto no artigo no artigo 382º do Código Penal, é cometido pelo «O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.»
O bem jurídico tutelado pela incriminação em apreço, conforme refere Paula Ribeiro de Faria[25], é «a autoridade e credibilidade da administração do Estado, ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços. Corresponde esta exigência, de resto, a um princípio fundamental da organização do Estado consagrado constitucionalmente nos arts. 266.º, 268.º e 269.º - 1 da CRP. Em particular o n.º 2 do art. 266.º refere que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.».
O preenchimento do tipo objetivo do crime em apreço poderá ter lugar através do abuso de poderes ou da violação de deveres pelo funcionário, inerentes à sua função.
Quanto à modalidade típica da conduta consubstanciada no abuso de poderes, a mesma poderá, de uma forma geral, definir-se como «uma instrumentalização de poderes (inerentes à função), para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo (ou melhor dizendo ilegítimas)[26].».
Mas o tipo legal poderá também ser preenchido através da violação de deveres por parte do funcionário, deveres esses funcionais, ou seja, relacionados com o exercício da função.
A violação dos deveres funcionais traduz-se na ação ou na decisão do funcionário que fere os deveres a que está adstrito pelo exercício da sua função[27].
A qualidade de funcionário funda a ilicitude, sendo, por isso, um crime específico próprio[28].
No tocante ao conceito de funcionário, definido no artigo 386º do Código Penal e no que ao presente caso importa, após a entrada em vigor da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, que alterou a redação daquela norma, ficou ultrapassada a controvérsia doutrinária e jurisprudencial suscitada sobre se os militares integravam o mesmo conceito, na medida em que a alteração introduzida pela referenciada Lei n.º 94/2021, veio abranger, na al. a) do artigo 386º, o militar.
Contudo, esse entendimento, no referente aos militares da GNR, já era acolhido pela jurisprudência dominante.
Neste sentido, pode ver-se, entre outros, o Acórdão da RL de 23/03/2012[29], onde se decidiu que «Os militares da GNR, para efeitos penais, são funcionários, enquadrando-se no preceito legal do art.º 386º, n.º 1, al. c) CP. Este enquadramento fundamenta-se no facto dos militares da GNR serem estatuariamente e em particular órgãos de polícia criminal, colocando-os a desempenho uma actividade compreendida na função pública jurisdicional.»[30].
O preenchimento do tipo subjetivo do crime de abuso de poder exige, para além do dolo genérico, um dolo específico, qual seja a intenção, por parte do agente, de obter para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
Esse benefício ou prejuízo pode ser patrimonial ou não patrimonial.
Nas palavras de Paula Ribeiro Faria[31] o benefício pode ser caraterizado como «toda a vantagem que o sujeito activo pretende retirar da sua actuação, e que em concreto poderá assumir natureza patrimonial ou não patrimonial. De facto o legislador penal não exige que o benefício tenha caráter patrimonial, bastando-se com a sua ilegitimidade. (...)
Também em relação ao prejuízo não exigiu a lei que este tivesse uma dimensão patrimonial. O legislador parece não se querer referir à verificação de um prejuízo para a administração pública (se bem que na medida em que é afectado o seu prestígio e bom funcionamento se possa falar de “prejuízo” em termos latos), mas apenas para os destinatários do acto praticado ou para os que de alguma forma são atingidos pelos seus efeitos. O que se pretendeu salientar foi a efetiva instrumentalização de poderes por parte do funcionário em nome de interesses de natureza particular. Não se exige, aliás de forma paralela ao que ocorre em relação à intenção de retirar vantagens do comportamento havido, qualquer indagação sobre os motivos do agente (ódio, rancor, racismo, inimizades políticas, prepotência, entre outros.»
O crime de abuso de poder consuma-se com a execução dos atos típicos, sendo irrelevante que o resultado pretendido - obtenção da vantagem para o agente ou para terceiro ou causação de prejuízo a outrem – se chegue a alcançar/concretizar: trata-se de um crime de mera atividade, e não de resultado[32].
Em suma, conforme se refere no Ac. do STJ de 23/01/2008[33]:
«I - No crime de abuso de poder, que constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
II - Mas o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, tem antes de ser determinado por uma intenção específica que, enquanto fim ou motivo, faz parte do próprio tipo legal. Esta intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza.
III - A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertence ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo.
IV - Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe, para além do dolo de tipo, a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 329-330).
V - O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática. A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função. Mas, para além do tipo objectivo, exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, e que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo – a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
(...).»
Volvendo ao caso dos autos:
Com referência dos factos provados, atinente à conduta assumida pelo ora recorrente, para com um cidadão de nacionalidade estrangeira, no dia ... de ... de 2018, o Tribunal a quo concluiu pela respetiva subsunção, ao crime de abuso de poder, p. e p. no artigo 382º do CP, o que fundamentou nos seguintes termos:
«(...)
Os factos provados a respeito, conjugados com a simples leitura dos deveres éticos e profissionais pelos quais o arguido devia ter pautado a sua conduta, para mais no interior do Posto da GNR, não deixam dúvidas quanto à verificação do elemento objectivo do tipo de crime imputado.
Quanto ao elemento subjectivo, ficou demonstrado tanto o benefício ilegítimo como o prejuízo para a vítima. Quanto ao benefício, o arguido agiu sob uma motivação torpe, para seu gáudio e de terceiros, com desprezo para com o indivíduo que subjugou e humilhou, registando em vídeo essa humilhação, que passou a constituir um troféu. Quanto ao prejuízo, a vítima padeceu humilhação, receio, vendo atingida a própria dignidade.
Donde, não se tendo apurado causas de exclusão da ilicitude/culpa, será o arguido AA condenado pela prática do crime de que vem pronunciado.».
Em nosso entender, a qualificação jurídica dos factos em apreço mostra-se correta.
A apurada atuação do recorrente, militar da GNR, levada a cabo no interior do Posto da GNR, onde se encontrava o cidadão de nacionalidade estrangeira, ao ordenar que este repetisse, em português, as expressões e frases por si proferidas – concretamente “VV fode-me os cornos”, “Mestre, és uma máquina”, “desgraça”, “VV, eu quero ir para ...” –, dando gargalhadas, juntamente com terceiros que ali estavam, ao mesmo tempo que filmava o mesmo cidadão, submetendo-o a uma situação de humilhação e vexação, o que o recorrente só logrou concretizar pelo facto de estar investido do poder que a sua condição de militar da GNR lhe conferia.
Ao atuar da forma descrita, o recorrente violou os deveres legais e estatutários a que estava vinculado, inerentes às suas funções de militar da GNR, designadamente, os deveres de proteção e respeito para com os cidadãos e de preservação da confiança da GNR, enquanto força de segurança e de autoridade.
Preencheu, pois, o arguido/recorrente AA, com a sua descrita conduta, a tipicidade objetiva do crime de abuso de poder.
E entendemos ter preenchido também o tipo subjetivo de tal crime.
Ainda que haja de reconhecer-se que a conduta do recorrente foge ao padrão normal dos casos de abuso de poder, tratados na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, estando demonstrado que a intenção que presidiu à atuação desenvolvida pelo recorrente foi a de humilhar, vexar e subjugar o cidadão a fazer o que lhe impôs, para sua diversão e de terceiros, atingindo aquele cidadão na sua dignidade, entendemos – tal como considerou o Tribunal a quo – estarmos perante um prejuízo abrangido na tipicidade do crime de abuso de poder.
Salvo o devido respeito, não é de acolher o entendimento defendido pelo recorrente no sentido de que quando a intenção do arguido é humilhar a vítima, sendo o prejuízo daí decorrente a inerente ofensa à dignidade desta, esse tipo prejuízo não integra a tipicidade do crime de abuso de poder.
Tendo-se presente o supra referido a propósito da delimitação do conceito de prejuízo aludido no artigo 382º do CP é de concluir no sentido em que o fizemos, sendo certo que, pelos fundamentos aduzidos no acórdão recorrido, na concreta situação em apreço, não estando preenchido qualquer outro crime que levasse à consumpção do crime de abuso de poder, este último subsiste, estando preenchidos os respetivos elementos objetivos e subjetivos, nos termos sobreditos.
Também não assiste razão ao recorrente quando defende que, no acórdão recorrido, foi dada como provada uma intenção que não constava da pronúncia – qual seja «a humilhação a que a vítima foi sujeita, pelo receio que sentiu e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe proteção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelo arguido AA» –, contrariando a jurisprudência estabelecida no Acórdão uniformizador n.º 1/2015, do STJ, proferido em 20/11/2014, publicado no DR, I-Série, de 27/01/2015.
Com efeito, analisado o despacho de pronúncia, estando a atuação do arguido/recorrente em apreço descrita nos artigos 15 a 23, atenta a narração dos factos respeitantes aos elementos subjetivos constantes dos artigos 30 a 37, confrontando-os com os factos dados como provados, nesse âmbito, no acórdão recorrido, constara-se não se verificar qualquer alteração relevante. O excerto transcrito pelo recorrente consta da motivação da decisão de facto, não dos factos provados.
Face ao exposto é de concluir ter o recorrente, com a sua descrita conduta colocado em crise a credibilidade da administração do Estado, no respeitante à atuação das forças de segurança, no caso, da Guarda Nacional Republicana.
Nenhuma censura merece, pois, o acórdão recorrido, na parte em que se decidiu integrar a referenciada conduta do arguido/recorrente, perpetrada em ... de ... de 2018, um crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382º do CP.
Analisemos agora a qualificação jurídica dos factos ocorridos no dia ... de ... de 2019.
Com referência e estes factos, no acórdão recorrido, foram os arguidos AA, DD, GG e JJ condenados, como coautores, de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal.
Sem levar em linha conta a atuação apenas imputada ao arguido DD, relativa à projeção de gás pimenta, facto esse objeto de impugnação no recurso interposto pelo mesmo arguido, que infra será objeto de apreciação, nesta concreta situação, reportada a ... de ... de 2019, as condutas empreendidas contra os mencionados três cidadãos de nacionalidade estrangeira, nas instalações no Posto da GNR ..., zona do pátio, consistiram em após tê-los disposto lado a lado, ordenar-lhes que se agachassem e permanecessem em silêncio, de seguida, foram desferidas, com uma régua de plástico, transparente, de pequenas dimensões, reguadas na palma das mãos dos mesmos cidadãos, ao mesmo tempo lhes foi ordenado que dissessem “thank you”, o que fizeram e, por último, foi ordenado aos mesmos cidadãos que se colocassem na posição de “prancha”, tendo o arguido GG desferido palmadas no corpo dos mesmos.
A questão que se coloca e é suscitada pelo ora recorrente é a de saber se as reguadas e as palmadas desferidas nos três cidadãos, nas circunstâncias descritas, constituem ofensas com relevância bastante para lesarem o bem jurídico tutelado pelo crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º, n.º 1 do Código Penal.
Em nosso entender tal questão merece resposta negativa.
Com efeito, pese embora, para o preenchimento do tipo objetivo do crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143º não se exija que da agressão resulte uma lesão física, nem sequer dor, torna-se necessário que seja produzida uma alteração desfavorável no corpo ou na saúde, física ou psíquica, em consequência da atuação/agressão.
Ora, no presente caso, em face da factualidade provada, entendemos não ser possível considerar que essa alteração desfavorável tivesse ocorrido relativamente a qualquer dos ofendidos.
Assim sendo, haverá de concluir-se não estar preenchido o crime de ofensa à integridade física.
O que emerge da matéria factual provada é que as condutas levadas a cabo ocorrem num quadro onde o propósito era de humilhação, achincalhamento e subjugação dos três cidadãos visados, colocando-os na posição de ter de obedecer a ordens ilegítimas e totalmente despropositadas que lhes foram dirigidas, por militares da GNR, nas instalações do respetivo Posto, rindo-se e divertindo-se com toda a situação e subjugação imposta aos ditos cidadãos.
Neste contexto, pelos mesmos fundamentos considerados em relação à situação perpetrada pelo arguido/recorrente AA reportada a ... de ... de 2018, supra explanados, entendemos que a descrita atuação empreendida no dia ... de ... de 2019, integra um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do CP.
Com efeito, as apuradas condutas do recorrente e coarguidos AA e GG, militares da GNR, que tiveram lugar, no dia .../.../2019, nas instalações do Posto Territorial ..., onde exerciam funções, contra três cidadãos de nacionalidade estrangeira – tendo estes últimos, subservientemente, em acatamento do que lhes foi ordenado/imposto, sido compelidos a fazer agachamentos, a agradecer com “thank you”, na sequência das “reguadas recebidas”, nas palmas das respetivas mãos e após a colocarem-se na posição de “prancha”, sendo-lhes desferidas palmadas, pelo arguido GG. Enquanto decorriam as ordens e reguadas, o ora recorrente DD, dirigiu-se a um daqueles três cidadãos, com uma embalagem/spray de gás pimenta, posicionando-se atrás dele e aproximando a dita embalagem da nuca do mesmo indivíduo –, rindo-se e divertindo-se, com a subjugação que impunham aos mesmos cidadãos, sujeitando-os a humilhação e vexação, o que o recorrente, só logrou concretizar pelo facto de estar investido do poder que a sua condição de militar da GNR lhe conferia.
Ao atuar da forma descrita, o recorrente violou os deveres legais e estatutários a que estava vinculado, inerentes às suas funções de militar da GNR, designadamente, os deveres de proteção e respeito para com os cidadãos e de preservação da confiança da GNR, enquanto força de segurança e de autoridade.
Preencheu, pois, o arguido/recorrente AA, com a sua descrita conduta, a tipicidade objetiva do crime de abuso de poder.
E entendemos ter preenchido também o tipo subjetivo de tal crime.
Face ao exposto é de concluir ter o recorrente, com a sua descrita conduta colocado em crise a credibilidade da administração do Estado, no respeitante à atuação das forças de segurança, no caso, da Guarda Nacional Republicana.
Consequentemente, deve o arguido/recorrente AA, com referência à situação de ... de ... de 2019, de ser absolvido da prática dos três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal.
E tem de ser condenado, como coautor, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, por que foi pronunciado.
2.3.1.6. Em face da alteração da qualificação jurídica dos factos reportados à situação de ... de ... a que se procedeu, nos termos sobreditos, importa apreciar e decidir sobre a escolha e determinação da medida da pena a aplicar ao arguido AA, pelo crime de abuso de poder por que agora é condenado. E após, analisada a questão suscitada no recurso quanto à dosimetria das penas parcelares aplicadas no respeitante aos demais crimes cometidos, proceder à reformulação do cúmulo jurídico em conformidade.
Vejamos então:
A moldura penal abstrata correspondente ao crime de abuso de poder é de prisão de 1 mês até 3 anos ou de multa de 10 a 360 dias (cf. artigo 382º, 41º n.º 1 e 47º n.º 1, todos do Código Penal).
Sendo este tipo de crime punível com pena de prisão ou, em alternativa, com pena de multa, coloca-se-nos o problema de se ter de optar entre a aplicação de uma ou de outra das penas.
De harmonia com o disposto no artigo 70º do Código Penal, o Tribunal deverá dar preferência à pena não privativa da liberdade "sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" (exigências de reprovação e de prevenção do crime).
A propósito das finalidades da pena, escreve o Prof. Figueiredo Dias[34]: «prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida».
Significa isso que, uma pena alternativa ou de substituição, ainda que, no caso, possa satisfazer plenamente as necessidades de prevenção especial de ressocialização, não poderá ser aplicada se com ela sofrer inapelavelmente, “o sentimento de reprovação social do crime”[35], ou a confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada.
No caso dos autos e relativamente ao arguido AA, pese embora tivesse 22/23 anos à data dos factos e fosse primário veio a ser posteriormente, condenado (no âmbito do proc. n.º .../18), por factos cometidos em data anterior àquela em que perpetrou o crime de abuso de poder em apreço, por crimes também cometidos no exercício das suas funções, de militar da GNR, praticando ainda outros crimes, por que é condenado nos presentes autos, refletindo-se essas circunstâncias nas exigências de prevenção especial. Por outro lado, as exigências de prevenção geral são muito elevadas no atinente ao tipo de crime de que se trata, pelas razões enunciadas no acórdão recorrido.
Neste quadro entendemos que a pena de multa não se revela adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição e, nessa medida, decidimo-nos pela aplicação de pena de prisão.
A medida concreta da pena é limitada pela culpa do arguido, revelada nos factos (cf. artigo 40º, n.º 2 do CP), e terá de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40º, n.º 1 e 71, n.º 1, ambos do CP.
Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.
A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena, sendo tal princípio expressamente afirmado no n.º 2 do artigo 40º do C.P.
Com recurso à prevenção geral procura dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.
Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.
Dando concretização aos mencionados vetores, o n.º 2 do artigo 71º do CP enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o dever de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
E ponderando as enunciadas circunstâncias, designadamente:
O grau de ilicitude dos factos, revela-se mediano, ainda que mais acentuado do que o respeitante aos factos praticados pelo ora recorrente no dia .../.../2018, considerando nomeadamente, a concreta atuação desenvolvida e terem sido três os cidadãos submetidos à mesma;
O dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo direto;
As condições pessoais do arguido que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas, sendo ainda jovem, apresentando um percurso de vida normativo, estando integrado familiar e socialmente, encontrando-se colocado na Unidade de Emergência de Proteção e Socorro da GNR, atividade direcionada para o combate a incêndios florestais, tendo prosseguido os estudos, com a frequência do curso de ....
Á data dos factos o arguido AA não registava antecedentes criminais.
As exigências de prevenção geral, tal como supra referimos, são muito elevadas.
E as exigências de prevenção especial, são medianas, tendo em conta os traços da personalidade do arguido refletidos nos factos praticados.
Ponderando todos estes elementos, julgamos adequada a pena de 1 (um) ano de prisão, a aplicar ao arguido/recorrente AA, pela prática do crime de abuso de poder reportado à situação de ... de ... de 2019.
2.3.1.7. Da medida das penas parcelares
Estão em causa as penas aplicadas na 1.ª instância, quanto aos demais crimes por cuja prática o recorrente AA foi condenado, a saber:
Com referência aos factos ocorridos em ... de ... de 2018:
. um crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382º do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão;
Com referência aos factos ocorridos em ... de ... de 2018:
. um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143, n.º 1 e 145º, n.ºs 1. al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do CP, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
. um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, n.ºs 1 e 2 al. g), in fine, do CP, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; e
Com referência aos factos ocorridos em ... de ... de 2019:
. um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
O recorrente insurge-se contra a dosimetria de tais penas, reputando-as de excessivas.
Entende o recorrente terem sido violados, na determinação da medida das penas, os artigos 29º, 40º, 70º e 71º do Código Penal.
No respeitante à pena aplicada na situação de .../.../2019, considera ter sido também violado o princípio da proporcionalidade e da igualdade plasmado no artigo 13º da CRP, por contraponto às aplicadas aos coautores, em que o tribunal a quo admite não ser possível graduar diferentemente a culpa.
Alega que a condenação que tem averbada no seu CRC se reporta a factos contemporâneos daqueles que estão em causa nos presentes autos; terem decorrido quatro anos sobre a data do respetivo cometimento, sendo o tempo um fator de diluição da necessidade de tutela penal; nunca ter sido condenado pela prática do crime de abuso de poder; ter 22 anos de idade à data dos factos, circunscrevendo-se a sua atuação ao período de início de funções como militar da GNR, inexistindo notícia de comportamentos desviantes antes ou após esse período de tempo, tendo continuado a promover a sua formação académica e dispondo de estabilidade familiar e profissional.
Nessa conformidade, pugna pela alteração/redução das penas aplicadas, nos seguintes termos:
- Pelo crime de abuso de poder, reportado à situação de .../.../2018: pena de multa ou, assim não se entendendo, pena de prisão não superior a 4 meses.
- Pelo crime de sequestro agravado, pena que não exceda 3 anos de prisão;
- Pelo crime de crime de ofensa à integridade física qualificada, reportado à situação de .../.../2018, a pena de 10 meses de prisão;
- Pelo crime de crime de ofensa à integridade física qualificada, reportado à situação de .../.../2019, a pena que não exceda um ano de prisão.
O Ministério Público, defende a manutenção das penas aplicadas ao arguido, na 1.ª instância.
Vejamos:
Dão-se aqui por reproduzidas as considerações supra expendidas acerca dos critérios a atender na escolha e determinação da medida concreta da pena.
Atentos os fundamentos supra expostos que levaram a afastar a aplicação da pena de multa, ao ora recorrente, pelo crime de abuso de poder perpetrado em .../.../2019, bem andou o Tribunal a quo ao optar pela aplicação de pena de prisão, quanto ao crime cometido em .../.../2018.
O Tribunal a quo fundamentou a determinação da medida concreta das penas parcelares de prisão aplicadas ao recorrente, ora em apreciação, do seguinte modo:
«(...)
- As exigências em termos de prevenção geral são muito elevadas uma vez que este tipo de actuação entre agentes da autoridade mina por completo o sentimento de confiança comunitária, podendo ser fonte de tumultos sociais caso vingue na opinião pública a convicção de que estes comportamentos correspondem a uma prática corrente ou generalizada. Daí que, para salvaguardar tal confiança, a intervenção do Tribunal tenha de ser vista e percebida pela comunidade no sentido de que o sistema de justiça funcionou e funcionará sempre que ocorram condutas desviantes, mesmo quando levadas a cabo por agentes das forças de segurança, e que os mesmos são alvo de censura e de consequências jurídicas proporcionais à sua culpa, sem condescendências. Para mais, colocaram em crise o bom-nome e reputação da instituição em que se inserem;
- Todos agiram com dolo directo;
- Presidiu sempre à actuação dos arguidos um profundo desprezo pela dignidade das vítimas, divertindo-se à custa da humilhação a que as sujeitavam, subjugando-as e obrigando-as a suportar/cumprir as ordens que lhes determinavam, em seu próprio prejuízo, revelador de uma motivação torpe;
- Quanto ao grau de ilicitude, e por referência às respectivas molduras abstractas:
• médio-baixo no crime de abuso de poder cometido pelo arguido AA considerando as circunstâncias em que decorreu tal actuação e as consequências daí decorrentes, sem grande gravidade;
• médio-baixo nos crimes de sequestro agravado e ofensa à integridade física qualificada a que respeita a situação do dia ... de ... de 2018, tendo em conta que se desconhece quanto tempo esteve aquele cidadão privado da liberdade, sem esquecer contudo as circunstâncias da acção levada a cabo pelos arguidos AA e MM (mãos algemadas atrás das costas, “shotgun” encostada ao rosto), e suas consequências (pânico, receio), bem como a baixa intensidade das agressões físicas infligidas (palmadas na cabeça), situando-se o dano mais no plano psíquico, o qual, contudo, não pode ser desvalorizado, antes pelo contrário;
(...)
• médio na situação do dia ... de ... de 2019, uma vez que a agressão com gás pimenta por aspiração, já de si grave pelo ardor e aflição que provoca, ocorreu no decurso de uma operação de fiscalização, e com recurso a meio utilizado na pesquisa de álcool no sangue, ou seja, com aproveitamento da confiança e colaboração da vítima por julgar estar a ser sujeita a uma normal fiscalização;
- A ausência de qualquer manifestação de arrependimento;
- O tempo decorrido desde a prática dos factos, a que os arguidos são alheios;
- A conduta posterior dos arguidos, afastados da prática de crimes, conjugado com o que relativamente a cada um resultou demonstrado em termos de condições pessoais e socioeconómicas, designadamente a sua juventude e adequado enquadramento social e familiar.
Especificamente em relação a cada um dos arguidos:
- Os arguidos GG, JJ, PP e SS não têm antecedentes criminais;
- Os arguidos AA, DD e MM foram condenados pela prática de crimes de idêntica natureza e circunstâncias, cometidos em ... de ... de 2018, revelando assim um padrão de comportamento que não se cingiu aos actos ora em apreço;
- A intensidade do dolo do arguido AA é muito superior à dos demais, uma vez que é o elemento comum a todas as situações, persistindo naquele tipo de actuação ao longo de vários meses;
(...)
- Nas outras duas situações em que ficou demonstrada a coautoria (AA e MM / AA, PP e SS), não se tendo demonstrado quais os concretos actos levados a cabo por cada um dos comparticipantes, não é possível fazer tal distinção;
(...)».
Considerando as enunciadas circunstâncias, ponderadas pelo Tribunal a quo, na determinação da medida concreta das penas a aplicar ao arguido/recorrente, pelos crimes praticados, designadamente, no tocante ao grau de ilicitude dos factos, ao dolo com que o arguido atuou, suas condições pessoais, seu comportamento anterior e posterior ao cometimento dos factos e no tocante às exigências de prevenção geral que se fazem sentir, relativamente ao tipo de crimes de que se trata, importa referir o seguinte:
No tocante ao crime de ofensa à integridade física qualificada, reportado à situação de ... de ... de 2019, consideramos que o grau de ilicitude dos factos é elevado, tendo em conta, designadamente, o respetivo modo de execução – colocação de gás pimenta no tubo do aparelho utilizado para a pesquisa de álcool no sangue, para que a vitima o aspirasse, o que aconteceu, sendo a atuação em causa empreendida pelo recorrente e coarguidos PP e SS, com aproveitamento da confiança e colaboração da vítima por julgar estar a ser sujeita a uma normal fiscalização – e as consequências dela decorrentes – tendo a vítima, ao aspirar o gás pimenta, se sentido mal – e o dolo, na modalidade de direto, com que o recorrente e os coarguidos PP e SS – não tendo estes interposto recurso – é muito intenso.
Assim e sopesando as demais circunstâncias que foram ponderadas pelo Tribunal a quo, entendemos que a pena de 2 (dois) anos de prisão aplicada ao recorrente pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, referente à situação de ... de ... de 2019, dentro da moldura penal abstrata que lhe corresponde (de 1 mês até 4 anos de prisão), revela-se ajustada e perfeitamente adequada às necessidades de prevenção que, no caso, de fazem sentir, não ultrapassando a medida da culpa do arguido/recorrente.
Já relativamente ao crime de abuso de poder reportado à situação de .../.../2018, tal como supra referimos o grau de ilicitude dos factos revela-se significativamente menor comparativamente com o respeitante ao crime de perpetrado, em coautoria, no dia .../.../2019, sendo também menor, em relação ao primeiro desse crimes, o grau de culpa do arguido/recorrente.
Assim sendo, entendemos que a pena de um ano de prisão aplicada ao arguido pelo crime de abuso de poder respeitante à situação de .../.../2018, se mostra algo excessiva, tendo-se por mais adequada e ajustada a fixação do quantum dessa concreta pena em 5 (cinco) meses de prisão.
Também, no referente às penas parcelares aplicadas ao arguido/recorrente, pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada e do crime de sequestro agravado, reportados à situação de ... de ... de 2018, respetivamente, fixadas em 3 (três) anos e 6 (seis) meses e em 1 (um) ano e 6 (seis), entendemos que se mostram um pouco excessivas.
Na ponderação do grau de ilicitude dos factos, o qual como o Tribunal a quo considerou se revela médio-baixo; da intensidade do dolo, na modalidade de dolo direto, com que o arguido/recorrente atuou; das demais circunstâncias enunciadas pelo Tribunal a quo – designadamente, a adequada inserção familiar e social do arguido/recorrente e as concretas exigências de prevenção que se fazem sentir – e, ponderando, ainda, a circunstância de o recorrente, à data dos factos de que aqui se trata, .../.../2018, ser muito jovem – tinha 22 anos de idade –, não registando, então, antecedentes criminais, sendo posteriormente, condenado, por crimes de idêntica natureza, cometidos em .../.../2018 e estando, desde o final de 2020, colocado na Unidade de Emergência de Proteção e Socorro da GNR, atividade direcionada para o combate a incêndios florestais, tem-se por mais adequada e ajustada a fixação do quantum dessas concretas penas em:
- 3 (três) anos de prisão, pelo crime de sequestro agravado; e
- 1 (um) ano de prisão, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
2.3.1.8. Aqui chegados, em face das alterações efetuadas, há que reformular o cúmulo jurídico de penas, em ordem a determinar a pena única a aplicar ao arguido AA.
O artigo 77º do Código Penal, estabelecendo as regras da punição do concurso de crimes, dispõe:
«1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se depena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.»
Sobre o modo como devem operar os critérios definidos no citado n.º 1 do artigo 77º do CP, diz o Prof. Figueiredo Dias[36]:
«Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).»
Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão ou o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização ou de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.
A moldura penal abstrata correspondente ao concurso de crimes tem o limite mínimo de 3 (três) anos e o limite máximo de 7 (sete) anos e 5 (cinco) meses de prisão.
Ponderando, em conjunto, os factos e a personalidade do recorrente neles refletida, sendo medianamente acentuada a ilicitude global dos factos e revelando o arguido, pela forma como atuou, uma personalidade com falta de empatia e respeito pela dignidade do outro, sendo vítimas das sua atuação cidadãos de nacionalidade estrangeira, que não dominavam a língua portuguesa, nessa situação, mais vulneráveis a atos de prepotência, por parte de quem, como o recorrente, na sua qualidade de militar da GNR, tinha o especial dever, inerente às funções exercidas, de respeito, proteção e salvaguarda da sua dignidade, entendemos que a pena única de prisão, deve ser fixada em 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, o que se decide.
2.3.1.9. Da suspensão da execução da pena
Tendo a pena única resultante do cúmulo jurídico de penas sido fixada em 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, importa apreciar se essa pena deve ser suspensa na respetiva execução.
Vejamos então:
Dispõe o art.º 50º n.º 1 do C. Penal, que: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos.
O juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização do arguido, afastando-o da prática de futuros crimes.
Ou dito de outro modo: a suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime[37].
Como refere o Prof. Figueiredo Dias[38]«Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.»
Por outro lado, para que possa decidir-se pela aplicação de tal pena de substituição é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na validade da norma jurídica violada.
A prevenção geral, como faz notar o Prof. Figueiredo Dias[39] «deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…) como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.»
Como elucidativamente se escreve no Acórdão do STJ de 18/06/2015[40] «A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.
Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (...).
De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspetiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.
Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. (...)»
Tendo presentes estas considerações e baixando ao caso concreto, considerando que o arguido/recorrente AA tinha, à data dos factos, 22/23 anos de idade, não registando, então, antecedentes criminais, tendo sofrido, posteriormente, uma condenação, no âmbito do processo n.º .../18, por decisão proferida em .../.../2020, transitada em julgado, em .../.../2021, por factos/crimes [um crime de violação de domicílio por funcionário; dois crimes de ofensa à integridade física qualificada e dois crimes de sequestro agravado], praticados em .../.../2018, beneficiando de adequada integração familiar e social, encontrando-se colocado na Unidade de Emergência de Proteção e Socorro da GNR, atividade direcionada para o combate a incêndios florestais, tendo, após os factos, prosseguido os estudos, frequentando o curso de ..., sendo de admitir que, no tempo já decorrido desde o cometimento dos factos - mais de quatro anos - e até pelas consequências decorrentes da condenação sofrida no âmbito do proc. nº. .../18, possa ter refletido sobre a censurabilidade da sua atuação e, de alguma forma, interiorizado o desvalor das suas condutas em causa nos presentes autos.
Entendemos, assim, ser possível fazer o juízo de prognose favorável, assente na expectativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, acompanhada de regime de prova, serão suficientes para afastar o arguido/recorrente da prática de futuros crimes e realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente, permitindo assegurar o limiar mínimo das exigência de prevenção geral.
Nesta conformidade, determina-se a suspensão da execução da pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão aplicada ao arguido/recorrente AA, pelo mesmo período de tempo, nos termos previstos no artigo 50º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal.
Por se julgar conveniente e adequado a melhor assegurar a ressocialização, do arguido, a suspensão da execução da pena será acompanhada de regime de prova, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 53º do Código Penal, assente num plano de reinserção social, a ser executado com a vigilância e apoio dos serviços de reinserção social (cf. artigo 54º, n.ºs 1 e 2 do CP).
O recurso interposto pelo arguido AA é, assim, nesta vertente, procedente.
2.3.1.10. Relativamente à pena acessória de proibição do exercício de função de militar da GNR, pelo período de dois anos, em que o arguido foi condenado, no acórdão recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 66º, n.º 1 do Código Penal.
Dispõe o artigo 66º, n.º 1 do Código Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 48/95, de 15 de março, em vigor à data da prática dos factos, que:
«1 - O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:
a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou
c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.»
Decorre da citada disposição legal que a aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função, nela prevista, exige dois pressupostos, sendo um formal, qual seja, a condenação do arguido em pena de prisão superior a 3 anos, e outro material, reportando às circunstâncias em que o facto/crime é praticado, referidas nas alíneas a), b) e c), do n.º 1, do artigo 66º do CP e cuja verificação tem de ser aferida , pelo tribunal, em cada caso, em face da factualidade que resultar provada.
Constitui entendimento jurisprudencial consolidado que em caso de concurso de crimes é necessário que, pelo menos, um dos crimes tenha sido punido com pena de prisão superior a três anos[41].
No caso dos autos, em face do agora decidido por esta Relação, nenhuma das penas aplicadas ao arguido/recorrente, englobadas no cúmulo jurídico, é superior a três anos.
Donde, fica afastado, desde logo, o pressuposto formal de que depende a aplicação da enunciada pena acessória, qual seja, a de o agente ser punido com pena de prisão superior a três anos, pelo crime cometido.
E assim sendo, não pode manter-se a condenação do arguido/recorrente AA, na pena acessória de proibição do exercício de funções de militar da GNR, pelo que, nessa parte, há que revogar o acórdão recorrido.
2.3.2. Recurso do arguido DD
2.3.2.1. Da impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 1.31. e 1.34, por erro de julgamento
Alega o recorrente que os enunciados factos foram incorretamente julgados, pelo Tribunal a quo, por não ter sido produzida prova que permitisse decidir nesse sentido.
Neste enfoque, aduz o recorrente não ter qualquer participação nos vídeos correspondentes aos ficheiros ...57 e ...44, visualizados na audiência de julgamento, não sendo a sua presença detetada em qualquer deles, mas apenas no vídeo ...23, surgindo o recorrente quando os três cidadãos já estão colocados lado a lado. Nessa medida, na ótica do recorrente, não podia ser dado como provado no ponto 1.3. que agisse em comunhão de esforços e de intentos, com os coarguidos GG e RRR, para que aqueles cidadãos se posicionassem daquele modo, nem que tomasse parte na execução dos atos que se seguiram.
No referente ao concreto ato cuja prática lhe é imputada, de ter “disparado” gás pimenta na direção da nuca de um daqueles cidadãos – factualidade dada como provada no ponto 1.4 – manifesta o recorrente que a visualização do vídeo ...23 não suporta essa conclusão. Desde logo, por não existir qualquer reação exteriorizada pela alegada vítima que possa indiciar ter sido disparada uma qualquer substância (líquida e gasosa) sobre si, nem sequer que se apercebesse da presença de alguém atrás de si.
Neste conspecto, alega o recorrente que seria humanamente impossível “disparar” gás pimenta e ninguém se manifestar, ou seja, não é crível que tivesse sido disparado tal tipo de gás, naquelas concretas circunstâncias, a poucos centímetros da nuca do indivíduo visado e perto das vias respiratórias do arguido/recorrente, e nenhum dos dois se manifestasse, tendo em conta, os efeitos e a reação associados à projeção de gás pimenta, no corpo humano, descritos pelas testemunhas YY e WW, nos seus depoimentos.
O recorrente põe em causa a credibilidade atribuída ao depoimento da testemunha WW, na identificação que fez do objeto que o recorrente segurava, como sendo uma embalagem spray de gás pimenta e o gesto feito pelo recorrente é consentâneo com o de pressionar/premir a patilha do spray, tendo, aliás, esta última resposta sido avançada pelo Mm.º Juiz Presidente e sendo o depoimento da testemunha condicionado a partir do momento em que foi advertida de que poderia ser extraída certidão para procedimento criminal.
Pugna, assim, o recorrente para que se dê como não provada a factualidade constante do ponto 1.34.
O Ministério Público defende que o Tribunal a quo valorou corretamente a prova e, como tal, a matéria de facto dada como provada, no que ao arguido/recorrente, se refere, agora objeto de impugnação, deve manter-se inalterada.
Apreciando:
Dão-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas, aquando da apreciação do recurso interposto pelo arguido AA, sobre a impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento.
No respeitante à impugnação dos concretos pontos da matéria e facto impugnados pelo recorrente, tendo este observado o estabelecido no artigo 412º, n.ºs 3, alíneas a) e b) e 4 do CPP, desde já se dirá que, após a visualização a que se procedeu dos vídeos referenciados, deve a impugnação proceder apenas no segmento respeitante a não ter sido concretizado o “disparo” do gás pimenta. E deve a impugnação factual improceder na restante parte, resultando, da prova produzida, sujeita a exame crítico, nos termos explicitados pelo Tribunal a quo, ser o objeto de que o recorrente, nas circunstâncias descritas, estava munido, uma embalagem/spray de gás pimenta e que os atos materialmente executados pelos coarguidos AA e GG, foram-no em comunhão de intentos e conjugação de esforços, com o ora recorrente DD.
Explicitando:
Importa recordar a parte da motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, respeitante aos factos ocorridos no dia ... de ... de 2019:
«Os vídeos respectivos são claros quanto a quem teve intervenção nesta situação (AA, DD, GG e JJ, o que é ainda reforçado pelo relatório pericial de comparação facial, de fls. 177 e sgs., e a informação da GNR de fls. 1139) e de que forma actuou. Daí que o tribunal concretizou mais em detalhe essas intervenções, por comparação ao descrito na pronúncia (com o consequente reflexo nos não provados), não havendo aqui necessidade de qualquer comunicação de alteração não substancial de factos, dado que foi ao encontro do pugnado pelas defesas dos respectivos arguidos em sede de alegações.
Mais uma vez, o tribunal socorreu-se da informação prestada pela GNR a fls 280 vº, e secundada pela testemunha WW, que também aqui não foi lavrado qualquer expediente relativo à presença daqueles três indivíduos no Posto ....
Subsiste, contudo, um facto objectivo que cumpre desenvolver, face à posição assumida em audiência pelo arguido DD e respectiva defesa: na versão, absurda, diga-se desde já, deste arguido, o gesto que efectuou na direcção da nuca de um dos indivíduos que se encontravam no posto a ser objecto de humilhação e agressões físicas não passou de uma simulação sem propósito algum, empunhando um qualquer objecto, também ele despropositado, como seja uma lanterna ou o carregador de munições. Até porque, também defendeu, se tivesse usado gás pimenta isso seria visível na imagem, porque é cor-de-laranja, e o indivíduo em causa teria ficado aflito, o que não é visível, devido à queimadura provocada pelo contacto do gás com a pele. Juntou imagens de objectos que poderão ter sido utilizados (fls. 1348 e 1349).
Que dizer?!!
Não faz sentido algum que alguém, no contexto que é visível nas imagens, passe por detrás de outrem para lhe apontar uma lanterna à nuca, muito menos empunhar e apontar um carregador de munições. Por outro lado, resulta da experiência comum, e isso mesmo foi atestado pela testemunha WW, que o jacto do spray de gás pimenta é incolor. Também resulta da experiência comum que, como arma de defesa que é, o gás pimenta destina-se principalmente a provocar ardor, irritação, nos olhos e vias respiratórias. Naturalmente que, dadas estas características, o simples contacto com a pele, para mais numa zona com cabelo, não terá efeitos tão imediatos e exuberantes. Instado a pronunciar-se sobre a actuação do arguido DD naquele vídeo, a testemunha WW não teve qualquer dúvida, sequer hesitação, em afirmar que o arguido usou gás pimenta contra aquele indivíduo, certeza que extrai da forma do objecto e da maneira como foi empunhado, apontado e premido. É certo, como também afirmou esta testemunha, que aquele modelo, de pequena botija, não corresponde ao que existia no Posto ..., que se assemelha a uma caneta. Mas, é frequente os militares adquirirem por si aquele tipo de arma, uma vez que tal lhes é legalmente possível, referindo a testemunha que possui um spray desse tipo. Pelo que não teve o tribunal dúvidas de que o arguido DD utilizou gás pimenta contra um dos indivíduos.
Finalmente, cumpre abordar um outro aspecto, mais de cariz subjectivo, suscitado pelas declarações e defesa dos arguidos DD e GG, também ele desprovido de qualquer sentido. Segundo estes arguidos, o que se passou naquela situação foi apenas uma brincadeira, sem maldade, na qual, pasme-se, aqueles três indivíduos até alinharam. O arguido DD deu o exemplo da praxe a que foi sujeito na tropa, como quem diz “Isso sim, foi maldade a sério!”, e o arguido GG referiu que se fosse para fazer mal, aleijar, tinha ido buscar um bastão, não uma régua.
Mais uma vez, que dizer?!!
Os esgares de incredulidade, submissão, são patentes na expressão facial de tais indivíduos, sendo que o esboço tímido de um sorriso, qualquer manifestação de aparente colaboração, nada mais representa senão uma tentativa, vã, por sinal, de colher simpatia junto dos agressores para que aquelas humilhações e sevícias terminem o mais rápido possível.
Assim, relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência dos arguidos AA, DD e GG na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de militares da GNR, sendo também evidente que estes arguidos utilizaram essas funções para concertadamente criar ascendente sobre as vítimas, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de cidadãos estrangeiros, que não dominavam sequer o português, para os subjugarem, os levar a obedecer aos seus comandos, sem qualquer hipótese de fuga/reacção, ao mesmo tempo que os agrediam. Também o ambiente de gáudio, desprezo e insensibilidade que reinou entre os três militares, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade das vítimas de se oporem a tais comportamentos, representando os vídeos um troféu dessa actuação.
As vítimas não foram identificadas, consequentemente não foram ouvidas. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foram sujeitas, pelas dores que sofreram, pelo receio que sentiram, e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelos arguidos.
Quanto ao arguido JJ, resulta também da prova dos factos objectivos conjugados com as regras da experiência comum que este arguido sabia que era despropositado e violador dos mais elementares princípios éticos e disciplinares o comportamento que estava a ser adoptado pelos demais arguidos, estando também ciente que por força das funções em que estava investido, para mais encontrando-se de serviço, tinha a obrigação moral, ética e legal de intervir e fazê-los cessar, e que, ao nada fazer, contribuiu para que os demais desenvolvessem aquele seu desígnio pelo tempo e forma que quiseram.
(...).»
O Tribunal a quo formou a convicção segura, com base nas provas que enunciou, atribuindo credibilidade ao depoimento da testemunha WW – que, pelas razões já explicitadas supra, em sede de apreciação do recurso do arguido AA, não merece censura por parte deste Tribunal ad quem –, tendo o mesmo afirmado ser o objeto de que o arguido/recorrente DD estava munido e aproximou da nuca de um dos três indivíduos que foram sujeitos aos atos perpetrados, uma embalagem/spray de gás pimenta.
Não acolheu o Tribunal a quo, pelas razões que igualmente explicitou, a versão do arguido/recorrente, ao afirmar, nas declarações prestadas, tratar-se aquele objeto de uma lanterna.
O assim decidido não nos merece reparo, desde logo, por ser visível nas imagens visualizadas que o arguido/recorrente coloca o dedo indicador na parte superior do aludido objeto, onde se situa a patilha que permite projetar a substância contida na embalagem/spray.
Não obstante o acabado de referir, visualizadas as imagens em causa, constata-se ter o recorrente aproximado a dita embalagem/spray da nuca de um dos indivíduos, com o dedo colocado na patilha dessa embalagem, mas não se observa qualquer reação exteriorizada pelo mesmo individuo, na sequência da descrita atuação.
Ora, tendo em conta as características do gás pimenta e a reação que normalmente provoca, descrita pela testemunha WW, conquanto, como refere o Tribunal a quo, em pequenas quantidades e não atingindo diretamente a pele, possa não causar reação imediata, dada a ausência de qualquer manifestação exteriorizada pela vítima, em consequência da atuação do recorrente, ainda que o estado de tensão emocional vivenciado pela vítima, naquela concreta situação, possa explicar a ausência de reação, não poderá ser afastada a hipótese alternativa, de não ter sido, efetivamente, projetada a substância contida no aludido spray.
Assim, configurando-se esta hipótese alternativa, a dúvida sobre esse facto teria de se colocar.
Donde, quanto a esse concreto facto, impunha-se, por aplicação do princípio in dubio pro reo, que a dúvida fosse resolvida em sentido favorável ao arguido/recorrente, dando-se aquele facto como não provado.
Nessa decorrência decide-se alterar a redação do ponto 1.34 nos seguintes termos:
1.34. Enquanto tal decorria, o arguido DD, munido de uma embalagem spray de gás pimenta aproximou-a da nuca de um daqueles indivíduos.
E passará a constar do elenco dos factos não provados que, nas circunstâncias descritas no ponto 1.34 da matéria factual provada, o arguido DD tivesse “disparado” o gás pimenta.
Relativamente aos demais factos impugnados, que se prendem com o ter o ora recorrente atuado em comunhão de intentos e conjugação de esforços com os coarguidos AA e GG, ao submeterem os três mencionados cidadãos aos atos praticados, não pode, de modo algum, ser acolhida a argumentação do recorrente de que não surgindo nos vídeos ...57 e ...44, não poderia concluir-se que estivesse presente no inicio dos acontecimentos e a visualização do vídeo no qual surge, não permite afirmar, com certeza, ter o recorrente se apercebido da existência de reguadas e de quem as levou, além de que, não se riu, nem se divertiu, no sentido de manifestar satisfação e desprezo pelos indivíduos que ali se encontravam.
Visualizados os referenciados vídeos, atenta a conduta assumida pelo recorrente, descrita no ponto 1.34, ainda que com a modificação agora introduzida, dada a forma “sorrateira” como surge nas costas das vítimas, munido de uma embalagem spray de gás pimenta, a qual aproximou da nuca de um desses indivíduos e a expressão de riso que ostenta no rosto, resulta isento de dúvidas, a adesão do recorrente ao plano em execução e o ter tomado parte nesta última.
Quanto à alegação de que analisando a expressão facial e a postura dos indivíduos/cidadãos que estavam no pátio exterior, ninguém estava amedrontado, coagido, humilhado ou desprezado, valem aqui as considerações expendidas pelo Tribunal a quo quanto a este concreto ponto, merecendo-nos concordância «Os esgares de incredulidade, submissão, são patentes na expressão facial de tais indivíduos, sendo que o esboço tímido de um sorriso, qualquer manifestação de aparente colaboração, nada mais representa senão uma tentativa, vã, por sinal, de colher simpatia junto dos agressores para que aquelas humilhações (...) terminem o mais rápido possível.».
Por último, não podemos deixar de ficar incrédulos, perante o argumento avançado pelo recorrente, de que no quadro em que os factos ocorreram não teve outro tipo de atitude porque naquele momento não lhe pareceu que houvesse necessidade, «não estava convencido da idoneidade do meio». A atitude do recorrente não foi de pura omissão, tendo tomado parte na execução dos factos, nos termos sobreditos. E não podia o recorrente deixar de estar ciente, sendo militar da GNR, nem podendo deixar de conhecer os deveres funcionais a que, nesse qualidade estava vinculado, que os atos praticados, tendo como vítimas cidadãos estrangeiros, desconhecedores da língua portuguesa, nas concretas circunstâncias em que tiveram lugar, assumia relevância penal, integrando a prática de crime.
Termos em que, modificando-se a decisão de facto no atinente ao ponto 1.34, nos termos supra expostos, concluímos não existir erro de julgamento no referente aos demais factos dados como provados, no que ao ora recorrente respeita.
2.3.2.2. Do erro de subsunção
A divergência do recorrente, neste ponto, refere-se à qualificação jurídica dos factos, reportados à situação de ... de ... de 2019, como integrando, no que ao próprio se refere, a prática, em coautoria, de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do CP.
Relativamente à qualificação jurídica dos factos provados em apreço, tal como se decidiu supra, relativamente ao arguido AA, pelos fundamentos aí expendidos e aqui dados por reproduzidos, entendemos não integraram o crime de ofensa à integridade física qualificada.
Assim sendo, à semelhança do decidido em relação ao arguido AA e considerando a modificação da matéria de facto a que se procedeu, com referência ao ponto 1.34, deve o arguido DD ser absolvido da prática dos três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do CP, por que foi condenado em 1.ª instância.
Conforme também decidido quanto ao arguido AA, com a fundamentação explicitada em 2.3.1.5 e aqui dada por reproduzida, entendemos ter o arguido DD, através da sua descrita atuação, se constituído coautor de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, por que foi pronunciado.
Relativamente à coautoria:
Resulta do disposto no artigo 26º do Código Penal – ao estatuir que é punível como autor «quem tomar parte direta na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros» –, e vem sendo definido pela doutrina e jurisprudência do STJ, que constituem requisitos da coautoria:
- A existência de acordo, expresso ou tácito, para a realização conjunta do facto/crime. O acordo tácito pode manifestar-se através de qualquer comportamento concludente, exigindo, todavia, sempre uma consciência de colaboração que terá de assumir carácter bilateral.
- A participação direta na fase de execução do facto;
- O domínio funcional do facto (tanto pela positiva, pelo domínio da sua função, do seu contributo, na execução conjunta do facto, de tal forma que, numa perspetiva ex ante, a omissão do seu contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada, como pela negativa, podendo impedi-lo), sem que se torne necessário, que o agente intervenha em todos os atos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final[42].
Daí que deva ser considerado coautor aquele que realiza uma parte da execução do plano criminoso, ainda que a sua conduta contribua com um ato não típico, em sentido literal, desde que esse ato se apresente como essencial para a realização do facto típico de acordo com a decisão comum. E por que assim é, são de imputar a cada um dos coautores, como próprios, os contributos do outro ou dos outros para o facto, como se todos, os tivessem prestado[43].
Aplicando estas considerações ao caso vertente, tendo em conta a matéria factual provada e considerando a conduta assumida pelo arguido/recorrente DD, sendo que enquanto o arguido AA dava ordens para que se agachassem e o arguido GG desferia reguadas na palma das mãos dos três cidadãos em questão o ora recorrente DD, dirigiu-se a um desses cidadãos, com uma embalagem/spray de gás pimenta, posicionando-se atrás dele e aproximando a dita embalagem da nuca do mesmo indivíduo, rindo-se e divertindo-se – o recorrente, tal como os coarguidos AA e GG – com a subjugação imposta àqueles três cidadãos, evidenciando o descrito comportamento do recorrente, de forma concludente, estar a agir com consciência e vontade de colaboração com os arguidos AA e GG e tendo o domínio funcional do facto, nos termos sobreditos, há que concluir que se constituiu coautor de um crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal.
Deve, pois, o arguido DD ser condenado, em conformidade.
2.3.2.3. Importa agora proceder à escolha e determinação da medida da pena a aplicar ao arguido/recorrente DD, pela prática do crime de abuso de poder por que agora é condenado.
A moldura penal abstrata correspondente ao crime de abuso de poder é de prisão de 1 mês até 3 anos ou de multa de 10 a 360 dias (cf. artigo 382º, 41º, n.º 1 e 47º, n.º 1, todos do Código Penal).
Na opção entre a pena de prisão e a pena de multa, dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas em 2.3.1.6, na apreciação do recurso do arguido AA, atendendo, no respeitante ao arguido DD, ter este 27 anos de idade à data dos factos e ser primário, tendo sido, posteriormente, condenado, por factos cometidos em data anterior àquela em que perpetrou o crime de abuso de poder em apreço, por crimes também cometidos no exercício das suas funções, de militar da GNR, tal reflete-se nas exigências de prevenção especial. Por outro lado, as exigências de prevenção geral são muito elevadas no atinente ao tipo de crime de que se trata, pelas razões enunciadas no acórdão recorrido.
Neste quadro entendemos que a pena de multa não se revela adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição e, nessa medida, decidimo-nos pela aplicação da pena de prisão.
Dão-se aqui por reproduzidas as considerações teóricas acima expendidas, em 2.3.1.6., acerca dos critérios a atender, na determinação da medida concreta da pena.
Assim, ponderando as enunciadas circunstâncias, designadamente:
O grau de ilicitude dos factos, que se revela mediano, considerando, nomeadamente, a concreta atuação desenvolvida e serem três os cidadãos submetidos à mesma;
O dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo direto;
As condições pessoais do arguido que resultaram provadas, apresentando um percurso de vida normativo, estando integrado familiar, profissional e socialmente, continuando a exercer funções de militar da GNR, estando colocado no Posto Territorial ..., desde ... de 2020, exercendo as funções de patrulha, tendo-se integrado bem na equipa e adaptando-se às tarefas que lhe foram atribuídas;
À data dos factos o arguido DD não registava antecedentes criminais, tendo sofrido, posteriormente, uma condenação, no âmbito do processo n.º .../18, por decisão proferida em .../.../2020, transitada em julgado, em .../.../2021, por factos/crimes [um crime de violação de domicílio por funcionário; dois crimes de ofensa à integridade física qualificada e dois crimes de sequestro agravado], praticados em .../.../2018;
As exigências de prevenção geral, tal como supra referimos, são muito elevadas.
E as exigências de prevenção especial, são medianas, tendo em conta os traços da personalidade do arguido refletidos nos factos praticados.
Ponderando todos estes elementos julgamos adequada a pena de 1 (um) ano de prisão, a aplicar ao arguido/recorrente DD.
Entendemos não ser de substituir a pena de prisão aplicada por pena de multa (cf. artigo 45º, n.º 1 do Código Penal), atentas as exigências de prevenção especial e geral que se fazem sentir, nos termos sobreditos, as quais não seriam satisfeitas com a substituição da prisão, por multa.
Assim, pelos fundamentos expendidos no acórdão recorrido, que acolhemos, decidindo-se pela suspensão da execução da pena de 1 (um) ano prisão, em que o arguido DD é agora condenado, fixa-se o período da suspensão em 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
A suspensão é acompanhada de regime de prova, nos termos decididos no acórdão recorrido.
O recurso interposto pelo arguido DD é, pois, parcialmente procedente.
2.3.3. Recurso do arguido JJ
O ora recorrente foi condenado, em 1.ª instância, com relação aos factos ocorridos em ... de ... de 2019, pela prática em coautoria – com os arguidos AA, DD e GG –, e concurso efetivo, de três crimes de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1 al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do CPP.
No acórdão recorrido, fundamentou-se a imputação ao arguido JJ dos enunciados crimes, nos seguintes termos: «Quanto ao arguido JJ, diversamente do que se concluiu em relação ao arguido DD, os factos permitem concluir por uma omissão pura. Não tomou parte na actuação levada a cabo pelos outros arguidos, limitou-se a estar presente, observar e nada fazer. Por força das funções em que estava investido, para mais encontrando-se de serviço, tinha a obrigação legal de intervir e não permitir, ou fazer cessar, aquela actuação. Absteve-se de forma intencional de o fazer, ciente que essa sua conduta contribuía para que os demais concretizassem os seus intentos. Ou seja, agiu com dolo directo.»
Atenta a alteração da qualificação jurídica a que procedemos, no respeitante aos factos praticados, em coautoria, pelos arguidos AA, DD e GG, no dia ... de ... de 2019, nos termos supra referidos, em 2.3.1.6. concluindo-se integrarem a prática de um crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, tem o arguido/recorrente JJ de ser absolvido da prática dos três crimes de ofensa à integridade física qualificada, por que vinha pronunciado e foi condenado, em 1.ª instância.
A questão que se coloca é a de saber se deve o arguido JJ ser condenado, como coautor, do crime de abuso de poder.
Em nosso entender tal questão merece resposta negativa.
O crime de abuso de poder não é um crime de resultado, sendo um crime de mera atividade[44].
Pese embora, o crime de abuso de poder possa ser cometido por omissão[45], não se tratando de um crime de omissão puro, nem de um tipo de crime que compreenda um certo resultado, em termos de poder funcionar a cláusula de equiparação da omissão à ação, nos termos previstos no artigo 10º, n.º 1 do Código Penal, na concreta situação do arguido JJ, em face dos factos provados, não pode o mesmo ser considerado coautor do crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do CP, por cuja prática os arguidos AA e DD vão condenados, com referência aos factos ocorridos em ... de ... de 2019.
Decidindo-se pela absolvição do arguido JJ, mostra-se prejudicada a apreciação das questões suscitadas no recurso.
Assim, ainda que por fundamentos diversos dos invocados, o recurso interposto pelo arguido JJ deve ser julgado procedente.
2.3.4. Recurso do arguido MM
2.3.4.1. Da ilegalidade da fundamentação do acórdão recorrido
Alega o recorrente que a motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, no que a si respeita, enferma de ilegalidade, por violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP.
Nesse enfoque, aduz o recorrente fundar-se aquela motivação em pressupostos errados e numa errada valoração da prova pericial, defendendo que, na ausência de prova direta de que resultasse ter o recorrente praticado os factos, não podia o Tribunal a quo, retirar as ilações que retirou e “perante as dúvidas levantadas na apreciação da matéria de facto”, não tendo observado o princípio in dubio pro reo, ao dar como provados os facto em que se funda a sua condenação, violou o princípio da presunção da inocência.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente.
Vejamos:
Estão em causa os factos reportados à situação do dia ... de ... de 2018, constantes dos pontos 1.13 a 1.27 da matéria factual provada.
A motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, respeitante a essa situação é do seguinte teor:
«Importa desde logo abordar o tema da fidedignidade dos registos de escala da GNR. Isto porque, na perspectiva da defesa dos arguidos, nesta situação com mais veemência do arguido MM, tal registo, por si só, não é suficiente para comprovar quais os militares que naquele dia, àquela hora, intervieram nessa situação. E, assim, na falta de prova directa, restaria a dúvida.
O tribunal não partilha de tal visão. Como referiu a testemunha WW, os registos de escala determinam quem estará de patrulha ou de atendimento, e qualquer eventualidade, ausência ao serviço ou troca, ficará registada, o que não ocorreu em qualquer das situações a que nos reportaremos.
Acresce que, os factos foram investigados meses depois de terem sido captados aqueles vídeos, pelo que à data os arguidos não tinham qualquer desconfiança de que iriam ser alvo de investigação, tendo inclusive o cuidado de não elaborar qualquer expediente relativamente a tais situações. Ou seja, não fora a apreensão do telemóvel ao arguido AA e a extracção daqueles ficheiros, jamais se teria sabido da ocorrência dos factos objecto dos presentes autos. Caso desconfiassem que tais registos os poderiam comprometer, poderiam tê-los adulterado ou diligenciado pela fabricação de algum tipo de expediente que os desresponsabilizasse, à semelhança da actuação levada a cabo pelo arguido MM no âmbito do processo .../18, cujo acórdão condenatório se mostra junto por certidão a fls. 1252 e sgs, o que não sucedeu.
Donde não há qualquer razão para questionar a correcção e veracidade de tais registos.
Com respeito à situação em apreço, temos o registo de fls. 283 que, conjugado com o teor da informação de fls. 280, atesta que no serviço de “Patrulha às Ocorrências” do dia ... de ... de 2018, no período das ...h... às ...h..., estavam os arguidos MM e AA, com a viatura de matrícula L-..6 (..., fls. 332 e 821). Já no decurso da audiência foi junta informação relativa à requisição da dita espingarda “shotgun” (fls. 1363) donde resulta, com recurso à identificação do número de ordem do militar em causa, e ajuda à sua interpretação por parte da testemunha WW, que quem levantou pelas ...H... e a entregou às ...H... desse mesmo dia foi o arguido MM.
Acresce que, como já se disse, o vídeo foi realizado pelo telemóvel do arguido AA.
Por outro lado, este vídeo não pode ser visto isoladamente. Isto porque, surge na sequência de um outro, captado pelas ...h..., que também foi exibido em audiência e onde é visível que os militares percorrem as divisões de uma habitação onde se encontram cidadãos estrangeiros, sendo que a dado ponto se ouve a interjeição “Ó MM, chega aqui”. Confrontada com este vídeo, a testemunha WW não teve dúvidas em identificar os arguidos AA e MM como sendo intervenientes em tal situação.
Também no vídeo do que se passou no interior da carrinha, à passagem do minuto e trinta e cinco segundos, imediatamente após um dos militares dizer “vomitar não”, ouve-se (excepto para quem não quer ouvir!), embora num tom mais baixo, de novo a interjeição “Ó MM…”.
Desta sequência de vídeos, não resultam dúvidas de que, após terem estado naquela habitação, estes arguidos levaram “detido” um desses cidadãos estrangeiros e transportaram-no na carrinha afecta ao serviço de patrulha às ocorrências, sem que, no entanto, tenham lavrado qualquer expediente (como mais uma vez resulta da informação de fls. 280 vº.). Também da visualização destes vídeos não restam dúvidas de que estava presente um terceiro militar. Tudo indicia que se trataria do arguido PP, uma vez que era quem também se encontrava de serviço naquela noite, embora no atendimento, cujo apoio poderá ter sido solicitado pelos demais, sendo que a testemunha WW a ele se referiu quando lhe foi pedido para identificar as vozes, mesmo que sem grande convicção. De todo o modo, a autoria dos factos relativos a esta situação não lhe vem imputada na pronúncia, pelo que o tribunal se bastou com a menção da presença de um terceiro militar.
Especificamente quanto ao que se passou no interior da carrinha, pela postura do cidadão estrangeiro transportado, com os braços para trás, e pela ausência de qualquer acção defensiva com recurso às mãos/braços em relação às agressões na cabeça de que foi vítima, não restam dúvidas de que se encontrava algemado e que seguramente não era essa a sua vontade.
Pelo facto de serem três, e não apenas dois, os militares ali presentes, de não se saber qual o lugar que cada um ocupava, sendo ouvidas vozes quase em simultâneo, às vezes sobrepostas, não foi possível ao tribunal determinar qual dos arguidos disse ou fez o quê, sendo que a este respeito o depoimento da testemunha WW foi marcado por avanços e recuos.
Como é sabido, a dúvida que em processo penal beneficia os arguidos é a dúvida razoável. Em face do que ficou dito, qualquer dúvida que se pudesse suscitar acerca da participação dos arguidos AA e MM seria absolutamente irrazoável, apenas concebível no domínio do absurdo, esotérico ou sobrenatural.
Felizmente os arguidos abstiveram-se de desenvolver tais teorias. Já da parte das respectivas defesas o mesmo não se pode dizer. A defesa do arguido AA apostou na dúvida relacionada com a extracção dos ficheiros do respectivo telemóvel, e à qual já acima demos resposta. A defesa do arguido MM apostou na pronúncia do arguido. Concretizando: na perspectiva desta defesa, o arguido MM terá uma acentuada pronúncia ..., inconfundível, e que não é audível no vídeo em causa, acrescentando mesmo que houve uma perícia de comparação de vozes, realizada pelo LPC, com resultado inconclusivo. Abordando este último aspecto, não existiu perícia alguma com tal finalidade (vide fls. 514). Por outro lado, independentemente do desfile de testemunhas de defesa (pai, “cunhado”, camaradas de serviço, como acima se referiu), que procuraram de forma absolutamente parcial, suportar a tese da defesa, certo é que, além da sua identificação, o arguido MM não se dispôs a falar em tribunal, não tendo, por isso, o tribunal forma de comprovar se o mesmo tem ou não tem uma acentuada pronúncia.
Ainda assim, sempre se dirá que, exibida em audiência a entrevista que concedeu à D..., não se detecta qualquer pronúncia, muito menos acentuada.
Mas, tudo isto apenas para dar resposta às defesas dos arguidos, para que não argumentem que o tribunal se absteve de abordar essas putativas grandes questões, uma vez que, face ao que acima ficou dito quanto à nossa convicção, e os meios de prova que a sustentam, o arguido MM até pode ter estado calado o tempo todo em que se desenrolou aquela acção, mas que estava presente, disso não resta qualquer dúvida.
Relativamente aos factos que se referem à intenção e consciência dos arguidos na prática dos demais, não tendo havido confissão (e por isso, insusceptíveis de prova directa), a convicção do tribunal formou-se por inferência da prova dos factos objectivos e tendo em atenção, quer os factos notórios, quer as regras da experiência comum – cfr. entre outros Ac.T.R.E. de 09-10-2001, in C.J. 2001, Tomo IV, pág.285.
Resulta evidente à luz das regras do bom-senso e experiência comum que aquela actuação não é digna de militares da GNR, sendo também evidente que estes arguidos utilizaram essas funções para concertadamente criar ascendente sobre a vítima, aproveitando-se ainda do facto de se tratar de um cidadão estrangeiro, que não dominava sequer o português, para o privarem da liberdade, algemando-o atrás das costas, assim lhe retirando qualquer hipótese de fuga/reacção, nomeadamente em relação às palmadas na cabeça que ia sofrendo. Também o ambiente de desprezo e insensibilidade que reinou entre os três militares, revela a baixeza de motivação e actuação, de gozo absolutamente gratuito para com a fragilidade e incapacidade da vítima de se opor a tal comportamento, representando o vídeo um troféu dessa actuação.
A vítima não foi identificada, consequentemente não foi ouvida. Não obstante, face às regras da experiência comum, resulta óbvio que tal actuação resultou em seu prejuízo, pela humilhação a que foi sujeita, pelas dores que sofreu, pelo receio que sentiu, ao ponto de ter uma “shotgun” encostada à cabeça, e pela perda absoluta de confiança em quem deveria ter por missão garantir-lhe protecção, segurança, auxílio, resultado esse que foi visado e alcançado pelos arguidos.
(...).»
Lida a motivação da decisão de facto consignada no acórdão recorrido, acabada de transcrever, não vislumbramos que tenham sido violadas, pelo Tribunal a quo, quaisquer normas de direito probatório ou relativas à apreciação/valoração da prova, de acordo com estatuído no artigo 127º do CPP, tendo o Tribunal a quo enunciado quais as provas que serviram de suporte à convicção formada e procedendo ao respetivo exame crítico, em termos consentâneos com as regras da experiência comum e da lógica racional. E a fundamentação explicitada é esclarecedora do raciocínio seguido para atingir essa convicção.
Como se decidiu no Acórdão do STJ de 23/11/2006[46]: «As normas dos artigos 126.º e 127.º do CPP podem ser interpretadas de modo a que possam ser provados factos sem que exista prova direta deles. Basta a prova indireta, conjugada e interpretada no seu todo», interpretação esta que «não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade ou das garantias de defesa, ou da presunção da inocência e do contraditório, consagrados no artigo 32º, n.ºs 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efetivo controlo da decisão».
O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a interpretação normativa dos artigos 127º e 125º, ambos do CPP, no sentido de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal, decidiu, nos Acórdãos n.º 391/2015[47] e n.º 521/2018[48], pela sua conformidade à Constituição, designadamente, ao seu artigo 32º, n.ºs 2 e n.º 5, que consagram, respetivamente, o princípio da presunção da inocência e a estrutura acusatória do processo penal, não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal e a norma constante do artigo 125º do CPP, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal.
Pelo exposto, conclui-se pela inexistência da invocada ilegalidade da fundamentação do acórdão recorrido, não emanando da mesma qualquer violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º n.º 2 da CRP.
2.3.4.2. Da impugnação da matéria de facto provada constante dos pontos 1.13 a 1.27, por erro de julgamento
Entende o recorrente que os enunciados factos foram incorretamente julgados, pelo Tribunal a quo, impondo-se que tivessem sido dados por não provados.
Alega o recorrente não existir qualquer prova que permita, com a certeza necessária, sem dúvida razoável, que os factos ocorreram como constam da matéria factual provada.
Neste enfoque, manifesta o recorrente que, da análise dos metadados, da data de ativação do telemóvel de onde foram extraídos os vídeos em questão, do teor de fls. 703 e 514 e da visualização e audição sonora daqueles vídeos, não é possível chegar às conclusões que o Coletivo de Juízes chegou, designadamente ser audível, ao minuto 1.35 do vídeo referido, “... Ó MM chega aqui” e qual a data em que tal vídeo foi gravado, apenas constando do relatório pericial de extração a data de modificação dos ficheiros (cf. fls. 703), não a da sua criação.
Conclui o recorrente que, não existindo certeza sobre a data em que os vídeos em causa foram gravados, a identificação do recorrente, bem assim como do arguido AA, com base na escala de serviço refente à data de .../.../2018, não poderiam ser dados como provados os factos cuja prática é imputada ao recorrente.
Relativamente ao depoimento da testemunha WW, o recorrente critica a credibilidade atribuída pelo Tribunal a quo, na parte em que afirmou reconhecer as vozes do “MM e do AA”. E tal como o recorrente AA, defende que a prova desse facto só podia ser feita através de perícia à voz, a qual não foi possível realizar.
Vale aqui tudo o que expusemos supra, em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto feita pelo arguido AA, sendo os mesmos os fundamentos aduzidos para defender terem sido incorretamente julgados e dados como provados aqueles de que aqui se trata, reportados à situação de .../.../2018.
Por último, quanto ao reconhecimento da voz do recorrente MM, pela testemunha WW, reiteramos o supra referido, aquando da apreciação de idêntica questão suscitada pelo recorrente AA, concluindo-se ser essa prova válida, sujeita à livre apreciação do tribunal.
Concluímos, assim, inexistir erro de julgamento, por parte do Tribunal a quo, ao dar como provados os factos constantes dos pontos 1.13 a 1.27, no que ao arguido/recorrente MM se refere.
2.3.4.3. Relativamente à invocada violação do princípio da presunção de inocência, tratando-se de um princípio básico e estrutural do processo penal e de que o princípio in dubio pro reo é corolário, dão-se aqui por reproduzidas as considerações supra expendidas, em 2.3.1.4. sobre as situações em que o tribunal de recurso pode censurar o não uso deste.
Lido o acórdão recorrido, particularmente a motivação da decisão de facto nele consignada, dela não resulta, no referente ao ora recorrente, ter o Tribunal a quo permanecido na dúvida quanto a qualquer dos factos dados como provados.
Por outro lado, perante a prova produzida e respetivo exame crítico, nos termos explicitados na motivação da decisão de facto exarada no acórdão e que foi objeto de reapreciação por este tribunal de recurso, não se vislumbra existirem razões objetivas, para que o julgador se confrontasse com uma dúvida razoável e fundada, sobre a valoração da prova, que devesse resolver em sentido favorável ao arguido/recorrente.
Termos em que, se conclui não existir violação do princípio da presunção de inocência.
Improcede, por conseguinte, o recurso, na parte referente à impugnação da matéria de facto.
2.3.4.4. Permanecendo inalterada a matéria de facto provada fixada na 1.ª instância e dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas, no acórdão recorrido a que se acrescentam as supra expostas, em 2.3.1.5, no tocante ao crime de ofensa à integridade física qualificada, dúvidas não existem de que arguido/recorrente MM, através da sua descrita conduta, atuando em comunhão de intentos e conjugação de esforços, com o arguido AA e outro, constituiu-se coautor, em concurso efetivo, de um crime de sequestro agravado p. e p. pelo artigo 158º, n.ºs 1 e 2, alínea g), in fine do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física, qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1 alínea a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal.
Deve, pois, manter-se a condenação do arguido/recorrente, pela prática de tais crimes, conforme decidido no acórdão recorrido.
2.3.4.5. Da medida da pena de prisão
O recorrente insurge-se contra a medida das penas parcelares - 3 anos e 6 meses, pelo crime de sequestro agravado e 1 ano e 6 meses, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada –, e da pena única – 4 anos e 2 meses – aplicadas em 1.ª instância, reputando-as de manifestamente excessivas, face aos factos apurados e atendendo a que está integrado profissional e socialmente, sendo um militar respeitado, tendo os factos ocorrido em 2018.
Entende o recorrente que ponderadas as circunstâncias a atender na determinação da medida concreta da pena, previstas no artigo 71º, n.º 2 do CP e as concretas exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, o quantum das penas parcelares deverá fixar-se em 2 anos pela prática do crime de sequestro agravado e em 1 ano pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada.
O Ministério Público defende a manutenção das penas aplicadas.
Vejamos:
No tocante às penas parcelares:
Na ponderação das circunstâncias a atender, na determinação da medida concreta de tais penas, valendo para o arguido/recorrente MM, o supra exposto, em 2.3.1.7., na apreciação de idêntica questão relativa ao arguido AA, condenado em coautoria com o ora recorrente, pela prática dos crimes de sequestro agravado e de ofensa à integridade física qualificada, com referência à situação de ... de ... de 2018, tendo o ora recorrente à data dos factos em apreço, 27 anos de idade, não registando, então, antecedentes criminais, sendo posteriormente, condenado, por crimes de idêntica natureza, cometidos em .../.../2018, no âmbito do mesmo processo em que foi também condenado o arguido AA, beneficiando de adequada integração familiar, profissional e social, exercendo atualmente as funções de militar da GNR, no Posto Territorial da GNR ..., entendemos deverem as penas parcelares aplicadas ao arguido/recorrente MM, ser reduzidas, nos exatos termos decididos quanto ao arguido AA.
Nessa conformidade, as penas parcelares a aplicar ao arguido/recorrente MM, fixam-se em:
- 3 (três) anos de prisão, pelo crime de sequestro agravado; e
- 1 (um) ano de prisão, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
Impõe-se, pois, reformular o cúmulo jurídico de penas, em ordem a determinar a pena única a aplicar ao arguido MM.
Dão-se aqui por reproduzidas as considerações supra expendidas, em 2.3.1.8 sobre os critérios a atender na determinação da pena única, resultante do cúmulo jurídico de penas.
A moldura penal abstrata correspondente ao concurso de crimes tem o limite mínimo de 3 (três) anos e o limite máximo 4 (quatro) anos de prisão.
Ponderando, em conjunto, os factos e a personalidade do recorrente neles refletida, sendo mediana a ilicitude global dos factos e revelando o arguido, pela forma como atuou, uma personalidade, que denota falta de empatia pelo outro, sendo a vítima das sua atuação um cidadão de nacionalidade estrangeira, que não dominava a língua portuguesa e, nessa situação, mais vulnerável, por parte de quem, como o recorrente, na sua qualidade de militar da GNR, tinha o especial dever, inerente às funções exercidas, de respeito e de proteção pelos seus direitos e dignidade, entendemos que a pena única de prisão, deve ser fixada em 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, o que se decide.
A pena de prisão aplicada é suspensa na respetiva execução e a suspensão acompanhada de regime de prova, conforme decidido no acórdão recorrido, sendo o período da suspensão, em face da diminuição da medida concreta da pena agora operada, fixado em 3 (três) anos e 4 (quatro) meses.
2.3.4.6. Relativamente à pena acessória de proibição do exercício de função de militar da GNR
Pelos fundamentos supra explanados, em 2.3.1.10., no concernente ao arguido AA, que aqui se dão por reproduzidos, em face do agora decidido por esta Relação, considerando a dosimetria das penas parcelares aplicadas, não sendo nenhuma delas superior a três anos de prisão, não pode manter-se a condenação do arguido/recorrente MM, na pena acessória de proibição do exercício de funções de militar da GNR, pelo que, nessa parte, há que revogar o acórdão recorrido.
O recurso interposto pelo arguido MM é, assim, parcialmente procedente.
2.3.5 Das consequências a extrair relativamente ao arguido GG da procedência parcial dos recursos interpostos pelos arguidos AA e DD (cf. artigo 402º, n.º 2, al. a) do CPP)
Os identificados arguidos foram condenados como coautores de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal, reportados à situação de ... de ... de 2019, sendo que o arguido GG não recorreu da decisão.
A alteração da qualificação jurídica dos factos dados como provados, com referência à mencionada situação, nos termos supra decididos em relação aos arguidos/recorrentes AA e DD, coautores com o GG, na prática dos factos/crime em questão, aproveita a este último, por força do disposto no artigo 402º, n.º 2, al. a), do CPP.
Assim sendo e em conformidade com o decidido em relação aos coarguidos recorrentes, AA e DD, deve o arguido GG ser:
a) absolvido da prática de três crimes de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1 al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal; e
b) condenado pela prática, em coautoria, de um crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, por que vinha pronunciado.
No referente à opção entre a pena de multa e a pena de prisão, pelos fundamentos que levaram a afastar a opção pela pena de multa, relativamente aos arguidos AA e DD, conquanto o arguido GG não registe qualquer condenação no seu registo criminal, tendo 25 anos de idade à data dos factos, as elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir, no respeitante ao tipo e crime em causa, não ficariam satisfeitas com a aplicação da pena de multa, daí a opção pela pena de prisão.
No tocante à medida concreta da pena, ponderando o grau de ilicitude dos factos, sendo o arguido GG quem desferiu as reguadas e as palmadas nos três cidadãos, o dolo com que atuou, a sua adequada inserção familiar, profissional e social, não tendo qualquer condenação registada, sendo as exigências de prevenção especial, à partida, reduzidas e mostrando-se elevadas as exigências de prevenção geral, julgamos adequada a aplicar ao arguido GG, a pena de 10 (dez) meses de prisão.
Não se substitui por multa a pena de prisão aplicada, pelos mesmos fundamentos que levaram a afastar essa pena de substituição no referente aos arguidos AA e DD.
A pena de prisão aplicada é suspensa na sua execução, pelo período de 1 (um) ano e 3 (três) meses, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova, nos termos decididos no acórdão recorrido.
3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora, em:
1º - Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência:
a) Consideram-se não escritas as expressões «precária» - constante dos pontos 1.8, 1.23, 1.40 e 1.54 da matéria factual provada – e «torpes» - constante dos pontos 1.9, 1.24, 1.41 e 1.55 da matéria factual provada –;
b) Procede-se à modificação da decisão sobre a matéria de facto, com referência à situação ocorrida em ... de ... de 2019:
- aditando-se ao ponto 1.32, as caraterísticas da régua aí referida;
- eliminando-se a expressão «dores» do ponto 1.42 da matéria factual provada, passando a integrar o elenco dos factos não provados, com referência à situação ocorrida em ... de ... de 2019;
c) Na decorrência da alteração da qualificação jurídica a que se procedeu, com referência aos factos de ... de ... de 2019 [em termos de integrar não o crime de ofensa à integridade física qualificada, mas o crime de abuso de poder, por cuja prática o arguido foi também pronunciado], absolve-se o arguido AA, da prática, em coautoria, de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal;
d) Ainda na decorrência da alteração da qualificação jurídica referida em c), no respeitante aos factos de ... de ... de 2019, condena-se o arguido AA, pela prática, como coautor, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
e) Reduz-se a pena de prisão aplicada ao arguido AA, no acórdão recorrido, pela prática, em ... de ... de 2018, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, fixando-a em 5 (cinco) meses de prisão;
f) Reduzem-se as penas parcelares de prisão aplicadas ao arguido AA, no acórdão recorrido, pela prática, em ... de ... de 2018, de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nºs 1 e 2, al. g) in fine do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal, fixando-as, respetivamente, em 3 (três) anos de prisão e em 1 (um) ano de prisão.
g) Em cúmulo jurídico [das penas parcelares enunciadas em d), e) e f) e, ainda, da pena de dois anos prisão em que foi condenado, no acórdão recorrido e se mantém, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, reportado aos factos de ... de ... de 2019] condena-se o arguido AA, na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.
h) Suspende-se, na sua execução, a pena única de prisão aplicada ao arguido AA, pelo período de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova, nos termos do disposto no artigo 50º, n.º 2, 53º, n.º 1 e 54º, todos do Código Penal;
i) Revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido AA, na pena acessória de proibição do exercício de função de militar da GNR, pelo período de 3 anos e 6 meses.
2º - Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido DD e, em consequência:
j) Modificar a decisão sobre a matéria de facto:
- Passando o ponto 1.34 dos factos provados, a ter a seguinte redação: «Enquanto tal decorria, o arguido DD, munido de uma embalagem spray de gás pimenta aproximou-a da nuca de um daqueles indivíduos»; e
- Passando a constar do elenco dos factos não provados que, nas circunstâncias descritas no ponto 1.34 da matéria factual provada, o arguido DD tivesse “disparado” o gás pimenta.
k) Na decorrência da alteração da qualificação jurídica a que se procedeu, com referência aos factos de ... de ... de 2019, absolver o arguido DD, da prática, em coautoria, de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal;
l) Ainda na decorrência da alteração da aludida alteração da qualificação jurídica, condenar o arguido DD, pela prática, como coautor, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
m) Mantendo-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido DD, acompanhada de regime de prova, conforme decidido no acórdão recorrido, o período de suspensão é agora fixado em 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
3º - Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido JJ e, em consequência:
n) Absolve-se o arguido JJ da prática dos três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1 e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal, por que vinha pronunciado e foi condenado no acórdão recorrido;
4º - Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido MM e, em consequência:
o) Reduzem-se as penas parcelares de prisão aplicadas ao arguido MM, no acórdão recorrido, pela prática, em ... de ... de 2018, de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nºs 1 e 2, al. g) in fine do Código Penal e de um ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal, fixando-as, respetivamente, em 3 (três) anos de prisão e em 1 (um) ano de prisão.
p) Em cúmulo jurídico [das penas parcelares enunciadas em o)] condena-se o arguido MM, na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
q) Mantendo-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido MM, acompanhada de regime de prova, conforme decidido no acórdão recorrido, o período de suspensão é agora fixado em 3 (três) anos e 4 (quatro) meses.
r) Revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido MM, na pena acessória de proibição do exercício de função de militar da GNR, pelo período de 3 anos e 6 meses.
5º - A procedência parcial dos recursos interpostos pelos arguidos SSS e DD, na decorrência da alteração da qualificação jurídica dos factos a que se procedeu, com referência aos factos de ... de ... de 2019, aproveita ao arguido GG, nos termos do disposto no artigo 402º, n.º 2, al. a), do CPP, pelo que, em consequência:
s) Revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido GG pela prática de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. m), todos do Código Penal e em substituição, condena-se o arguido como coautor de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão.
t) Mantendo-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido GG, conforme decidido no acórdão recorrido, o período de suspensão é agora fixado em 1 (um) ano e 3 (três) meses.
Sem tributação, em face da procedência (total ou parcial) dos recursos (cf. artigo 513º, n.º 1, do CPP).
Notifique.
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges
[1] Cf., entre muitos outros, Ac. do STJ de 12/07/2008, proc. 07P3861, Ac. da RE de 22/11/2018, proc. 526/16.4 GFSTB.E1, Ac.s da RP de 17/06/2020, proc. n.º 2541/19.7JAPRT.P1 e de 08/09/2020, proc. 672/19.2GBAMT.P1, in www.dgsi.pt.
[2] Cf. Ac. da RP de 13/03/2013, proc. 400/09.0PAOVR.C1.P1 e Ac. da RC de 20/06/2018, proc. 13/16.0GTCTB.C1, in www.dgsi.pt.
[3] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Verbo, 2001, Volume G-Z, pág. 3590.
[4] Proferido no processo n.º 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, in www.dgsi.pt.
[5] In CJ-STJ, III, Tomo 2, pág. 254.
[6] Cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 13/02/2008, proc. 07P472 e de 22/04/2009, proc. 303/06.0GEVFX.S1 e Ac. da RL de 02/10/2018, proc. 36/14.4JBLSB.L1-5, in www.dgsi.pt.
[7] Cf., por todos, Acórdãos do STJ de 23/05/2007, proc. 07P1498 e de 03/07/2008, proc. 08P1312, in www.dgsi.pt.
[8] Cf., entre outros, Acórdãos da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da RL de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, in www.dgsi.pt.
[9] In Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, pág. 111.
[10] Proferido no proc.03P2612, in www.dgsi.pt.
[11] Neste sentido, cf., entre muitos outros, Ac. da RE de 20/01/2015, proc. 1243/11.7PBFAR.E1 e Ac. da RC de 26/10/2011, proc. 179/10.3GBVNO.C1, in www.dgsi.pt.
[12] Cf., entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1, Ac. da RG de 16/11/2015, proc. 599/14.4GAFAF.G1 e Ac. da RC de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[13] Vide, entre outros, Ac. da RG de 06/02/2017, proferido no proc. 1802/14.6TAGMR.G1, in www.dgsi.pt.
[14] In BMJ 498, pág. 148 e citado pelo Cons. Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 349.
[15] Cf. Macaísta Malheiros, Crimes contra a Vida Intra Uterina e Crimes contra a Integridade Física, in Direito Penal II, pág. 182, ed. da AAFDL, 1984.
[16] O STJ, no Assento n.º 2/92, de 18/12/1991, in DR, Série I-A, de 08/02/1992, hoje com o valor de Acórdão uniformizador, fixou jurisprudência no sentido de que «integra o crime do art.º 143.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.»
[17] Cf., entre outros, na jurisprudência, Acórdãos desta RE de 9/10/2012, proc. 466/07.8GESTB.E1 e de 28/04/2021, proc. 132/18.4PBMTS.P1 e Ac. da RC de 24/05/2023, proc. 800/18.5PBCLD.C2, in www.dgsi.pt.
[18] Proferido no já referenciado proc. 800/18.5PBCLD.C2.
[19] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2001, págs. 249 e 250.
[20] Cf., ainda que a propósito do crime de homicídio, Teresa Serra, in Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, págs. 63 a 65.
[21] Cf., entre muitos outros, na jurisprudência, Ac. da RP de 30/04/2014, proc. 449/16.7GBPVL.G1 e Ac. da RC de 24/05/2023, já citado, in www.dgsi.pt.
[22] Proc. 449/16.7GBPVL.G1, in www.dgsi.pt.
[23] Posição contrária é defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República ..., 3ª edição, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 517, ao entender que o cometimento o crime por funcionário no exercício das suas funções ou por causa delas é um abuso grave da autoridade, a justificar sempre a qualificação.
[24] Cf. Ac. do STJ de 06/02/2019, proc. n.º 1074/15.5PAOLH.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[25] In ob. cit., página 774 e 775.
[26] Idem, pág. 775.
[27] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. e loc. cit.
[28] Cf., por todos, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit. pág. 1215 e, na jurisprudência, Ac. do STJ de 12712/2018, proc. 72/17.9TRPRT.S1, in www.dgsi.pt.
[29] Proc. 28/14.3NJLSB.L1-3, in www.dgsi.pt.
[30] No mesmo sentido, cf. Ac. da RL de 11/02/2009, proc. 4591/2008-3, in www.dgsi e RP de 09/11/2016, sumariado in CJ, Ano XLI, tomo V, pg. 298.
[31] In ob. cit., págs. 778 e 779.
[32] Cf., por todos, Paula Ribeiro de Faria, in ob. cit., pág. 779.
[33] Proc. 07P4279, in www.dgsi.pt.
[34] In Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, pág. 815.
[35] Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequeitas, 1993, pág. 334.
[36] In Direito Penal Português, cit., págs. 291 e 292.
[37] Ac. do STJ de 23/11/2011, proc. n.º 127/09.3PEFUN.S1, in www.dgsi.pt
[38] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, cit., pág. 343.
[39] In ob. cit., pág. 333.
[40] Proferido no proc. 270/09.9GBVVD, in www.dgsi.pt.
[41] Cf., entre outros, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 344 e, na jurisprudência, Ac. da RE de 19/12/2013, proc. 11/09.0TASLV.E1, in www.dgsi.pt.
[42] Cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 05/06/2012, proc. 148/10.3SCLSB.L1.S1 e de 15/04/2009, proc. 09P0583, in www.dgsi.pt.
[43] Cf., Ac. do STJ de 12/11/2014, proc. 1000/09.0JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[44] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 1215.
[45] Cf., neste sentido, cf. Paula Ribeiro de Faria, in ob. cit., pág. 777.
[46] Proferido no proc. 06P4096, in www.dgsi.pt
[47] De 12/08/2015, Proc. n.º 526/2015, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150391.html
[48] De 17/10/2018, Proc. n.º 321/2018, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180521.html