INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA PROVOCADA
IRRECORRIBILIDADE
Sumário


1 – A intervenção principal provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual se deve associar têm interesse igual na causa, desenhando-se uma situação de litisconsórcio sucessivo, seja necessário, seja voluntário.
2 – O chamamento deduzido pelo réu de outros sujeitos passivos da relação material controvertida depende da análise dessa relação, tal como é configurada pelo autor na petição inicial.
3 – Se a relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, respeita apenas ao autor e ao réu, essa constatação determina o indeferimento da requerida intervenção principal provocada.
4 - A decisão sobre o chamamento de terceiro a título de intervenção acessória provocada é irrecorrível, como expressamente estatui o art. 322º nº2 do CPC.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


1 – RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Santarém – Juiz 1, a autora Hipótese Verde – Unipessoal Lda., instaurou a presente acção cível de condenação, com processo comum, contra a ré MTNI – Mudanças e Transportes Nacionais e Internacionais e Serviços Logísticos, Unipessoal Lda., ambas melhor identificados nos autos.
Diz a autora que a ré lhe vendeu um tractor e garantiu o bom funcionamento deste, vindo a verificar depois que este carecia de reparações, que a autora suportou, e por isso esteve paralisado, causando assim prejuízos para a autora, pelo que estará a ré obrigada a suportar a correspondente indemnização.
Na sequência da sua citação, a ré apresentou contestação, impugnando a factualidade alegada pela autora (segundo a ré quem vendeu o tractor e garantiu o seu bom funcionamento foi a sociedade Entreposto, pelo que existindo direito a indemnização seria esta o sujeito passivo de tal obrigação).
Com base nessa mesma matéria de facto, a ré requereu a intervenção principal provocada da referida sociedade Entreposto, dizendo fazê-lo “a fim da mesma intervir nos autos como parte principal do lado passivo, arts 311º e 316º, nº 3, al. a), ambos do CPC”, concluindo ainda que caso fosse indeferida essa intervenção principal deveria a sociedade referida ser chamada a título de “intervenção principal acessória, art. 321º, do CPC.”
Exercido o contraditório, a autora deduziu oposição às pretensões da ré requerente.
Seguidamente, foi proferido despacho que indeferiu o requerimento da ré, que vem a ser o recorrido – a ré, inconformada com o decidido, reagiu através do presente recurso de apelação.

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2 – A DECISÃO RECORRIDA
É o seguinte o despacho que vem impugnado (transcrevemos):
“Na contestação, veio a Ré requerer a intervenção principal da sociedade “ENTREPOSTO MÁQUINAS COMÉRCIO EQUIPAMENTO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL SA” (doravante, abreviadamente, “ENTREPOSTO”), como sua associada na ação, ou, subsidiariamente, a intervenção acessória de tal sociedade, alegando para tanto que o contrato de compra e venda de trator invocado pela Autora na ação foi celebrado com a referida sociedade e não consigo, Ré.
Notificada, a Autora pugnou pelo indeferimento da intervenção daquela sociedade, quer a título principal, quer a título acessório.
Cumpre apreciar e decidir.
O art. 260.º do Cód. Proc. Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, segundo o qual, uma vez citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
Ora, no que tange à modificação dos sujeitos processuais, as partes podem lançar mão dos incidentes de intervenção principal e acessória reguladas pelos arts. 316.º e seguintes do Cód. Proc. Civil.
Como é sabido, na intervenção principal, o terceiro é chamado a ocupar na lide a posição de parte principal, i.e., a mesma posição da parte principal primitiva a que se associa, fazendo valer um direito próprio, podendo apresentar articulado próprio e sendo a final, em sede de sentença, condenado ou absolvido na sequência da apreciação da relação jurídica, sentença essa que constitui quanto a ele caso julgado, resolvendo em definitivo o litígio em discussão (cfr. arts. 312.º, 314.º e 320.º do Cód. Proc. Civil).
Diferentemente, na intervenção acessória o terceiro é chamado a assumir na lide uma posição com mero estatuto de assistente e, nessa medida, a sua intervenção limita-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento, sendo que a sentença não aprecia o direito de regresso, mas forma caso julgado relativamente às questões de que dependa tal direito (cfr. arts. 321.º, n.º 1, 323.º, sn.ºs 1 e 3 do Cód. Proc. Civil).
Ora, de acordo com a lei adjetiva atualmente em vigor, o réu só pode requerer o chamamento de terceiro como seu associado (i.e., para intervir como parte principal no lado passivo da ação) na hipótese prevista no art. 316.º, n.º 3, alínea a) do Cód. Proc. Civil, a saber: quando o réu mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida.
Manifestamente, não é essa a situação dos autos. Destarte, não alega a Ré qualquer factualidade da qual se infira que entre ela e a sociedade “ENTREPOSTO” existe uma relação de litisconsórcio voluntário, v.g., por serem ambas parte no contrato de compra e venda em discussão nestes autos. Pelo contrário, a Ré nega perentoriamente ser parte na relação jurídica controvertida.
Poder-se-ia, em tese, estar perante uma situação de pluralidade subjetiva subsidiária, a que alude o art. 39.º do Cód. Proc. Civil. Todavia, apenas a Autora – e não a Ré – teria legitimidade para fazer intervir a sociedade “ESBOÇO” no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida (cfr. art. 316.º, n.º 2 in fine do Cód. Proc. Civil).
Mas, que dizer da intervenção acessória, requerida a título subsidiário?
Preceitua o art. 321.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil que «o réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal».
E, acrescenta o n.º 2 do art. 322.º do citado Código: «O juiz, ouvida a parte contrária, aprecia, em decisão irrecorrível, a relevância do interesse que está na base do chamamento, deferindo-o quando a intervenção não perturbe indevidamente o normal andamento do processo e, face às razões invocadas, se convença da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal».
Sucede que a Ré nada alegou passível de demonstrar a existência de um eventual direito de regresso, nem – a fortiore ratione – da viabilidade de uma ação com vista a efetivar tal direito, nem a sua efetiva dependência das questões a decidir nesta ação.
Face ao exposto, julga-se totalmente improcedente o presente incidente deduzido pela Ré e, em consequência, não se admite o chamamento da sociedade “ENTREPOSTO MÁQUINAS COMÉRCIO EQUIPAMENTO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL SA”, quer a título de intervenção principal provocada, quer a título de intervenção acessória.”
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3 – A APELAÇÃO
Sintetizando os fundamentos da sua apelação, a ré recorrente termina o seu requerimento de recurso com as seguintes conclusões:
1ª – A apelante tem interesse atendível no chamamento da requerida, mediante o incidente de intervenção principal provocada, porquanto a mesma conferiu garantia de bom funcionamento à máquina vendida;
2ª - Pelo que, esta deve estar ao seu lado na ação, a fim de a sentença a proferir também a abranger;
3ª – Porquanto, o evento que despoleta a garantia ocorreu na vigência desta;
4ª - A que não obsta a alegação ilegitimidade da apelante para a relação jurídica controvertida;
5ª – Outrossim, como decorre da garantia oferecida pela requerida ao comprador, é ela responsável pela reparação do bem;
6ª – Ademais, mesmo que não se entendesse, como se entendeu, na decisão recorrida não haverinteresseatendível,oquesomentepormera cautela depatrocínio seinvoca,semprehaveria direito de regresso da apelante sobre a requerida, pois esta assumiu a responsabilidade do bom funcionamento do bem, decorrente da igual garantia prestada;
7ª – Pelo que, também por aqui seria de deferir o incidente requerido, designadamente convolando-o na modalidade de intervenção acessória.
Nesta conformidade, a Mma. Juiz “a quo” fez equivocada interpretação do disposto no art. 316º, nº 3, al. a), do CPC, ao considerar que a apelante não demonstrou interesse atendível como exigido na alínea invocada como fundamento para a requerida intervenção principal provocada.
Termos em que, revogando Vs. Ex.as o despacho recorrido e substituindo-o por outro que defira o requerido incidente de intervenção principal provocada ou, se assim for entendido, convolando-o em intervenção acessória, farão a melhor JUSTIÇA.”
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Por parte da autora, recorrida, não foram apresentadas contra-alegações.
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4 – OBJECTO DO RECURSO
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
No caso presente, a questão colocada ao tribunal de recurso traduz-se resumidamente em decidir se deve ser deferida a intervenção principal requerida pela recorrente, ou eventualmente convolar essa pretensão para a figura da intervenção acessória, ou pelo contrário se deve manter-se o despacho impugnado.
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
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5 - APRECIANDO E DECIDINDO
Como decorre do que ficou exposto, as questões a decidir nesta sede de recurso dependem exclusivamente da aplicação das normas jurídicas pertinentes.
Concretamente, entende a recorrente que o disposto no art. 316º, nº 3, al. a), do Código de Processo Civil, deve conduzir ao deferimento do seu pedido de intervenção principal provocada (ao lado da própria ré) da sociedade comercial que indica para chamamento.
Antes do mais, convém recordar que constitui um princípio vigente no nosso direito processual a estabilidade da instância, pelo que a intervenção de terceiros no andamento do processo, após definidos os respectivos sujeitos, reveste carácter excepcional e só pode ocorrer nos casos previstos na lei.
É o que se pode verificar no art. 260º do Código de Processo Civil:
Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
Assente que é esta a regra, cumpre reconhecer que a própria lei previu algumas situações em que excepcionalmente permite a modificação subjectiva da lide, como acontece com o mencionado art. 316º CPC.
O artigo referido, com a epígrafe “intervenção provocada”, reza o seguinte:
“1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.”
Percorrendo a norma, e desconsiderando agora a alínea mencionada pela recorrente, constata-se que na realidade a pretensão exposta pela requerente não encontra manifestamente apoio em nenhuma das restantes previsões legais sobre intervenção principal provocada.
No número 1 a norma previu as situações de preterição de litisconsórcio necessário, caso em que qualquer das partes pode deduzir o pedido de intervenção, mas que é hipótese que não está colocada na situação presente.
No número 2 a norma previu casos de litisconsórcio voluntário em que a parte autora poderá suscitar o incidente de intervenção (não a parte demandada).
E no número 3 estão previstas, realmente, as possibilidades que assistem ao réu de também ele requerer a intervenção principal na causa de terceiros que inicialmente não figurem como sujeitos processuais.
Em face da alínea b) desse n.º 3, logo se constata que também não tem qualquer aplicação ao caso dos autos, uma vez que se refere à intervenção ao lado do autor de possíveis contitulares do direito alegado por este, situação de todo estranha aos fundamentos e à pretensão da ré/requerente.
Na verdade, a ré/requerente pretende a intervenção principal do Entreposto do lado passivo da relação processual, alegando que foi com esta entidade que a autora celebrou contrato de compra e venda do tractor referido na petição inicial, e garantiu o bom funcionamento deste, pelo que a existir o direito a indemnização invocado pela autora este terá por sujeito passivo a aludida sociedade, que estará adstrita a essa obrigação.
Será que o requerimento da ré encontra apoio na al. a) do n.º 3 do art. 316º do CPC, conforme vem alegado?
Desta norma resulta que “O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este (…) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida”.
A nosso ver, a resposta à interrogação colocada resulta clara uma vez compreendido o que seja a “relação material controvertida”.
Ora a relação material controvertida é aquela que vem delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor, na petição inicial.
Considerando o pedido e a causa de pedir apresentados na petição inicial define-se o objecto do processo, e definem-se os sujeitos do litígio processual que o tribunal é chamado a dirimir.
A relação material controvertida nos autos é aquela que o autor desenhou na petição inicial, e não outra.
No caso dos autos, a autora demandou a ré dizendo que esta deve ser condenada a indemnizá-la, e a ré contesta impugnando os factos de onde resultaria essa obrigação, defendendo que nada deve à autora.
Consequentemente, logrando a autora demonstrar os pressupostos de facto e de Direito de que depende o seu pedido, poderá alcançar sucesso na lide; e, ao contrário, logrando a ré comprovar os fundamentos da sua defesa poderá conseguir a absolvição almejada. Qualquer destas possibilidades se situa no âmbito do conflito que o tribunal está convocado a resolver, atenta a “relação material controvertida”.
As circunstâncias concretas alegadas pela ré na sua contestação para defender a improcedência dos pedidos contra ela formulados pela autora (isto é, que será outra entidade a estar vinculada na relação contratual ajuizada pela autora e às obrigações dela decorrentes) não têm a virtualidade de integrar a terceira entidade aludida entre os sujeitos da “relação material controvertida”. Esta é, repete-se, a configurada pelo autor na petição inicial.
A intervenção provocada pressupõe que o chamado e a parte à qual se deve associar têm interesse igual na causa, desenhando-se uma situação de litisconsórcio sucessivo, seja necessário, seja voluntário – mas, no caso dos autos, e considerando os pedidos e a causa de pedir apresentados pela autora, não se pode considerar que o Entreposto tenha qualquer interesse na causa.
Com efeito, a autora deduz pedido de condenação da ré, por entender que esta é que lhe deve uma indemnização, nada diz sobre outros eventuais responsáveis. Ou seja, analisada a relação material controvertida, tal como é configurada pela autora, verifica-se que a mesma não respeita a uma pluralidade de sujeitos, mas, apenas e tão só, à própria autora e à própria ré.
Tal constatação implica, necessariamente, o indeferimento da requerida intervenção principal provocada.
Resta, portanto, confirmar a decisão recorrida, não merecendo a mesma qualquer censura.
A recorrente insiste ainda que caso seja indeferida a intervenção principal deve convolar-se o seu pedido para a intervenção acessória, prevista no art. 321º do CPC, defendendo que os factos que alega na sua contestação poderão fundamentar um direito de regresso a exercer contra a chamada.
Porém, esta pretensão foi objecto de apreciação no despacho impugnado e mereceu também decisão de indeferimento.
Ora a decisão sobre o chamamento de terceiro em sede de incidente de intervenção acessória provocada, qualquer que seja o entendimento do juiz, deferindo ou indeferindo o chamamento, é irrecorrível, como expressamente estatui o art. 322º nº2 do CPC:
“2 - O juiz, ouvida a parte contrária, aprecia, em decisão irrecorrível, a relevância do interesse que está na base do chamamento, deferindo-o quando a intervenção não perturbe indevidamente o normal andamento do processo e, face às razões invocadas, se convença da viabilidade da ação de regresso e da sua efetiva dependência das questões a decidir na causa principal.”
Ou seja, por força do disposto no art. 322º, n.º 2, do CPC, a decisão proferida a este respeito na primeira instância é irrecorrível, assumindo, portanto, carácter definitivo, no âmbito do processo.
Não cabe, pois, a esta instância de recurso entrar na apreciação dos pressupostos invocados pelo requerente quanto à eventual intervenção acessória, tarefa que o legislador reservou em exclusivo à primeira instância.
Nestes termos, improcede de todo o recurso de apelação em apreço, mantendo-se em consequência o que foi decidido no despacho impugnado.
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6 - DECISÃO
Por todo o exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e consequentemente confirma-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela apelante, dado o decaimento verificado (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 15 de Junho de 2023
José Lúcio
Maria da Graça Araújo
Manuel Bargado