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NULIDADE DA SENTENÇA
QUESTÕES A RESOLVER NA SENTENÇA
CONFISSÃO FICTA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DEFESA DO CONSUMIDOR
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário
I - Apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil. II - O réu tem o ónus de contestar a acção, na medida em que a revelia, quando operante, produz efeitos que lhe são desfavoráveis, e, por isso, é advertido aquando da citação das cominações em que incorre no caso de revelia. III - Em regra, a revelia é operante, pois, exceptuando os casos previstos nas alíneas do artigo 568º do Código de Processo Civil, a falta de contestação do réu leva a que se considerem confessados os factos articulados pelo autor, quando o réu, tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, mesmo que não tenha intervenção no processo (revelia absoluta), ou tenha apenas juntado procuração no prazo da contestação (revelia relativa). IV - O efeito deste comportamento omissivo do réu é a chamada confissão tácita ou ficta, a qual se distingue da confissão judicial expressa, traduzida numa declaração de ciência, em que o confitente reconhece a realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. V - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, no âmbito da aplicação da Lei de Defesa do Consumidor e do Decreto-Lei n.º 67/03, de 8 de Abril, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, podendo o consumidor exercer qualquer dos referidos direitos, sem qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais. VI - Provando-se que a autora solicitou por diversas vezes à ré que custeasse a reparação das diversas avarias do veículo, que lhe havia comunicado e que esta, ainda que se tivesse comprometido a fazê-lo, não cumpriu com o prometido, sendo que as avarias impedem a utilização do veículo, tem a autora direito, como consequência da resolução do contrato, ao recebimento do preço do bem e a ser indemnizada dos prejuízos patrimoniais e danos morais que sofreu, resultantes do fornecimento do bem defeituoso e da conduta do réu. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1.AA intentou acção declarativa, sob a forma comum, contra Via Sport – Comércio de Automóveis, Lda., pedindo a condenação da R. a pagar-lhe “a quantia de € 5.000,00 correspondente ao valor da compra e venda, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, acrescido das despesas no valor de € 774,69 e da indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 1.000,00, num total de € 6.774,69 (seis mil setecentos e setenta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos)”.
2. Para tanto, alegou, em síntese, que:
- Comprou à R. o veículo automóvel, que identifica, pelo valor de € 5.000,00;
- Ainda antes da compra e venda foram identificadas pela A. algumas avarias, tendo ficado acordado que a R. suportaria o custo da reparação, mas que esta não pagou integralmente;
- Posteriormente detectou outras avarias, no limpa vidros do pára-brisas e no travão automático, que constituem defeitos de funcionamento do veículo, tendo dado delas conhecimento à R., que se recusou a custear a reparação do travão;
- Como o veículo não tem travão manual, estando o travão automático avariado, o veículo não fica travado em segurança, o que obriga a A. a colocar uma pedra ou tijolo junto aos pneus de modo a imobiliza-lo;
- No dia 26/08/2019 o veículo avariou na A5, tendo sido rebocado para a oficina “Feu Vert”, onde foi diagnosticada uma avaria no motor, de que a A. deu conhecimento à R.;
- O arranjo teria o valor entre € 800,00 e € 1.000,00, se implicasse troca de peças, ou um valor superior se fosse necessária a substituição do motor;
- Foi, então, acordado entre A. e R. que esta devolveria à A. a quantia de € 4.000,00 e pagaria à oficina o valor do orçamento e o custo da reparação, acordo este que a R. não cumpriu, apesar das solicitações por escrito que lhe dirigiu.
- A oficina deslocou o veículo para local desconhecido da A., não o devolvendo sem receber o valor correspondente ao período de “parque”;
- A A. está privada do uso do veículo, tendo suportado as despesas que especifica, no total de € 774,69; e
- Perdeu tempo nas inúmeras deslocações que fez para resolver o problema, estando nervosa, apreensiva e desiludida com a situação retratada, o que lhe provoca desgaste psicológico com o sucedido.
Invoca, assim, o seu direito à resolução unilateral do negócio e a ser indemnizada pelo valor que despendeu na aquisição do veículo, com as despesas realizadas, e por danos não patrimoniais.
3. A R. foi citada e apresentou contestação, mas a contestação foi desentranhada, por extemporaneidade (cf. despacho de 18/02/2022).
4. Foram declarados confessados os factos alegados na petição inicial (cf. artigo 567º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e notificados os Mandatários das partes para alegarem por escrito, o que fizeram.
5. Após, veio a ser proferida sentença, na qual, declarando-se o direito à resolução do contrato pela A., decidiu-se julgar a acção procedente, por provada e, em consequência: «… condenar a R., Via Sport – Comércio de Automóveis, Lda., a pagar à A., AA, a quantia de € 5.000,00 correspondente ao valor da compra e venda, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, acrescido das despesas no valor de € 774,69 e da indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 1.000,00, num total de € 6.774,69 (seis mil setecentos e setenta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos)».
6. Inconformada interpôs a R. o presente recurso, que fundamentou, concluindo nos seguintes termos:
1.ª Salvo o devido respeito que é muito a ora Apelante não concorda com a decisão sob recurso.
2.ª Desde logo é nula a decisão uma vez que condenada a Apelante no pagamento da quantia de 5.000,00 € referente ao valor da venda do veiculo automóvel, a sentença não declarou a restituição da viatura e o cancelamento do registo, pelo que a mesma é nula face ao disposto no art 615 nº1 alínea d) do CPC, porquanto não se pronunciou sobre matéria de que tinha de se pronunciar.
3.ª Assim, a presente decisão violou o disposto na alínea d) do art 615 do C.P.C. e 290º do C.C.
4.ª Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
5.ª Esta nulidade está directamente relacionada com o Artigo 608º, nº2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
6.ª Ora, não pode a douta sentença condenar a Apelante ao peticionado, mantendo-se a Apelada como proprietária da viatura, isto, porque, estaríamos, assim, perante um enriquecimento sem causa ao abrigo das disposições constantes no artigo 473º e seguintes do Código Civil.
7.ª Salvo o devido respeito que é muito andou mal o Mmº Juiz quando na douta sentença sob recurso deu como provado todos os factos articulados pela Apelada, quando os factos alegados nos artigos 23º, 28º, 29º e 41º da petição inicial não deveriam ter sido dados como provados uma vez que a Apelada não juntou qualquer prova.
8.ª Pelo que deverão os factos alegados nos artigos 23º, 28º, 29º e 41º da petição inicial ser declarados como não provados atenta a falta de prova dos autos.
9.ª Como também não pode ser dado como prova que a Apelada sofreu danos não patrimoniais no valor de Eur.1.000,00 € (mil euros), uma vez que não foi junta qualquer prova.
10.ª Bem como que a Apelada teve despesas no valor global de 774,64 €, uma vez que não juntou quaisquer comprovativos de pagamento.
11.ª Entende a Apelante, que estamos perante a chamada confissão tácita ou presumida, a qual não se confunde com a confissão judicial expressa, dispensando aquela qualquer manifestação de vontade nesse sentido em face da previsão legal do respectivo efeito confessório.
12.ª Assim, tratando-se de um efeito cominatório semipleno, a falta de contestação não determina inelutavelmente a procedência da acção, cabendo ao Mmº Juiz aquilatar seguidamente se dos factos alegados e declarados confessados decorre ou não a consequência jurídica pretendida, ou seja, se os factos alegados têm ou não a virtualidade de fundamentar o pedido da Apelada.
13.ª Salvo o devido respeito que é muito, tratando-se de uma confissão semiplena, que se aplica apenas aos factos articulados, o Mmº Juiz está sujeito a estes mas, em decorrência do preceituado no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, não estando sujeito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito, podendo consequentemente considerar que os factos articulados e provados não conduzem à procedência total ou parcial da acção.
14.ª Assim, os factos alegados pela Apelada terem sido considerados como confessados não determina que o desfecho da lide seja, necessariamente, aquele que esta pretende, na medida em que o Mmº Juiz deve, depois, julgar a causa aplicando o direito aos factos admitidos.
15.ª Mais, se refere, que se tratando de factos que se encontrem fora das excepções previstas no artigo 568º, do CPC, o Tribunal não os pode considerar confessados por falta de contestação.
7. Contra-alegou a recorrida, pedindo a rejeição do recurso, por falta de pagamento da multa prevista no artigo 642º, n.º 2, do Código de Processo Civil e, caso o mesmo seja admitido, pugna pela improcedência do mesmo.
O recurso foi admitido, por se mostrar atempadamente paga a multa devida, com subida nos próprios autos e feito devolutivo, o que foi mantido por despacho do relator.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
* II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da nulidade da sentença;
(ii) Da alteração da matéria de facto;
(iii) Reapreciação da decisão jurídica da causa.
* III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram considerados como “provados todos os factos da petição inicial, por confissão e a prova documental junta”, que aqui se têm também como reproduzidos.
*
B) – O Direito 1. A R./recorrente discorda da sentença, começando por invocar a nulidade da mesma por omissão de pronúncia.
De acordo com a 1.ª parte da alínea d), do n.º 1, do art.º 615.º do C. P. Civil, a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (cf. artigo 608º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
E a decisão padece do vício da nulidade quer no caso de o juiz deixar de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Tem sido entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, que apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal. Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do artigo 615º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Daí que, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
No caso em apreço, diz a apelante que o Tribunal recorrido condenou-a a pagar a quantia de € 5.000,00, referente ao valor de venda do veículo automóvel, mas não declarou a restituição da viatura e o cancelamento do registo.
Efectivamente, na sentença reconheceu-se que, em face dos factos provados, assistia à A. o direito a obter da R. o pagamento do valor da compra do veículo, tendo por fundamento o direito à resolução unilateral do contrato, ao abrigo do disposto nos artigos 3º e 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003 (e não n.º 62/2013, como por manifesto lapso se diz na sentença), como foi pedido.
Ora, a resolução do contrato, na falta de disposição especial, em face do disposto nos artigos 433º, 434º e 289º, do Código Civil, é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, e tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Porém, no caso em apreço, a A. não suscitou a questão da restituição do veículo, nem do cancelamento do registo do mesmo em seu nome, e a R. também não formulou tais pedidos, o que resulta evidente do facto de não ter apresentado em tempo a contestação.
Por conseguinte, estas não eram questões que o Tribunal a quo tinha para decidir.
Deste modo, não ocorre a invocada nulidade.
Acresce que, em face dos factos provados, o veículo nem sequer se encontra na posse da A., pois, como alegou e provou, a oficina onde o mesmo se encontrava para reparação, cujo custo seria a suportar pela R., deslocou-o para local que a A. desconhece, recusando-se à devolução do mesmo até que lhe seja pago o valor correspondente ao tempo em que o veículo se encontra na oficina, tendo a A. apresentado a respectiva queixa criminal.
2. Discorda também a R. da sentença, quanto à matéria de facto, na parte em que se deram como provados os factos alegados nos artigos 23º, 28º, 29º e 41º da petição inicial, onde a A. alegou que: 23. Nos dias subsequentes à entrega do veículo, a Autora apercebeu-se da existência de mais avarias no veículo, a saber:
• Limpa vidros do pára-brisas deixou de funcionar;
• O travão automático não destravava. 28. Ora, como o veículo em causa não tem travão manual, estando o travão automático avariado, o veículo nunca se encontrava travado em segurança, 29. Obrigando a Autora a colocar um tijolo ou uma pedra junto dos pneus do veículo de modo a imobiliza-lo e impedir que “descaísse”. 41. A Autora deu conhecimento do sucedido à Ré, que lhe indicou por SMS que enviasse o veículo para uma oficina da sua confiança, denominada Labauto Automóveis e Oficina Mecânica (com a firma A..., Lda.), sita na Estrada de Alfragide 22A, Buraca, 2610-262 Amadora, conforme documento que ora se junta como Documento n.º 14, comprometendo-se a Ré a pagar à oficina o valor da(s) reparação(ões) a efectuar.
Entende a R. que estes factos deveriam ter sido dados como provados, uma vez que a Apelada não juntou qualquer prova.
Diz também a R. que não pode ser dado como provado que a A. sofreu danos não patrimoniais no valor de Eur.1.000,00 € (mil euros), uma vez que não foi junta qualquer prova, assim, como não se pode dar como provado que a apelada teve despesas no valor global de 774,64 €, uma vez que não juntou quaisquer comprovativos de pagamento.
Como consta dos autos, na sequência da não admissão da contestação, foram declarados confessados os factos alegados pela A., nos termos do n.º 1 do artigo 567º do Código de Processo Civil, aludindo-se ainda na sentença à prova documental junta.
Efectivamente, o réu tem o ónus de contestar a acção, na medida em que a revelia, quando operante, produz efeitos que lhe são desfavoráveis. Por isso é advertido aquando da citação das cominações em que incorre no caso de revelia (cf. artigos 227º, n.º 2, in fine, e 563º, do Código de Processo Civil).
E, em regra, a revelia é operante, pois a falta de contestação do réu leva a que se considerem confessados os factos articulados pelo autor, quando o réu, tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, mesmo que não tenha intervenção no processo (revelia absoluta), ou tenha apenas juntado procuração no prazo da contestação (revelia relativa).
O efeito deste comportamento omissivo do réu é a chamada confissão tácita ou ficta, a qual se distingue da confissão judicial expressa, traduzida numa declaração de ciência, em que o confitente reconhece a realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (artigos 355° e ss. do CC). Já a confissão a que conduz a revelia operante não depende de qualquer declaração nesse sentido, bastando a mera inércia do demandado (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2020, 2ª edição actualizada, pág. 654).
Só não será assim, quando ocorra alguma das excepções ao efeito da revelia, previstas nas alíneas a) a d) no artigo 568º do Código de Processo Civil.
Ora, é manifesto que os factos alegados nos artigos 23, 28, 29 e 41 da contestação não cabem na previsão do artigo 568º do Código de Processo Civil, não carecendo de prova documental, pelo que se encontram provados em face da confissão ficta. É verdade que o documento referido no artigo 41º da contestação se reporta a ocorrência anterior, mas tal não invalida que se tenha por provado que “a A. deu conhecimento à R. que lhe indicou por sms que enviasse o veículo para uma oficina da sua confiança, denominada Labauto …, comprometendo-se a R. a pagar o valor da(s) reparação(ões) a efectivar”, por confissão, tanto mais que do artigo 42 da petição resulta provado que no dia 05/09/2019, o veículo foi levado para a oficina indicada pela R., tendo a Autora custeado o reboque respectivo, e do alegado no artigo 5º também resulta o acordo da R. em custear a reparação e o orçamento apresentado pela oficina.
Quanto às despesas que a A. suportou com esta situação, também não é exigível prova documental, motivo pelo qual estão provadas por falta de contestação.
No que se refere ao valor dos danos não patrimoniais, o que foi alegado foram os factos em que a A. baseou a sua pretensão (perda de tempo, nervosismo, desilusão, desgaste psicológico …), nada constando em “termos factuais”, quanto ao montante do dano, que apenas é quantificado no pedido.
Por conseguinte, improcede a pretensão da recorrente quanto à alteração da matéria de facto.
3. No que se reporta ao enquadramento/subsunção jurídica da causa, como se diz na sentença, ao contrato de compra e venda em causa nos presentes autos (venda de um veículo usado por um vendedor profissional a um consumidor) aplicam-se as regras gerais do Código Civil, da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (doravante “Lei de Defesa do Consumidor”), e o Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (doravante Decreto-Lei n.º 67/2003), vigente à data dos factos [Este diploma foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, que entrou em vigor em 01/01/2022, mas que só se aplica aos contratos celebrados após a sua entrega em vigor – cf. artigos 55º, 54º, alínea b), e 53º, n.º 1].
Como se prevê neste último diploma, o seu regime é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, como é o caso dos autos, pois a A. é “consumidora”, nos termos definidos no artigo 1.º-B, alínea a) do Decreto-Lei n.º 67/2003 – foi-lhe transmitido o direito de propriedade do veículo, destinado a uso não profissional –, e a R. é “vendedora” nos termos definidos na alínea b) do mesmo artigo, na medida em que se trata de uma pessoa colectiva que, ao abrigo de um contrato, vendeu um bem de consumo (o veículo) à A., no âmbito da sua actividade profissional.
Como resulta do n.º 1 do artigo 2º do citado diploma, que tem como epígrafe “conformidade com o contrato”, “[o] vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.”, especificando-se no n.º 2 que: “Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.”
E idênticas exigências resultam dos artigos 3º e 4º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96). 4. Tendo por base este enquadramento jurídico, entendeu-se na sentença o seguinte:
«…, de acordo com a factualidade provada, o veículo que a Ré vendeu à Autora não é adequado ao uso habitual de um bem desse tipo, na medida em que um veículo deve poder circular e o aqui em causa tem uma avaria no motor que o impede de desempenhar essa função primordial.
Donde se conclui, inequivocamente, que o bem vendido pela Ré à Autora não é conforme com o contrato.
E, nos termos do disposto no artigo 3.º do DL 62/2013 [DL. 67/2003]: “1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue. 2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.”.
Conforme decorre da factualidade provada, as desconformidades do bem manifestaram-se logo alguns dias após a compra.
O veículo foi adquirido no dia 19 de Julho de 2019 e no dia 26 de Agosto de 2019 foi rebocado para uma oficina por ter uma avaria no motor.
Além de que diversas avarias foram diagnosticadas antes da compra e algumas apenas alguns dias após a compra.
Nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1 do DL 62/2013 [DL. 67/2003]: “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.”
Conforme decorre da factualidade provada, face à falta de conformidade do bem com o contrato, a Autora solicitou por diversas vezes à Ré que custeasse a reparação das diversas avarias do veículo, contudo, ainda que se tivesse comprometido a fazê-lo, a Ré não procedeu desse modo.
Pelo que, a Autora tem razão quando pede a resolução unilateral do contrato, o que se declara.
O prazo para exercício deste direito é, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 1 do DL 62/2013 [DL. 67/2003], de 2 (dois) anos a contar da entrega do bem, pelo que o presente pedido é atempado.
E, ainda nos termos da Lei de Defesa do Consumidor, “O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.” (cfr. artigo 12.º).
Deve, igualmente, ter-se em consideração o disposto no artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil.
Assim sendo deve a Ré ser condenada no pagamento de € 5.000,00 à Autora correspondente ao valor da compra e venda, acrescido das despesas no valor de € 774,69 e da indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 1.000,00, num total de € 6. 774,69 (seis mil setecentos e setenta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos).»
5. Ora, no recurso, vê-se que o recorrente discorda da decisão, mas não põe, propriamente, em causa a aplicação do referido quadro jurídico à decisão do caso concreto. O que diz é que vigorando um efeito cominatório semipleno, a falta de contestação não determina inelutavelmente a procedência da acção, cabendo ao juiz aquilatar se dos factos alegados e declarados confessados decorre ou não a consequência jurídica pretendida, ou seja, se os factos alegado têm ou não a virtualidade de fundamentar o pedido da apelada, não estando o juiz sujeito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, podendo consequentemente considerar que os factos alegados não conduzem à procedência total ou parcial da acção.
Concordamos com o alegado pela recorrente.
Efectivamente, nos termos gerais, e sem prejuízo das excepções previstas no artigo 568º do Código de Processo Civil, como resulta do n.º 2 do artigo 567º, n.º 2, do mesmo código, não tendo o réu contestado e considerando-se confessados os factos alegados pelo autor, passa-se a decidir a causa “conforme for de direito”, mas tal não significa que, tenha que se seguir o enquadramento jurídico dado pelo A., pois sempre caberá ao juiz proceder ao respectivo enquadramento jurídico (cf. artigo 5º, n.º, 3, do Código de Processo Civil). E, se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado (cf. artigo 567º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Porém, a recorrente enuncia os princípios gerais aplicáveis, mas não extrai deles qualquer consequência jurídica – designadamente apontando o erro da decisão de direito, indicando quais as normas que entende que deviam ter sido aplicadas e qual a respectiva consequência para o desfecho da acção –, apenas se compreendendo a sua alegação no âmbito da pretendida alteração da matéria de facto, o que, no caso, não ocorreu.
De todo o modo, sempre se dirá que, a sentença, no que à fundamentação jurídica se refere, enunciou o quadro legal que teve por aplicável ao caso e procedeu à necessária subsunção jurídica, concluindo pelo direito à resolução do contrato pela A., pelos defeitos e desconformidade da coisa para o fim a que se destina, concluindo pela responsabilidade da R. em restituir o valor pago pelo bem e a indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento do bem defeituoso, nos termos do artigo 12º da Lei de Defesa do Consumidor e artigo 496º, n.º 1, do Código Civil, este que respeita aos danos não patrimoniais.
Embora não se diga expressamente na sentença, importa lembrar que a legislação de defesa do consumidor dispõe de normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil previstas para o contrato de compra e venda, que derrogam aquelas normas gerais com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação – o da relação de consumo - o que, aliás, a própria recorrente não questiona (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 01/02/2018 – proc. nº 783/15.3T8FAF.G1 –, disponível como os demais citados, em www.dgsi.pt).
Efectivamente, como se elucida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/2021(proc. n.º 2927/18.4T8VCT.G1.S1), significa isto que as normas especiais da Lei nº 24/96 de 31 de Julho e do Decreto-Lei n.º 67/03, de 8 de Abril, «ao preverem que os meios que o comprador que for consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um objecto defeituoso, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha e que tal escolha apenas está limitada pela impossibilidade do meio ou pelo abuso de direito, derrogam o regime geral da compra e venda.
Perante um objecto defeituoso sobre que incide uma compra e venda integrada numa relação de consumo, o consumidor tem um leque de meios de reacção previstos no art. 4º, n.º 1, do DL nº 67/03, de 8-4.
Este preceito estipula que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato. E o seu n.º 5 prescreve que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
Deste modo, de acordo com este preceito legal, a escolha do meio legal para ser usado pelo consumidor em caso de desconformidade do objecto com o contrato, deixou de estar hierarquizado como resultava da Directiva n.º 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio e que o DL n.º 67/03 transpôs para o nosso direito interno.
Sendo que tal divergência em relação ao teor da Directiva é legal por o conteúdo desta constituir o mínimo de protecção legal aos consumidores, imposta pela mesma, mas os Estados Membros ficam com a liberdade de estabelecer regime mais favorável aos consumidores, o que é o caso do regime da não hierarquização – art. 8º, nº 2, da Directiva.
Esta foi a opção do legislador português, ao transpor a referida Directiva, de estabelecer um regime mais favorável aos consumidores, precisamente por serem a parte mais fragilizada da relação contratual, …».
6. Deste modo, improcede a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
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* IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
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Évora, 15 de Junho de 2023
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)