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EMBARGOS DE EXECUTADO
TRANSMISSÃO DO PRÉDIO
ABUSO DO DIREITO
Sumário
I - Tendo a embargante vendido o prédio, cuja demolição foi ordenada, é sobre os adquirentes que impende a obrigação de demolição, verificando-se quanto à embargante, a impossibilidade de cumprimento da obrigação exequenda, por já não a proprietária do imóvel. II - A exigência de demolição feita aos adquirentes do imóvel não constitui abuso do direito.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
1- No Tribunal Judicial da Comarca de .........., B.........., Lda, com sede na Rua .........., .........., .......... veio, por apenso à Execução Sumária para Prestação de Facto que C.........., residente na Rua .., n.º ...., .......... move à Embargante, intentar os presentes Embargos de executado contra C.......... alegando resumidamente:
Não pode cumprir a obrigação exequenda uma vez que já não é dona, no todo ou em parte, do prédio mandado demolir parcialmente, sendo por isso a obrigação inexequível.
O acórdão proferido não produz quaisquer efeitos relativamente aos adquirentes que não tiveram qualquer intervenção na acção.
Acresce que a demolição ordenada causa um prejuízo superior ao que provoca ao Exequente, não devendo, por isso, a demolição ser ordenada.
2- O Embargado contestou sustentando que a Embargante litigou de má fé pois omitiu a transmissão do prédio.
Mais alega que a vingar a tese da Embargante verificar-se-ia um abuso de direito.
3- A fls. 62 veio a Embargante apresentar resposta à contestação.
Por despacho de fls. 72 foi proferida decisão que ordenou o desentranhamento da réplica por entender que tal articulado não era legalmente admissível.
A fls. 80 a Embargante interpôs recurso de agravo do despacho de fls. 72, o qual foi admitido por despacho de fls. 83, tendo a agravante apresentado as suas alegações a fls. 99 e ss., formulando as seguintes conclusões:
a) O presente recurso vem do despacho proferido pelo Senhor Juiz “a quo” segundo o qual determinou: “que se proceda ao desentranhamento dos autos e a entrega à respectiva signatária do articulado de fls. 62 a 68”
b) O Senhor Juiz “a quo” fundamentou a sua decisão, na norma constante do artigo 817 n.º 2 do CPC, segundo o qual no processo de embargos de executado apenas são admitidos dois articulados, a petição inicial e a contestação.
c) De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 3º do Código de Processo Civil “às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”.
d) Foi ao abrigo desta norma que a Recorrente veio apresentar o seu articulado de resposta, para que ele fosse tomado em conta apenas no momento da verificação de uma daquelas audiências.
e) Ora, salvo o devido respeito, parece que o Senhor Juiz “a quo” não tem razão. Com efeito, parece ser evidente que não há qualquer fundamento legal para se poder concluir que não é possível cumprir os prazos por antecipação.
f) Na verdade, os prazos não podem ser excedidos, mas o seu cumprimento pode ser antecipado: “a lei processual civil não proíbe que se antecipem prazos judiciais para qualquer efeito que seja” cfr. Ac. RC de 7.12.1993, BMJ, 32, 440.
g) Esta conclusão impõe-se até por razões de economia processual.
Conclui pedindo a revogação do despacho recorrido.
Não foram apresentadas contra-alegações e foi proferido despacho de sustentação, fls. 105.
4- Tendo sido dispensada a realização da audiência preliminar foi proferida sentença que julgou os Embargos procedentes, julgando extinta a execução relativamente à Embargante.
5- Apelou o Embargado/Exequente nos termos de fls. 149 a 154, formulando as seguintes conclusões:
a) Quando o Autor intentou a acção não havia qualquer prédio construído (apenas alicerces), não havia propriedade horizontal nenhum dos actuais artigos urbanos, nem descrição deles na conservatória.
b) E só porque a justiça é lenta, houve tempo para a Ré/Embargante continuar a sua construção, tapar as janelas do Autor/apelante a tijolo, completar o prédio, constituir a propriedade horizontal e vendê-lo em fracções – e agora o apelante, vítima da ilegalidade acintosa da apelada, vê o tribunal dizer que afinal o violador da lei está safo e perseguir inocentes que não cometeram qualquer ilegalidade.
c) Quem praticou os factos ilícitos e figura no título (acórdão da Relação) como única devedora é a Embargante – pelo que, correctamente, tem de ser a executada nos termos do artigo 55 do CPC.
d) E o facto de ter transmitido, de má fé a terceiros, o novo prédio que nasceu no local não lhe retira a legitimidade para continuar a figurar como executada, nos termos do artigo 271 do CPC.
e) A sentença, ora em recurso de apelação, decidiu a procedência dos embargos com base num único argumento: a embargante já não é a titular do prédio – mas não fundamenta essa conclusão com qualquer preceito legal (que não existe).
f) Quem praticou o acto ilícito de tapar as janelas do embargado foi apenas e só a embargante/apelada que foi condenada a reparar os danos que fez e a indemnizar o apelante pelos prejuízos sofridos – pelo que é a Ré/executada/embargante que tem de suportar todas as despesas pelos actos ilícitos que praticou.
g) Não está em causa o novo prédio (que não existia, nem de facto, nem juridicamente, quando a acção foi intentada de acordo com o princípio da estabilidade da instância estabelecido no artigo 268 do CPC) mas o comportamento ilícito de uma empresa de construção civil que violou gravemente os direitos de um vizinho (que não é proprietário, nem titular de qualquer direito real, mas mero inquilino) e foi judicialmente condenada a respeitar tais direitos, repondo a situação anterior (reconstituição natural por demolição do que erigiu ilicitamente) e indemnizando em dinheiro os prejuízos causados.
h) Ou seja, não estão em causa direitos reais mas sim a responsabilidade por actos ilícitos da Ré/embargante/apelada – pelo que não se pode falar em sucessão de obrigação para os compradores dos andares.
i) É sempre a ora apelada quem tem de proceder às diligências necessárias e suportar as despesas para cumprir a decisão judicial em que foi condenada.
j) Constituiria um abuso de direito a Ré/apelada fugir do acórdão judicial que a condenou transmitindo para terceiros de boa fé as despesas para reparar os actos ilícitos que praticou.
k) Foram violadas, entre outras, as seguintes normas jurídicas: artigos 55, 268, 271 do CPC e 205 da Constituição.
Conclui pedindo a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida.
6- A Apelada/embargante/executada apresentou contra-alegações defendendo a manutenção do decidido.
7- A fls. 80 e ss. dos autos de Execução para prestação de facto foi proferido despacho que indeferiu o pedido apresentado pela Executada de realização de segunda perícia e fixou em 3 meses o prazo para a Executada realizar as obras de demolição ordenadas pelo Tribunal da Relação.
A Executada agravou desse despacho a fls. 92, recurso este que foi admitido por despacho de fls. 96 como de agravo a subir com o primeiro que haja de subir imediatamente. Quanto ao efeito foi ordenado, face ao pedido da agravante, que o Exequente se pronunciasse.
A Executada veio a fls. 102 arguir a nulidade do despacho de fls. 96, uma vez que o mesmo não teria declarado o efeito do recurso.
A Executada/Agravante veio apresentar as suas alegações a fls. 117 a 125, formulando as seguintes conclusões:
a) A Recorrente arguiu a nulidade do despacho de fls. ..., dado que omitiu a indicação do efeito do recurso, com o que violou o dever constante da parte final do artigo 741 do CPC.
Ora, apesar de tal despacho ser inequivocamente nulo, de onde resultará a nulidade de tudo quanto se seguir a tal despacho, o certo é que a Recorrente, vem por mera cautela, apresentar as suas alegações.
b) O recurso vem do despacho de fls. 80 e ss. na medida em que, por um lado, indeferiu a realização de uma segunda perícia, e, por outro lado fixou o prazo de 3 meses para que a Recorrente procedesse à demolição da obra em causa nos autos.
c) Vejamos se assiste razão ao Senhor Juiz “a quo” na decisão que tomou de indeferir a realização da segunda perícia. Salvo o devido respeito parece que não, como se demonstrará.
d) Antes de mais não é rigoroso afirmar-se que o regime das perícias que o regime actualmente em vigor não é o da perícia feita por um único perito, posto que basta que o interessado requeira a realização da perícia colegial para que ela se torne obrigatória.
e) Por outro lado, mesmo que o Senhor Juiz “a quo” tivesse razão – e, salvo o devido respeito, não tem – nem assim se pode manter a decisão, posto que o artigo 940 n.º 1 não permite a interpretação que lhe é dada na decisão de fls. 80.
f) Quando o legislador da reforma de 1997, quis regular as situações previstas em regimes similares – os do artigo 696 e o do 740 n.º 1 seguiu caminhos diferentes, posto que naquele, e quando quis reafirmar que a perícia deveria ser feita por um único perito, disse-o de forma expressa. Porém, quando quis salientar a diferença em relação ao passado – no artigo 940 n.º 1 na versão de 1997 – utilizou a expressão “que para isso procederá às diligências necessárias”.
g) Isto é, estabeleceu um verdadeiro poder-dever de efectuar todas as diligências para que se possa fixar com justiça o prazo para se proceder à demolição nas quais cabe perfeitamente a realização de uma nova perícia.
h) Tanto mais que neste caso dos autos, ao invés do que o Senhor Juiz “a quo” refere a perícia é complexa. Veja-se a incapacidade que o Senhor perito manifestou para responder de forma cabal aos esclarecimentos que lhe foram pedidos.
i) A aqui Recorrente não se esqueceu de que as decisões dos tribunais serão obrigatórias para todas as entidades públicas ou privadas. Porém, se tal verdade é inatacável, há uma outra que igualmente o é, qual seja a da norma consagrada nos artigos 671 e 673 do CPC: isto é a do efeito externo das sentenças.
j) O Senhor Juiz “a quo” fixou o prazo para a demolição em três meses.
k) Porém, salvo o devido respeito, andou mal. Com efeito, não é possível proceder à demolição da obra sem que previamente sejam requeridas e concedidas as licenças de demolição e de reconstrução.
l) A mesma exigência é feita na previsão do artigo 1º do RGEU – DL 44258 de 31/3/62.
m) Enquanto a licença não for concedida, não é possível sequer fixar prazo.
n) O prazo fixado pelo Senhor Juiz “a quo” é ilegal já que não é possível fixar o prazo antes de ter sido concedida a licença camarária para o efeito.
o) Ora, a Recorrente já requereu a licença sendo certo que até esta data ainda não obteve qualquer resposta da câmara.
p) Assim, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 671, 673, 940 n.º 1 do CPC e ainda as normas contidas na al. e) do n.º 3 do artigo 4º do DL 177/2001 de 4 de Junho e ainda contida no artigo 1º do RGEU.
Conclui pedindo a revogação do despacho recorrido.
8- O Agravado/Exequente apresentou contra-alegações defendendo a manutenção do decidido.
9- Por despacho de fls. 139 foi fixado o efeito meramente devolutivo ao recurso de agravo interposto a fls. 92.
Igualmente foi indeferido o pedido de declaração de nulidade do despacho de fls. 96, formulado a fls. 102 pela Executada.
Foi ainda proferido despacho de sustentação (agravo de fls. 92).
10- A fls. 174 a Executada veio interpor recurso do despacho que indeferiu o pedido de declaração de nulidade do despacho de fls. 96, formulado a fls. 102 pela Executada.
Tal recurso foi admitido como de Agravo a fls. 177, tendo a agravante/executada apresentado as suas alegações a fls. 188 e ss., formulando as seguintes conclusões:
a) O recurso vem do despacho proferido a fls. 74 e ss.
b) Como questão prévia suscita-se a do regime de subida e do respectivo efeito,
c) Na verdade, tendo em conta o que supra se alegou, deve ser corrigido o regime de subida do recurso, de modo a que seja recebido com subida imediata e nos próprios autos,
d) E consequentemente, lhe seja atribuído efeito suspensivo.
e) A questão em discussão nos autos é a da nulidade do despacho de fls. ... em virtude de não ter declarado o efeito do recurso, aquando da sua admissão, tal como é obrigatório nos termos do que consta no artigo 741 do CPC.
f) Ora, é inequívoco que estamos perante a omissão de um acto que a lei determina, por um lado, e, por outro, tal omissão tem influência decisiva na apreciação da questão.
g) Aliás, isto mesmo é reconhecido pelo Senhor Juiz “a quo” no despacho de
II - FACTUALIDADE PROVADA
Vem dado como provado o seguinte:
a) Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo principal, a ora Embargante foi condenada no pedido formulado pelo ora Embargado, o qual consistiu no seguinte:
- a respeitar as janelas do prédio locado ao autor (Embargado) voltadas para o prédio da Ré (Embargante) e o interesse do Autor (Embargado) em conservar todo o uso, fruição e utilidades dessas janelas.
- abster-se de levantar ou construir qualquer obra ou parede que diste a menos de 1,5 m das janelas e a demolir o que, entretanto, tiver sido construído a distância inferior dessas janelas;
c) No decurso do processo principal, a ora Embargante procedeu à construção de um edifício em que não foi respeitada aquela distância de 1,5 m;
c) Esse edifício foi constituído em regime de propriedade horizontal e, posteriormente, alienado integralmente a terceiros.
III – DA SUBSUNÇÃO - APRECIAÇÃO
Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.
1. Nos termos do art. 710 n.º 1 do CPC “a apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua interposição; mas os agravos interpostos pelo apelado que interessem à decisão da causa só são apreciados se a sentença não for confirmada”.
Deste modo impõe-se apreciar, em primeiro lugar, a sentença recorrida, uma vez que todos os agravo foram interpostos pela apelada B.........., Lda.
2- O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, artigo 864 n.º 3 do Código de Processo Civil.
As questões que importa decidir resumem-se apenas às seguintes:
a) Dado figurar no título (acórdão da Relação) como devedora é a Embargante que tem legitimidade para ser a executada e cumprir a obrigação, não lhe retirando essa qualidade o facto de já não ser proprietária do edifício cuja demolição foi ordenada, pois não se verifica qualquer sucessão de obrigação para os adquirentes?
b) Constituiria um abuso de direito a transmissão para terceiros das despesas necessárias à reparação dos actos ilícitos praticados pela Apelada?
Relembremos a matéria de facto provada, com interesse para a decisão.
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo principal, a ora Embargante foi condenada no pedido formulado pelo ora Embargado, o qual consistiu, no aqui ora interessa, em abster-se de levantar ou construir qualquer obra ou parede que diste a menos de 1,5 m das janelas e a demolir o que, entretanto, tiver sido construído a distância inferior dessas janelas.
No decurso do processo principal, a ora Embargante procedeu à construção de um edifício em que não foi respeitada aquela distância de 1,5 m, o qual foi constituído em regime de propriedade horizontal e, posteriormente, alienado integralmente a terceiros.
Poderá a Embargante (ora Apelada) executar o acórdão em causa – como pretende o Apelante – ou será este inexequível – como entende a Apelada – ou será que a Embargante já não sendo titular do prédio cuja demolição parcial vem peticionada (e foi ordenada pelo Acórdão da Relação) também não é sujeito dessa obrigação a qual se transmitiu para os adquirentes – como foi defendido pela sentença recorrida.
Afigura-se-nos que a razão se encontra na decisão recorrida.
Vejamos.
A Embargante foram condenados a não edificar qualquer obra a menos de 1,5 m das janelas do Embargado (ora Apelante) e a demolir o que entretanto tivesse construído.
Como se verificou foi efectivamente construído um edifício que não respeitou aquela distância de 1,5 m.
Impõe-se claramente a sua demolição, na parte em que tal construção viola o direito do Embargado (ora Apelante).
A questão que se coloca é quem deve cumprir tal obrigação: se a Embargante, que é quem figura no título executivo, ou se os actuais proprietários das diversas fracções do edifício, uma vez que a Embargante vendeu já todas as fracções que compõem o edifício.
Entendemos, tal como a decisão recorrida, que a Embargante apesar de ser quem figura no título executivo como devedora não pode cumprir a obrigação em que foi condenada, uma vez que já não tem o domínio a propriedade do bem (o imóvel) que se impõe demolir. [Apesar de nos termos do artigo 55 n.º 1 do CPC a execução “deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição do devedor”]
Estamos perante um caso em que ocorreu uma “sucessão na obrigação” sendo que os adquirentes das diversas fracções (ou seja do prédio cuja demolição foi ordenada) se encontram obrigados nos mesmos termos em que o estava o vendedor (a Embargante).
A Embargante transmitiu para os actuais proprietários a obrigação de demolição.
Por isso, apesar de a execução dever ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição do devedor, nos casos em que ocorra uma “sucessão na obrigação”, como no caso dos autos, a execução deve ser promovida “contra os compradores das fracções autónomas do prédio em propriedade horizontal”. [Cfr. Ac. STJ de 28.06.1994, Relator Conselheiro Raul Mateus. Podemos ainda ler nesse Acórdão “A acção em que se pede o fecho de janelas e a destruição de varandas por violação do disposto nos artigos 1344 n.º 1 e 1360 n. 1 e 2 do CC, não tendo por fim principal ou acessório, a modificação de um direito da propriedade, pois essas obrigações “propter rem”, não vão bulir com o conteúdo do direito de propriedade do Réu na acção declarativa, sobre o edifício por ele construído, mas antes determinar as obrigações em que, por violação daqueles artigos e do direito de propriedade do Autor, o Réu se constituíra”]
A Embargante ao realizar as obras no prédio de que era proprietária – mas já não é - violou o direito do Embargado, estando obrigada a repor a situação no estado anterior à violação.
Esta obrigação (obrigação propter rem) decorre do seu estatuto de proprietária (é uma obrigação que decorre do estatuto dos iure in re) sendo sujeito passivo dessa obrigação o titular do direito real (no caso os actuais proprietários das fracções). [Permitimo-nos seguir de perto o Ac. do STJ de 8 de Julho de 2003, Relator Conselheiro Alves Velho que passamos a citar “Os Embargantes foram condenados a executar a demolição de obras que realizaram no prédio de que eram donos, em violação do direito do Embargado, com a reposição do imóvel no estado anterior a tais obras. Ao praticarem os actos ilícitos que suportaram a condenação os ora Embargantes terão infringido o estatuto do direito de propriedade, donde recair sobre eles a obrigação de praticarem os actos necessários a repor a situação em conformidade com o conteúdo do seu direito de harmonia com o fixado na lei. Estas violações, traduzidas em inovações ou transformações materiais dos prédios, conferem aos proprietários lesados o direito de exigirem o retorno à situação anterior à violação do mesmo passo que fazem impender sobre o autor da lesão as denominadas obrigações propter rem, obrigações que decorrem do estatuto dos iura in re. O sujeito passivo dessas obrigações é o titular do direito real, in casu do domínio, e por ele e à custa dele devem ser satisfeitas.”]
A obrigação propter rem tem "sempre como devedor o titular do direito real, mesmo que os actos que a originam sejam praticados por terceiro igualmente vinculado ao cumprimento" Henrique Mesquita, "Obrigações Reais e Ónus Reais", 309/311.
Esta obrigação nasce com a violação e fica ligada à coisa (no caso ao prédio) enquanto não se extinguir.
Por isso é uma obrigação que se transmite aos adquirentes da coisa sendo estes os responsáveis pelo seu cumprimento. O transmitente do direito, porque exactamente transmitiu o seu direito sobre a coisa, fica impossibilitado de cumprir com a obrigação. [Como escreve o Prof. Henrique Mesquita (ob. cit., 333), «o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória. Mesmo que ele, não obstante a alienação, se dispusesse a fazê-lo, só lograria efectuar o cumprimento caso o novo titular do direito real o autorizasse a interferir na res»]
O credor da obrigação (o Embargado) pode e deve pedir aos adquirentes o cumprimento da prestação debitória, uma vez que estes têm legitimidade para figurarem na execução. [“Por isso, ou seja, porque a obrigação está ligada ao domínio e com o detentor desta posição jurídica coincide a legitimidade para nela interferir, é também este sujeito que deve realizar a prestação. Portanto, impõe-se também a conclusão de que o credor da obrigação propter rem pode exigir o cumprimento ao subadquirente, porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto.
Transcrevendo novamente H. Mesquita (loc. cit., 336), dir-se-á que, como obrigações ambulatórias que são, «trata-se sempre, em síntese, de obrigações que só podem ser cumpridas por quem seja titular do direito real de cujo estatuto promanam (...)», Ac. do STJ de 8 de Julho de 2003, Relator Conselheiro Alves Velho]
Essa legitimidade, como bem se decidiu na decisão recorrida, tem suporte nas normas processuais, concretamente nos artigos 271 n.º 3 e 56 n.º 1, ambos do CPC, os quais estabelecem que nos casos em que tenha ocorrido uma “sucessão na obrigação” a execução deve correr contra os sucessores daqueles que no título executivo figurem como devedores.
A execução da qual estes embargos constituem apenso podia ter sido intentada e prosseguido contra os adquirentes das fracções, actuais titulares do direito real e devedores da prestação que o acompanha.
Em conclusão tendo a Embargante vendido o prédio cuja demolição é ordenada é sobre os adquirentes que impende a obrigação de demolição verificando-se quanto à Embargante a impossibilidade de cumprimento da obrigação exequenda.
Impõe-se a improcedência da primeira questão.
Resolvida aquela questão importa apreciar e decidir a segunda questão: Constituiria um abuso de direito a transmissão para terceiros das despesas necessárias à reparação dos actos ilícitos praticados pela Apelada?
Dispõe o artigo 334 do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Da redacção deste preceito retira-se que para haver abuso do direito não é suficiente que o titular do direito exceda ou abuse (d)os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para que ocorra abuso do direito torna-se necessário algo mais. É preciso que aqueles limites sejam manifestamente excedidos, ou seja que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos. [Muitas têm sido as abordagens ao conceito e à noção de “Abuso do Direito”.
J.M. Coutinho define o Abuso do Direito da seguinte forma: “há abuso do direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”, cfr. Do Abuso de Direito, Almeida, 1983, pág. 42 e ss.
Relativamente à figura do Abuso do Direito Cunha e Sá considera que “abusa-se da estrutura formal desse direito, quando numa certa e determinada situação concreta se coloca essa estrutura ao serviço de um valor diverso ou oposto do fundamento axiológico que lhe está imanente ou que lhe é interno”, cfr. O Abuso do Direito, pág. 456.
Segundo A. Varela para haver Abuso do Direito “é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.
Com a fórmula manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334 especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos quem, como o poder paternal, o poder do tutor (....), são muito marcados pela função social a que se encontram adstritos.
A fórmula manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos em que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum propium” Das Obrigações em Geral, 9ª ed. 1996, vol. I, pág. 563/564.
Vaz Serra, RLJ, 111-296, refere que há abuso do direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado e sustenta que a palavra “direito” é de entender em sentido muito lato, abrangendo a liberdade de contratar. Refere ainda que não há motivo para excluir o exercício de meras faculdades do âmbito de aplicação do artigo 334 do CC]
Se o instituto do Abuso do Direito tem o seu campo de aplicação sempre que o titular de um direito, baseando-se nesse mesmo direito, o use de forma a violar a própria ideia de justiça, o certo é que o mesmo não pode ser usado de forma indiscriminada abrangendo situações em que apesar do exercício de um direito ser excessivo o mesmo não possa ser classificado como manifestamente excessivo. [Como referem Pires de Lima e Antunes Varela “exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. È esta a lição de todos os autores e de todas as legislações”, CC Anotado e Comentado, vol. I, 2ª ed. pág. 277.
Vaz Serra, entende que é necessário que o excesso cometido seja manifesto, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ, 85, pág. 253]
Vejamos o caso concreto.
A obrigação de demolição de parte do prédio transmitiu-se para os adquirentes com a transmissão do próprio edifício. São os actuais proprietários que devem cumprir a obrigação.
Não se vislumbra o invocado abuso do direito.
O Embargado pode e deve sempre ver reconhecido o seu direito, sendo-lhe indiferente a pessoa que o cumpre, uma vez que a obrigação não é pessoal mas inerente a uma determinada coisa (o prédio).
Aliás o Embargante não sabe (nem lhe importa) se o prédio ao ser vendido já sofreu uma qualquer desvalorização no preço por causa da obrigação que o acompanhava. De todo o modo é uma questão a ser resolvida entre a Embargante e os actuais proprietários do prédio e à qual o Embargado é de todo estranho.
Em suma não se verifica qualquer abuso de direito.
Improcedem, deste modo, as conclusões do presente recurso.
3) Ponderando, por conseguinte, que a sentença foi confirmada não se apreciam os agravos interposto pela Apelada (artigo 710 n.º 1, 2ª parte).
IV - Decisão
Por tudo o que se deixou exposto e nos termos dos preceitos citados, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, e em consequência confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.
Porto, 31 de Janeiro de 2005
José António Sousa Lameira
José Rafael dos Santos Arranja
Jorge Manuel Vilaça Nunes