I – O n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal foi aditado para reforçar a clareza do modelo acusatório e explicitar as funções dos vários sujeitos processuais, dele decorrendo, além do mais, que aquando da prolação do despacho de saneamento do processo o juiz está impedido de, num papel equivalente ao do Ministério Público, fazer um juízo sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios que sustentam a acusação.
II – Uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação, resultando dela a inadmissibilidade do juiz ordenar ao Ministério Público os termos em que deve formular acusação e de suprir os vícios de que a acusação padeça.
III – Face ao n.º 3 do artigo 311.º os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º do Código de Processo Penal e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal.
IV – Da estrutura acusatória do processo penal deriva a exigência de que a acusação defina o objecto do processo, descrevendo todos os factos concretos susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado ao arguido, de uma forma clara e suficientemente rigorosa que permita a organização da defesa.
V – Quando a acusação imputa ao arguido a prática de um crime de desobediência mas não descreve os factos essenciais e necessários para aferir da legalidade substancial e formal da ordem transmitida ao arguido, imprescindível à configuração do tipo, resulta que a acusação é nula, vício que deve ser conhecido oficiosamente aquando do saneamento do processo, acarretando a sua rejeição, por ser de considerar manifestamente infundada
I. Relatório
1. Nos autos com o n.º 1027/21...., findo o inquérito, que correu termos na Procuradoria da República da Comarca de Leiria, Departamento de Investigação e Ação Penal - Secção de ..., o Ministério Público deduziu contra o arguido … a acusação … imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. b), do CP.
2. Remetidos os autos à distribuição, pela Senhora Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal ..., foi proferido o despacho a que alude o art. 311.º do CPP, no qual decidiu rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d), do CPP.
3. Não se conformando com tal decisão, interpôs o Ministério Público o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. …
2. Foi proferido a 06.10.2022 o despacho judicial do qual ora se interpõe recurso e que rejeitou a acusação proferida, por a considerar manifestamente infundada, uma vez que a conduta aí imputada ao arguido não consubstancia a prática de crime de desobediência, ou de qualquer outro, e como tal rejeita-se a mesma nos termos do art. 311º n.º 2 al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal.
3. Considerou o Tribunal recorrido que na acusação deduzida não constam todos os elementos objectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, nomeadamente, os que se prendem com a legalidade da ordem transmitida ao arguido.
4. Consta do despacho judicial recorrido, entre o mais, que Sucede que na acusação deduzida nada se diz que nos permita aferir da legalidade da ordem de apresentação da viatura. Desconhece-se, na verdade, o fundamento de tal ordem, qual o motivo pelo qual o arguido estaria obrigado a colocar tal viatura à disposição de AA, encarregado da venda.
5. Mais se diz no despacho recorrido que: a acusação também é omissa quanto à relação do arguido com o processo ou o veiculo em causa
6. E ainda que: apesar de se referir, no artigo 3.º que o arguido “não procedeu, naquele prazo, nem posteriormente, à apresentação do veículo em causa”, nada se refere quanto ao prazo concedido ao arguido para colocar a viatura em causa à disposição. Ora, na falta dessa indicação, é sempre possível pressupor-se que o agente poderá a todo o momento desobrigar-se da imposição de “pôr à disposição” a viatura, pelo que o desacatamento da ordem nunca chega a verificar-se.
7. Por fim, consta, ainda, do despacho a quo que:, a verdade é que na acusação, com excepção do dolo do agente, nada se diz acerca da disponibilidade dos bens pelo arguido. Aderimos integralmente à fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07.12.2021, proferido no processo n.º 670/19.6T9LRA.C1 (in dgsi.pt), “De facto, só desobedece quem, tendo na sua mão ou na sua disponibilidade os documentos intimados, os não entrega após a legítima ordem recebida. Já Monsieur de La Palisse (ou Palice, conforme os gostos) o diria.”.
8. …
9. No primeiro parágrafo da acusação é afirmado que o arguido foi notificado, pessoalmente, pela GNR ..., para colocar à disposição do encarregado de venda AA, o veículo automóvel com matrícula ..-..-IQ.
10.A menção à figura de um encarregado da venda permite, desde logo, apreender a pré-existência de um processo judicial (de resto, devidamente identificado na certidão indicada na prova documental identificada no libelo acusatório).
11.Também da própria menção à notificação efectuada por militar da GNR é possível extrair a existência de um processo judicial, porquanto, não se vislumbra outro cenário no qual um elemento policial se desloque à residência de um cidadão para lhe transmitir que deverá apresentar determinado bem a um encarregado de venda.
12. Também do mesmo parágrafo da acusação resulta, ainda que implicitamente, que o veículo aí identificado estava ou já teria estado na posse do arguido.
13.Dos segundo e terceiro parágrafos da acusação consta que o militar da GNR advertiu o arguido que a não apresentação do veículo o faria incorrer na prática de um crime de desobediência e que o arguido, ainda assim, não deu cumprimento à ordem emanada.
14. …
15.Tais situação e cenário - presentes no texto da acusação - são, salvo o devido respeito por opinião diversa, demonstrativas da legalidade substancial e formal da ordem transmitida ao arguido.
16. …
17.A existência ou não de um prazo para apresentação do bem - cuja referência é feita de forma confusa na acusação, pois que se refere que o arguido não apresentou o objecto em questão em prazo que não é quantificado - não constitui facto integrativo dos elementos do tipo.
18.Com efeito, não é a existência de um prazo que confere a legalidade à ordem emanada e, como tal, a não quantificação de tal prazo - ainda que, implicitamente, do texto da acusação se perceba que existia, efectivamente, um prazo para o efeito - não pode ser considerado, salvo o devido respeito, como fundamento de rejeição.
19. …
20. …
21.Em suma, pese embora se reconheça que o texto da acusação pudesse ser mais claro e completo, cremos que a mesma descreve o núcleo irredutível do tipo legal de crime imputado ao arguido, constituído pelos seus elementos objectivos e subjectivos e que a factualidade gravitante de tal núcleo, por lhe ser acessória, poderá ser apurada em sede de julgamento, mediante aplicação do disposto no art. 358.º, do C. P. Penal.
22.Conforme vem sendo entendimento maioritário da jurisprudência mais recente, a irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, conducente à rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, tem de ser manifesta e absolutamente inequívoca.
23.Salvo o devido respeito, cremos que não é esse o caso da acusação deduzida nos presentes autos, conforme supra explanamos, pelo que o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação proferida, com a fundamentação acima transcrita, incorreu na violação dos arts. 348.º, n.º 1, al. b), do C. Penal e 311.º, n.º n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do CPP, devendo, assim, ser revogado e substituído por outro que receba o libelo acusatório, ordenando o prosseguimento dos autos nos termos previstos no art. 311.º-A, do C. P. Penal.
….»
4. O recurso foi admitido, por despacho de 24-11-2022 (Ref. Citius 102032805).
5. O arguido não apresentou resposta ao recurso.
6. Não foi proferido despacho de sustentação da decisão recorrida.
7. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 10645855), no qual sufraga o teor da motivação apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância e se pronuncia pela procedência do recurso.
8. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
9. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
1. Delimitação do objecto do recurso
…
In casu, a única questão que se suscita é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público é manifestamente infundada, por dela não constarem os factos necessários à integração dos elementos típicos do crime imputado, ou seja, se a conduta aí imputada ao arguido não consubstancia a prática de crime de desobediência, ou de qualquer outro, como se considerou no despacho recorrido como fundamento para a sua rejeição.
É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):
«…
O Ministério Público imputa ao arguido BB, a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do código Penal.
Dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal que:
“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”.
Considerando que os autos foram remetidos para julgamento sem ter havido instrução, cumpre antes de mais verificar se não será de rejeitar a acusação, por manifestamente infundada.
Vejamos:
Dispõe o artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que a acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
i) A data e assinatura.”
Como acima referimos, a única questão suscitada reconduz-se a saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público é manifestamente infundada, por os factos nela descritos não serem suficientes para a integração dos elementos típicos do crime aí imputado ao arguido, como se considerou no despacho recorrido como fundamento para a sua rejeição.
De acordo com o estabelecido no art. 283.º, n.º 1, do CPP, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra aquele.
O n.º 3 do mesmo preceito, na parte que ora importa, dispõe que a acusação contém, sob pena de nulidade:
«(…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
(…)»
E do preceituado no art. 311.º, n.º 2, al. a), do CPP resulta que, recebidos os autos no Tribunal, sem que tenha havido lugar a instrução, a acusação deverá ser rejeitada se for de considerar manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito os quatro motivos que podem levar à conclusão de se estar perante acusação manifestamente infundada: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituírem crime.
Este n.º 3 foi aditado pela Lei n.º 59/98, de 25-08, no sentido de reforçar a clareza do modelo acusatório pretendido para o processo penal e explicitar as funções dos vários sujeitos processuais, levando inclusive à caducidade do Assento do STJ n.º 4/93, de 17-02-1993[1], dele decorrendo, para além do mais, que o juiz, quando profere o despacho a que alude o art. 311.º, está impedido de, num papel equivalente ao do Ministério Público, fazer um juízo sobre a suficiência ou insuficiência dos indício que sustentam a acusação.
A propósito, ensina Germano Marques da Silva[2] que, face ao aditamento do n.º 3 do art. 311.º do CPP introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25-08, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art. 283.º, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.
E «O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante», refere Paulo Pinto de Albuquerque[3].
Ou, como se lê no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-03-2009[4], «A alínea d) do n.º 3 apenas consente a rejeição da acusação se os factos que dela constam não constituírem crime, ou seja, se no estrito quadro dos termos em que foi deduzida a acusação se verificar, pela leitura dos factos narrados na acusação, que eles não conformam a prática de crime.»
Deverá ainda ter-se presente que o processo penal português, depois de uma fase de investigação que culmina com a dedução de acusação, tem estrutura acusatória, constitucionalmente consagrada no art. 32.º, n.º 5 da CRP, tendo a acusação a função de definir e fixar o objecto do processo.
Como escreve Germano Marques da Silva[5], uma consequência da estrutura acusatória do processo é a independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação. Da consagração da estrutura acusatória resulta inadmissível que o juiz possa ordenar ao Ministério Público os termos em que deve formular acusação. Por maioria de razão, não poderá o juiz suprir os vícios de que a acusação padeça.
É o que decorre do disposto no art. 287.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3 do CPP: o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente, que consubstancia uma acusação alternativa, caso não obedeça aos requisitos da acusação previstos no art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, deve ser rejeitado e não é susceptível de ser repetido ou de convite à correcção - com as consequências da impossibilidade de exercício da acção penal e do arquivamento do processo (cf. Ac. do TC nº 358/2004 e Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005[6]).
E também do art. 359.º do CPP, que se refere à alteração substancial dos factos já em fase de julgamento: este preceito apenas permite que a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público tenha o valor de denúncia para que ele proceda pelos novos factos se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Se não o forem a consequência será a absolvição[7].
Da estrutura acusatória do processo penal, segundo a qual a actividade do tribunal se encontra delimitada pelo objecto fixado na acusação (princípio da vinculação temática), com vista a salvaguardar as garantias de defesa do arguido (designadamente o princípio do contraditório) que, por essa forma, fica resguardado contra qualquer arbitrário alargamento do objecto do processo e pode preparar a sua defesa em conformidade com o mesmo, deriva a exigência de que a acusação defina o objecto do processo de uma forma clara e suficientemente rigorosa que permita a organização da defesa.
Necessário se torna, por isso, que na acusação, o MP (ou, no caso de procedimento por crime particular, o assistente) alegue todos os factos concretos susceptíveis de integrar os elementos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime que entende ter o arguido preenchido com o seu comportamento.
E a omissão da narração desses factos, que constitui nulidade da acusação (art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP), deve ser, como vimos, conhecida oficiosamente aquando do saneamento do processo nos termos do art. 311.º do CPP, acarretando a rejeição da peça acusatória, por ser de considerar manifestamente infundada (n.ºs 2, al. a) e 3, als. b) e d), deste preceito).
Será à luz destas considerações que analisaremos a acusação apresentada pelo Ministério Público.
Para melhor apreciação da questão, importará transcrever a factualidade descrita no articulado em causa, bem como a imputação criminal indicada:
….»
A decisão recorrida decidiu rejeitar tal acusação, por considerar a materialidade nela descrita insuficiente para configurar a prática do imputado crime de desobediência, e que tal insuficiência não pode ser suprida através dos mecanismos processuais previstos nos arts. 358.º ou 359.º do CPP.
Acompanhamos este entendimento, já que não nos oferece dúvidas que a factualidade descrita na acusação, tal como se apresenta, não é suficiente para a integração dos elementos do tipo objectivo do crime de desobediência, sendo a sua irrelevância penal absolutamente manifesta e inequívoca.
Os factos omissos não são, ao contrário do que vem sustentado pelo Digno recorrente, acessórios, de mera contextualização da actuação do arguido ou apenas relacionados com a tramitação do processo executivo, faltando, desde logo, como o Tribunal recorrido explica, os factos essenciais e necessários para aferir da legalidade substancial e formal da ordem transmitida ao arguido, elemento imprescindível à configuração do tipo de crime em causa, sendo que a lei impõe que os «factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança» se mostrem narrados na acusação, não bastando que possam ser intuídos ou tidos por implícitos.
E, salvo o devido respeito, essa omissão de alguns dos elementos caracterizadores do tipo não pode ser preenchida em sede de audiência de julgamento, como afirma o recorrente, mediante aplicação do disposto no art. 358.º do CPP, nem sequer do disposto no art. 359.º do mesmo diploma.
É o que também refere o despacho recorrido, citando o acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015[8], cuja clareza dispensa ulteriores considerações, e que reafirmamos com a citação de um seu excerto mais alargado, para melhor compreensão da questão:
«(…) coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrada no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.
Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.
11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).
Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.
Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressupondo que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e que a sua falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a valoração específica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.
Por conseguinte, vistas as coisas por este prisma, a acusação seria de rejeitar logo nessa fase do processo.
Mas há uma outra consideração que deveria levar à rejeição. É o facto de os elementos em falta não poderem ser integrados no julgamento por simples recurso ao art. 358.º do CPP – alteração não substancial dos factos. E é o que vamos ver de seguida.
11.2. Tendo a acusação passado no crivo do art. 311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alínea b), o tribunal não pode socorrer-se do disposto no art. 358.º do CPP para colmatar a deficiência encontrada. É que tal integração não consubstancia uma alteração não substancial dos factos.
Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objecto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.
Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).
No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358.º, mas o do art. 359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao M.º P.º e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.
Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.
Por isso, ponderados estes factos, acabamos por concordar com o parecer contido nas alegações da Sra. Procuradora-Geral Adjunta: «A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo de ilícito, seja do tipo subjectivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.
»Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.
»Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.» (sublinhados nossos)
Em suma, o requerimento acusatório em apreço não contém uma narração de concretos factos objectivos passíveis de, vindo a considerar-se provados em audiência de julgamento, permitirem integrar todos os elementos objectivos e subjectivos necessários ao preenchimento do crime de desobediência que nele é imputado ao arguido, insuficiência que não poderia ser suprida, em sede de julgamento, com recurso aos mecanismos processuais previstos nos arts. 358.º e 359.º. ambos do CPP.
A acusação cujos factos são insuficientes para a condenação é “manifestamente infundada” e deve ser rejeitada aquando do recebimento e saneamento dos autos, tal como sucedeu no caso vertente.
Nenhuma censura merece, pois, o despacho recorrido, que, com esse fundamento, rejeitou a acusação formulada pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d), do CPP, improcedendo, consequentemente, o recurso.
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida.
Sem tributação.