I – A aferição dos pressupostos da excepção de (in)competência internacional dos tribunais portugueses deverá necessariamente ter em conta as particularidades da concreta causa de pedir que suporta a pretensão deduzida pelo demandante, o que significa que essa análise dependerá decisivamente dos termos como este configura a relação material controvertida, não relevando para o efeito a controvérsia aberta pela impugnação da contraparte que pode porventura trazer para os autos uma versão factualmente diversa e oposta.
II – A discussão da matéria relacionada com os concretos pedidos formulados pela A. (restituição à herança dos bens ilegítima e abusivamente obtidos e retidos por um co-herdeiro e sua condenação nos termos do instituto da sonegação de bens), independentemente da apreciação do mérito da acção, insere-se no questionamento sobre o regime jurídico que incide sobre o fenómeno sucessório em causa, estando em análise o concreto exercício de faculdades legais concedidas pelo sistema jurídico a uma co-herdeira que pretende, por essa via, tutelar os interesses relacionados com o acervo hereditário do decujus (e não directamente os seus), com reflexo directo e imediato na divisão dos bens que integram a herança, definindo ainda o preenchimento das quotas que a cada sucessível virá a caber (podendo inclusive originar a perda em benefício dos restantes herdeiros dos bens que haja dolosamente ocultado em função do instituto da sonegação de bens).
III – Verifica-se indissociável unidade lógica e formal entre todos os pedidos assim globalmente considerados, uma vez que a A. visa com a presente acção que se dê como demonstrada a verificação de um caso de sonegação de bens da herança em que, segundo a sua versão, a Ré incorreu, e que se funda precisamente na materialidade subjacente ao primeiro desses mesmos pedidos, ou seja, na apropriação ilegítima e abusiva de fundos bancários que eram propriedade do decujus e que por isso mesmo deverão ser devolvidos à herança (e não à esfera jurídica pessoal da peticionante).
IV – Neste sentido, não está em equação nestes autos a hipotética realização de qualquer tipo de liberalidade por parte da autora da sucessão em relação aos seus herdeiros ou a terceiros, refutando-se na petição inicial, em termos expressos e inequívocos, a existência de qualquer acto de disposição em vida do seu património por parte do decujus (em benefício de quem quer que fosse), pelo que dever-se-á afastar, por inaplicável, a exclusão prevista no artigo 1º, nº 1, alínea g) do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012.
V - O conceito de sucessão para o efeito do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012 tem um significado autónomo e particularmente abrangente, incluindo todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de acto voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato.
VI – Atento o conceito aberto e abrangente perfilhado pelo Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, quanto à figura da sucessão que engloba a unidade do fenómeno sucessório, a factualidade trazida aos autos pela A. integra-se no âmbito desse mesmo conceito na medida em que o que se discute na presente acção é a titularidade de direitos que respeitam ao acervo hereditário, exercendo um dos co-herdeiros as faculdades legais que resultam intrinsecamente da sua especial qualidade de herdeiro, tal como o sistema jurídico-sucessório lhe reconhece: o pedido de restituição de bens à herança assente nessa ilegítima apropriação e, conjugadamente, a produção dos efeitos derivados de um instituto que reveste indiscutível natureza sucessória (o da sonegação de bens), tendo todas estas questões influência necessária e directa na composição das quotas de cada um dos sucessíveis e, por inevitável consequência, na partilha entre eles que vier a ter lugar.
VII - Não faria sentido, neste contexto, diferenciar a factualidade que consubstancia o fundamento factual do instituto da sonegação de bens (as transferências bancárias em que se concretizou a apropriação dos bens que a Ré sabia que fariam parte da herança de sua mãe) da análise deste instituto, próprio pertinente ao regime jurídico sucessório, fazendo com que parte dos factos e das correspondentes pretensões fosse julgada pelos tribunais portugueses e a outra parte – com eles intrínseca e logicamente ligada – fosse julgada pelo tribunais alemães, correndo-se dessa forma o risco de inconveniente e indesejável contradição entre julgados (o que o próprio Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, visou no fundo prevenir e evitar).
VIII – Inserindo-se as questões suscitadas nos autos no conceito de sucessão, o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, atribui a competência internacional para o conhecimento da causa ao tribunal do país onde se situou da última morada habitual da autora da sucessão, in casu a Alemanha e não Portugal.
IX – Pelo que é concedida a presente revista, julgando os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da causa em relação a todos os pedidos formulados pela A., sendo consequentemente a Ré absolvida da instância.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
Competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa. Acção em que é pedida a restituição à herança de determinados bens em poder de co-herdeiro (fundos movimentados de uma conta bancária co-titulada pelo decujus e pela ora Ré) e a produção dos efeitos jurídicos associados à figura da sonegação de bens. Aplicação do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012.
Passemos à sua análise:
Discute-se na presente revista a verificação, ou não, da excepção de (in)competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa, tendo em conta que a situação sub judice reveste conexões com diferentes ordenamentos jurídicos (in casu, o português e o alemão).
Embora as partes sejam ambas de nacionalidade portuguesa, acontece que o decujus, mãe da A. e da Ré, veio a falecer na Alemanha, onde tinha a sua residência habitual, país onde reside igualmente a ora demandada.
Conforme referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in “Manual de Processo Civil”, Volume I, AAFDL, 2022, a página 173:
“A atribuição de competência internacional aos tribunais de um Estado pressupõe que a causa apresenta um ou vários elementos de conexão com a ordem jurídica desse Estado. Elementos de conexão comuns são o lugar da situação dos bens, o lugar do cumprimento da obrigação, o lugar da ocorrência do dano, o domicílio do demandado e a vontade das partes. Estes elementos de conexão são escolhidos em função dos diversos interesses, como, por exemplo, a boa administração da justiça, a efectividade da tutela processual, a harmonia das decisões sobre um litígio, o interesse das partes, a protecção de partes mais fracas e a proximidade do litígio”.
A Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, prevê, no respectivo artigo 37º, nº 2, que compete à lei de processo fixar os factores de que depende a atribuição da competência internacional dos tribunais judiciais portugueses.
Em conformidade com o disposto no artigo 59º do Código de Processo Civil, tais conexões resultam da aplicação dos critérios estabelecidos nos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil, havendo sempre que ressalvar o que sobre a matéria dispõem os regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, prevalentes neste domínio, nos termos do artigo 8º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 288º do Tratado Fundador da União Europeia.
Cumpre ainda salientar que a aferição dos pressupostos da excepção de (in)competência internacional dos tribunais portugueses deverá ter necessariamente em conta as particularidades da concreta causa de pedir que suporta a pretensão deduzida pelo demandante, o que significa que essa análise dependerá decisivamente dos termos como esta configura a relação material controvertida, não relevando para o efeito a controvérsia aberta através da sua impugnação da contraparte que pode porventura trazer para os autos uma versão factualmente diversa e oposta.
(Vide sobre este ponto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 2017 (relator Hélder Roque), proferido no processo nº 531/15.8T8LRA.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2022 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 24974/19.9T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2022 (relatora Graça Trigo), proferido no processo nº 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Março de 2019 (relator Fernando Samões), proferido no processo nº 13688/16.1TBPRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
In casu, a causa de pedir foi estruturada pela A. nos seguintes termos essenciais:
- A Ré, co-herdeira (juntamente com a A.) de CC, mãe de ambas, procedeu a diversas transferências em seu exclusivo benefício de uma conta bancária em que era co-titular com a sua progenitora, ainda em vida desta (movimentações que ocorreram entre 9 de Setembro de 2013 e 2 de Julho de 2018, data do óbito da referida CC).
- Tais transferências respeitaram a fundos pecuniários de que CC era a exclusiva proprietária, sendo intuito da Ré apropriar-se indevida e abusivamente de bens que sabia virem a integrar o acervo hereditário daquela, subtraindo-os assim à futura partilha, mantendo-os ilegitimamente em seu poder mesmo após o óbito do decujus.
- Com este comportamento ilícito, a Ré sonegou à herança bens que a este património autónomo pertencem, devendo restituí-los.
Com base nesta factualidade essencial, a A. pede a condenação da Ré na restituição à herança destes bens (concretamente o saldo das contas bancárias que identifica e que deverá ser apurado em liquidação) que ilegitimamente mantém em seu poder; a indemnizar a herança no valor das utilidades e faculdades que aquele saldo lhe propiciou; na perda do direito aos bens por si sonegados com fundamento no instituto sucessório próprio - o da sonegação de bens previsto no artigo 2096º do Código Civil.
Apreciando:
A discussão da matéria relacionada com os concretos pedidos formulados pela A. (restituição à herança dos bens ilegítima e abusivamente detidos por um co-herdeiro e sua condenação específica no âmbito do instituto da sonegação de bens), independentemente da apreciação do mérito de cada uma dessas pretensões, insere-se de pleno no questionamento sobre o regime jurídico que incide sobre o fenómeno sucessório desencadeado por morte de CC, contemplando-o.
Ou seja, está em causa o concreto exercício de faculdades legais concedidas pelo sistema jurídico a uma co-herdeira que pretende, por essa via, tutelar os interesses relacionados com o acervo hereditário do decujus (e não directamente os seus), com reflexo directo e imediato na divisão dos bens que integram a herança, definindo desse modo o preenchimento das quotas que virá a caber a cada sucessível (e podendo inclusive originar a perda em benefício dos restantes herdeiros dos bens que a demandada haja dolosamente ocultado em função do funcionamento do instituto da sonegação de bens).
Acresce outrossim que se verifica uma manifesta e indissociável unidade lógica e formal entre todos os três pedidos globalmente considerados: a A. visa com a presente acção que se dê como demonstrada a verificação de um caso de sonegação de bens da herança em que, segundo a sua versão, a Ré incorreu e que se funda precisamente na materialidade subjacente ao primeiro desses mesmos pedidos, ou seja, na apropriação ilegítima e abusiva de fundos bancários que eram propriedade do decujus, mantendo-os na sua posse, e que por isso mesmo deverão ser devolvidos à herança (e não à esfera jurídica pessoal da peticionante).
Tal necessidade de apreciação conjunta e conjugada destas pretensões mais se adensa se se tiver em consideração que tal matéria poderia perfeitamente ter sido objecto de discussão no âmbito do inventário aberto por morte de CC (a instaurar, segundo o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, junto do tribunal da sua última residência habitual), sem que fizesse sentido, nessas hipotéticas circunstâncias, separar, retalhando, a análise e julgamento das ditas questões por jurisdições nacionais diferentes (no caso, a portuguesa e a alemã).
Ou seja, a presente controvérsia jurídica integra-se, em termos imediatos, no âmbito da discussão da sucessão por morte do autor da sucessão através da análise do regime jurídico-sucessório aplicável, correspondendo (em conformidade com os factos alegados pela A.) à figura da petição de herança prevista no artigo 2075º, nº 1, do Código Civil, nos termos do qual: “O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título” e à figura da sonegação de bens genericamente prevista no artigo 2096º do mesmo diploma legal, independentemente do mérito que cada uma das pretensões venha a merecer após o julgamento do pleito.
(Vide, concretamente sobre a figura da petição de herança, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 2021 (relator Salazar Casanova), proferido no processo nº 6752/08.2TBLRA.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt, que versa precisamente sobre uma situação em tudo similar à dos presentes autos; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2004 (relator Azevedo Ramos), com a referência nº 04A126, publicado in www.dgsi.pt).
Esclareça-se, desde já, com especial relevo para a aferição da (in)competência internacional dos tribunais portugueses, que segundo a causa de pedir apresentada nos autos não está em causa verdadeiramente a realização de qualquer tipo de liberalidades por parte da autora da sucessão em relação a qualquer dos seus herdeiros ou a terceiros.
Não é isso que é alegado pela A. na sua petição inicial, mas exactamente o oposto.
O que a petição inicial configura é uma verdadeira e própria situação de apropriação indevida e abusiva de bens pertencentes ao decujus por parte de uma das co-herdeiras, refutando-se nessa peça processual, em termos expressos e inequívocos, a existência de qualquer acto de disposição do seu património por parte do decujus em benefício de quem quer que fosse.
Vide a este propósito o que se refere nos seguintes artigos da petição inicial:
“Deslocaram-se as duas (a A. e sua mãe CC) ao banco e foi-lhes transmitida a informação de que os valores foram transferidos para a conta da Ré” (artigo 26º)
“Confrontada com esse facto, CC disse desconhecer, não ter autorizado as transferências, nem ser sua intenção dar esse dinheiro à BB, porque ela, acrescentou, também não lhe dava nada” (artigo 27º).
“…A Ré quis beneficiar-se a si própria à revelia da mãe, em prejuízo dos demais herdeiros” (artigo 33º).
“Com as transferências bancárias em causa a Ré pretendeu prejudicar a irmã, ora A., retirando da herança um bem que a ela pertencia e pretendeu evitar a partilha desse mesmo bem após a morte da sua mãe” (artigo 34º).
“Assim, através de sucessivas transferências bancárias da conta de CC para a sua, de modo a que quando esta viesse a falecer a mesma não apresentasse qualquer valor, a Ré subtraiu um bem à herança e à partilha, com o intuito de prejudicar a A.” (artigo 35º).
Coloca-se agora a questão essencial de saber se os factos descritos na petição inicial se integram no conceito autónomo de sucessão consagrado no Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho.
Com efeito, o conceito de sucessão para o efeito do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012 tem um significado autónomo e particularmente abrangente, incluindo todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de acto voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato, desde que a abertura da sucessão tenha ocorrido a partir do dia 17 de Agosto de 2015 (nos termos do artigo 84º do identificado Regulamento).
(Escreve a este propósito Anabela Susana de Sousa Gonçalves in “As linhas gerais do Regulamento Europeu sobre Sucessões”, publicado nos Cadernos de Direito Privado, nº 52, Outubro/Dezembro de 2015, a páginas 3 a 19:
“Uma das características do Regulamento Europeu sobre Sucessões é o princípio da unidade da sucessão que se manifesta em mais do que uma vertente.
A primeira dimensão do princípio da unidade da sucessão manifesta-se no âmbito material de aplicação do Regulamento. Desde logo, o Regulamento Europeu sobre Sucessões prevê um conceito amplo de sucessões. O artigo 3º, nº 1, esclarece que a sucessão nos termos do Regulamento irá compreender qualquer forma de transmissão por morte, de acordo com um princípio da unidade da sucessão, abarcando a transmissão legal e a transmissão voluntária.
Nesta primeira vertente, o princípio da unidade da sucessão está ainda presente no artigo 4º, que estabelece a regra geral referente à competência internacional em matéria sucessória. De acordo com esta disposição normativa, os órgãos jurisdicionais do Estado da residência habitual do autor da sucessão no momento da morte têm competência para decidir o conjunto da sucessão”).
Salienta Daniel Morais, in “Direito das Sucessões e Direito da Família. Eternas questões, respostas actuais”, AAFDL Editora, Lisboa 2023, a página 336:
“Como características principais do Regulamento podem apontar-se as seguintes:
“(…) o facto de o mesmo se traduzir numa disciplina que visa regular todos os aspectos relevos relacionados com as sucessões transfronteiriças, ficando, deste modo, excluída a aplicação das normas de Direito Internacional Privado dos estados membros da União Europeia.
(…) A preocupação em garantir uma tendencial coincidência entre forum e ius”.
Conforme resulta do Considerando 9 do supra identificado Regulamento:
“O âmbito de aplicação do presente regulamento deverá abranger todas as questões de direito civil da sucessão por morte, ou seja, todas as formas de transferência de bens, direitos e obrigações por morte, independentemente de se tratar de um ato voluntário de transferência ao abrigo de uma disposição por morte, ou de uma transferência por sucessão ab intestato.”
No sentido da exclusão da aplicação do dito Regulamento vide o Considerando 11 do Regulamento:
“O presente regulamento não deverá aplicar-se a outros domínios do direito civil que não o direito sucessório. Por motivos de clareza, deverão ser explicitamente excluídas do âmbito de aplicação do presente regulamento algumas questões susceptíveis de serem entendidas como apresentando uma relação com matérias sucessórias.”
Bem como o Considerando 14 onde se consigna que:
“Deverão igualmente ser excluídos do âmbito de aplicação do presente regulamento os direitos e os bens criados ou transferidos por outra via que não a via sucessória, por exemplo por via de liberalidades. No entanto, deverá ser a lei designada pelo presente regulamento como lei aplicável à sucessão que determinará se tais liberalidades, ou outra forma de disposição inter vivos que criem um direito real anterior ao óbito, deverão ser reduzidas ou contabilizadas para efeitos de determinação das quotas-partes dos beneficiários segundo a lei aplicável à sucessão.”
Ora, no caso concreto, como se disse, atendendo à forma como a causa de pedir se encontra estruturada, cumpre concluir que não se discute nos autos qualquer tipo de liberalidade realizada em vida pelo decujus e que teria como destinatária a sua filha, ora Ré, pelo que dever-se-á afastar, por inaplicável, a exclusão prevista no artigo 1º, nº 1, alínea g) do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012.
O que a petição inicial refere é que a Ré, ao arrepio da vontade e autorização de sua mãe, decidiu, ainda em vida desta, apropriar-se de valores da propriedade daquela, o que concretizou aproveitando-se da sua contitularidade formal em relação a determinada conta bancária onde se encontravam depositados montantes que pertenciam exclusivamente à esfera jurídica e patrimonial de CC.
Dispõe o artigo 24º do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012:
“A lei designada nos termos do artigo 21º ou do 22º regula toda a sucessão” (nº 1).
“Essa lei rege, nomeadamente:
(…) b) A determinação dos beneficiários, das respectivas quotas-parte e das obrigações que lhe podem ser impostas pelo falecido, bem como a determinação dos outros direitos sucessórios, incluindo os direitos sucessórios do cônjuge ou parceiro sobrevivo;
(…) e) A transmissão dos bens, direitos e obrigações que compõem a herança aos herdeiros e, consoante o caso, aos legatários, incluindo as condições e os efeitos da aceitação da sucessão ou do legado ou do seu repúdio;
(…) f) Os poderes dos herdeiros, dos executores testamentários e outros administradores da herança, nomeadamente no que respeita à venda dos bens e ao pagamento dos credores (…)
(…) A partilha da herança” (nº 2).
Atento o conceito aberto e abrangente perfilhado pelo Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, quanto à figura da sucessão que engloba a unidade do fenómeno sucessório, afigura-se-nos que a factualidade trazida aos autos pela A. integra-se perfeitamente no seu âmbito.
Como se referiu supra, o que se discute na presente acção é a titularidade de direitos que respeitam ao acervo hereditário de CC, exercendo um dos co-herdeiros as faculdades legais que resultam intrinsecamente da sua especial qualidade de herdeiro, tal como o sistema jurídico-sucessório lhe reconhece: o pedido de restituição por um co-herdeiro de bens à herança e, assente nessa ilegítima apropriação daqueles, os efeitos jurídicos derivados de um instituto que reveste indiscutível natureza sucessória (o da sonegações de bens da titularidade do acervo hereditário).
Como refere Luís de Lima Pinheiro in “Direito Internacional Privado. Direito de Conflitos. Parte Especial”, Almedina, Dezembro de 2015, a página 688:
“O âmbito material de aplicação do Regulamento corresponde em princípio às matérias que no Direito português são regidas pelo Direito das Sucessões (cfrs. Artigos 1º, 3º, nº 1 e 23º, nº 2).
(…) O Regulamento consagrou a unidade da lei reguladora da sucessão. Esta lei, com ressalva das regras especiais contidas no Regulamento, regula toda a sucessão, independentemente da natureza e localização dos bens”.
Todas esta questões terão influência necessária e directa na composição e preenchimento das quotas de cada um dos sucessíveis e, por inevitável consequência, na partilha entre eles que vier a ter lugar.
Nem faria sentido, neste contexto, diferenciar, em termos artificiais, a factualidade que consubstancia o fundamento factual do instituto da sonegação de bens (as transferências bancárias em que se concretizou a apropriação dos bens que a Ré sabia que fariam parte da herança de sua mãe), da análise do funcionamento desse instituto próprio e pertinente ao regime jurídico sucessório, fazendo com que parte dos factos e das correspondentes pretensões fosse julgada pelos tribunais portugueses e a outra parte – com ela intrínseca e logicamente ligada – fosse julgada pelo tribunais alemães, correndo-se sempre o risco de inconveniente e indesejável contradição entre julgados (o que o próprio Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, visou no fundo prevenir e evitar).
Conforme refere a este propósito Helena Mota in “A autonomia conflitual e o reenvio no âmbito do Regulamento (UE) nº 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho”, in Revista Electrónica de Direito (RED):
“A diversidade de regras materiais e processuais aplicáveis nos Estados-Membros dificulta a vida quer dos herdeiros que, por exemplo, venham a receber um bem localizado num outro Estado-Membro, diferente daquele em que residem, quer de todos aqueles que queiram planear antecipadamente a sua sucessão e possuam bens em mais do que um Estado ou tencionem reformar-se e mudar de residência para outro país para aí viverem os últimos dias da sua vida.
A insegurança jurídica gerada por esta situação, com decisões contraditórias emitidas pelas autoridades dos vários Estados, e o desrespeito pela vontade e legítimas expectativas, em matéria sucessória, dos cidadãos, reclamou a criação de um quadro jurídico conflitual e adjectivo comum que garantisse, por um lado, que todos os Tribunais e demais órgãos de aplicação do direito da União Europeia aplicassem a mesma lei, seguissem os mesmos critérios de competência judiciária e reconhecessem mutuamente as decisões tomadas e, por outro, proporcionasse a autodeterminação do regime sucessório, sem olvidar a protecção dos herdeiros legais e dos credores envolvidos”.
Nos termos do artigo 21º, nº 1, do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012:
“Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito”.
Conforme se refere no acórdão recorrido, com toda a clareza, tal residência habitual no momento do óbito de CC situava-se na Alemanha e não em Portugal, sendo questão que nem sequer se discute no presente recurso de revista (ao qual a A. não apresentou qualquer resposta).
E sobre este ponto é que poderia validamente suscitar-se a eventual dúvida acerca de saber se não seria aplicável a excepção consignada no artigo 21 nº 2, do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, segundo a qual:
“Caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n.o 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado”.
Sobre a aplicação prática do critério do Regulamento aos países em que se verifica forte fluxo de emigração dos seus nacionais, vide Anabela Susana de Sousa Gonçalves, in obra citada supra, a páginas 10 a 12, e, com particular desenvolvimento, Afonso Patrão, in “Problemas práticos na aplicação do Regulamento sobre Sucessões. A determinação da residência habitual por autoridades extra-judiciais, o reenvio para a Lei de um Estado-Membro e a Mobilização da Cláusula de Excepção”, publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume XCIV, tomo II, Coimbra 2018, a páginas 1174 a 1175 (a propósito da interpretação autónoma do conceito de residência habitual para efeitos de aplicação do Regulamento) e 1188 a 1199 (a propósito da razão de ser e aplicação da excepção constante do artigo 21º, nº 2, do Regulamento); Daniel Morais, in “Direito das Sucessões e Direito da Família. Eternas questões, respostas actuais”, AAFDL Editora, Lisboa 2023, a páginas 336 a 339.
De todo o modo, o acórdão recorrido foi definitivo neste particular, tendo sido nele decidido que:
“Do factualismo apurado resulta que após uma vida de trabalho na Alemanha os pais da A. e da R. fixaram residência habitual em Portugal, país onde adquiriram a sua habitação e onde também residia uma das suas filhas, a ora A. Após enviuvar, CC manteve-se a residir em Portugal, na sua casa, apenas se deslocando à Alemanha para visitar a sua outra filha, com quem então residia. Era em Portugal que se localizavam as contas bancárias de CC, que co-titulava com as filhas, primeiro a A. e depois a R.. Foi em Portugal que CC fez lavrar o testamento em que beneficiava o seu enteado, de quem gostava como um filho e que residia na Alemanha. Fê-lo atribuindo-lhe a “quota disponível” dos seus bens, isto é, aplicando um instituto do direito sucessório português (artigos 2156.º e seguintes do Código Civil”.
No final da sua vida CC foi para junto da sua outra filha, que vivia na Alemanha, passando a viver na casa desta. Nesse país CC veio a falecer e aí foi sepultada.
Tudo ponderado, cremos que será de considerar que na fase final da sua vida CC decidiu ir viver com a ora R., sua filha, passando a residir na Alemanha com carater de permanência. A Alemanha é o país onde CC fixou a sua última residência habitual, para efeitos de aplicação do Regulamento (EU) n.º 650/2012”.
Este segmento do acórdão recorrido – que conclui pela última residência habitual da autora da sucessão na Alemanha - não foi objecto de qualquer impugnação, não fazendo por isso parte do âmbito do conhecimento da presente revista, havendo que considerá-lo inalterável.
Pelo que, aplicando à situação sub judice o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, e tendo a autora da sucessão última residência habitual na Alemanha, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetente para o conhecimento da causa, relativamente a todos os pedidos formulados pela A., o que determina a absolvição da instância da Ré relativamente a todos os pedidos contra ela formulados.
Em suma, as questões respeitantes à sucessão de CC, onde se insere o pedido de reconhecimento judicial de sonegação de bens, com fundamento em movimentações bancárias abusivas feitas em vida do decujus (sendo ainda pedida a restituição dessas verbas à herança), o que tem manifesta influência directa e decisiva no divisão do acervo hereditário, devem ser consideradas global e unitariamente, atribuindo neste caso o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, a competência internacional para o conhecimento da causa ao tribunal do país onde se situou da última morada habitual da autora da sucessão, in casu a Alemanha e não Portugal.
Concede-se assim a revista, julgando-se os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento da causa em relação a todos os pedidos formulados pela A., sendo a Ré, consequentemente, absolvida da instância.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) conceder a revista, considerando os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer de todos os pedidos formulados pela A. na presente acção e absolvendo-se a Ré da presente instância.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 15 de Junho de 2023.
Luís Espírito Santo (Relator)
Ana Resende
Maria José Mouro
V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.