I - A norma prevista no n.º 1, al. a), do art. 14.º, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04 (norma essa que proíbe a celebração de contratos de seguro que cubram o risco de responsabilidade criminal, contraordenacional ou disciplinar) é aplicável à questão do recorte do âmbito da garantia concedida pelo seguro à luz dos limites ou das proibições impostas pelo ordenamento jurídico, no caso em que o contrato de seguro foi celebrado antes da entrada em vigor do RJCS e o sinistro ocorreu já na vigência do RJCS.
II - A al. a) do n.º 1 do art. 14.º do RJCS veda a garantia da responsabilidade criminal, disciplinar e contraordenacional, isto é, que seja transferido para a seguradora o sacrifício, o custo das sanções concretizadoras da responsabilidade em causa. Daí que, como se estipula expressamente no n.º 2 do art. 14.º do RJCS, a aludida proibição não seja extensiva à responsabilidade civil eventualmente associada.
III - Estando em causa um seguro destinado a garantir o cumprimento de um contrato de mútuo, em benefício do banco mutuante, em caso de morte ou invalidez do mutuário, o facto de o risco seguro - invalidez ou morte - advir de um comportamento da vítima (mutuário) que pode ser considerado um crime (in casu, crime de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, previsto e punido pelos arts. 292.º, n.os 1 e 2 e 69.º, n.º 1, al. a), do CP) ou uma contraordenação (arts. 81.º, n.os 2, 5 e 6, al. b) e 146.º, als. j) e m), do CE) não interfere com a proibição prevista no art. 14.º, n.º 1, al. a), do RJCS.
IV - O STJ apenas interferirá no juízo probatório da Relação se tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova para a prova de determinados factos, ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada, de determinados factos, assim como quando, no uso de presunções judiciais, a Relação tenha ofendido norma legal, o seu juízo padeça de evidente ilogicidade ou assente em factos não provados.
V - A consideração de um atestado médico de incapacidade multiuso, emitido por junta médica ao abrigo do disposto no DL n.º 202/96, de 23-10, para dar como demonstrada a verificação da invalidez total e permanente que constituía pressuposto do acionamento do seguro referido em III não viola as regras mencionadas em IV.
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. AA e BB propôs ação declarativa de condenação, com processo comum contra Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A..
O A. alegou, em síntese, que em 12.9.06 e 18.1.07 celebrou com o Banco Comercial Português, S.A. dois contratos de mútuo, nos montantes de € 70.000,00 e € 20.000,00, garantidos por hipoteca e fiança. Àqueles contratos ficaram igualmente associados seguros cobrindo os riscos morte e invalidez total e permanente do A., a favor do Banco. Tais seguros foram celebrados com a R., aos balcões do Millenium BCP. Em 20.7.14 o A. sofreu um acidente de viação, que lhe determinou um deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica de 90,46%, impeditivo do exercício de qualquer atividade profissional e do desempenho de tarefas básicas de cariz pessoal e doméstico. Participado o sinistro à R. em junho/julho de 2017, declinou esta a sua responsabilidade, invocando que a situação se achava excluída do âmbito de cobertura do seguro. Pese embora o A. conduzisse o veículo com álcool e substâncias toxicológicas no sangue, foi absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e sob influência de estupefacientes por sentença transitada em julgado. Assim, presume-se que o acidente não teve como causa a ingestão de álcool e demais substâncias. O clausulado dos contratos de seguro que a R. invoca para excluir a sua responsabilidade não é o mesmo que ao A. foi entregue quando celebrou os contratos, sendo certo que, nessa altura, não estava prevista a exclusão da concreta situação do A.. O Banco tem um interesse na ação paralelo ao do A..
O A. concluiu requerendo a intervenção principal do Banco Comercial Português, S.A. como seu associado e pedindo que a R. fosse condenada a:
a) Pagar ao interveniente o capital e juros que se encontrassem em dívida no âmbito dos contratos de mútuo celebrados no dia 12 de setembro de 2006 e 18 de janeiro de 2007, tendo como referência o dia 1 de setembro de 2017, nele se descontando o valor das prestações pagas pelo A. desde essa data até liquidação integral dos capitais mutuados pela R.;
b) Pagar ao A., caso existisse, o remanescente do capital seguro tendo como referência o dia 1 de setembro de 2017, acrescido dos juros legais que se vencessem desde essa data até efetivo e integral pagamento, cuja liquidação relegou para ampliação do pedido ou execução de sentença;
c) Reembolsar o A. do valor das prestações por este suportadas com a amortização do crédito e pagamento dos respetivos juros, que viessem a ocorrer após o dia 1 de setembro de 2017, até à data em que a R. pagasse ao Banco beneficiário a totalidade do capital e juros ainda em dívida, cuja liquidação também relegou para ampliação do pedido ou execução de sentença;
d) Reembolsar o A. do valor dos prémios de seguro por este pagos, calculados desde o 1 de setembro de 2017 e contados até à data em que esta viesse a assumir os seus compromissos contratuais emergentes do contrato de seguro em apreço nos presentes autos e cuja liquidação relegou para ampliação do pedido ou execução de sentença;
e) Pagar ao A. o valor dos juros moratórios contabilizados desde o dia em que o mesmo teve de desembolsar o valor das prestações mensais e dos prémios de seguro até efetivo e integral pagamento.
Subsidiariamente, caso se viesse a demonstrar que a constituição do beneficiário irrevogável desses contratos de seguro apenas logra aplicação quando é acionado o risco morte, então, deveria a R. seguradora ser condenada a pagar ao A. as totalidades dos capitais seguros, calculados em função do limite máximo que o respetivo capital atingisse na anuidade, acrescidas dos montantes peticionados nos pontos anteriores.
2. A R. contestou, invocando que o acidente, que não fora desencadeado por qualquer causa externa, não podia ter deixado de se dever ao estado do A., razão pela qual não estava coberto pelo contrato de seguro. Mais referiu que o A. cometeu o crime previsto e punível pelo artigo 292.º do Cód. Penal, pelo que, caso se entendesse que o contrato de seguro cobria os riscos advenientes de responsabilidade criminal, estaríamos perante contrato nulo, por contraditoriedade à ordem pública. E concluiu pela sua absolvição dos pedidos.
3. Admitido o deduzido incidente de chamamento de terceiro, o interveniente Banco Comercial Português, S.A. apresentou o seu articulado, dizendo, em resumo, que: as propostas de adesão aos contrato de seguro em causa foram preenchidas e assinadas num dos seus balcões, sendo impressas e entregues ao autor para leitura e confirmação; tais propostas, das quais fazem parte as condições gerais, foram lidas e explicadas ao A.; as prestações do empréstimo estão a ser pontualmente pagas; em 1.9.17, os valores em dívida no âmbito dos contratos de mútuo eram de € 57.468,94 e € 17.369,76, que, se assim, for entendido, a R. lhe deve pagar.
4. No âmbito da audiência prévia, foi fixado o valor da causa, proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
5. Realizada a audiência final, foi proferida sentença que absolveu a ré dos pedidos.
6. Tendo o A. interposto recurso de apelação, veio a ser proferido acórdão que anulou a sentença, determinando a ampliação da matéria de facto.
7. Realizada audiência final quanto a tal matéria, em 06.4.2022 foi proferida sentença que:
a) Julgou inválida a cláusula de exclusão da apólice vertida no ponto 3.º das condições especiais, com referência ao ponto 21.º das condições gerais dos contratos de seguro;
b) Absolveu a ré e o interveniente dos pedidos.
8. O A. apelou da sentença e em 15.12.2022 o Tribunal da Relação de Évora proferiu acórdão que, com um voto de vencido, concluiu com o seguinte dispositivo:
“Por todo o exposto, acordamos em julgar a apelação procedente e, em consequência:
A) Alteramos a decisão sobre a matéria de facto nos termos referidos em I-D) e I-E);
B) Rectificamos a alínea A) do dispositivo conforme mencionado em II-A);
C) Revogamos a alínea B) do dispositivo;
D) Condenamos a ré a pagar ao interveniente as quantias de 57.124,00€ e de 17.255,25€, correspondentes, respectivamente, ao capital em dívida no mútuo de 12.9.06 e no mútuo de 18.1.07, quantias a que deve ser deduzido o valor, a liquidar ulteriormente, das prestações bancárias pagas pelo autor ao interveniente desde 9.11.17 até amortização integral dos capitais mutuados pelo interveniente;
E) Condenamos a ré a pagar ao autor o remanescente do capital seguro relativamente a cada um dos contratos, tendo como referência o dia 9.11.17, acrescido dos juros legais que se vencerem desde 13.4.18 até efetivo e integral pagamento, a liquidar ulteriormente;
F) Condenamos a ré a pagar ao autor o valor das prestações bancárias por este pagas ao interveniente, desde 9.11.17 até à data em que a ré pagar ao interveniente os montantes referidos em D), devendo o valor de cada uma das prestações vencidas entre 9.11.17 e 13.4.18 ser acrescido de juros à taxa legal desde 13.4.18 até integral pagamento e devendo o valor de cada uma das prestações subsequentes ser acrescido de juros desde a data em que cada uma delas foi paga até integral pagamento, tudo a liquidar ulteriormente;
G) Condenamos a ré a pagar ao autor o valor dos prémios de seguro por este pagos, desde 9.11.17 até à data em que a ré cancelou os contratos de seguro, devendo o valor de cada um dos prémios vencidos entre 9.11.17 e 13.4.18 ser acrescido de juros à taxa legal desde 13.4.18 até integral pagamento e devendo o valor de cada um dos prémios subsequentes ser acrescido de juros desde a data em que cada um deles foi pago até integral pagamento, tudo a liquidar ulteriormente;
H) Absolvemos a ré do mais que peticionado foi.
Custas, em ambas as instâncias, na proporção de 5% para o autor/apelante e 95% para a ré/apelada”.
9. A R. interpôs recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegação em que formulou as seguintes conclusões:
1. O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora revogou a decisão proferida em primeira instância, determinando a alteração da matéria julgada provada e condenando a ora Ré Seguradora nos termos ali definidos, por entender que se encontravam verificados os pressupostos de acionamento da garantia de invalidez total e permanente do contrato de seguro, não tendo as RR. logrado comprovar o cumprimento dos deveres de informação, e julgando que a conduta (ilícita) do Autor não impacta o acionamento das coberturas do seguro.
Com efeito,
2. O Tribunal da Relação de Évora veio pronunciar-se condenando a ora Ré Seguradora porquanto julgou “… não válida a cláusula de exclusão da apólice vertida no ponto 3.º das condições especiais, com referência ao ponto 6.1. do artigo 6.º das condições gerais do contrato de seguro;”, defendendo que o incumprimento do dever informação por parte do interveniente Banco, na qualidade de tomador do seguro, tem reflexos na esfera jurídica da ora Ré Seguradora, podendo esta última ser responsabilizada também.
3. Contudo, o acórdão recorrido viola, salvo melhor e douta opinião, o disposto no artigo 78.º e 79.º do Regime Juridico do Contrato de Seguro (RJCS), existindo – ademais – jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça divergente do entendimento do Tribunal a quo.
4. Resulta inequívoco do disposto no artigo 78.º, n.º 1 do Regime jurídico do contrato de seguro (RJCS), que nos seguros de grupo o dever de informar os segurados sobre as coberturas contratadas e as suas exclusões, as obrigações e os direitos em caso de sinistro, bem como sobre as alterações ao contrato, em conformidade com um espécimen elaborado pelo segurador recai sobre o tomador do seguro, sobre quem impendem, necessariamente, as consequências de tal incumprimento.
5. Na verdade, admitir o contrário seria imputar a uma parte a responsabilidade decorrente do incumprimento por parte de outra, sem que a lei o determine, sem que exista qualquer relação de comitente-comissário, de intermediário ou de auxiliar.
6. Neste mesmo sentido conclui o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 13.01.2011, referente ao processo 1443/04.6... que estabelece que o Banco não é um mero intermediário, auxiliar ou comissário da seguradora e consequentemente não pode ser transposta para a esfera da seguradora a violação do dever de informação.
Ora,
7. É inequívoco que o seguro em crise nos presentes autos é um seguro de grupo celebrado entre a Ré Seguradora e o Banco Interveniente, no qual este último consta como tomador e beneficiário do mesmo do seguro.
8. Atentas as características do seguro de grupo, o Banco é que determina quem pretende (ou não) incluir no contrato de seguro, só ele tendo contacto direto com o proponente no momento da pré-contratação e contratação da adesão por parte deste último – tal momento ocorre inclusivamente no espaço físico e com os colaboradores do Banco, sendo absolutamente alheio à Ré Seguradora.
9. Nesta senda e salvo melhor entendimento, carece de fundamento normativo a pretensão de responsabilização objetiva da seguradora por um comportamento exclusivamente imputável ao outro contraente – sendo inócuo para o efeito se a Ré Seguradora e o Banco pertencem ou não ao mesmo grupo financeiro (!), até porque são duas entidades distintas, com objeto distinto, registadas sob número distinto, com corpo administrativo, funcionários e gestão completamente distintos e autónomos.
10. Também nesta senda se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 15.04.2015 referente ao processo n.º 385/12.6... , no qual afastou a extensão do dever de informar ao segurador por via dos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de outubro.
11. De facto, salvo melhor e douta opinião, o Regime Juridico do Contrato de Seguro afasta aplicabilidade do regime das cláusulas contratuais gerais, definido pelo Decreto-Lei nº 446/85, no que é incompatível com aquele – mormente no que respeita à definição dos sujeitos do dever de informação, termos em que face ao que antecede, resulta claro que o dever de comunicação das cláusulas contratuais recai sobre o Banco tomador e não sobre a Ré Seguradora.
Mas ainda neste particular diga-se que,
12. Mesmo considerando aplicável o regime do DL n.º 446/85, de 22 de outubro – o que apenas por dever de patrocínio se invoca – tal diploma não identifica expressamente que cabe à Seguradora Ré o dever de explicar verbalmente as cláusulas do contrato de seguro, termos em que nada impede a aplicabilidade do disposto no artigo 78.º do RJCS e o entendimento que ora se defende, julgando-se nesta medida o presente recurso procedente, revertendo a condenação da ora Ré Seguradora.
Mas em todo e qualquer caso,
13. Não obstante ter sido julgado provado que o Autor conduzia o motociclo com uma TAS de 1,17g/l e com 28 ng/ml de cocaína e 199 ng/ml de benzoilecgonina – cf. facto provado n.º 38 – e que essas substâncias não lhe permitiam ter o efetivo domínio e controlo sobre a direção do motociclo por si conduzido e ter a perceção do perigo associado à circulação do mesmo de forma a evitar o seu despiste e o subsequente embate no rail e queda do motociclo – cf. facto provado n.º 39.º,
14. Veio o Tribunal da Relação entender que tal não impedia a cobertura do sinistro pelos contratos de seguro em discussão nos presentes autos, até porque o Autor não foi responsabilizado criminalmente, com o que não concordamos, por entender que constitui uma violação da ordem pública e do disposto no artigo 14.º do RJCS, como aliás ficou espelhado no voto vencido do Venerando Juiz Manuel Bargado.
Vejamos,
15. O álcool e o consumo de estupefacientes reduzem consideravelmente as faculdades psicológicas elementares necessárias à condução, pelo raramente podem ser estranhas ao comportamento de um condutor, provocando incapacidade sensitiva e neuromotora, diminuidora da perceção e reação na atividade de condução automóvel que empreendia, tanto mais quando aliada à presença de substâncias estupefacientes (!).
16. A condução sob a influencia de álcool e estupefacientes, ainda que não constitua crime (por apenas 0,03g/l no que toca ao álcool), constitui responsabilidade contraordenacional, nos termos do disposto nos artigos 146º, nº1, alínea j) e 81º, nº1 do Código da Estrada.
17. Assim, em face das circunstâncias concretas envolventes do acidente e da factualidade julgada provada no ponto 39.º, tem de considerar-se verificado o nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente que ocasionou o sinistro do segurado.
18. Por outro lado e analisado o regime do artigo 14.º do RJCS, não podemos senão seguir a posição do Venerando Juiz Manuel Bargado do Tribunal da Relação de Évora que, por voto vencido, explicou que o legislador quis afastar da cobertura contratual a eventual transferência da responsabilidade, in casu, contraordenacional (de ato praticado por) do Autor dos factos a ela conducentes para uma entidade terceira, a seguradora.
19. Referindo ainda que situação diversa será a de poder ser responsabilizado civilmente, podendo transferir para um terceiro, a seguradora, a sua responsabilidade civil: não é a infração que está coberta pelo seguro, mas a eventual responsabilidade civil dela decorrente.
20. Concluindo naquele voto vencido que seguimos de perto: Por estas razões e porque considero também que é contrário à ordem pública «segurar» uma conduta estradal, a condução com álcool, que a lei considera proibida, e porque nem o segurado pode esperar do contrato que segure uma atividade ilícita, nem a seguradora pode pensar que está a segurar o que é proibido, confirmaria a sentença recorrida.
21. Admitir o contrário seria permitir ao autor beneficiar da prática de um facto ilícito – que se pode configurar como ilícito contraordenacional – e por causa do mesmo ver pagos/restituídos valores que a lei não permite, conforme decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa por Acórdão de 14.05.2015.
22. Nesta senda, o Tribunal da Relação de Évora laborou em erro quando enquadrou o presente sinistro na exceção ao artigo 14.º do RJCS que permite ou não impede a responsabilidade civil associada, que não é causa ou risco garantido pelo presente contrato.
Até porque,
23. Por outra via, o Autor bem sabendo que se encontrava sob o efeito de álcool e estupefacientes que havia consumido – o que não podia desconhecer por ser facto próprio – e que não poderia conduzir sob o efeito de álcool e estupefacientes, sendo tal conduta proibida e punida por lei, quis ainda assim conduzir, termos em que a sua atuação tem uma dimensão dolosa, que sempre e em última instância encontra acolhimento no disposto no artigo 46.º do RJCS.
24. Termos em que por via da aplicabilidade do disposto no Regime Juridico do Contrato de Seguro, sempre a responsabilidade da Seguradora se encontraria excluída das coberturas da apólice, cabendo por isso aqui a sua necessária absolvição, o que deverá ser julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Sem conceder, e por último sempre se dirá,
25. O Tribunal da Relação de Évora entendeu, por referência ao atestado médico de incapacidade multiusos indicado no ponto 36 “há que considerar como data do sinistro do presente caso o dia 09.11.2017. Só nessa data se constituiu, assim, o direito do autor – e do interveniente. a haver da ré o capital objeto dos seguros …”.
26. Não é, contudo, assim, porquanto o Tribunal a quo faz uma aplicação incorreta das cláusulas contratuais do seguro aplicáveis – in limine – à situação em apreço, termos em que se recorre ao abrigo do disposto no artigo 674.º, 1 al. a) do CPC,
Com efeito,
27. Nos termos do contrato de seguro apenas se em situação de invalidez total e permanente, podendo, pois, acionar as coberturas da apólice, a pessoa segura que cumulativamente:
a. Esteja total e definitivamente incapaz de exercer atividade remunerada, em consequência de acidente ou doença;
b. Não sendo possível prever melhorias do seu estado de saúde; e
c. Tenha um grau de desvalorização superior a 66,6%;
28. Assim, não é toda e qualquer invalidez que determina o acionamento das garantias, mas somente aquela que sendo permanente (e não meramente temporária) no valor mínimo de 66,6%, torne a pessoa segura total e definitivamente incapaz para o exercício de atividade remunerada.
Ora,
29. Não obstante resultar comprovado que em 09.11.2017 foi atribuída uma incapacidade superior a 66,6% por via daquele atestado médico de incapacidade multiusos, que se encontra junto aos autos, do mesmo não se retira que tal grau de incapacidade seja permanente, pelo contrário, o referido atestado especificamente indica que tal incapacidade “… é suscetível de variação futura, devendo ser reavaliado no ano de 2022” – cf. DOC. 11 junto com a p. i. e que é referenciado naquele facto n.º 36.
30. E, por outro lado, tampouco resulta do mesmo documento que o Autor ficou afetado na sua capacidade para exercício de atividade remunerada (!).
31. Veja-se que o atestado multiusos só atesta – e somente pode atestar – o grau de incapacidade atribuído em face dos quocientes de desvalorização que estão estabelecidos na Tabela Nacional de Incapacidades, para a obtenção de benefícios fiscais, não tendo como objetivo a avaliação da capacidade ou incapacidade do sujeito para desempenhar a sua atividade profissional, não sendo, por isso, documento idóneo a comprovar que o Autor (ou outrem que seja ali visado) se encontra impedido/incapaz de prosseguir atividade lucrativa
32. Neste mesmo sentido veja-se o próprio Decreto-Lei n.º 202/96 de 23 de outubro que estabeleceu o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência [através de atestado médico de incapacidade multiusos] para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 13.09.2018, referente ao processo n.º 428/17.7..., no qual se cita o Supremo Tribunal de Justiça no aresto de 09.07.201.
Ora,
33. É desde logo evidente que o Autor, em 09.11.2017, não cumpria ainda os requisitos passíveis de preencher os pressupostos de acionamento das coberturas e garantias da apólice.
34. Na verdade, só no relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito do trabalho, datado de 05.11.2020 (junto aos autos), se conclui que as sequelas atrás descritas são causa da incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual, mas no qual o grau de incapacidade é fixado em apenas 62,20%, tal sem prejuízo de somente em 14.01.2021 se fixar o grau de incapacidade do Autor em 93,303%, mantendo-se a indicação de que há incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional.
35. Pelo que somente naquela data de 14.01.2021 o Autor preencheu os critérios para acionamento das coberturas da apólice de seguro em discussão nos presentes autos, nunca em data anterior, termos em que qualquer condenação – o que não se admite e apenas por dever de patrocínio se invoca – sempre terá que ter em conta aquela data e não outra anterior, revogando-se e alterando-se consentaneamente a alínea D), E), F) e G) do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora.
A recorrente terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente, com todas as devidas e legais consequências.
10. O A. contra-alegou, pugnando pela total improcedência da revista e consequente manutenção da decisão recorrida.
11. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. As questões suscitadas pela recorrente e que constituem o objeto deste recurso são as seguintes: irresponsabilidade da seguradora por incumprimento de deveres de informação que caberiam ao tomador banco; exclusão da garantia da apólice por a conduta do segurado constituir responsabilidade criminal ou contraordenacional; causação dolosa do sinistro; aplicação incorreta, pelo tribunal recorrido, das cláusulas contratuais do seguro atinentes à invalidez necessária para o acionamento do seguro.
2. Primeira questão (irresponsabilidade da seguradora por incumprimento de deveres de informação que caberiam ao tomador banco)
2.1. As instâncias (com alterações introduzidas pela Relação) deram como provada a seguinte
Matéria de facto
1. No dia 31 de Maio de 2006, o autor preencheu e assinou o documento intitulado "PROPOSTA DE ADESÃO", com referência a contrato de seguro vida e seguro mu1tiriscos - proposta n.º 2237072, sendo o capital a segurar no montante de € 70 000,00 (setenta mil euros).
2. Nessa proposta pode ler-se: "Tanto o Tomador do Seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como da possibilidade de realização de exames médicos e/ ou exames auxiliares de diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do capital com a idade da pessoa segura ou pela existência de outros seguros de vida.".
3. Através de escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, outorgada no Cartório Notarial de ..., sito na Rua ..., no dia 12 de Setembro de 2006, CC e mulher, DD declararam que, pelo preço já recebido de AA e BB, a este vendiam a fração autónoma designada pela letra "P", correspondente ao 6.° andar esquerdo, do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º 1640, da freguesia de ... e este último confessou-se devedor ao "Banco Comercial Português, S.A." da importância de € 70 000,00 (setenta mil euros), que declarou ter recebido do mesmo banco a título de empréstimo e que seria aplicada na precedente aquisição, constituindo a favor daquele banco hipoteca sobre a mesma fração, o que o referido banco declarou aceitar.
4. De acordo com a cláusula l.ª do documento complementar arquivado junto à referida escritura, a quantia mutuada foi entregue ao autor por crédito na conta de depósito à ordem com o número ...83, aberta em seu nome junto da agência do Millennium BCP, sita na cidade da ....
5. De acordo com a clausula 2.ª do referido documento complementar, esse empréstimo foi concedido pelo prazo de 480 (quatrocentos e oitenta) meses a contar do dia 25 de Setembro de 2006, e era amortizado em prestações mensais, de capital e juros.
6. De acordo com o n.º 2, da cláusula 10.ª do documento complementar respeitante ao primeiro contrato de mútuo, o autor ficou obrigado a garantir ao Banco Comercial Português, S.A., através da celebração de "… um seguro de vida, cujas condições, constantes da respetiva apólice, serão as indicadas pelo Banco, em sociedade de seguros de reconhecido crédito e da confiança do Banco, a pagar atempadamente os respetivos prémios, a fazer inserir na respetiva apólice que o Banco é credor hipotecário e que, em consequência, as indemnizações que sejam devidas em caso de sinistro reverterão para o Banco.".
7. No dia 8 de Janeiro de 2007, foi preenchida e assinada uma "PROPOSTA DE ADESÃO", com referência a contrato de seguro vida e ao capital a segurar de € 20 000,00 (vinte mil euros) onde se pode ler:
"São exatas e completas as declarações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-me sido entregues as respetivas condições gerais e especiais, para delas tomar integral conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo. (…)".
8. Ambas as propostas referidas supra foram preenchidas no balcão do Millennium BCP, de acordo com as instruções e orientações do autor e, posteriormente, impressas e entregues ao mesmo, para leitura e confirmação das informações nele constantes.
9. Na data da formalização das propostas, foi explicado ao autor que, em caso de morte ou invalidez total e permanente, a seguradora liquidaria ao banco beneficiário a totalidade do capital seguro que à data se encontrasse em dívida.
10. Através de escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, outorgada no Cartório Notarial ..., sito na Rua ..., no dia 18 de janeiro de 2007, o "Banco Comercial Português, S.A." concedeu ao autor um novo empréstimo, no montante de € 20 000,00 (vinte mil euros), quantia que foi entregue ao autor, por crédito na sua conta aberta junto da referida entidade bancária.
11. Nos termos da clausula 2.ª do documento complementar à referida escritura, este segundo empréstimo foi concedido pelo prazo de 480 (quatrocentos e oitenta) meses a contar do dia 25 de Janeiro de 2007, e era (como é) amortizado em prestações mensais, de capital e juros.
12. De acordo com o n.º 2, da cláusula 10.ª do documento complementar respeitante ao segundo contrato de mútuo, o autor ficou obrigado a garantir ao Banco Comercial Português, S.A., através da celebração de "… um seguro de vida, cujas condições, constantes da respetiva apólice, serão as indicadas pelo Banco, em sociedade de seguros de reconhecido crédito e da confiança do Banco, a pagar atempadamente os respetivos prémios, a fazer inserir na respetiva apólice que o Banco é credor hipotecário e que, em consequência, as indemnizações que sejam devidas em caso de sinistro reverterão para o Banco.".
13. Ambas as hipotecas vieram a ser objeto de registo, através das apresentações nºs 37, de 4/7/2006 e 96, de 13/2/2007.
14. No cumprimento das obrigações estabelecidas contratualmente, o autor celebrou com a ré "OCIDENTAL - Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A.", dois contratos de seguro do ramo vida, ambos respeitantes à mesma apólice, a que foi atribuído o n.° 00061190.
15. Sendo o primeiro titulado pelo certificado número RK95892303, no montante de € 70.000,00 (setenta mil euros).
16. Com início em 11 de Setembro de 2006.
17. E o segundo titulado pelo certificado número RK97029238, no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros).
18. Com início em 18 de Janeiro de 2007.
19. Capitais que seriam anualmente atualizados em função do limite máximo que, nos termos dos contratos de mútuo associados à constituição das hipotecas associadas, os respetivos capitais em dívida atingissem nessa anuidade.
20. Em ambos os contratos de seguro figura como pessoa segura o autor, estando garantidos os riscos morte e invalidez total e permanente.
21. De igual modo, nesses dois contratos de seguro figurava como beneficiário irrevogável a instituição bancária BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A..
22. No ponto 6.1, do artigo 6.°, das Condições Gerais referentes à apólice de seguro em causa, datadas de Janeiro de 2006, respeitantes a situação de morte, pode ler-se:
"Não se considera coberto por este contrato o risco de morte resultante de:
(…)
g) Factos que sejam consequência de: -
(…) –
(…)
- Embriaguez e abuso de álcool ou de estupefacientes fora da prescrição médica;
(…)".
23. Na alínea e), do artigo 1.º, das Condições Especiais referentes à apólice de seguro em causa, datadas de Janeiro de 2006, respeitantes a situação de invalidez total e permanente, pode ler-se:
"Invalidez Total e Permanente - A pessoa segura encontra-se na situação de Invalidez Total e Permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma atividade remunerada, com fundamento em sintomas objetivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimento médicos atuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo igual a 100%".
24. No artigo 3.°, das Condições Especiais referentes à apólice de seguro em causa, datadas de Janeiro de 2006, respeitantes a situação de invalidez total e permanente, pode ler-se:
"Para além das exclusões já mencionadas nas Condições Gerais da cobertura principal, a Seguradora cobre o risco de Invalidez Total e Permanente da Pessoa Segura, salvo nos casos (…)".
25. No dia 20 de Julho de 2014, pelas 07:30 horas, ao Km 16,5, da E.N. ...96, no ramal de acesso à circular de ... (via de sentido único, com 3,90m de largura que, no local, perfaz uma curva para a direita, com boa visibilidade e em que o limite de velocidade imposto corresponde a 60 km/hora), o autor entrou em despiste, na sequência do que o motociclo que conduzia, desviando-se cerca de 14 metros (13,60 + 0,40) para a sua esquerda, veio a embater no raile de proteção da via, sendo depois o seu corpo projetado a uma distância de 8,80 m desse local.
26. Daquele sinistro resultaram para o autor diversos traumatismos que demandaram internamento hospitalar.
27. No documento intitulado "Relatório de Avaliação de Incapacidades" pode ler-se:
i. Data da cura/consolidação médico-legal das lesões fixável no dia 10 de dezembro de 2015
ii. No âmbito dos danos temporários, são valorizáveis como Incapacidade Temporária Absoluta 505 (quinhentos e cinco) dias e 0 (zero) dias como Incapacidade Temporária Parcial
iii. As sequelas apresentadas são causadoras de Incapacidade Permanente Absoluta para todo o Trabalho
iv. Sendo atribuída uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) ou Deficit Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 90,46%
28. À data do sinistro, o autor exercia a atividade profissional de assistente de venda de alimentos ao balcão, ao serviço da sociedade comercial "G..., LDA.", auferindo o salário médio de € 959,01 (novecentos e cinquenta e nove euros e um cêntimo).
29. O autor recebe uma subvenção que lhe foi concedida pelo Juízo do Trabalho da Comarca de ..., no âmbito do Proc. n.º 1966/15.1..., considerando que o sinistro ocorreu quando o autor regressava a sua casa após mais um dia de trabalho.
30. No montante anual e vitalício de € 4.638,67 (quatro mil, seiscentos e trinta e oito euros e sessenta e sete cêntimos).
31. Em 16 de Setembro de 2016, foi celebrado entre o autor e o BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, para cada contrato de mútuo, um aditamento onde foi alterado o regime de pagamento das prestações mensais (com inclusão de um período de carência de capital) e o regime de pagamentos dos juros.
32. O autor participou à ré o sinistro de que foi vítima em 18 de Abril de 2017.
33. Tendo remetido à ré toda a documentação por esta solicitada.
34. No documento intitulado "Informação clínica", com menção de ter sido elaborado pela médica fisiatra Dr.ª EE e datado de 20 de Setembro de 2016, pode ler-se:
"Na presente data apresenta uma lesão completa do plexo braquial esquerdo.
De acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades DL 353/2007, de 23 de outubro aplica-se:
Capítulo III- 6.1.1 - 0.10 a 030 - atribui-se 60% de incapacidade" - fls. 320.
35. Mostra-se emitido um atestado médico de incapacidade multiuso, por junta médica presidida pelo Dr. FF, datado de 19 de Janeiro de 2017, atribuindo ao autor uma incapacidade de 60%, com carácter permanente desde 2014.
36. Mostra-se emitido um atestado de avaliação da incapacidade, por junta médica presidida pelo Dr. GG, datado de 9 de Novembro de 2017, atribuindo ao autor uma incapacidade de 73%, com carácter permanente desde 2014.
37. A ré declinou a assunção de qualquer responsabilidade, tendo remetido ao autor uma carta datada de 14 de Março de 2018, na qual referia:
"Da apreciação efetuada à documentação rececionada, constatamos que as circunstâncias em que ocorreu o acidente que motivou a invalidez que lamentavelmente afeta o Constituinte de V. Exa., incorrem nas exclusões previstas no Artigo 6.°, 6.1, alínea g) das Condições Gerais conjugado com o Artigo 3.° das Condições Especiais das Apólices, de que anexamos cópias.
Em face do exposto, lamentamos informar que declinamos qualquer responsabilidade pelo pagamento dos capitais seguros procedendo, nesta data, à anulação dos Contratos." - fls. 75.
38. Aquando da ocorrência do sinistro, o autor foi sujeito a exame de pesquisa de álcool e substâncias toxicológicas no sangue, tendo revelado ser portador de uma TAS de 1,34 g/l, que corresponde, após a dedução da margem de erro de 0,17 g/l fixada no exame toxicológico efetuada pelo INMLCF, a uma taxa de 1,17 g/l e, bem assim, 28 ng/ml de cocaína e 199 ng/ml de benzoilecgonina.
39. Substâncias que não lhe permitiam ter o efetivo domínio e controlo sobre a direção do motociclo por si conduzido e ter a perceção do perigo associado à circulação do mesmo de forma a evitar o seu despiste e o subsequente embate no rail e queda do motociclo.
40. No âmbito do processo comum singular que correu termos contra o autor sob o n.º 797/ 14.0..., do J..., do Juízo Local Criminal de ..., foi o mesmo absolvido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez e sob influência de estupefacientes.
41. Na referida sentença pode ler-se:
«(…)
Factos provados
1. No dia 20 de Julho de 2014, pelas 07h30m, o arguido HH conduzia o motociclo de matrícula ..-..-QA, na Estrada Nacional ...96, ao Km 16,5, área deste juízo local cível de ... …
2. O arguido foi nessa sequência sujeito a exame de pesquisa de álcool e substancias toxicológicas no sangue e revelou ser portador de:
- uma taxa de álcool no sangue de 1,34 g/l que corresponde, após dedução da margem de erro de 0,17 g/l fixada no exame toxicológico efetuado pelo IMLCF a uma TAS de 1,17 g/l;
- 28 ng/ml de cocaína; e,
- 199 ng/ml de benzoilecgonina, devido ao facto de, antes de empreender a condução do veículo ter voluntariamente ingerido bebidas alcoólicas e consumido produtos estupefacientes.
Não obstante saber que estava influenciado pelo álcool e pelos produtos estupefacientes ingeridos e de que por tal não lhe era permitido conduzir na via pública, não se absteve de o fazer.
O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
(…)
B) Factos não provados
(…)
Com interesse para a decisão não resultaram por provar quaisquer outros factos, para além dos já mencionados, designadamente, não resultaram provados os seguintes factos:
11. Que devido à influência das substancias estupefacientes acima referidas o arguido se não encontrasse em condições de efetuar com segurança a condução do veículo.
C) Indicação e exame crítico das provas que serviram. para fundamentar a convicção
(…)
O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos pelos quais vem acusado, esclarecendo as circunstâncias nas quais empreendeu a condução do veículo e se despistou, conforme aliás decorre da participação de acidente de viação de fls. 15 a 17.
(…).
Em face da prova assim produzida e na ausência de alegação e de prova quanto ao facto de que as substâncias estupefacientes presentes no organismo do arguido afectassem em concreto, naquela ocasião, a sua capacidade física, mental ou psicológica por forma a que se pudesse concluir que o mesmo não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura, pois que o arguido não foi submetido a qualquer exame pericial médico que o atestasse, nem tal se poderia extrair das circunstâncias em que o acidente ocorreu, dando como provada a factualidade referida sob os pontos 1. a 4. o tribunal deu como não provada a factualidade referida sob o ponto 11..
(…)
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
(…)
São elementos do tipo objetivo do ilícito previsto no n.° 1, do artigo 292.°, do Código Penal (…)
No confronto da norma e das breves considerações tecidas com a factualidade dada como provada, importa desde logo concluir que, sendo a TAS de 1,17 g/l a que importa considerar, a conduta do arguido não integra todos os elementos do tipo objetivo do ilícito ora em análise.
Esta conduta do arguido seria todavia suscetível de integrar a prática de um ilícito de contra-ordenacional, todavia (…) não é este Tribunal competente para conhecer de eventuais contra-ordenações praticadas pelo arguido. Aliás, ainda que o fosse o procedimento por contra-ordenação sempre se encontraria já extinto por prescrição, de harmonia com o artigo 188.°, n. ° 1, do Código da Estrada.
São elementos do tipo objetivo do ilícito previsto no n.° 2, do artigo 292.°, do Código Penal (…). Com efeito, só o relatório médico com esse items preenchidos permitirá ao tribunal concluir se o examinado estava em condições de fazer o exercício da condução em segurança.
(…)
Ora, tendo presente as normas invocadas e as breves considerações tecidas e no seu confronto com a factualidade provada, importa sem necessidade de maiores considerandos concluir que a conduta do arguido também não integra todos os elementos constitutivos do tipo de ilícito ora em análise.
(…)".
42. Os certificados de seguro e apólice referidos supra encontram-se cancelados.
43. Não obstante, os contratos de mútuo encontram-se a ser cumpridos pelo autor.
44. À data da entrada da petição inicial os valores de capital em dívida ascendiam a:
- MLS ...73 - € 57.468,94 (cinquenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e oito euros e noventa e quatro cêntimos);
- MLS ..883 - € 17.369,76 (dezassete mil, trezentos e sessenta e nove euros e setenta e seis cêntimos).
45. No âmbito do empréstimo destinado a habitação permanente designado pelo nº ...73, no período compreendido entre 1/9/2017 e 10/3/2020, o autor liquidou ao banco/interveniente as quantias discriminadas no quadro anexo que constitui fls. 295, cujos dizeres se dão por reproduzidos.
46. No âmbito do empréstimo destinado a crédito hipotecário designado pelo nº ..883, no período compreendido entre 1/9/2017 e 10/3/2020, o autor liquidou ao banco/interveniente as quantias discriminadas no quadro anexo que constitui fls. 297, cujos dizeres se dão por reproduzidos.
47. Em consequência do acidente e de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, o autor está afectado de uma incapacidade parcial permanente de 93,303% e de uma incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual, encontrando-se dependente da ajuda de terceira pessoa [facto provado aditado pela Relação].
As instâncias (com as alterações introduzidas pela Relação) enunciaram os seguintes
FACTOS NÃO PROVADOS
a) Que as quantias mutuadas foram também aplicadas na compra de mobiliário, eletrodomésticos e demais bens e despesas inerentes à utilização da sobredita fração.
b) Que as condições gerais aplicáveis à apólice de seguro contratada com o autor são as que resultam do documento que constitui fls. 76 e ss., datadas de Janeiro de 2016.
c) Que, em anexo à missiva de 14 de Março de 2018, foram enviadas as condições gerais datadas de Janeiro de 2016.
d) Que, no documento intitulado "Relatório de Avaliação de Incapacidades", consta que o autor necessita de acompanhamento médico e medicamentoso regular e bem assim, de ajudas técnicas e de ajuda permanente de terceira pessoa, já que não consegue fazer de forma autónoma algumas das atividades básicas da sua vida diária, como sejam, vestir-se, cozinhar, calçar os sapatos, tomar banho ou assegurar a lide doméstica.
e) Que o autor padeça de um grau de incapacidade superior a 66,6%, com base na Tabela Nacional de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;
[A Relação eliminou as alíneas f) e g) dos factos não provados]
h) Que, no cumprimento dos procedimentos internos existentes no seio do interveniente, foram lidas e explicadas as cláusulas insertas nas referidas propostas de adesão a seguro de vida;
i) O mesmo sucedeu em relação às condições gerais, que fazem parte integrante da referida proposta de adesão a seguro de vida;
j) Que o interveniente prestou todos os esclarecimentos, informações e entregou toda a documentação necessária ao autor aquando do preenchimento da proposta de adesão ao contrato de seguro.
2.2. O Direito
Nas doze primeiras conclusões da revista a recorrente insurge-se contra a exclusão da cláusula de exclusão de riscos objeto dos autos, decorrente do incumprimento de deveres de informação que caberiam ao tomador banco.
Ora, sucede que essa questão está definitivamente decidida na ação.
Com efeito, a primeira instância considerou que os contratos de seguro em causa nos autos estavam abrangidos pelo regime das cláusulas contratuais gerais, definido pelo Dec.-Lei n.º 446/85, de 25.10, do qual resulta a imposição, à parte que submete à outra as cláusulas não negociadas, dos deveres de comunicação adequada e de informação suficiente das referidas cláusulas (artigos 5.º e 6.º), sob pena de se haverem como excluídas do contrato concretamente celebrado (artigo 8.º, todos do Decreto-Lei n.º 446/85).
E, abordando o cumprimento dessa obrigação de comunicação e informação, na sentença ajuizou-se que “a interveniente não logrou provar – como lhe competia - ter prestado ao autor todas as informações necessárias à celebração dos contratos de seguro em causa, designadamente, não logrou provar ter comunicado e explicado ao autor que, em caso de apresentar uma incapacidade decorrente de sinistro decorrente de sinistro no exercício da condução sob o efeito de álcool e drogas, o funcionamento da apólice seria excluído, não sendo garantido o pagamento do valor que se encontrasse em dívida para com o banco/credor hipotecário”.
E, após assim se ajuizar, na sentença recorrida concluiu-se pela seguinte forma:
“Assim, temos de concluir que tal cláusula não é válida e, como tal, deve ser excluída do âmbito dos contratos, nos termos do art.º 8.º, alíneas. a) e b) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, inexistindo fundamento para recusa do pagamento da quantia em dívida, por parte da ré/seguradora, com base na referida clausula, mostrando-se prejudicada a questão anteriormente analisada, relativa à interpretação do sentido e alcance da mesma” (o negrito consta na sentença).
E, em harmonia com tal fundamentação, no dispositivo da sentença lavrou-se uma alínea A), conforme a redação cuja transcrição aqui se reitera:
“Face ao exposto, decido:
A. Julgar não válida a cláusula de exclusão da apólice vertida no ponto 3.º das condições especiais, com referência ao ponto 21.º, das condições gerais dos contratos de seguro;
(…)”.
Este segmento decisório da sentença recorrida não foi alvo de recurso, pelo que transitou em julgado (artigos 635.º n.º 5, 628.º, 619.º n.º 1 do CPC). Note-se que, tendo a ação sido julgada improcedente (por a primeira instância ter considerado que o A. não lograra provar que em virtude do acidente em causa e das sequelas que dele resultaram na sua pessoa ficara impossibilitado de exercer qualquer atividade remunerada ou qual o grau de incapacidade de que padecia ou, ainda, que não fosse possível uma melhoria do seu estado clínico), o A. dela recorreu. A R. seguradora contra-alegou na apelação, mas não questionou a mencionada exclusão de cláusula contratual, como lhe seria permitido nos termos do art.º 636.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
É certo que a Relação, no julgamento da apelação, modificou a redação dessa parte do dispositivo da sentença - mas tão-só por ter detetado um manifesto lapso material na identificação da cláusula excluída. Daí que no dispositivo do acórdão da Relação se declare que se procede à retificação da alínea A) do dispositivo da sentença (conforme consta na transcrição do acórdão, acima inserida no Relatório) – sem que as partes tenham questionado tal constatação da existência de lapso material na sentença.
Não é, pois, correta a afirmação da recorrente de que “o Tribunal da Relação veio pronunciar-se condenando a ora Ré Seguradora porquanto julgou “… não válida a cláusula de exclusão da apólice vertida no ponto 3.º das condições especiais, com referência ao ponto 6.1. do artigo 6.º das condições gerais do contrato de seguro;” defendendo que o incumprimento do dever informação por parte do interveniente Banco, na qualidade de tomador do seguro, tem reflexos na esfera jurídica da ora Ré Seguradora, podendo esta última ser responsabilizada também”. Com efeito, como já se disse e aqui se reitera, quem decidiu pela exclusão da aludida cláusula do contrato de seguro foi a primeira instância, sem reação das partes, tendo a Relação tão-só, em obiter dictum, manifestado concordância com tal decisão, após ter constatado, no acórdão, “… não ter a ré interposto apelação da alínea A) do dispositivo nem requerido a ampliação do objecto do recurso quanto ao reflexo na sua esfera jurídica do incumprimento do dever de informação por parte do interveniente.”
Pelo exposto, não cabe a este STJ reapreciar a aludida questão, nesta parte improcedendo a revista.
3. Segunda questão (exclusão da garantia da apólice por a conduta do segurado constituir responsabilidade criminal ou contraordenacional)
Está provado que em setembro de 2006 o A. contraiu um empréstimo junto do banco interveniente, a fim de adquirir um imóvel para habitação. Na mesma ocasião e em cumprimento da obrigação a que igualmente se havia vinculado perante o banco mutuante, o A. aderiu a um contrato de seguro de grupo do ramo vida, no qual o banco mutuário figura como tomador do seguro e a seguradora é a ora R.. Nos termos do contrato de seguro, em caso de morte ou invalidez total e permanente do A. (pessoa segura) a seguradora liquidaria ao banco interveniente (beneficiário) a totalidade do capital seguro que à data se encontrasse em dívida. Em janeiro de 2007 o banco interveniente concedeu um novo empréstimo ao A.. E também desta vez e nos mesmos termos do empréstimo anterior, o A. aderiu a um contrato de seguro do ramo vida, respeitante à mesma apólice (cfr. n.º 14 dos factos provados), cobrindo o risco da morte ou invalidez total e permanente do A., ficando a seguradora obrigada, uma vez verificado o risco seguro, a pagar ao banco o capital garantido que se encontrasse em dívida.
Sobre isto não há controvérsia.
O que constitui objeto do recurso é a eventual invalidade da garantia concedida pelo seguro quando este cubra sinistros que tenham por causa condutas proibidas por lei.
À data da constituição dos contratos de seguro objeto destes autos vigorava o art.º 192.º do Dec.-Lei n.º 94-B/98, de 17.4 (diploma que regulava o exercício da atividade seguradora), o qual tinha a seguinte redação:
“Ordem pública
1 - A lei aplicável aos contratos de seguro que cubram riscos situados em território português ou em que Portugal seja o Estado membro do compromisso não poderá envolver ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português.
2 - Para os efeitos do número interior, sempre que o contrato de seguro cobrir riscos situados em mais de um Estado membro, será considerado como representando diversos contratos, cada um dizendo apenas respeito a um único Estado membro.
3 - São tidos como contrários à ordem pública os contratos de seguro que garantam, designadamente, qualquer dos seguintes riscos:
a) Responsabilidade criminal ou disciplinar;
b) Rapto;
c) Posse ou transporte de estupefacientes e drogas cujo consumo seja interdito;
d) Inibição de conduzir veículos;
e) Morte de crianças com idade inferior a 14 anos, com excepção das despesas de funeral;
f) Com ressalva do disposto na alínea anterior, morte de incapazes, com excepção das despesas de funeral”.
Tal preceito foi revogado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16.4 (cfr. art.º 6.º n.º 2, alínea d) desse diploma), o qual contém, com efeitos desde 01.01.2009, o atual Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS).
Sobre a matéria do citado art.º 192.º rege agora o art.º 14.º do RJCS, o qual tem a seguinte redação:
“Seguros proibidos
1 - Sem prejuízo das regras gerais sobre licitude do conteúdo negocial, é proibida a celebração de contrato de seguro que cubra os seguintes riscos:
a) Responsabilidade criminal, contra-ordenacional ou disciplinar;
b) Rapto, sequestro e outros crimes contra a liberdade pessoal;
c) Posse ou transporte de estupefacientes ou drogas cujo consumo seja interdito;
d) Morte de crianças com idade inferior a 14 anos ou daqueles que por anomalia psíquica ou outra causa se mostrem incapazes de governar a sua pessoa.
2 - A proibição referida da alínea a) do número anterior não é extensiva à responsabilidade civil eventualmente associada.
3 - A proibição referida nas alíneas b) e d) do n.º 1 não abrange o pagamento de prestações estritamente indemnizatórias.
4 - Não é proibida a cobertura do risco de morte por acidente de crianças com idade inferior a 14 anos, desde que contratada por instituições escolares, desportivas ou de natureza análoga que dela não sejam beneficiárias”.
Os contratos de seguro sub judice foram celebrados durante a vigência do transcrito art.º 192.º. Mas o sinistro objeto destes autos ocorreu já na vigência do igualmente transcrito art.º 14.º do RJCS.
Sobre a aplicação da lei no tempo, dispõe o n.º 2 do art.º 12.º do Código Civil:
“Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Regulando a aplicação no tempo do novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16.4, contém os seguintes artigos 2.º a 4.º, que se transcrevem:
Art.º 2.º
“Aplicação no tempo
1 - O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes.
2 - O regime referido no número anterior não se aplica aos sinistros ocorridos entre a data da entrada em vigor do presente decreto-lei e a data da sua aplicação ao contrato de seguro em causa”.
Art.º 3.º
“Contratos renováveis
1 - Nos contratos de seguro com renovação periódica, o regime jurídico do contrato de seguro aplica-se a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.
2 - As disposições de natureza supletiva previstas no regime jurídico do contrato de seguro aplicam-se aos contratos de seguro com renovação periódica celebrados anteriormente à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, desde que o segurador informe o tomador do seguro, com a antecedência mínima de 60 dias em relação à data da respectiva renovação, do conteúdo das cláusulas alteradas em função da adopção do novo regime”.
Art.º 4.º
“Contratos não sujeitos a renovação
1 - Nos seguros de danos não sujeitos a renovação, aplica-se o regime vigente à data da celebração do contrato.
2 - Nos seguros de pessoas não sujeitos a renovação, as partes têm de proceder à adaptação dos contratos de seguro celebrados antes da entrada em vigor do presente decreto-lei, de molde a que o regime jurídico do contrato de seguro se lhes aplique no prazo de dois anos após a sua entrada em vigor.
3 - A adaptação a que se refere o número anterior pode ser feita na data aniversária do contrato, sem ultrapassar o prazo limite indicado”.
Em harmonia com o regime geral de aplicação da lei no tempo, nomeadamente com a segunda parte do n.º 2 do art.º 12.º do CC, o novo regime jurídico do contrato de seguro também se aplica às situações jurídicas constituídas em momento anterior que perdurem em 01.01.2009; todavia, neste caso, a lei nova não se aplica à formação do contrato, mas tão-só ao seu conteúdo, ou seja, a questões relacionadas com a execução do vínculo (Pedro Romano Martinez, in Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2016, 3.ª edição, p. 23).
Aos contratos de seguro com renovação periódica a aplicação do novo regime operou a partir da primeira renovação posterior à data da entrada em vigor do RJCS (art.º 3.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 72/2008).
Buscando uma solução de equilíbrio entre as expetativas das partes e o interesse na generalizada aplicabilidade da lei nova, nos seguros de pessoas não sujeitos a renovação fixou-se um prazo de dois anos para que as partes adaptassem o conteúdo do contrato ao novo regime (art.º 4.º n.º 2 do Dec.-Lei n.º 72/2008). Até 2011, todos os contratos de seguros de pessoas não sujeitos a renovação, independentemente de terem sido celebrados antes ou depois de 2009, ficaram, pois, sujeitos ao regime da lei nova, no que concerne ao seu conteúdo (cfr. Pedro Romano Martinez, obra coletiva citada, p. 27).
Pensamos que, in casu, a questão do recorte do âmbito da garantia concedida pelo seguro à luz dos limites ou das proibições impostas pelo ordenamento jurídico atém-se, afinal, à delimitação do conteúdo do contrato. Assim, entendemos que à situação objeto destes autos se aplica o disposto no art.º 14.º do RJCS.
Como bem nota Leonor Cunha Torres (in Lei do Contrato de Seguro, obra coletiva citada, pp. 67 e 68), ao contrário do art.º 192.º do Dec.-Lei n.º 94-B/98, de 17.4, o atual art.º 14.º não afere a validade da celebração dos contratos nele referidos por reporte à cláusula geral de contrariedade à ordem pública. Efetivamente, do que se trata agora é de uma expressa proibição legal de contratar, isto é, de celebrar contratos de seguro com determinada cobertura (embora se possa, afinal, depreender que subjacentes a essa proibição estão considerações de ordem pública).
Por outro lado, a proibição estende-se, agora, à garantia da responsabilidade contraordenacional.
Dilucidando o sentido da proibição constante na alínea a) do n.º 1 do art.º 14.º do RJCS, Pedro Romano Martinez expende que “[a] proibição de segurar a responsabilidade criminal, contraordenacional ou disciplinar, a que respeita a alínea a), destina-se a salvaguardar o efeito punitivo pretendido pelas leis que consagram essas formas de responsabilidade. O legislador entende que, se o custo de uma eventual punição pudesse ser substituído pelo pagamento de um prémio de seguro, a lei punitiva seria defraudada, máxime na sua função preventiva geral” (in Lei do Contrato de Seguro, obra coletiva citada, p. 68). E mais pondera: “Na alínea agora anotada, defende-se o interesse público da preservação substancial do alcance das leis punitivas em vigor. Tal finalidade em nada obsta que se segure a responsabilidade civil que possa resultar dos mesmos factos que geram responsabilidade penal e afim, como vai expresso no n.º 2 anotado. Do mesmo modo, a lei não impede que se segure a posição de pessoas dependentes do responsável penal, atento o princípio da intransmissibilidade das penas.” (obra citada, pp. 68 e 69).
Também João de Matos Viana acentua que a aludida proibição legal visa assegurar a prossecução das finalidades preventivas que inspiram as sanções em causa, as quais impõem que a sanção produza “um sacrifício direto e pessoal para o próprio arguido, de tal forma que este não possa transferir tal sacrifício para terceiro, nomeadamente para uma seguradora” (“Seguros proibidos”, in Temas de Direito dos Seguros, 2016, 2.ª edição, Almedina, p. 119). O sacrifício imposto direta e pessoalmente sobre o próprio agente, que não o poderá transferir para terceiro, nomeadamente para uma seguradora, assinala perante a comunidade a validade da norma violada. Por outro lado, assegura-se a natureza pessoalíssima da responsabilidade penal, contraordenacional e disciplinar, emergente da natureza das sanções aplicáveis e do seu fundamento na culpa do agente (João de Matos Viana, obra citada, pp. 120 e 121).
Do supra exposto resulta que o que aqui é vedado pela lei é a garantia da responsabilidade criminal, disciplinar e contraordenacional, isto é, que seja transferido para a seguradora o sacrifício, o custo das sanções concretizadoras da responsabilidade em causa.
Daí que, como se estipula expressamente no n.º 2 do art.º 14.º do RJCS, a aludida proibição não seja extensiva à responsabilidade civil eventualmente associada.
Ora, o seguro objeto destes autos garante, não responsabilidade penal ou contraordenacional, mas responsabilidade contratual, isto é, o cumprimento de uma obrigação emergente da livre celebração de um contrato, in casu um contrato de mútuo. Ocorrendo o risco morte ou invalidez total e permanente da pessoa segura (o A.), de que resultaria ou poderia resultar a impossibilidade de cumprimento, pelo mutuário, da obrigação de pagamento emergente do contrato de mútuo, a seguradora garante o pagamento ao beneficiário (o banco interveniente) do capital que estiver em dívida.
O facto de a invalidez (ou a morte) advir de um comportamento da vítima que pode ser considerado um crime (in casu, crime de condução de veículo em estado de embriaguez e sob a influência de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.ºs 1 e 2 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal) ou uma contraordenação (artigos 81.º, n.ºs 2, 5 e 6, alínea b) e 146.º, alíneas j) e m), do Código da Estrada, na redação conferida pela Lei n.º 72/2013, de 03.9, vigente à data da prática dos factos) não interfere, pois, com a proibição prevista no art.º 14.º, n.º 1, al. a) do RJCS.
A recorrente advoga em sentido contrário, arrimando-se no douto voto de vencido que acompanhou o acórdão recorrido.
Por sua vez o mencionado voto de vencido declarou seguir de perto o acórdão do STJ de 18.10.2012, proferido no processo n.º 723/08.6TBSCD.C1 (consultável em www.dgsi.pt).
Ora, cremos que tal aresto aponta para a solução para a qual propendemos.
É certo que nesse acórdão (relatado pela Sr.ª Juíza Conselheira Ana Paula Boularot) o STJ fez depender a assunção do risco morte pela seguradora do facto de, no caso aí em apreço, não se ter demonstrado que o sinistro rodoviário que vitimara a pessoa segura havia sido causado pela circunstância de na altura do acidente aquela conduzir com uma ilegal taxa de alcoolemia no sangue. Mas tal deveu-se à existência de (válida) cláusula contratual de exclusão de responsabilidade da seguradora, que o STJ teve de interpretar e aplicar. No mais, no que concerne à proibição legal então aplicável, isto é, a prevista na alínea a) do n.º 3 do art.º 192.º do Dec.-Lei n.º 94-B/98, de 17.4, o STJ expendeu o seguinte:
“A cláusula de exclusão da responsabilidade assim firmada, mostra-se consentânea com o preceituado no artigo 192º, nº1 e 3 do DL 94-B/98, posto que a alínea a) proíbe a cobertura da responsabilidade criminal ou disciplinar e a alínea d) a inibição de conduzir veículos, o que significa com mediana clareza que o que o legislador quis efectivamente afastar da cobertura contratual foi a eventual transferência da responsabilidade criminal/contra-ordenacional/disciplinar pelo autor dos factos a ela conducentes para uma entidade terceira, a seguradora: é que aqui estamos em sede de responsabilidade individual, própria do ser enquanto entidade integrada na ordem social e por isso susceptível de ser sujeito de uma determinada cominação normativa, José Vasques, ibidem, 138.
Situação diversa é a de o segurado por força do cometimento de uma determinada infracção – cujo cumprimento da respectiva cominação legal apenas a ele lhe cabe nos termos do artigo 11º, nº1 do CPenal – poder ser responsabilizado civilmente, sendo que nestas circunstâncias poderá transferir para um terceiro, a seguradora, a sua responsabilidade civil: não é a infracção que está coberta pelo seguro, mas a eventual responsabilidade civil dela decorrente” (negritos nossos).
Temos, pois, que o que é proibido é a transferência para a seguradora do sacrifício imposto pela sanção penal, contraordenacional ou disciplinar. Os efeitos civis eventualmente associados à conduta proibida poderão ser garantidos por contrato de seguro, ressalvadas, como estipulado no n.º 1 do art.º 14.º do RJCS, as “regras gerais sobre licitude do conteúdo negocial”.
Também nas Relações se encontra jurisprudência neste sentido: cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 03.10.2017, processo n.º 748/15.5T8OER.L1-7 e o acórdão da Relação de Guimarães de 04.3.2021, processo n.º 5924/19.9T8GMR.G1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
É certo que à luz da lei pretérita e num contexto não inteiramente coincidente com o destes autos, se encontram arestos que consideraram contrários à ordem pública os contratos de seguro que garantissem o risco adveniente da atividade de condução de veículo em estado de embriaguez, concluindo que não deveriam ser objeto de cobertura os riscos devidos a ação da pessoa segura influenciada pelo álcool. Com este fundamento essas decisões consideraram irrelevante a falta de comunicação ou explicação aos segurados de cláusula contratual geral que excluísse a garantia do seguro no caso de danos sofridos pela pessoa segura quando esta se encontrava sob a influência do álcool. Segundo tal jurisprudência, essas cláusulas de exclusão sempre valeriam, independentemente da sua comunicação ao aderente, por estarem em consonância com normas legais prescritivas e de ordem pública definidas pelo direito positivo português.
São exemplos desta jurisprudência o acórdão do STJ de 14.12.2004, publicado na Col. de Jurisp., STJ, ano XII, tomo 3, p. 146 e o acórdão do STJ de 15.01.2008, processo n.º 07A4318, publicado em www.dgsi.pt.
Veja-se o seguinte extrato do sumário do primeiro acórdão citado:
“I - Proibindo a lei a condução sob influência do álcool (nos termos previstos no Código da Estrada), por óbvias razões de segurança rodoviária e por isso de ordem pública, a unidade do sistema jurídico impõe que as seguradoras possam legitimamente excluir, no âmbito do seguro facultativo, o dever de pagar o capital seguro quando se trate de uma tal condução do segurado contrária à lei.
II - Uma cláusula contratual constante das Condições Gerais do contrato que assim disponha encontra-se em sintonia com as normas legais prescritivas e de ordem pública do direito português, pelo que não tem que ser comunicada ao segurado, nem este tem que ser informado de aspectos cuja aclaração se justifique nos termos do regime geral das cláusulas contratuais gerais do DL 446/85, visto que se trata apenas de cumprir a lei, a qual, além de obrigatória, se presume de conhecimento universal”.
Não se trata de jurisprudência unânime, como resulta do acórdão do STJ datado de 31.5.2011, processo n.º 684/08.1TVLSB.L1.S1. (sumário publicado em www.dgsi.pt). Nas respetivas conclusões consta o seguinte:
“I - A falta de comunicação e informação da pessoa segura sobre o teor de cláusulas contidas em contrato de adesão conduz a que se devam considerar excluídas dos contratos de seguro a que se reportam, reduzindo-se, em conformidade, o respectivo âmbito contratual.
II - A obrigatoriedade de comunicação e informação não é afastada, ainda que as cláusulas contendam com uma norma legal prescritiva e de ordem pública, relacionada com a condução de veículo em estado de embriaguez, por não fazer parte do quadro de situações que o regime das cláusulas contratuais excluiu.
III - Não se trata de cláusulas contrárias à ordem pública, nem em tal se transformaram, pelo facto de a seguradora, por ter infringido o dever da sua comunicação e informação ao segurado, deixar de beneficiar da correspondente exclusão de cobertura.
IV - Aos beneficiários terceiros inocentes do contrato de seguro de vida e do contrato de acidentes pessoais não são oponíveis as causas puramente pessoais do segurado, não podendo ser penalizados com a prática de um crime não cometido, dolosamente, pelo mesmo, com o propósito de causar o dano da sua morte, como acontece com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, de que sobrevenha a morte daquele, para a qual o beneficiário em nada contribuiu”.
No caso destes autos, decidida que está a exclusão, por falta de comunicação, da aludida cláusula contratual geral, ficamos isentos da supra ponderação das razões de ordem pública alegadamente justificativas da manutenção da aludida cláusula no programa contratual do seguro sub judice. De todo o modo, o já acima exarado permite concluir que a exclusão da aludida cláusula terá como efeito a responsabilização da seguradora nos termos do seguro celebrado, verificados que sejam os restantes requisitos contratuais, em decorrência da incapacidade emergente, para a pessoa segura, do sinistro padecido, pese embora a natureza contraordenacional do comportamento que o ocasionou (sendo certo que o A. foi absolvido da acusação criminal que contra ele havia sido deduzida – cfr. n.ºs 40 e 41 dos factos provados).
Nesta parte, pois, a revista é improcedente.
4. Terceira questão (causação dolosa do sinistro)
Na revista a recorrente enxertou um segmento que reza assim:
“Por outra via, o Autor bem sabendo que se encontrava sob o efeito de álcool e estupefacientes que havia consumido – o que não podia desconhecer por ser facto próprio – e que não poderia conduzir sob o efeito de álcool e estupefacientes, sendo tal conduta proibida e punida por lei, quis ainda assim conduzir, termos em que a sua atuação tem uma dimensão dolosa, que sempre e em última instância encontra acolhimento no disposto no artigo 46.º do RJCS:
“Salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, assim como Convenção em contrário não ofensiva da ordem pública quando a natureza da cobertura o permita, o segurador não é obrigado a efetuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado”
Termos em que por via da aplicabilidade do disposto no Regime Juridico do Contrato de Seguro, sempre a responsabilidade da Seguradora se encontraria excluída das coberturas da apólice, cabendo por isso aqui a sua necessária absolvição, o que deverá ser julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça”.
Ora, a invocação da causação dolosa do sinistro por parte do A., para que a seguradora se exima da efetuação da prestação convencionada, ao abrigo do disposto no art.º 46.º do RJCS, constitui questão nova, porquanto não foi suscitada anteriormente no processo. Trata-se de matéria que, constituindo motivo impeditivo do efeito jurídico peticionado pelo A., deveria ter sido articulada na contestação (cfr. artigos 576.º n.º 3 e 573.º n.º 1 do CPC). Não tendo a R. satisfeito esse ónus, precludida ficou a faculdade de ora o fazer. Acresce que, como é sabido, ressalvadas matérias que sejam de conhecimento oficioso, no nosso sistema recursal o tribunal ad quem apenas aprecia questões que tenham sido apresentadas perante o tribunal a quo e que tenham feito parte do objeto da decisão recorrida (cfr. artigos 627.º n.º 1, 635.º n.ºs 2 e 4, 608.º n.º 2 do CPC; na jurisprudência, v.g., acórdãos do STJ de 08.10.2020 – Ilídio Sacarrão Martins -, 18.3.2021 – Oliveira Abreu -, 23.02.2021 – José Raínho – e 15.12.2023 – Maria da Graça Trigo). De todo o modo, se se admitisse que apenas se está perante uma questão de identificação de normas jurídicas pertinentemente aplicáveis aos factos alegados e provados, no que o tribunal é soberano (art.º 5.º n.º 3 do CPC), sempre se diria que do factualismo provado não resulta minimamente que o A. pautou a sua conduta por um intuito doloso, isto é, que ao proceder à condução do motociclo nos termos provados tivesse, no mínimo, previsto a possibilidade de sofrer um acidente e causar a si próprio uma incapacidade total e permanente, com isso se conformando. De resto, como se disse, tal factualismo não foi sequer, alegado.
Nesta parte, pois, se reitera a declaração de improcedência da revista.
5. Quarta questão (aplicação incorreta, pelo tribunal recorrido, das cláusulas contratuais do seguro atinentes à invalidez necessária para o acionamento do seguro)
A causa de pedir desta ação radica num contrato de seguro.
O contrato de seguro pode ser descrito como “o contrato pelo qual uma pessoa singular ou coletiva (tomador do seguro) transfere para uma empresa especialmente habilitada (segurador) um determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se a primeira a pagar uma determinada contrapartida (prémio) e a última a efetuar uma determinada prestação pecuniária em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro)” (Engrácia Antunes, O contrato de seguro na LCS 2008, in ROA, vol. 69, 2009, p. 821).
O contrato celebrado entre as partes nestes autos configura um contrato de seguro de pessoas na modalidade do “ramo vida” (cfr. artigos 175.º n.º 1 e 183.º do RJCS) que tem por objeto a cobertura do risco de morte ou invalidez, associado a dois contratos de mútuo bancário (mútuo com hipoteca), garantindo ao banco mutuante (beneficiário) o capital que estiver em dívida à data em que se verifiquem tais eventos – morte ou invalidez do ora A. (a pessoa segura).
Nos certificados de seguro juntos aos autos o banco interveniente figura como tomador do seguro, sendo o A. a pessoa segura e “entidade pagadora” do prémio.
Mas deu-se como provada a celebração dos contratos de seguro entre a seguradora e o A. (cfr. n.º 14 dos factos provados), embora na sequência de obrigação contratualmente assumida perante o banco mutuante (mesmo n.º 14 e n.ºs 6 e 12 dos factos provados), de que o banco seria o beneficiário (n.º 21 dos factos provados), tendo as propostas de seguro sido subscritas pelo A. ao balcão do banco (n.º 8 dos factos provados).
Tratar-se-á, in casu, de um seguro de grupo (cfr. art.º 76.º do RJCS) em sentido lato ou impróprio, em que o tomador do seguro (o banco) se limita a enquadrar a celebração futura de uma pluralidade de contratos de seguro individuais pelos próprios segurados (cfr. a síntese de Engrácia Antunes, estudo acima citado, p. 828, nota 33). Na relação contratual assim estabelecida, qualificável de seguro de grupo contributivo (cfr. art.º 77.º do RJCS) estão três sujeitos ligados entre si por um vínculo representável por uma linha horizontal em que o sujeito posicionado no meio (o tomador do seguro) é um mero catalisador e os sujeitos posicionados nas pontas é que são as verdadeiras partes (cfr. acórdão do STJ, de 27.5.2021, processo n.º 935/18.4T8CBR.S1, citando Margarida Lima Rego, Contrato de seguro e terceiros – Estudo de direito civil, Dissertação para doutoramento em direito privado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2008, pp. 638 e seguintes e a mesma autora, in Temas de direito dos seguros. A propósito da nova lei do contrato de seguro, Coimbra, Almedina, 2012, p. 325).
Tratando-se, como sucede em regra, de um contrato de adesão, na medida em que integra cláusulas contratuais gerais elaboradas prévia e unilateralmente pelos seguradores e que os tomadores dos seguros (ou os segurados, como no caso destes autos) se limitam a aderir ou rejeitar em bloco a esse conjunto de cláusulas padronizadas, aplica-se-lhe o regime do Dec.-Lei n.º 446/85, de 25.10 (LCCG).
No art.º 10.º da LCCG dispõe-se que “as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”.
Nessa tarefa interpretativa ter-se-á como ponto de partida o disposto nos artigos 236.º, 237.º e 238.º do Código Civil: a declaração negocial valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; tratando-se de um negócio formal (no sentido de que, pese embora o princípio da simples consensualidade quanto à validade da sua formação, ser obrigatória a redução a escrito, por meio da apólice, do conteúdo do acordado entre as partes) não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade); tratando-se de um contrato oneroso, prevalece o sentido da declaração que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Por outro lado, deverá levar-se em consideração a teleologia do contrato, isto é, a conexão existente entre o seguro e o mútuo que visa garantir. Conforme se ponderou no acórdão do STJ, de 27.02.2020, processo n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2, “[q]uando estamos perante seguros de vida associados à contratação de crédito bancário (habitualmente impostos a favor do credor mutuante como condição da concessão do crédito), as cláusulas que definem a cobertura de invalidez devem ser interpretadas de acordo com uma adequada ponderação entre o risco do segurado e o compromisso do segurador, de maneira que tal resulte em equilíbrio de prestação das partes contratantes tendo como azimute o interesse do seguro (enquanto elemento essencial do contrato), estando esse ancorado na titularidade do segurado nos termos do art. 43º do RJCS. Na verdade, sendo esse – em primeira linha e sem prejuízo de o tomador do seguro optar por outras modalidades, coberturas, riscos e beneficiários a propósito do seguro conexo com o financiamento – o pagamento do crédito ao banco (tipicamente como primeiro beneficiário do seguro em face do capital coberto e do prazo do contrato de crédito) quando o segurado já não o possa razoavelmente fazer como o terá feito até ao sinistro, por perda da sua capacidade de obtenção de rendimento, a densificação das suas coberturas tem necessariamente que ser empreendida de acordo com esse horizonte teleológico, naturalmente ancorado na expectativa legítima do segurado com a celebração desse seguro. Em síntese, garantir a alteração de vida profissional que constitui causa para não se dispor da mesma condição remuneratória com que se contava para o pagamento dos créditos obtidos” (negritos nossos).
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ de 10.02.2022, processo n.º 1681/18.4T8VFR.P1.S1, em cujo sumário se pondera, em síntese, que “[u]ma cláusula de um contrato de seguro que se destina a cobrir situações de incapacidade que podem afetar segurados com diversos níveis de instrução, com diversas profissões ou com diversas aptidões não pode ser interpretada de forma puramente literal, antes deve ser adaptada a cada concreta situação, sempre sob a perspetiva de um declaratário normal, nos termos dos arts. 236º e 238º do CC e em função das regras da boa fé”.
Concretizando, ponderou-se, no acórdão do STJ de 27.02.2020 acima citado, que “[m]obilizando-se a cobertura em caso de invalidez permanente ou definitiva (independentemente da formulação contratual usada), parece ser de sustentar que a exigibilidade de verificação cumulativa de um elenco de pressupostos exigentes e apertados– nomeadamente, somando a um elevado grau de incapacidade, a insusceptibilidade completa e definitiva para o exercício habitual da profissão ou de qualquer outra profissão e a necessidade da assistência de uma terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária – traduz-se em limitação objectivamente excessiva (senão mesmo, em determinados casos, inviabilização prática) da cobertura do seguro, com a consequente frustração do equilíbrio prestacional entre segurado e segurador inerente ao interesse contratualmente visado. Estaríamos a ser de tal modo restritivos na definição da invalidade permanente ou definitiva, relevante para a delimitação do risco segurado, que tal cobertura “só funcionará quando o segurado se encontrar em estado de ‘praticamente defunto’”. Em suma, aplicando o princípio da utilidade do seguro, “não podemos aceitar que se preencha, para efeitos de cobertura contratual, o conceito de invalidez permanente num complexo de pressupostos de accionamento que tornem excluída a cobertura convencionada e, por essa via, frustrem o interesse do segurado e a teleologia do contrato de seguro” (citado acórdão do STJ, de 27.02.2020).
Exposto este quadro de ideias, vejamos o que se provou no caso concreto.
Provou-se que “[e]m ambos os contratos de seguro figura como pessoa segura o autor, estando garantidos os riscos morte e invalidez total e permanente” (n.º 20 dos factos provados).
Mais se provou que “nesses dois contratos de seguro figurava como beneficiário irrevogável a instituição bancária BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. (n.º 21 dos factos provados).
Quanto ao teor da cláusula atinente ao risco seguro (n.º 23 dos factos provados), a recorrente evidenciou-o pela forma que aqui se transcreve (incluindo negritos):
“Nos termos do contrato de seguro “a pessoa segura encontra-se na situação de invalidez total e permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma atividade remunerada, com fundamento em sintomas objetivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda de uso dos membros superiores ou inferiores em consequência da paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e todo e qualquer lesão por desastre ou agressão em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na tabela nacional de incapacidades, ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo igual a 100%” – cf. Definição prevista no Contrato de Seguro em discussão nos presentes autos.”
No n.º 36 dos factos provados a primeira instância consignou o seguinte:
“Mostra-se emitido um atestado de avaliação da incapacidade, por junta médica presidida pelo Dr. GG, datado de 9 de Novembro de 2017, atribuindo ao autor uma incapacidade de 73%, com carácter permanente desde 2014.”
Por sua vez a Relação aditou aos factos provados um n.º 47, com a seguinte redação:
“Em consequência do acidente e de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, o autor está afectado de uma incapacidade parcial permanente de 93,303% e de uma incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual, encontrando-se dependente da ajuda de terceira pessoa”.
Dando-se como provado, à luz de uma tabela especificamente desenhada para a avaliação da incapacidade de ganho pelo exercício de atividade laboral (Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças profissionais, aprovada pelo Dec.-Lei n.º 352/2007, de 23.10), que em consequência do acidente objeto dos autos o autor está afetado de uma incapacidade parcial permanente de 93,303% e de uma incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual, encontrando-se dependente da ajuda de terceira pessoa, demonstrada está, à saciedade, a invalidez total e permanente que constitui o risco garantido pela R. seguradora face ao banco mutuante e ao segurado mutuário.
Conforme provado no n.º 28 dos factos provados, à data do sinistro o A. estava ao serviço da sociedade comercial “G..., LDA., exercendo a atividade profissional de assistente de venda de alimentos ao balcão. Trata-se de uma atividade relativamente indiferenciada. Se para ela o A. está absoluta e definitivamente incapacitado, não vemos que alternativas se perspetivam, noutras áreas, quando, à luz da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, se atribuiu ao sinistrado uma incapacidade parcial permanente de 93,303%.
É certo que a recorrente, sem o dizer expressamente, questiona o dado como provado sob o n.º 47.
Com efeito, a dado passo da revista a recorrente afirma o seguinte:
“O atestado multiusos não tem como objetivo a avaliação da capacidade ou incapacidade do sujeito para desempenhar a sua atividade profissional – cf. Atestado Médico de Incapacidade Multiuso (sns24.gov.pt) – pelo que não é documento idóneo a comprovar que o Autor (ou outrem que seja ali visado) se encontra impedido/incapaz de prosseguir atividade lucrativa.
Este tipo de documento só atesta – e somente pode atestar – o grau de incapacidade atribuído em face dos quocientes de desvalorização que estão estabelecidos na Tabela Nacional de Incapacidades, para a obtenção de benefícios fiscais.
Neste mesmo sentido veja-se o próprio Decreto-Lei n.º 202/96 de 23 de outubro que estabeleceu o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência [através de atestado médico de incapacidade multiusos] para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei, como são: benefícios fiscais, isenção de taxas moderadoras, atendimento prioritário, isenção de imposto automóvel, proteção e apoios sociais, bolsas de estudo, etc…
(…)
O atestado multiusos não é apto a demonstrar o grau de incapacidade (o que ali está assinalado) para o trabalho ou para qualquer outra atividade geradora de rendimento.
Para o efeito, sempre teria o Autor que ter requerido eventualmente (i) a realização de uma perícia e (ii) junção de documentação que sustentasse e comprovasse o estado de reforma por invalidez absoluta.
Ora,
Nos presentes autos mal andou o Tribunal a quo quando decidiu que – com base no facto provado n.º 36 e naquele atestado multiusos – ficava assente que o Autor, em 09.11.2017, padecia de uma incapacidade definitiva superior a 66,6% e que esta incapacidade se traduzia na impossibilidade de exercer atividade lucrativa”.
Vejamos.
Como é sabido, em regra o STJ não interfere na fixação da matéria de facto.
Na Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.8) anuncia-se que “[f]ora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito” (art.º 46.º).
Com efeito, estipula o n.º 3 do art.º 674.º do CPC que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
Em consonância, no julgamento da revista o STJ aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado “[a]os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido” (n.º 1 do art.º 682.º do CPC) e, reitera o n.º 2 do art.º 682.º, “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.
À Relação, como tribunal de segunda instância e em caso de impugnação da matéria de facto, caberá formular o seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados, de acordo com as provas produzidas constantes nos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do disposto nos artigos 663.º n.º 2 e 607.º n.ºs 4 e 5 do CPC.
Nos termos do disposto no n.º 662.º n.º 4 do CPC, das decisões da Relação tomadas em sede de modificabilidade da decisão de primeira instância sobre matéria de facto não cabe recurso ordinário de revista para o STJ.
O STJ apenas interferirá nesse juízo se tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova para a prova de determinados factos, ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada, de determinados factos, assim como quando, no uso de presunções judiciais, a Relação tenha ofendido norma legal, o seu juízo padeça de evidente ilogicidade ou assente em factos não provados (neste sentido, cfr., v.g., acórdãos do STJ de 08.11.2022, proc. nº. 5396/18.5T8STB-A.E1.S1, 30.11.2021, proc. n.º 212/15.2T8BRG-B.G1.S1 e de 14.07.2021, proc. 1333/14.4TBALM.L2.S1).
Vejamos como a Relação fundamentou, neste segmento, a sua convicção:
“D) Na petição inicial, o autor alegou ter sofrido um acidente de viação, concomitantemente considerado um acidente de trabalho (artigo 24º). Mais disse que a consolidação médico-legal das lesões sofridas ocorreu em 10.12.15, que ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial/deficit funcional permanente de integridade físico-psíquica de 90,46%, que não pode exercer qualquer actividade laboral e que necessita do auxílio permanente de terceira pessoa (artigos 27º, 29º, 30º e 32º).
Juntou: - o documento de fls. 73-74, que dá conta de que, em 8.9.16, no âmbito dos autos de acidente de trabalho em que o acidente desta acção se traduziu, o Perito Médico do Tribunal havia atribuído ao autor uma incapacidade parcial permanente de 57,5825%;
- o documento a que alude o ponto 34. dos factos provados;
- o documento a que alude o ponto 35. dos factos provados, sendo que a incapacidade de 60% aí referida foi atribuída de acordo com a TNI – Anexo 1, aprovada pelo DL 352/2007, de 23.10 (vd. documento de fls. 321);
- o documento a que alude o ponto 36. dos factos provados, com incapacidade atribuída nos termos da mesma tabela (vd. documento de fls. 72);
- o documento a que alude o ponto 27. dos factos provados, em que a incapacidade é igualmente aferida em conformidade com a já indicada tabela.
Pese embora impugnasse a factualidade alegada, a ré nada disse sobre os documentos apresentados.
A 1ª instância entendeu que, tendo em conta os diferentes graus de incapacidade atribuídos ao autor e na ausência de prova pericial ou documento idóneo, não havia como dar por provada a alegação do autor.
É certo que nenhum documento permitia alicerçar um grau de incapacidade do autor superior a 66,6%, de acordo com a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, que constitui o Anexo II ao DL 352/2007, de 23.10, como consta da alínea e) dos factos não provados.
Sucede que não é essa a Tabela relevante para o caso em análise.
Nos termos dos contratos de seguro em causa, vem referida, simplesmente, a TNI (ponto 23. dos factos provados). À data em que tal cláusula foi elaborada – Janeiro de 2006 – apenas existia uma Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 341/93, de 30.9, que tinha “por objectivo fornecer as bases de avaliação do prejuízo funcional sofrido em consequência de acidente de trabalho e doença profissional, com perda da capacidade de ganho” (nº 1 das respectivas instruções gerais).
Não podia, pois, deixar de ser essa a tabela para a qual os contratos de seguro remetiam.
Com o já citado DL 352/2007, passaram a estar consagradas duas tabelas nacionais de incapacidades, sendo uma para os acidentes de trabalho e doenças profissionais (respectivo Anexo I) e outra para as incapacidades permanentes em direito civil (respectivo Anexo II). Ora, tendo em conta que a realidade que releva para a cláusula em apreço é a “capacidade de trabalho” e “de exercer uma atividade remunerada”, entendemos que a Tabela de acordo com a qual se deve aferir a incapacidade do autor no âmbito dos contratos de seguro em questão é a primeira.
E, assim, não vemos como considerar insuficiente o documento a que alude o ponto 36. dos factos provados, revelador de uma incapacidade superior a 66,6% atribuída por um organismo oficial de acordo com a Tabela relevante (o que a testemunha II, médico que presta serviços à ré, em regime de avença, há mais de 20 anos, aceitou).
Acresce que, em 5.11.20, no âmbito dos autos de acidente de trabalho em que o acidente de viação destes autos se consubstanciou, pelo Serviço de Clínica e Patologia Forenses do Gabinete Médico-Legal e Forense ... foi elaborado Relatório Pericial de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho (corrigido em 14.1.21), que concluiu que o autor padecia de uma incapacidade permanente parcial de 93,303%, de uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual e dependia de ajuda de terceira pessoa (documento de fls. 504v-508 e 510-511, junto com as alegações de recurso). Tendo em conta a idoneidade e independência do serviço que levou a cabo a perícia para os autos de acidente de trabalho e sendo certo que a apelada nada disse quanto a tais documentos, não vemos como recusar as respectivas virtualidades probatórias”.
Não vislumbramos que o juízo probatório assim formulado pela Relação esteja em desconformidade com preceitos legais imperativos no que concerne ao assim dado como provado. Trata-se de matéria de facto não sujeita a prova vinculada. A Relação assentou a sua convicção na análise de prova documental emitida por médicos, no exercício das suas habilitações específicas, o que consubstancia prova documental contendo juízo pericial, sujeita a livre apreciação (artigos 362.º, 388.º e 389.º do Código Civil).
Entre essa prova documental avultou o atestado de avaliação de incapacidade emitido em 09.11.2017 por junta médica ao abrigo do disposto no Dec.-Lei n.º 202/96, de 23.10 (com as alterações publicitadas). O aludido diploma estabeleceu, como enunciado no art.º 1.º, o regime de avaliação das incapacidades das pessoas com deficiência, “para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua plena participação na comunidade”. Efetuado o exame pela junta médica, ao respetivo presidente cabe a emissão de atestado médico de incapacidade (art.º 4.º). A partir da alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 174/97, de 19.7, e tendo em vista “simplificar a vida aos cidadãos, designadamente àqueles que se encontram numa posição de maior vulnerabilidade social”, passou a prever-se “adopção de atestados de incapacidade multiuso, sempre que tal seja possível, evitando-se a necessidade de serem requeridos tantos atestados quantos os benefícios a que se pretende aceder” (preâmbulo do Dec.-Lei n.º 174/97). Assim, o n.º 6 do art.º 4.º do diploma passou a ter a seguinte redação: “Os atestados de incapacidade podem ser utilizados para todos os fins legalmente previstos, adquirindo uma função multiuso, devendo todas as entidades públicas ou privadas, perante quem sejam exibidos, devolvê-los aos interessados ou seus representantes após anotação em conformidade com o original, aposta em fotocópia simples.” A avaliação de incapacidade era calculada com base na Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Dec.-Lei n.º 341/93, de 30.9 e posteriormente passou a ser efetuada com base na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 25.10 (alteração ao art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 202/96 introduzida pelo Dec.-Lei n.º 291/2009, de 12.10).
O atestado junto aos autos tem o conteúdo indicado no n.º 36 dos factos provados (fls 72 do processo em papel). É certo que, conforme afirma a recorrente, nele consta que a dita incapacidade é “suscetível de avaliação futura, devendo ser reavaliado no ano de 2022”. Porém, tal não abala o caráter permanente da incapacidade, afirmado no atestado, sendo certo que a reavaliação permitiria atestar o eventual agravamento da incapacidade. Aliás, como se refere no acórdão recorrido, após a realização da aludida junta médica o A. foi avaliado no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho atinente ao sinistro objeto destes autos, tendo-se aí concluído (por relatório datado de 05.11.2020 e retificado em 14.01.2021) que o A. padecia de uma incapacidade permanente parcial de 93,303%, de uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual e dependia de ajuda de terceira pessoa (fls 505 a 508 e fls 511 dos autos em papel, sendo que a fls 511 se dá nota de que o relatório pericial enfermava de lapso, sendo a IPP não de 62,2022%, mas sim de 93,303%).
A documentação em causa, que aquando da sua junção aos autos não foi, conforme verificado pela Relação, questionada pelas contrapartes quanto à sua forma, conteúdo e valor probatório, é apta a sustentar o factualismo dado como provado pela Relação – tanto mais que o valor probatório do atestado multiusos foi, segundo a Relação, corroborado na audiência final pela testemunha II, “médico que presta serviços à ré, em regime de avença, há mais de 20 anos” (citação do acórdão).
No sentido de que o atestado médico de incapacidade multiusos pode fundar a prova de incapacidade permanente global desde o ano nele indicado, sem que tal fira disposição legal que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova, veja-se o acórdão do STJ, de 12.10.2017, processo n.º 19505/15.2T8LSB.L1.S1.
Nesta parte, pois, também soçobra a revista.
Por último, a recorrente defende que, a considerar-se que o A. preenche os critérios de acionamento das coberturas da apólice em questão, a data que releva para o efeito de eventual condenação deverá ser a de 14.01.2021 (data em que – na tese da recorrente - o relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito do trabalho fixou o grau de incapacidade do A. em 93,303%).
Vejamos.
Conforme se aduziu acima, o relatório pericial emitido em sede de processo laboral data de 05.11.2020. Foi retificado em 14.01.2021, tendo ficado esclarecido que ocorrera um lapso na atribuição de uma IPP de 62,2022%, quando esta deveria ser calculada, isso sim, em 93,303%. A data do cálculo da IPP em sede laboral é, pois, de 05.11.2020.
Quanto ao momento a partir da qual se manifestou a incapacidade permanente relevante para o acionamento do seguro, a Relação exarou o seguinte:
“A sentença negou as pretensões do autor, porquanto considerou que o mesmo não lograra demonstrar encontrar-se na situação de invalidez contratualmente prevista (pontos 20. e 23. dos factos provados).
Mas, como dissemos em I-D), em 9.11.17, já a situação do autor se subsumia à noção contratual de invalidez permanente (vd. ponto 36. dos factos provados). E tal situação agravou-se, como resulta do ponto 47. dos factos provados.
Sendo certo que o sinistro corresponde à verificação do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato (artigo 99º da LCS), há que considerar como data do sinistro do presente caso o dia 9.11.17. Só nessa data se constituiu, assim, o direito do autor – e do interveniente - a haver da ré o capital objecto dos seguros (pontos 14. a 21. dos factos provados e artigos 3º, 3.1 e 3.2 das condições gerais e 2º das condições especiais dos contratos)” (negrito nosso).
Do exposto resulta que a Relação considerou que pelo menos desde 09.11.2017 que o A. padece de incapacidade permanente não inferior a 73%, aferida à luz da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais. Essa data corresponde à da emissão do atestado de incapacidade emitido pela junta médica referida no n.º 36 dos factos provados.
Não se vê, também aqui, que o juízo da Relação mereça censura por parte deste STJ, à luz das regras supra expostas.
Nos termos contratualizados o grau de desvalorização, calculado com base na Tabela Nacional de Incapacidades (correspondente, in casu, à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais) superior a 66,6%, “para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo igual a 100%” (n.º 23 dos factos provados).
Dúvidas não existem, pois (e, se existissem, vejam-se os critérios de interpretação do contrato supra expostos), que o A. padece de invalidez total e permanente, emergente de acontecimento fortuito, subsumível ao risco contratualizado entre o A., o banco interveniente e a R. seguradora, pelo menos desde 09.11.2017, devendo consequentemente a seguradora ser condenada a cumprir o contrato (art.º 406.º n.º 1 do Código Civil), como o foi pela Relação.
Pelo que a revista improcede na totalidade.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, consequentemente, mantém-se o acórdão recorrido.
As custas da revista, na componente de custas de parte, serão a cargo da recorrente, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).
Lx, 20.6.2023
Jorge Leal (Relator)
Maria Clara Sottomayor
Pedro de Lima Gonçalves