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CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CRIME CONTINUADO
Sumário
I - A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido a resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a atuação não obedecer à mesma resolução criminosa, mas as várias resoluções criminosas estiverem interligadas por um fator externo que arrasta o agente para a reiteração de condutas; e c) um concurso de infrações, se não se verificar qualquer dos casos anteriores. II - Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuadamente diminuída, que só é possível formular um único juízo de censura e não vários; a diminuição considerável da culpa do agente deve radicar numa situação exterior que facilite ao agente a prática dos atos delituosos e o impele à sua reiteração. III – Nos termos do disposto no artigo 79.º, n.º 2, do Código Penal, “se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior”; sendo conhecida uma conduta menos grave ou de idêntica gravidade que integre a continuação, tal importará a manutenção da pena anterior. IV – Foi assim consagrada a tese de que a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a pertença do facto novo à continuação criminosa anteriormente julgada. V - Na lógica do preceito estão manifestamente em causa não só as situações em que a conduta julgada tenha sido plural, como as situações em que a conduta julgada anteriormente seja singular e por consequência se não tenha equacionado a figura jurídica do crime continuado. VI – No caso vertente, o quadro de solicitação exterior em cada uma das situações em causa é completamente diverso (no processo anterior, a crise financeira da empresa, no presente processo, o facto de a empresa não ter sido sujeita a inspeção, o que levou o arguido a convencer-se de que a atuação que vinha levando a cabo estava a ser bem sucedida), o que necessariamente leva a concluir que, não havendo identidade quanto ao quadro de solicitação externa ao abrigo do qual se desenrolaram ambas as condutas, não é possível falar numa situação de continuidade criminosa, determinante de um juízo de menor gravidade de culpa, que englobe todo o período em causa nos dois processos.
Texto Integral
Processo nº 2837/19.8T9AVR.P1
1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do porto
I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Aveiro - Juiz 2, Comarca de Aveiro, com o nº 2837/19.8T9AVR, foram submetidos a julgamento os arguidos A..., Lda. e AA, tendo a final sido proferida sentença que condenou os arguidos:
- AA, pela prática, entre março de 2016 e dezembro de 2016, como autor material e em concurso real, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.ºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 4 e 7 (aplicável ex vi do artigo 107.º, n.º 2), do RGIT e em novembro de 2019 e em janeiro de 2021 de dois crimes de abuso de confiança fiscal previstos e punidos pelos arts. 105º, nºs 1, 2 do RGIT, nos termos dos arts. 7º, 12º, n.ºs 2 e 3, 15º, 16º e 17º, todos do RGIT, na pena única de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão, em cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:
- 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social;
- 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, cometido em outubro de 2019;
- 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, cometido em janeiro de 2021.
Aquela pena única de prisão foi suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, subordinada ao pagamento da quantia mensal de 120,00€, ao longo de todo o período da suspensão, até perfazer o valor das quotizações e prestações tributárias em dívida, sendo 40,00€ a entregar à Autoridade Tributária e Aduaneira e 80,00€ a entregar ao Instituto da Segurança Social, I.P., devendo o arguido comprovar nos autos, trimestralmente, o pagamento das referidas quantias e, se e quando lograr efetuar o pagamento total das quantias devidas à Autoridade Tributária, deverá afetar o pagamento do montante de 40,00€ ao Instituto da Segurança Social, I.P..
- A..., LDA. pela prática, entre março de 2016 e dezembro de 2016, em autoria material e em concurso real, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.ºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 4 e 7 (aplicável ex vi artigo 107.º, n.º 2) do RGIT, e em novembro de 2019 e em janeiro de 2021 de dois crimes de abuso de confiança fiscal, previstos e punidos pelos arts. 105º, nºs 1, 2 do RGIT, nos termos dos arts.7º, 12º, n.ºs 2 e 3, 15º, 16º e 17º, todos do RGIT, na pena única de 410 (quatrocentos e dez) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), em cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:
- 360 (trezentos e sessenta) dias de multa pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada;
- 300 (trezentos) dias de multa pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, cometido em outubro de 2019;
- 300 (trezentos) dias de multa pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, cometido em janeiro de 2021.
Inconformado com a sentença condenatória, veio o arguido AA interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O douto Tribunal a quo condenou o recorrente, pela prática, entre março de 2016 e dezembro de 2016, como autor material e em concurso real, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artºs. 107º nºs 1 e 2, 105º nºs 4 e 7 (aplicável ex vi do artº 107º nº 2) do RGIT e em novembro de 2019 e em janeiro de 2021 de dois crimes de abuso de confiança fiscal previstos e punidos pelos artºs. 105º nºs 1 e 2 do RGIT, nos termos do cominado nos artºs. 7º, 12º, nºs 2 e 3 , 15º, 16º e 17º todos do RGIT, na pena única de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão, em cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares: 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social; 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, cometido em outubro de 2019; 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de abuso de confiança fiscal cometido em janeiro de 2021.
2. Parte das condutas em análise nos presentes autos, designadamente aquelas referentes ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, é uma continuação da conduta que esteve em apreço no âmbito do processo nº 1019/18.0T9AVR, que correu termos no Juízo Local Criminal, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, no qual o arguido foi condenado - por sentença transitada em julgado - pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social agravado, praticado na forma continuada p. e p. pelas normas dos artºs. 107º nº 1 e 2, 105º nºs. 1, 4 e 5 ambos do RGIT aprovado pelo artº 1º da Lei nº 15/2001 de 05.06 e artºs. 30º nº 2 e 79º nº 1 do CP na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa por 1 (um) ano, com a condição de, no prazo de um ano pagar a quantia de 5000,00, por ter deduzido das remunerações dos seus trabalhadores, membros dos órgãos estatutários e pensionistas por velhice as quantias correspondentes às cotizações devidas por estes à Segurança Social, reteve-as e não as entregou nos cofres desta entidade até ao décimo quinto dia do mês imediatamente seguinte àquele a que respeitavam, fazendo-as suas, por referência aos meses compreendidos entre 1 abril de 2012 e o dia 31 de dezembro de 2014 e entre 1 de abril de 2015 e o dia 31 de janeiro de 2016.
3. Os presentes autos versam sobre a exata mesma conduta, nos meses imediatamente seguintes, designadamente entre março de 2016 e dezembro de 2016.
4. O que se discute nos presentes autos e no mencionado processo nº 1019/18.0T9AVR é, essencialmente, o mesmo crime continuado, pois que foi a mesma situação exterior, nomeadamente as dificuldades financeiras vivenciadas pela sociedade arguida, que levou a que o recorrente tenha sido constantemente confrontado com a escolha de entregar as retenções aos cofres do Estado atempadamente, ou usar os mesmos para manter a atividade da sociedade, não se ver forçado a encerrá-la e a não colocar as famílias dos seus trabalhadores em causa e pagar os seus salários.
5. Ao decidir que as mencionadas condutas se não encontram numa relação de continuidade, não obstante se verificarem todos os pressupostos para tal, nomeadamente, o bem jurídico seja essencialmente o mesmo, que haja homogeneidade na execução das ações, a existência de situação exterior que reduza a culpa do agente, violou o douto tribunal a quo do disposto no artº 30º nº 2 do CP.
6. A conduta pela qual o recorrente foi condenado nos presentes autos é menos gravosa (por referência à moldura abstrata) do que a que foi julgada no âmbito do processo nº 1019/18.0T9AVR, tendo o recorrente em tais autos sido condenado na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa por 1 (um) ano com a condição de no prazo de um ano a pagar a quantia de 5000,00€.
7. Deve manter-se a pena ali aplicada ao arguido, sem mais qualquer aplicação de pena no presente processo, por força do disposto no artº 79º nº 2 do CP (a contrario).
8. A decisão recorrida, no segmento que se refere ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social concerne, viola assim não só o disposto no artº 30º nº 2 do CP, mas também, e consequentemente, também o disposto no artº 79º nº 2 do CP (a contrario), bem como o disposto no artº 29º nº 5 da CRP, pelos motivos supra aduzidos.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que o mesmo
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: [transcrição]
1. A arguida “A..., Lda.” é uma sociedade por quotas, com sede na Zona Industrial ..., ..., Lote ..., em ..., Aveiro, com o N.I.P.C. ...75 e que tem por objeto a prestação de serviços de assistência técnica, instalação, reparação e manutenção a máquinas, equipamentos industriais e sistemas elétricos, a construção civil e obras públicas e, ainda, o comércio, importação e exportação de materiais relativos às atividades exercidas.
2. À data dos factos descritos infra, a sociedade arguida tinha por gerente o arguido AA, o qual exercia as funções de gerência e possuía responsabilidade pelos negócios da arguida, praticando todos e quaisquer atos indispensáveis ao regular funcionamento da mesma, contratando trabalhadores, procedendo ao pagamento de salários, impostos e cotizações devidas à Segurança Social, contraindo empréstimos bancários, sendo o rosto visível da sociedade nas relações comerciais mantidas com clientes, fornecedores e entidades bancárias.
3. No período compreendido entre março de 2016 a dezembro de 2018, o arguido AA, agindo em nome e no interesse da sociedade arguida, deduziu das remunerações dos seus trabalhadores e membros dos órgãos estatutários as quantias correspondentes às cotizações devidas por estes à Segurança Social, reteve-as e não as entregou nos cofres desta entidade até ao vigésimo dia do mês imediatamente seguinte àquele a que respeitavam – no que concerne aos períodos compreendidos entre fevereiro de 2016 a novembro de 2018 – fazendo-as suas e integrando-as no giro comercial da sociedade.
4. O arguido não procedeu à entrega das quantias mencionadas em 3., sequer, nos noventa dias subsequentes aos prazos referidos em 3.
5. Os arguidos foram regularmente notificados para procederem ao pagamento, em 30 (trinta) dias, das quantias referidas em 3., acrescidas dos respetivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo procedido ao pagamento de qualquer montante nesse prazo.
6. Em face da conduta assumida pelo arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, tais valores não deram entrada nos cofres da Segurança Social, antes tendo sido apoderados e gastos pela referida sociedade em proveito próprio, por intermédio do arguido, seu representante, nomeadamente, no que se refere aos períodos descritos infra: 2016
Fevereiro 2.044,59€
Março 2.440,30€
Abril 2.439,31€
Maio 1.810,38€
Junho 2.032,54€
Julho 1.984,66€
Agosto 2.587,30€ + 139,12€
Setembro 3.146,72€ + 46,97€
Outubro 2.296,90€ + 40,05€
Dezembro 3.251,86€ + 61,25€ 2017
Janeiro 2.767,45€ + 61,25€
Fevereiro 2.180,60€ + 61,25€
Junho 2.261,1.10€ + 65,75€
Julho 2.799,78€ + 65,75€
Agosto 39,89€
Setembro 2.581,77€ + 157,96€
Outubro 2.428,62 € + 128,75€
Novembro 2.107,52€ + 227,98€
Dezembro 4.065,16€ + 53,25€ 2018
Fevereiro 944,53€ + 73,25€
Março 2.515,83€ + 65,85€
Abril 2.529,39€ + 55,31€
Maio 2.545,69€ + 113,70€
Junho 3.293,05€ + 123,38€
Julho 3.538,04€ + 314,92€ + 26,70€
Novembro 3.807.67€ + 26,25 + 26,70€
7. O arguido praticou os factos supradescritos agindo sempre em nome e no interesse da arguida, com o intuito logrado de fazer coisa desta sociedade os montantes referidos em 3. a 6., no valor global de 66.376,05€ (sessenta e seis mil, trezentos e setenta e seis euros e cinco cêntimos), e assim obter para a mesma e, por via indireta, também para si, enquanto seu sócio, uma indevida vantagem patrimonial equivalente a tais montantes, retidos e não pagos aos Cofres da Segurança Social, com a consequente lesão patrimonial desta entidade naqueles valores, acrescidos dos respetivos juros de mora.
8. O arguido, após não ter entregado os primeiros montantes destinados à Segurança Social que havia deduzido nas referidas remunerações, praticou o mesmo tipo de conduta ao longo de todos os restantes meses e anos referidos em 3., porquanto, em virtude de não ter sido sujeito a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, se convenceu que a atuação que vinha levando a cabo estava a ser bem-sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levou a cabo, homogeneamente, ao longo desse período de tempo.
9. Fiscalmente, a sociedade arguida estava enquadrada no regime de IVA de periodicidade mensal.
10. No âmbito da sua atividade comercial a arguida prestou serviços a título oneroso, sujeitos a IVA, cujo montante foi calculado aquando da faturação dos mesmos e incluído no preço global, que foi pago.
11. No mês de outubro de 2019 decidiu o arguido não entregar nos cofres do Estado os valores liquidados e retidos a título de IVA.
12. A arguida emitiu faturas e realizou vendas a dinheiro no mês de agosto de 2019, sobre as quais liquidou IVA, competindo-lhe proceder à entrega de 17.502,28€ (dezassete mil quinhentos e dois euros e vinte e oito cêntimos) à administração fiscal.
13. Em execução daquele desígnio apropriativo, o arguido não remeteu nem fez remeter aos competentes serviços da administração fiscal a prestação tributária assim deduzida e retida pela sociedade, nem até ao dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitava a declaração de IVA, como devia, nem nos noventa dias seguintes ao termo de tal prazo.
14. Agindo do modo descrito, logrou o arguido que a arguida se apropriasse do valor total de 17.502,28€ (dezassete mil quinhentos e dois euros e vinte e oito cêntimos), integrando as disponibilidades financeiras provenientes da falta de entrega daquela prestação tributária no normal giro da sociedade.
15. O arguido sabia que o montante retido pela arguida sociedade a título de IVA não lhe pertencia, nem à mesma, e que era pertença da Fazenda Nacional, bem como que devia entregá-lo até ao dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitava a declaração de IVA, mas não se absteve de omitir a sua entrega, o que quis e fez.
16. O arguido e a sociedade arguida foram regularmente notificados para procederem ao pagamento, em 30 (trinta) dias, da quantia referida em 12., acrescida dos respetivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo procedido ao pagamento de qualquer valor nesse prazo.
17. O arguido e a sociedade arguida não procederam à entrega ao Estado da prestação tributária em falta, referida em 12., nem dos juros respetivos e coima aplicável, no prazo de trinta dias mencionado em 16.
18. O arguido agiu do modo descrito em 3. a 17., pese embora soubesse que as quantias suprarreferidas não lhe pertenciam, nem à sociedade arguida que representava, que estava obrigado a entregá-las à Segurança Social e à Fazenda Nacional e que, fazendo-as da sociedade arguida, agia sem a autorização e contra a vontade daquelas entidades.
19. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente de que praticava atos proibidos e punidos por lei.
Apenso A
20. A arguida A... Lda., é uma sociedade por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o nº ...75 e que tem por objeto social, entre o mais, a prestação de serviços de assistência técnica, instalação, reparação e manutenção a máquinas, equipamentos industriais e sistemas elétricos.
21. A administração de direito e de facto de tal sociedade, durante o período contributivo correspondente ao mês de novembro de 2020, esteve a cargo do arguido AA.
22. Durante o mês de novembro de 2020, o arguido, pessoa singular, dirigiu as atividades da sociedade arguida, para além do mais, contratou com os fornecedores, comercializou os produtos da sociedade, decidindo o que pagar e/ou não pagar, estabeleceu prioridades de produção e de pagamento de impostos ao Estado Português, estabeleceu prioridades de pagamentos aos fornecedores pelos serviços prestados à sociedade arguida, assim como ao pagamento dos salários dos trabalhadores e dos seus colaboradores.
23. A arguida encontra-se inscrita e é sujeito passivo de I.V.A, no regime normal com periodicidade mensal.
24. O arguido estava obrigado a liquidar e a entregar nos cofres do Estado – Fazenda Nacional, até ao dia 15 do 2.º (segundo) mês seguinte ao mês a que respeitam, o valor da declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade, com a indicação do IVA devido ou do crédito existente e dos elementos que servem de base ao respetivo cálculo e, caso existisse imposto a liquidar, a proceder à entrega do respetivo montante.
25. Todavia, relativamente às operações comerciais realizadas no âmbito da atividade social da arguida, apesar de o arguido ter liquidado e recebido I.V.A. dos seus clientes no período correspondente ao mês de novembro de 2020 e ter entregado as respetivas declarações periódicas de IVA daquele supradescrito período, não efetuou o respetivo pagamento - no valor de 12.092,57€ (doze mil e noventa e dois euros e cinquenta e sete cêntimos) - nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 15 do 2.º (segundo) mês seguinte a que respeitam, nem nos 90 (noventa) dias seguintes ao términus deste prazo, nem mesmo depois de notificado para, no prazo de trinta dias, proceder ao pagamento dos montantes devidos e juros de mora.
26. Assim, o arguido, em representação da arguida, deveria ter entregado à Fazenda Nacional e não entregou os montantes abaixo discriminados:
PERÍODO DE TRIBUTAÇÃO
IVA A ENTREGAR AO ESTADO
11/2020
12.092,57€
Total
12.092,57€
27. Apesar de o arguido, pessoa singular, ter liquidado e recebido o I.V.A. dos seus clientes, e de bem saber que tais quantias lhe não pertenciam e que estava, por lei, obrigado a entregá-las nos cofres da Fazenda Nacional, a quem eram destinadas, não o fez, antes as fazendo suas, através do dispêndio das mesmas em proveito da arguida e, indiretamente, em seu proveito também.
28. O arguido, pessoa singular, sabia que as referidas quantias pecuniárias haviam sido por si recebidas e retidas para que as guardasse e viesse a entregar ao Estado Português – Fazenda Nacional.
29. Ao não o fazer e gastando-as em proveito próprio, o arguido, pessoa singular, agiu com o propósito concretizado de atuar como se fosse dono das mesmas, dispondo delas como se fossem suas, bem sabendo que as mesmas lhe não pertenciam e que agia contra a vontade e sem autorização do Estado Português – Fazenda Nacional, legítimo proprietário das mesmas.
30. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito concretizado de liquidar as quantias acima referidas e de as não entregar à Fazenda Nacional, tendo feito reverter e despendido em benefício da sociedade arguida, sua representada, as quantias referidas e, indiretamente, em seu proveito próprio, quantias essas que bem sabia não lhe pertencerem e estar obrigado a entregá-las nos cofres da Fazenda Nacional.
31. O arguido estava certo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime e que o fazia incorrer a si e à sociedade arguida, em responsabilidade criminal.
32. Os arguidos foram condenados:
Pela prática, nos períodos compreendidos entre 1 abril de 2012 e o dia 31 de dezembro de 2014 e entre 01 de abril de 2015 e o dia 31 de janeiro de 2016, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social superior a 50.000,00€ (cinquenta mil euros), praticado na forma continuada, sendo o arguido na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sujeita à condição do pagamento do valor de 5.000,00 € (cinco mil euros) para posterior entrega à Segurança Social e a arguida na pena de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros), por sentença proferida em 2019/06/18 no processo n.º 1019/18.0T9AVR que correu termos no Juízo Local Criminal, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, e transitada em julgado em 2019/09/03. A pena em que foi condenada a arguida foi extinta, em virtude do cumprimento, por decisão proferida em 28/09/2020. O período de suspensão da execução da pena aplicada ao arguido já decorreu na sua íntegra, mas a pena ainda não foi extinta.
33. A arguida, pontualmente, quedava sem liquidez, em virtude de atrasos nos pagamentos dos clientes, sendo que, com vista a manter a atividade da mesma e não se ver forçado a encerrá-la e a não colocar as famílias dos seus trabalhadores em causa e pagar os seus salários, o arguido atuou do modo descrito em 3. a 8., 11. a 19. e 22., 25. a 31 e foi solicitando a integração e aderindo aos planos de pagamento prestacional que celebrou com a Segurança Social e com a Autoridade Tributária, no sentido de liquidar faseadamente o remanescente em falta.
34. Os arguidos solicitaram a integração em planos prestacionais celebrados com a Segurança Social e a Autoridade Tributária dos valores dos valores referidos em 3. e 6., 12. e 25.
35. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida em 17/05/2022, no Processo n.º 1647/22.0T8AVR e, por despacho proferido nesses autos no dia 03/10/2022, foi declarada cessada a administração da massa insolvente pela mesma e determinado que os autos prosseguissem para liquidação, com imediato encerramento da sua atividade.
36. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos da acusação referentes aos elementos constitutivos dos tipos de crime de que vem acusando, não confessando os factos apenas no que se refere ao valor em dívida aquando da dedução da acusação.
37. O arguido manifestou arrependimento pela prática dos factos de que vem acusado.
38. No que se refere aos valores enunciados em 3. e 6., estes foram integrados no plano prestacional n.º 8961/2019, no âmbito do qual se encontrava pago à data de 24/10/2022 a quantia total de 1.820,10€, correspondente ao pagamento de cinco prestações no valor de 364,02€.
39. No que concerne ao valor descrito em 12., o seu pagamento foi integrado no âmbito de um plano prestacional, ao abrigo do qual, à data de 24/10/2022, a título de imposto, se encontrava em falta o montante de 1.787,46€.
40. Relativamente à quantia referida em 23. e 24., o seu pagamento foi integrado no âmbito de um plano prestacional ao abrigo do qual, à data de 31/10/2022, se encontrava em falta o montante de 5.972,78€.
41. A Segurança Social instaurou processos de execução fiscal contra os arguidos, com vista à cobrança coerciva dos montantes referidos em 3. e 6.
42. A Autoridade Tributária e Aduaneira manifestou o seu parecer no sentido de não ser deduzido pedido de indemnização civil nos presentes autos, por entender que o mesmo seria desprovido de efeito útil.
Condição socioeconómica do arguido
43. O arguido tem 56 (cinquenta e seis) anos de idade e encontra-se desempregado.
44. O arguido estudou até ao 7º ano de escolaridade.
45. O arguido tem dois filhos, de 25 (vinte e cinco) e 21 (vinte e um) anos de idade, encontrando-se o segundo a frequentar o ensino superior, havendo sido estabelecido o pagamento pelo arguido ao mesmo de pensão de alimentos no valor de 200,00 € (duzentos euros), cujo pagamento o arguido não consegue suportar atualmente.
46. O arguido reside com a sua mãe de 81 (oitenta e um) anos de idade, que aufere uma pensão de sobrevivência de aproximadamente 450,00 €.
47. O arguido contribuía para as despesas do agregado familiar, mas, atualmente, é a sua mãe que as suporta na sua íntegra.
48. O arguido possui créditos pessoais concedidos pelo:
- Banco 1... cuja prestação mensal corresponde ao valor, aproximado de 300,00€;
- Banco 2..., S.A., cuja prestação mensal corresponde ao valor, aproximado de 400,00€;
49. O arguido possui um cartão de crédito do Banco 1..., em relação ao qual paga a prestação mensal de 150,00€.
50. O arguido não é dono de veículos.
51. O arguido tem registada a seu favor a propriedade:
51.1. da fração autónoma designada pela letra “K”, descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...72, que se encontra onerada com hipoteca voluntária constituída a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., destinada a garantir o pagamento da dívida exequenda e juros de mora referente a processos de execução fiscal e com penhora;
51.2. do prédio urbano sito na Travessa ... ... ..., Aveiro.
52. A última remuneração do arguido que consta do registo de remunerações da Segurança Social corresponde ao valor de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) e data de setembro de 2022, tendo por entidade patronal a sociedade arguida.
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Foi considerado não provado o seguinte facto: [transcrição]
a) os arguidos não tivessem liquidado nenhuma quantia referente ao montante descrito em 25. até à data em que foi proferido o despacho de acusação.
*
A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: [transcrição]
A matéria de facto apurada resultou da confissão integral e sem reservas do arguido AA relativamente aos factos da acusação que se reconduzem aos elementos constitutivos dos tipos de crime que estão em causa, com exceção do facto referente aos valores que haviam sido pagos pelos arguidos à Autoridade Tributária até à data da prolação do despacho de acusação.
Quanto à existência de planos prestacionais em curso e aos montantes que já foram pagos pelos arguidos a titulo de imposto e das prestações devidas à Segurança Social, foram valorados os depoimentos prestados por BB e CC, a primeira Técnica Superior da Segurança Social que exerce funções na Equipa de Contas Correntes do Centro Distrital de Aveiro e a segunda Inspetora Tributária no Serviço de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Aveiro, em conjugação com o teor dos documentos juntos em sede de audiência de julgamento pela segunda, em 24/10/2022 e em 31/10/2022.
As testemunhas depuseram de modo objetivo, claro e sério, pelo que lhes foi conferida total credibilidade pelo Tribunal.
Ademais, foram valorados:
- a certidão permanente da sociedade arguida junta aos autos em 24/10/2022;
- a certidão permanente do prédio constante do ponto 51.1. dos factos provados junta aos autos em 24/10/2022;
- a participação de fls. 58; - os mapas de fls. 66 a 70;
- as notificações de fls. 64 a 78 e de fls. 30, 31 do NUIPC 65/20.9IDAVR;
- os registos de declarações de remunerações, recibos e documentos de fls. 83 a 109, 114 a 119, 208v;
- o parecer, informações e elementos contabilísticos de fls. 22 a 29, 36 a 52 do NUIPC 65/20.9IDAVR;
- os documentos juntos com a contestação apresentada pelos arguidos;
Do Apenso A:
- o auto de notícia, de fls. 3;
- as notificações de fls. 30 e 31;
- os documentos de fls.29, 34 a 86;
- o parecer fundamentado de fls. 26 a 28.
- os documentos juntos com a contestação apresentada pelos arguidos;
Relativamente à factualidade não apurada, esta resultou infirmada por virtude da produção de prova em sentido divergente.
No que concerne às condições pessoais do arguido, a factualidade apurada dimanou das declarações pelo mesmo prestadas e da análise das informações resultantes das pesquisas efetuadas em 14/10/2022 às bases de dados da Segurança Social, constantes de fls. 379.
Por último, para o apuramento dos antecedentes criminais dos arguidos, mostrou-se essencial o teor dos seus Certificados de Registo Criminal, constantes de fls. 380 a 381 e 386 a 387 dos autos, concatenados com a certidão da sentença e do despacho de extinção da pena, proferidos no Processo n.º 1019/18.0T9AVR, junta aos autos em 22/11/2022.
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à questão de saber se as condutas julgadas nos presentes autos se encontram numa relação de continuidade com as julgadas no Proc. nº 1019/18.0T9AVR e se, por esse motivo, deverá manter-se a pena ali aplicada ao arguido/recorrente, nos termos do artº 79º nº 2 do Cód. Penal.
Considerando que as declarações contributivas em causa nos presentes autos e no Processo nº 1019/18.0T9AVR respeitam a períodos contributivos sucessivos - nestes autos estão em causa cotizações para a Segurança Social respeitantes ao período compreendido entre Fevereiro de 2016 a Dezembro de 2018 (com exceção dos meses de Novembro/2016, Março, Abril e Maio/2017 e Janeiro, Agosto, Setembro e Outubro/2018), e naquele outro processo estavam em causa as cotizações respeitantes aos períodos compreendidos entre Abril/2012 a Dezembro/2014 e Abril/2015 a Janeiro/2016, poderá colocar-se a questão de saber se tais condutas correspondem a uma continuidade criminosa e, como tal, devem ser punidas.
A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é decisiva na determinação das consequências jurídicas do facto, para efeito de punição do agente, sabido que no caso de concurso de crimes cabe a aplicação do critério especial de determinação da pena constante do artigo 77.º, extensível, nos termos do artigo 78.º, ao caso de superveniência de conhecimento da existência de relação concursal, cabendo ainda em caso de unificação do concurso, como crime continuado, tratado como uma situação ou caso de unidade de infração, ou seja, como um só crime, um outro critério especial, este de privilegiamento punitivo, do artigo 79.º do Código Penal, sendo o crime punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
É sabido que a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido a resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a atuação não obedecer à mesma resolução criminosa, mas as várias resoluções criminosas estiverem interligadas por um factor externo que arrasta o agente para a reiteração de condutas; e c) um concurso de infrações, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
A unidade natural de ação revela-se pela realização reiterada do mesmo tipo penal, em sucessão ininterrupta, acompanhada por uma decisão unitária de vontade.
Por outro lado, nos termos do artº 30.º n.º 2 do C.Penal constitui um só crime continuado “a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Para que se considere estarmos perante um crime continuado, exige-se, assim que:
- todos os atos constitutivos do comportamento violem o mesmo tipo legal de crime ou pelo menos de vários tipos legais de crime que protejam o mesmo bem jurídico;
- homogeneidade do comportamento total;
- um mínimo de conexão espacial e temporal entre as várias condutas;
- persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente;
- cada uma das ações seja executada através de uma resolução e não com referência a um desígnio inicialmente formado (resolução que se renova).
Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuadamente diminuída, que só é possível formular um único juízo de censura e não vários.
A diminuição considerável da culpa do agente deve radicar numa situação exterior que facilite ao agente a prática dos atos delituosos e o impele à sua reiteração.
Enquanto a realização plúrima do mesmo tipo de crime, para constituir uma única infração, deverá corresponder a uma única resolução inicial (que não se renova), o crime continuado pressupõe uma pluralidade de resoluções tomadas, sendo tratado como um só crime por ocorrer uma considerável diminuição da culpa do agente em virtude de uma situação exógena que facilita a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito[3].
No caso em apreço, o tribunal que julgou as primeiras condutas no Proc. nº 1019/18.0T9AVR, referentes à falta de entrega à Segurança Social das cotizações respeitantes aos períodos compreendidos entre Abril/2012 a Dezembro/2014 e Abril/2015 a Janeiro/2016, não tinha, como objeto do processo, a omissão de entrega das cotizações referentes ao período compreendido entre Fevereiro de 2016 a Dezembro de 2018.
É neste processo que se constata a existência de uma segunda conduta de falta de entrega das referidas cotizações, sendo neste processo que se pode e deve questionar se estamos perante um concurso efetivo de crimes ou de um crime continuado.
Tal conclusão é decorrência do disposto no artigo 79º, nº 2 do Código Penal ao preceituar que “se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior”. Sendo conhecida uma conduta menos grave ou de idêntica gravidade que integre a continuação, tal importará a manutenção da pena anterior.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código Penal, visou-se consagrar a tese de que a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a pertença do facto novo à continuação criminosa anteriormente julgada.
Na lógica do preceito estão manifestamente em causa não só as situações em que a conduta julgada tenha sido plural, como as situações em que a conduta julgada anteriormente seja singular e por consequência se não tenha equacionado a figura jurídica do crime continuado. É que integrando-se estes novos factos na continuação criminosa, não estaremos perante "um eventual concurso de penas que possa vir a ter lugar", mas antes perante um concurso de crimes que poderá integrar um crime continuado, a punir nos termos do artº 79º do Cód. Penal.
No caso sub judice, entendeu o Tribunal a quo que a situação em causa não era suscetível de agregar as duas condutas em causa na figura do crime continuado, em virtude de os factos "não se encontrarem compreendidos no hiato temporal apreciado no âmbito daqueles autos, nem permitem concluir que estejamos perante uma conduta mais grave que integre a continuação dos factos já julgados".
Contudo, a tese defendida pelo tribunal a quo no que concerne ao aludido "hiato temporal" do conhecimento dos factos novos não encontra qualquer sustentação na lei (quer à luz do nº 2 do artº 30º, quer do artº 79º nº 2, ambos do Cód. Penal), da qual apenas se infere, como não podia deixar de ser em face da menor exigibilidade e da e da consequente diminuição da culpa que caracterizam o crime continuado, que aqueles têm de ter ocorrido em data anterior à do trânsito em julgado da primeira condenação.
Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque[4], “A Lei n.º 59/07 visou consagrar a tese segundo a qual a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a pertença do facto novo à continuação criminosa anteriormente julgada. Isto é, sempre que se descubra novos factos que se possam encontrar em continuação criminosa com outros já julgados, deve proceder-se a novo julgamento, com vista a apurar se o facto novo integra efetivamente a continuação e se é mais grave ou menos grave do que os outros já julgados.”
Continua o mesmo autor: “Se o facto novo efetivamente integrar a continuação e for mais grave, o tribunal do segundo julgamento aplica a pena a este crime de acordo com a respetiva moldura penal, descontando-se na pena concreta a parte da pena já cumprida. Se o facto novo for menos grave, o tribunal do segundo julgamento declara a acusação procedente, isto é, que o facto novo dado como provado integra a continuação criminosa, e, nos termos do artº 79º, nº 2, do Código Penal, a contrario, mantém a pena da sentença anterior. Se o facto novo não integrar a continuação criminosa, o tribunal do segundo julgamento fixa a pena que lhe for adequada, podendo considerar a anterior condenação apenas na medida concreta da pena."
Assim, para saber se é aplicável o disposto no rtº 79º nº 2 do Cód. Penal, importa antes de mais averiguar se estamos efetivamente perante uma situação de continuação criminosa, pressuposto do referido regime.
Ou seja, uma vez descobertos novos factos que se possam integrar na situação de continuação criminosa anteriormente julgada, previamente impõe-se apurar se tais factos integram, efetivamente, tal continuação – ou seja, se se poderá efetuar o juízo de uma menor gravidade de culpa, que tornou menos exigível conduta distinta do agente, face à persistência de um idêntico quadro de solicitação externa e a realização de várias condutas essencialmente homogéneas que atinjam o mesmo bem jurídico (art. 30º n.º 2 do Código Penal).
Como já referimos supra,resulta deste último preceito queconstitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.
O crime continuado, integra uma unidade jurídica, construída por sobre uma pluralidade efetiva de crimes. Ou seja, perante uma repetição de factos e de resoluções criminosas de significado penal equivalente, com um nexo de continuidade, a ordem jurídica estipula a consideração dessa continuação de delitos como um único facto, no sentido jurídico-penal, ou seja, como uma unidade jurídica de ação, a sancionar da mesma forma que o concurso ideal.
Como refere o Prof. Eduardo Correia[5] “pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”. O mesmo professor, a propósito da exigência da conexão espaço temporal, volta a acentuar que a ideia fundamental e que legitima a figura é a da diminuição considerável da culpa e que a ligação entre as condutas relevante é a interior, podendo servir a conexão exterior para a afastar.
Ou seja, o crime continuado não integra um recorte ou pedaço de vida unificado, mas sim uma pluralidade de recortes ou pedaços de vida distintos, ainda dotados de homogeneidade, punidos unitariamente e com regras distintas em obediência a considerações de menor exigibilidade.
Caracterizando esta figura escreve a Prof. Teresa Beleza[6], "(...) uma pessoa, durante um certo período de tempo, comete uma série de crimes seguidos que têm entre si uma certa relação de homogeneidade em termos de atuação e em termos de sucessão temporal; e, por outro lado, o traço essencial dessa situação é que a própria continuação ou repetição criminosa deriva não tanto de a pessoa ser especialmente persistente ou ter especiais tendências criminosas, mas do facto de que, de alguma forma, a prática do primeiro ato favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação, porque há um certo circunstancialismo externo que facilitou essa sucessiva reiteração de uma ação idêntica. Esse circunstancialismo externo, na medida em que facilita o sucessivo "cair em tentação”, se quiserem, do agente dos crimes, significa que na medida em que há essa facilitação, a pessoa é menos censurável por ter ido sucessivamente sucumbindo à tentação’.
Feitas estas considerações, importa analisar o circunstancialismo em que foram praticados os atos em cada um dos processos. A factualidade provada nos presentes autos e no aludido Proc. nº 1019/18.0T9AVR apresenta-nos uma perfeita homogeneidade de condutas (omissão de entrega do montante de descontos para a Segurança Social, efetuados aos trabalhadores por conta de outrem e membros dos órgãos estatutários) com renovação da resolução criminosa sempre ao longo de variados meses e anos.
Contudo, a questão coloca-se quanto à motivação subjacente a cada uma das condutas em causa - a julgada no referido processo e a julgada nestes autos.
Efetivamente, no processo anterior entendeu-se que a reiteração da conduta "ocorreu no mesmo quadro de solicitação exterior, isto é, no mesmo quadro de crise financeira vivenciada pela empresa".
Nos presentes autos, considerou-se no ponto 8 da matéria de facto provada que "após não ter entregado os primeiros montantes destinados à Segurança Social que havia deduzido nas referidas remunerações, o arguido praticou o mesmo tipo de conduta ao longo de todos os restantes meses e anos referidos em 3., porquanto, em virtude de não ter sido sujeito a inspeção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, se convenceu que a atuação que vinha levando a cabo estava a ser bem-sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levou a cabo, homogeneamente, ao longo desse período de tempo".
Independentemente da questão de saber se "a crise financeira da empresa" é suscetível de integrar uma circunstância "exógena" diminuidora do juízo de censura ou antes uma circunstância "endógena", que respeita à contabilidade da própria empresa arguida (o que não nos cumpre aqui apreciar, tanto mais que aquela decisão já transitou em julgado), o certo é que o quadro de solicitação exterior em cada uma das situações em causa é completamente diverso, o que necessariamente leva a concluir que, não havendo identidade quanto ao quadro de solicitação externa ao abrigo do qual se desenrolaram ambas as condutas, não é possível falar numa situação de continuidade criminosa, determinante de um juízo de menor gravidade de culpa, que englobe todo o período em causa nos dois processos.
É certo que no ponto 33 da matéria de facto se considerou provado que "a arguida, pontualmente, quedava sem liquidez, em virtude de atrasos no pagamento dos clientes, sendo que, com vista a manter a atividade da mesma e não se ver forçado a encerrá-la e a não colocar as famílias dos seus trabalhadores em causa e pagar os seus salários, o arguido atuou do modo descrito em 3 a 8 (...)".
Contudo, tal circunstância (para além de não constituir factor exterior que, de fora, tenha determinado a prática do crime, já que se refere que a falta de liquidez era apenas pontual), aliada ao factode o arguido ter cumprido as obrigações para com a Segurança Social nalguns meses intercalados, não permite afirmar que as omissões de entrega das contribuições/cotizações em causa ocorreram todas na mesma situação de constrangimento financeiro da sociedade arguida,afastando-se também esse quadro de diminuição considerável da culpa da arguida.
Não se verificando, assim, identidade de situação exterior consideravelmente mitigadora da culpa do agente, a situação terá de ser considerada como de concurso efetivo de crimes, o que afasta a suscetibilidade de aplicação do mecanismo previsto no artº 79º do Cód. Penal.
Razão por que improcede o recurso interposto.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando, embora com fundamentação diversa, a sentença recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC - artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 19 de abril de 2023
(Elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
Lígia Figueiredo
__________ [1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada). [2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95. [3] Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, Tomo II, pág. 208/209. [4] In Código Penal, 2ª ed., pág. 290. [5] In Direito Criminal, vol. 2, págs. 210 e 211. [6] In Direito Penal, II, 613.