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PROCESSO PENAL
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário
I - A regra que atribui legitimidade ao Ministério Público para promover o processo penal (artigo 48 do CPP) não comina com a nulidade a circunstância de o Ministério Público não fazer a investigação e a acusação de um crime que lhe foi denunciado. II - Não existe qualquer norma, nomeadamente no artigo 147 do CPP, que expressamente considere "nulo" o reconhecimento a que falte algum dos seus requisitos; o reconhecimento que não obedecer ao formalismo prescrito no artigo 147 ns.1, 2 e 3 "não tem valor como meio de prova" (artigo 147, n.4 do CPP), devendo o julgador decidir como se ele não existisse, valorando os demais elementos de prova. III - A prova por reconhecimento não implica a formulação de um juízo inelidível de culpabilidade sobre a pessoa identificada, estando sujeita à apreciação critica do julgador.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Em processo distribuído ao -º Juízo de Instrução Criminal do...... (Proc. ../01) o ministério Público acusou o arguido B..... da autoria de um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. pelo art. 144 als. a) e b) do CPP.
O arguido requereu a instrução, alegando, além do mais, que, por o reconhecimento existente nos autos ser “inválido face ao disposto no art. 147 do CPP”, deve ser proferido despacho de não pronúncia.
A instrução limitou-se à realização do debate instrutório, findo o qual a decisão recorrida, além de declarar o reconhecimento “nulo nos termos do art. 118 nº 1 e 147 do CPP”, considerou verificada a nulidade insanável do art. 119 al. b) do CPP, consistente na falta de promoção do processo pelo MP quanto a um crime previsto no art. 367 do Cód. Penal, uma vez que as declarações do ofendido relatam factos susceptíveis de integrarem tal crime.
Finalmente, ordenou a devolução dos autos ao MP, para a reabertura do inquérito nos termos do art. 279 do CPP, a fim de serem realizados os actos processuais tidos por convenientes, em consequência da declaração daquelas nulidades.
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O MP e o arguido interpuseram recurso desta decisão, limitado à não pronúncia pelo crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143 nº 1 do Cód. Penal.
O magistrado do MP suscitou as seguintes questões:
- a inexistência de nulidade processual no reconhecimento efectuado;
- a inexistência de nulidade insanável por falta de promoção do MP;
- a possibilidade de o juiz de instrução ordenar a reabertura do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 279 do CPP; e
- a pronúncia do arguido pelos factos e crime de que foi acusado.
O arguido suscitou as seguintes questões:
- a possibilidade de o juiz de instrução ordenar a reabertura do inquérito, ao abrigo do disposto no art. 279 do CPP; e
- a decisão de não pronúncia do arguido.
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Não houve respostas aos recursos.
Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer que conclui da seguinte forma:
1 – Procedem os recursos do arguido e do MP no que respeita à parte do despacho que ordena a reabertura do inquérito com consequente devolução dos autos ao MP;
2 – Procede o recurso do MP no que respeita à validade do reconhecimento;
3 – Procede o recurso do MP no que respeita à omissão de pronúncia, que deve ser substituída por outra em que, apreciando-se os indícios, se decida pela pronúncia ou não pronúncia do arguido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
Como se referiu no relatório deste acórdão, findo o inquérito, o MP acusou o arguido B..... por um crime de ofensa à integridade física grave do art. 144 als. a) e b) do Cód. Penal.
O arguido requereu a instrução, alegando, além do mais, que devia ter sido proferido despacho de não pronúncia, por o reconhecimento existente nos autos ser “inválido face ao disposto no art. 147 do CPP”.
A instrução limitou-se à realização do debate instrutório, findo o qual a decisão recorrida, além de declarar o reconhecimento “nulo nos termos do art. 118 nº 1 e 147 do CPP”, considerou verificada a nulidade insanável do art. 119 al. b) do CPP, consistente na falta de promoção do processo pelo MP quanto a um crime previsto no art. 367 do Cód. Penal, uma vez que as declarações do ofendido relatam factos susceptíveis de integrarem tal crime.
Finalmente, ordenou a devolução dos autos ao MP, para a reabertura do inquérito nos termos do art. 279 do CPP, a fim de serem realizados os actos processuais tidos por convenientes, em consequência da declaração daquelas nulidades.
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Comecemos pela segunda nulidade – «falta de promoção do processo pelo MP, nos termos do art. 48» (art. 119 al. b) do CPP).
Não tem o enquadramento que lhe é atribuído pela decisão recorrida, segundo a qual existiria quando o MP não fizesse a investigação (e a acusação) de um crime que lhe foi denunciado.
Esta nulidade verifica-se quando for entidade diferente do MP a promover o processo penal. É ao MP, e só a ele, que compete a titularidade da acção penal. Tempos houve em que outras entidades partilhavam essas funções – PSP, GNR, autoridades administrativas, e alguns organismos do Estado. A simples remessa a juízo dos autos de notícia ou dos corpos de delito devidamente organizados equivalia à acusação em processo penal (cfr. art. 2 do Dec.-Lei 35.007 de 13-10-45). Actualmente, sendo o MP quem tem legitimidade para promover o processo penal, a sua falta é geradora da nulidade insanável do art. 119 al. b) do CPP. A referência expressa ao art. 48 do CPP indica-nos que é este o alcance desta nulidade e não o que lhe foi atribuído pela decisão recorrida. Dispõe esta norma que “O MP tem legitimidade para promover o processo penal...”.
Acresce que ordenar a devolução dos autos ao MP para que seja investigado um crime que não foi objecto da acusação, extravasa claramente o objecto da instrução. Esta, quando requerida pelo arguido, como foi o caso, apenas pode incidir sobre os factos pelos quais o MP ou o assistente tiverem deduzido acusação – art. 287 nº 1 al. a) do CPP.
Quanto à «nulidade» do reconhecimento:
Para a fundamentar a decisão recorrida invoca a norma do art. 118 nº 1 do CPP.
Diz esta que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.
É a consagração do princípio da legalidade. Para que algum acto processualmente anómalo padeça do vício da nulidade é necessário que a lei o diga expressamente.
Mas não há qualquer norma, nomeadamente no art. 147 do CPP também referido na decisão recorrida, que considere «nulo» o reconhecimento a que falte alguns dos seus requisitos. O que o nº 4 deste artigo dispõe é diferente: o reconhecimento que não obedecer ao formalismo prescrito nos três números anteriores “não tem valor como meio de prova”. Isto é, o julgador, perante um reconhecimento imperfeitamente efectuado, deve decidir como se ele não existisse, socorrendo-se e valorando os demais elementos de prova. Se fosse de caso de «nulidade» suscitar-se-iam questões que aqui não têm cabimento, como a de saber se a nulidade era dependente de arguição, se era sanável ou não, e quais os actos dela dependentes que deviam igualmente ser considerados inválidos – cfr. arts. 119 e ss do CPP. O conceito de nulidade no processo penal tem um sentido específico, distinto do significado da linguagem corrente. Nem tudo o que não é válido, é irrelevante, ou não deve ser considerado cabe no regime das nulidades.
Acresce que nos três primeiros números do art. 147 do CPP indicam-se os procedimentos que devem ser observados quando se procede a um reconhecimento, mas a decisão recorrida não aponta qualquer desvio ao formalismo prescrito, nem se vê, através do que os autos contêm, que ele tenha existido.
A questão é diferente.
A prova por reconhecimento não é a única forma de proceder à identificação do autor de um crime (a norma do art. 147 nº 1 do CPP diz: “quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento...”). Se for feita com as formalidades prescritas, atesta apenas que em determinado dia quem fez o reconhecimento declarou que foi a pessoa identificada quem praticou os factos ou esteve em determinada situação. Isso é normalmente um poderoso meio de prova, porque muitas vezes, em momentos posteriores, as testemunhas deixam de conseguir fazer a identificação de forma peremptória, quer por a memória ter perdido nitidez, quer por o autor dos factos ter mudado de aparência física.
A possibilidade de a declaração ínsita no reconhecimento poder ser utilizada posteriormente, constitui um desvio ao princípio geral de que as declarações prestadas durante o inquérito não valem no julgamento – cfr. arts. 355 e 356 do CPP. Esse é um dos motivos para que o reconhecimento seja feito com algumas formalidades e cautelas que garantam a sua genuinidade.
Mas nada permite a conclusão de que este tipo de prova implica a formulação de um juízo iniludível de culpabilidade sobre a pessoa identificada. Como a generalidade das provas, está sujeita à apreciação crítica do julgador. Embora seja certo que na prática judiciária o auto de reconhecimento da identidade do arguido tende a merecer um valor probatório reforçado, ele não deixa de estar também submetido ao princípio da livre apreciação da prova – cfr. art. 127 do CPP.
Será o caso da hipótese, suscitada na decisão recorrida, de o autor do reconhecimento já conhecer a pessoa que vai identificar. Nesse caso o reconhecimento, mesmo formalmente regular, poderá não beneficiar de todas as condições de genuinidade do acto. Mas aí funciona a livre convicção de quem aprecia a prova, tendo em conta não só o resultado do reconhecimento, como todo o material probatório que lhe é presente [V. ac. T.C. de 24-3-04, DR II série de 7-12-04, que decidiu não ser inconstitucional a repetição do reconhecimento, quando o anterior não for válido, pois o resultado do acto repetido é filtrado pelo princípio da livre apreciação da prova.]. Ou, por outras palavras, mesmo não havendo a inobservância de algum dos cuidados prescritos nos nºs 1, 2 e 3 do art. 147 do CPP, pode estar em causa a credibilidade e o valor concreto do reconhecimento. Embora tenha sido feito de forma correcta, poderão existir circunstâncias, não plasmadas no auto que foi lavrado nem perceptíveis por quem fez a diligência, que imponham que seja desvalorizado, ou mesmo considerado irrelevante para a prova dos factos.
Não havendo nulidades a declarar, deveria o senhor juiz ter proferido decisão de pronúncia ou não pronúncia, de acordo com a valorização que fizesse do conjunto de toda a prova existente nos autos. Ou, então, decidir a realização de diligências que reputasse necessárias para a formulação do seu juízo.
Em caso algum, porém, podia, invocando a norma do art. 279 do CPP, decidir a reabertura do inquérito. A simples leitura do nº 1 deste artigo indica que a reabertura do inquérito aí prevista está dependente de vários pressupostos, sendo que nenhum deles se verifica, a saber: é uma decisão do MP, quando o processo tiver sido arquivado (no destes autos houve acusação), se surgirem novos elementos de prova.
Finalmente:
O recurso do arguido termina reclamando que a Relação profira despacho de não pronúncia. E o do MP conclui defendendo uma decisão de pronúncia.
Não podem proceder os recursos nesta parte.
É que o âmbito do recurso é também dado pelo despacho recorrido. Os recursos visam somente modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova. Não se destinam a que os juízes do tribunal ad quem, depois de lerem o processo, digam a decisão que teriam proferido se tivessem estado no lugar do tribunal recorrido. "A missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pela tribunal de que se recorreu foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei" - por todos, acs. STJ de 6-2-87 e de 3-10-89, BMJs 364/714 e 390/408.
O despacho recorrido decidiu apenas a remessa do processo ao MP para a reabertura do inquérito, invocando para tal a existência de duas nulidades. Sendo esse o âmbito da decisão recorrida, que se ficou em questões prévias à decisão de pronúncia ou não pronúncia, não deve agora a Relação ultrapassá-lo. Aliás, como já acima se disse, ultrapassada esta questão prévia, fica em aberto a possibilidade da realização de diligências eventualmente reputadas necessárias.
DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação do Porto, concedendo provimento parcial aos recursos do Ministério Público e do arguido B....., revogam a decisão recorrida, ordenando que seja substituída por outra que pressuponha que não existe nenhuma das nulidades nela referidas..
Por ter decaído parcialmente, o arguido pagará 1 UC de taxa de justiça.
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Porto, 2 de Fevereiro de 2005
Fernando Manuel Monterroso Gomes
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins