I.- São traços determinantes do contrato de comodato a gratuitidade, o intuitu personae (natureza pessoal do contrato) e a obrigação de restituir; uma vez que se trata de um empréstimo, de onde decorre a obrigação de restituir quando deixa de ser usada a coisa para o fim a que foi comodatada; ou no final do prazo previsto; ou a qualquer momento, caso se não se tenha determinado um prazo para a restituição (artigo 1137.º/1 e 2, do CC).
II.- A cláusula “para toda a vida” não pode ser interpretada como sendo um prazo determinado, na medida em que se desconhece em que momento a coisa deve ser restituída, pelo que o comodante pode exigir a restituição da coisa emprestada a qualquer momento e ad nutum, bastando a manifestação de vontade do comodante para a resolução do contrato (artigo 1137.º/2, do CC).
(Sumário do Relator)
A) O pedido dos Embargantes/Recorridos de extinção do contrato de comodato por resolução improcedeu e não pode a Notificação Judicial junta aos autos para o fundamentar, ser aproveitada para se decidir como pedido alternativo ( Extinção do contrato por denúncia) dos Embargantes/Recorridos que não foi feito pelos mesmos, em clara violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 3 e 609.º, n.º 1, do C.P.C..
B) O contrato de comodato dos autos tem prazo certo e uso determinado, pelo que não pode extinguir-se por denúncia, porém tendo decidido em sentido contrário a Decisão recorrida viola nesta parte o disposto artigo 1137.º, n.º 2, do C.C..
C) Sem prescindir, se a conclusão da al. B) não for o douto entendimento de V. Exas, e ao invés se entender que o comodato dos autos não tem prazo certo, mas tendo uso determinado como se demonstrou e ficou provado na decisão ora recorrida, esta viola a norma contida no n.º 1 do artigo 1137.º do C.C..
Termos em que e nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas deve a decisão proferida pelo tribunal a quo ser revogada e, em consequência, serem os embargos julgados improcedentes e manter-se a comodatária / embargada na posse do imóvel dos autos.
1. O presente recurso versa sobre a validade e cessação de um contrato de comodato vitalício celebrado por escrito particular.
2. Os recorridos visam demonstrar a inexistência de qualquer violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 3 e609.º, n.º 1, do C.P.C. invocada pela recorrente.
3. E a validade da denúncia do contrato que ocorreu, designadamente, mas sem exclusão de outras distintas formas, através de NJA.
4. Nos exatos termos em que o STJ decidiu caso exatamente igual no Ac. STJ 6857/10.0TBBRG.G1.S1, de 02-06-2016, cujo sumário se transcreve e convoca como fundamento da validade da sentença recorrida, (…) “deste modo, temos por seguro que a resolução ilegal ou ilegítima do contrato (…), sob pretexto de uma justa causa que se vem a apurar em juízo ser, afinal, insubsistente, tem de ser equiparada, para este efeito, a uma denúncia unilateral ad nutum. “
5. Subsidiariamente, em caso de procedência do recurso, os recorridos impetram V. Ex.ª ampliação do objeto do recurso, com vista à declaração de nulidade do Contrato de Comodato, por falta de forma, e ou,
6. à ocorrência de justa causa para a respetiva resolução, tendo em conta a violação dos deveres que incumbem à comodatária (artigo 1135.º, alínea f), do C.Civ.), designadamente o dever de lealdade, afetam gravemente a relação de confiança existente, (especialmente relevante neste tipo contratual), e tornam inexigível ao comodante a manutenção do Contrato.
7. O objeto do processo é constituído pelo pedido e causa de pedir.
8. A causa de pedir é composta pelos “factos constitutivos de determinada situação jurídica que (se) quer fazer valer ou negar (ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma)” (Lebre de Freitas “Introdução ao processo civil, Conceito e Princípios gerais À luz do novo Código”, 3ª edição, Coimbra editora, 2013, cit., pág. 65).
9. Já o pedido corresponde à tutela jurisdicional requerida para determinada situação jurídica e deve referir-se a um efeito jurídico, ou seja, uma consequência extraída de uma norma jurídica.
10. Para se aferir da existência de excesso de pronúncia importa verificar, segundo o critério repetido pela jurisprudência, se a “causa do julgado” se identifica com a “causa de pedir” ou o julgado se identifica com o “pedido” (Cfr.Ac.STJde18-10-2012,proc.n.º 660/04.3TBPTM.E1.S1 (relator Orlando Afonso).
11. Ora, a posição do tribunal expressa em sede de sentença corresponde aos argumentos levantados pelos embargantes nas suas alegações escritas, que foram ordenadas pelo tribunal a quo, mediante despacho que autorizava ambas as partes a se pronunciarem por escrito sobre o mérito da causa.
12. Não obstante, é inequívoco que o pedido dos recorridos é e sempre foi a restituição do imóvel, em virtude da cessação do Contrato de Comodato.
13. É “incontroverso, e só em tais casos, que (se) o autor ainda que implicitamente manifestou a sua vontade de obter tal tutela, e o réu se oponha, ainda que implicitamente à mesma, o julgador pode e deve concede-la.” (António Júlio Cunha, “Direito Processual Civil Declarativo”, 2ª edição, Quid Juris Editora, Lisboa, 2015, págs. 65-66).
14. In casu, a sentença foi ao encontro dos efeitos pretendidos e reclamados pelos embargantes, mesmo que entendidos como implicitamente – a restituição do imóvel e cessação do contrato de Comodato – mas que inquestionavelmente encontravam-se contidos na pretensão.
15. Mais, é entendimento que o critério constante no artigo 609.º, n.º 1, do CPCiv., e a consideração de que o poder jurisdicional se encontra limitado pelas partes, enquanto corolário do princípio do dispositivo (artigo 3.º CPCiv.), não deve ser entendido de forma radical, ou seja, no sentido de que a decisão deve sempre corresponder ipsis verbis à pretensão contida na conclusão.
16. De facto, seguindo a esteira da jurisprudência do STJ, Ac. de 11 de fevereiro de 2015 proc. n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1, “O princípio do dispositivo impede que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, mas não obsta a que profira decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada”.
17. Resulta claro que desde o início do litígio os executados / embargantes pretendem a restituição do imóvel, e a consequente cessação do Contrato de Comodato Vitalício celebrado com a exequente / embargada.
18. Assim, é indispensável ao juiz um “esforço interpretativo” que lhe permita apreender realmente o âmbito objetivo do pedido formulado, tendo o meritíssimo juiz a quo, nesse esforço, procedido a uma alteração da qualificação jurídica da cessação ínsita na notificação judicial, entendendo que esta comportava uma vontade expressa e inequívoca dos comodantes em por termo ao contrato e haver para si a coisa comodatada.
19. A materialidade fática constitutiva do direitoinvocado pelos embargantes / executados permaneceu inalterada, tendo o tribunal a quo subsumido estes factos à previsão legal constante no artigo 1137.º, n.º 2, do CCiv.
20. Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, mas valem independentemente da qualificação realizada pelas partes, uma vez que ela não é vinculativa para o tribunal (artigo 5.º, n.º 3, CPCiv.), não se encontrando este sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
21. Esta diferente qualificação não representa qualquer alteração do objeto do processo. Nesta matéria o juiz não se encontra condicionado à fundamentação de direito ou à pretensão expressamente formulada pelas partes.
22. De facto, a alteração da qualificação jurídica constitui matéria de direito, pelo que não estando o juiz sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, CPCiv.), nas questões a enunciar e decidir pode incluir-se matéria de direito que não tenha sido expressamente alegada pelas partes.
23. Por tudo, não existiu qualquer excesso de pronúncia, tendo o meritíssimo juiz do tribunal a quo agido dentro dos seus poderes ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPCiv.
24. Alega a recorrente, que o Contrato de Comodato tinha uso determinado (habitação) e prazo certo (“enquanto a comodatária fosse viva”), pelo que não pode extinguir-se por denúncia, tendo a decisão recorrida violado, nesta parte, o disposto artigo 1137.º, n.º 2, do C.C..
25. O Comodato é celebrado no interesse do Comodatário que adquire o uso da coisa gratuitamente, funda-se em razões de cortesia, de favor ou de gentileza do Comodante para com o Comodatário, representando uma liberalidade a seu favor, sendo um ato de benemerência.
26. Por todas estas razões, o Comodato é estruturalmente uma situação de duração limitada que não consente uma subsistência indefinida, sendo que um uso genérico e abstrato suscetível de subsistir indefinidamente atingiria a própria noção de comodato plasmada no artigo 1129.º CCiv., que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso (Ac. STJ, de 26 de junho de 1997 proc. n.º 97A334 – Relator: Fernando Fabião e Ac. do STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1 – Relator: Salazar Casanova).
27. Ora, um “uso para habitação” estabelece um uso por tempo ilimitado, devendo estas situações ser equiparadas ao não estabelecimento de qualquer prazo (Ac. STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1, Relator Salazar Casanova).
28. Assim, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado artigo 1137.º do CC (referindo expressamente que um uso para habitação não preenche essa determinabilidade temporal, Ac. STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1, Relator: Salazar Casanova e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Proc. n.º 1564/19.0T8BJA.E1 de 19-11-2020, Ac. STJ, proc. n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1 de 21-03-2019, Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 1275/05.4TBCTB.C1 de 14-09-2010).
29. De tudo, extrai-se que um uso para habitação não delimita temporalmente a necessidade que o Comodato visa satisfazer, pois não contém em si a definição do tempo de uso, não constituindo, como tal, fundamento que obste à cessação ad nutum do contrato por parte do Comodante, pois não preenche o disposto no artigo 1137.º, n.º 1, in fine, do CCiv (Ac. Ac. STJ proc. n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S2 de 14 de dezembro de 2021 e Ac. TRL de 04-07-2013, proc. nº 3362/10.8TBFUN.L1-2).
30. Entendendo o contrário, ou seja, admitindo-se que o comodante não pode exigir a restituição da coisa no comodato de imóvel para satisfação de uma necessidade permanente do comodatário (a de habitação), admitiríamos igualmente a possibilidade de nunca vir recuperar a coisa comodada, que é sua.
Estaríamos, assim, perante uma descaracterização do Comodato, convertendo o Comodante numa espécie de doador e impossibilitando-o de reaver a coisa que comodou.
31. O presente contrato estabeleceu um “uso para toda a vida” da comodatária, não tendo sido convencionado qualquer prazo certo.
32. De facto, não existe razão para qualquer diferença de tratamento conferido ao comodato perpétuo ou por um período indeterminado de tempo, de um lado e, de outro, ao comodato sem qualquer fixação de prazo. Pelo contrário a discrepância de tratamento geraria soluções intoleráveis, pois, enquanto que na primeira hipótese, apenas porque foi definido o termo incerto do empréstimo, o comodatário poderia ver assegurado o gozo da coisa por anos, porventura até por toda a vida, na segunda, como o comodante não estabeleceu qualquer momento para a restituição, o comodatário não pode deixar de restituir a coisa logo que lhe for exigido.
33. Logo, uma cláusula que estipule que o Contrato de Comodato dure “até à morte da comodatária” apenas será válida desde que “interpretada no sentido de que não obsta, por imposição da própria lei, a que o comodante possa sempre denunciar o contrato ad nutum” (Ac. do STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1, Relator: Salazar Casanova).
34. Defendendo esta posição encontra-se a jurisprudência largamente maioritária, sendo exemplos não apenas os acórdãos que citamos em alegações, como os constantes na Sentença proferida em sede de embargos, que aqui damos por inteiramente reproduzidos.
35. Estando em causa um contrato gratuito, não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado por período de tempo indeterminado como é o da própria vida do comodatário.
36. Quando a lei, no artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil, admite a restituição ad nutum “se não foi convencionado prazo para a restituição” tem em vista obstar à restituição apenas quando houve estipulação de prazo certo.
37. Esta é a posição mais consentânea com o sistema jurídico vigente, não apenas porque no actual quadro normativo não seria de aceitar um contrato de comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ter sido estabelecido um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente o uso da coisa.
38. Como também, a vingar a tese dos recorrentes, o entendimento contrário implicaria que o Comodato se tornaria mais sólido que a própria locação, ficando o comodatário numa posição mais sólida e vantajosa e o comodante que cede gratuitamente a coisa, por outro lado, ver-se-ia numa situação substancialmente mais gravosa do que aquela em que ficaria se tivesse querido tirar proveito da coisa, arrendando-a por contrato de duração indeterminada, passível de denúncia ad nutum com a antecedência referida no artigo 1101.º, al. c), CCiv. Ora, num contrato intuitu personae e gratuito – como é o comodato – claramente que não se pretendeu que o comodante ficasse na contingência de não poder reaver a coisa dada em cómodo.
39. Atendendo à natureza jurídica deste tipo Contratual, esta solução não pode ser tolerável pela nossa ordem jurídica.
40. Propugnando a favor desta posição, igualmente vária doutrina (por todos: Menezes Cordeiro “Tratado de Direito Civil XVII – Contratos em Especial”, Almedina, Lisboa, 2018, págs. 166-168 e Menezes Leitão “Direito das Obrigações – Contratos em especial”, Volume III, 11ª edição, Almedina Editora, 2016, pág. 374 (nota 750).
41. Assim sendo, a um contrato de comodato que seja concluído sem fixação de um termo certo ou uso com duração determinada, deve aplicar-se o artigo 1137.º, n.º 2, determinando a possibilidade de cessação do contrato a qualquer momento por decisão unilateral do Comodante assim que comunicada ao comodatário – denúncia (Cfr. Ac. STJ proc. n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S2 de 14 de dezembro de 2021).
42. A denúncia corresponde a uma declaração unilateral reptícia, que consiste numa declaração universal que é emitida por uma das partes num contrato, tendo como destinatário o outro contraente e que apenas se torna eficaz depois de chegar ao poder ou ser conhecida deste, nos termos do artigo 224.º, n.º 1, 1.ª parte, do CCiv.
43. O seu fundamento reside no pressuposto da liberdade de desvinculação, podendo, por isso, ser invocada sem menção de qualquer motivo, sendo exercida ad nutum, de modo discricionário, e tendo como propósito pôr termo a contratos com um período de vigência indeterminado, como é o caso.
44. Esta comunicação e exigência de restituição ocorreu mediante notificação judicial.
45. Ainda que assim não fora, já durante a pendência dos embargos, e até formalmente em audiência de julgamento a própria embargada / recorrente confessou que os embargantes / recorridos lhe haviam comunicado a intenção de reaver o imóvel comodatado e por termo ao contrato de comodato.
46. Desta feita, deve o Contrato de Comodato ser considerado extinto, por denuncia e ordenada a restituição do imóvel aos embargantes/executados.
47. Por tudo, deve o recurso ser considerado improcedente, entendendo que a decisão do meritíssimo juiz a quo se inseriu no âmbito dos seus poderes de decisão, à luz do artigo 5.º, n.º 3, não existindo qualquer excesso de pronúncia ou alteração do objeto do processo (artigo 609.º, n.º 1, do CPCiv.), mas sim uma diferente interpretação e qualificação jurídica, permitidas pelo direito, nos termos da jurisprudência do STJ já convocada, tendo o pedido e a realidade fáctica que o sustenta permanecido inalterada.
48. Em consequência da extinção do Contrato, ordenar a restituição do Imóvel aos embargantes;
49. Se, porém, V. Exas considerarem o recurso procedente, o recorrido, nos termos do artigo 636.º, n.º 2, requer ampliação do objeto do recurso relativamente a dois segmentos por si invocados em alegações orais e escritas e em que decaiu, designadamente;
a. omissão de pronúncia relativamente à nulidade decorrente do desrespeito pela forma legalmente prescrita para a sua celebração.
b. a desconsideração do tribunal a quo sobre a existência de justa causa de resolução do Contrato de Comodato;
50. Assim, acaso V. Ex.ª entendam considerar o recurso procedente, deverão concomitantemente, conhecendo o objeto ampliado, considerar o Contrato de Comodato nulo por falta de forma.
51. Dado que o tribunal a quo não se pronunciou sobre esta questão sendo a mesma de conhecimento oficioso (artigo 286.º do CCiv.).
52. Este tipo contratual, conforme certa orientação jurisprudencial, configurará, um verdadeiro contrato constitutivo de um direito real de Uso e Habitação, devendo, como tal, sujeitar-se a uma forma de celebração solene (artigos 939.º e 947.º CCiv, conforme seja onerosa ou gratuita, respetivamente), por documento particular autenticado ou escritura pública (por todos: Ac. do STJ de 14 março de 2016 –Relator Ribeiro de Almeida, Coleção Jurídica / Supremo XIV (2006) 1, págs. 128-130).
53. Que o presente contrato de Comodato não respeitou.
54. Assim, conforme disposto no artigo (artigo 220.º CCiv), o desrespeito da forma legalmente prescrita para determinada declaração negocial acarreta a sua nulidade.
55. Esta invalidade pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, devendo tal declaração acarretar a imediata restituição do imóvel aos Comodantes.
56. Noutro prisma, a sentença recorrida considera provado que a Comodatária albergou terceiros, facto que, aliás, esta confessou.
57. O comodato é um contrato de natureza intuito personae, pelo que o uso foi autorizado apenas à comodatária e não a terceiros, sendo, neste caso, sempre necessário o consentimento dos Comodantes, sob pena de violação do artigo 1135.º, f), CCiv.
58 .Os Comodantes não foram informados nem autorizaram o uso do imóvel por terceiros, tendo sido surpreendidos com esse facto.
59. Com este ato a recorrente incorreu na violação da obrigação de não proporcionar a terceiro o uso da coisa (artigo 1135.º, f), CCiv.),
60. Atitude especialmente censurável, pois estes terceiros eram arrendatários dos comodantes que foram despejados por estes de prédio contíguo ao comodado face ao incumprimento no pagamento das rendas por um período de dois anos.
61. Ora, a justa causa legitimadora da resolução do contrato de Comodato presente no artigo 1140.º CCiv., deve ser entendida numa aceção de justa causa, mais fraca, tendo um âmbito mais amplo quando comparado com outros tipos contratuais, face à consideração deste contrato como um ato de benemerência (Ac. STJ, proc. n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S2 de 14 de dezembro de 2021 e Menezes Cordeiro em “Tratado de Direito Civil – Contratos em especial, Vol. XVII, Almedina Editora, 2018, pág. 171).
62. Desta feita, o conceito de justa causa presente no artigo 1140.º preenche-se sempre que estejamos perante qualquer motivo atendível, independentemente das condutas do comodatário, que revele a impossibilidade da manutenção das razões de cortesia que fundamentaram o ato.
63. Assim, se é facto provado (e admitido) que a embargada albergou terceiros na habitação, especialmente conhecendo os motivos para o seu despejo, é igualmente evidente a violação, não apenas do disposto no artigo 1135.º, alínea f), como também de deveres de proteção a que se encontra adstrita, como a lealdade, informação e consideração com a pessoa e o património da outra parte, não devendo relevar a transitoriedade ou excecionalidade dessa guarida.
64. A decisão de dar guarida a terceiros sem autorização dos Comodantes, não apenas conhecendo os factos subjacentes ao seu despejo, mas também considerando que, consigo, os embargantes celebraram um contrato gratuito, demonstram uma especial censurabilidade e falta de respeito na atuação da Comodatária, reveladora de uma deterioração das relações familiares e de cortesia que estiveram na base da celebração do contrato de Comodato.
65. Esta deterioração, acrescendo ao caráter marcadamente pessoal assumido pelo Comodato, mina a relação de confiança, amizade e cortesia existente entre as partes para além de constituir uma violação dos deveres que incumbem à comodatária (artigo 1135.º, alínea f)), tornando inexigível ética e juridicamente a manutenção da relação contratual.
66. A circunstância de acolher os terceiros que o comodante havia acabado de despejar numa sua outra propriedade, representou “uma traição à confiança” dos Comodantes e o colmatar de um processo de múltiplos atos de vingança perpetrados pela comodatária em protesto por, considerando as obras que decorriam na propriedade dada em comodato, ter sido deslocada para uma habitação contígua.
67. A resolução foi realizada de forma legalmente válida.
68. Como tal, existindo justa causa para a resolução, e tendo a mesma sido realizada mediante forma legalmente válida, deve o contrato ser declarado validamente cessado.
E, com qualquer um dos invocados fundamentos, ser ordenada a imediata restituição do imóvel comodado aos recorridos/embargantes.
Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente – artigo 527.º do CPC.
Notifique.
José Manuel Barata (relator)
Cristina Dá Mesquita
Rui Machado e Moura