COMODATO
DIREITO DE USO
PRAZOS
Sumário

I.- São traços determinantes do contrato de comodato a gratuitidade, o intuitu personae (natureza pessoal do contrato) e a obrigação de restituir; uma vez que se trata de um empréstimo, de onde decorre a obrigação de restituir quando deixa de ser usada a coisa para o fim a que foi comodatada; ou no final do prazo previsto; ou a qualquer momento, caso se não se tenha determinado um prazo para a restituição (artigo 1137.º/1 e 2, do CC).
II.- A cláusula “para toda a vida” não pode ser interpretada como sendo um prazo determinado, na medida em que se desconhece em que momento a coisa deve ser restituída, pelo que o comodante pode exigir a restituição da coisa emprestada a qualquer momento e ad nutum, bastando a manifestação de vontade do comodante para a resolução do contrato (artigo 1137.º/2, do CC).
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc.º 6457/20.6T8STB-A.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: (…)


Recorridos: (…) e (…)

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No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Execução de Setúbal - Juiz 1, por apenso à execução de sentença para entrega de coisa certa, proposta nos termos do artigo 626.º do CPC, que a recorrente propôs contra os recorridos, vieram estes deduzir oposição por embargos.
Fundamentaram a sua pretensão alegando, em síntese que, depois do trânsito em julgado da sentença dada à execução, procederam à resolução com justa causa do contrato de comodato do imóvel identificado nos autos, por notificação judicial avulsa, com base na violação das obrigações gerais da comodatária (colheu frutos da coisa emprestada, injuriou e difamou os embargantes, arrogando-se perante terceiros como proprietária da habitação e destruindo construções edificadas pelos executados no imóvel, designadamente a vedação no quintal, e albergando terceiros na habitação).
Concluíram pedindo que, na procedência dos embargos, se determine a extinção da execução e a restituição do imóvel, bem como a condenação da exequente por litigância de má-fé, em multa e indemnização no montante de € 2.500,00, sob a alegação de que a exequente propôs a execução depois de ter operado a resolução do contrato e de saber que estava extinto o direito a exigir a entrega.
A exequente contestou, impugnando os factos alegados como constituindo a justa causa invocada e alegando que a resolução do contrato não opera através de uma notificação judicial avulsa, pedindo a improcedência dos embargos.
Instruída a causa foi realizado o julgamento e decidido o seguinte:
Por tudo o que vem de ser exposto, julgo os presentes embargos procedentes e, consequentemente, determino que o imóvel identificado nos autos seja restituído aos embargantes.
Custas pela exequente.
Indefiro o pedido de condenação da exequente por litigância de má-fé. Notifique.

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Não se conformando com o decidido, a recorrente apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:

A) O pedido dos Embargantes/Recorridos de extinção do contrato de comodato por resolução improcedeu e não pode a Notificação Judicial junta aos autos para o fundamentar, ser aproveitada para se decidir como pedido alternativo ( Extinção do contrato por denúncia) dos Embargantes/Recorridos que não foi feito pelos mesmos, em clara violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 3 e 609.º, n.º 1, do C.P.C..

B) O contrato de comodato dos autos tem prazo certo e uso determinado, pelo que não pode extinguir-se por denúncia, porém tendo decidido em sentido contrário a Decisão recorrida viola nesta parte o disposto artigo 1137.º, n.º 2, do C.C..

C) Sem prescindir, se a conclusão da al. B) não for o douto entendimento de V. Exas, e ao invés se entender que o comodato dos autos não tem prazo certo, mas tendo uso determinado como se demonstrou e ficou provado na decisão ora recorrida, esta viola a norma contida no n.º 1 do artigo 1137.º do C.C..

Termos em que e nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas deve a decisão proferida pelo tribunal a quo ser revogada e, em consequência, serem os embargos julgados improcedentes e manter-se a comodatária / embargada na posse do imóvel dos autos.


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Contra-alegaram os recorridos e, subsidiariamente, pediram a ampliação do recurso, concluindo:

1. O presente recurso versa sobre a validade e cessação de um contrato de comodato vitalício celebrado por escrito particular.

2. Os recorridos visam demonstrar a inexistência de qualquer violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 3 e609.º, n.º 1, do C.P.C. invocada pela recorrente.

3. E a validade da denúncia do contrato que ocorreu, designadamente, mas sem exclusão de outras distintas formas, através de NJA.

4. Nos exatos termos em que o STJ decidiu caso exatamente igual no Ac. STJ 6857/10.0TBBRG.G1.S1, de 02-06-2016, cujo sumário se transcreve e convoca como fundamento da validade da sentença recorrida, (…) “deste modo, temos por seguro que a resolução ilegal ou ilegítima do contrato (…), sob pretexto de uma justa causa que se vem a apurar em juízo ser, afinal, insubsistente, tem de ser equiparada, para este efeito, a uma denúncia unilateral ad nutum. “

5. Subsidiariamente, em caso de procedência do recurso, os recorridos impetram V. Ex.ª ampliação do objeto do recurso, com vista à declaração de nulidade do Contrato de Comodato, por falta de forma, e ou,

6. à ocorrência de justa causa para a respetiva resolução, tendo em conta a violação dos deveres que incumbem à comodatária (artigo 1135.º, alínea f), do C.Civ.), designadamente o dever de lealdade, afetam gravemente a relação de confiança existente, (especialmente relevante neste tipo contratual), e tornam inexigível ao comodante a manutenção do Contrato.

7. O objeto do processo é constituído pelo pedido e causa de pedir.

8. A causa de pedir é composta pelos “factos constitutivos de determinada situação jurídica que (se) quer fazer valer ou negar (ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma)” (Lebre de Freitas “Introdução ao processo civil, Conceito e Princípios gerais À luz do novo Código”, 3ª edição, Coimbra editora, 2013, cit., pág. 65).

9. Já o pedido corresponde à tutela jurisdicional requerida para determinada situação jurídica e deve referir-se a um efeito jurídico, ou seja, uma consequência extraída de uma norma jurídica.

10. Para se aferir da existência de excesso de pronúncia importa verificar, segundo o critério repetido pela jurisprudência, se a “causa do julgado” se identifica com a “causa de pedir” ou o julgado se identifica com o “pedido” (Cfr.Ac.STJde18-10-2012,proc.n.º 660/04.3TBPTM.E1.S1 (relator Orlando Afonso).

11. Ora, a posição do tribunal expressa em sede de sentença corresponde aos argumentos levantados pelos embargantes nas suas alegações escritas, que foram ordenadas pelo tribunal a quo, mediante despacho que autorizava ambas as partes a se pronunciarem por escrito sobre o mérito da causa.

12. Não obstante, é inequívoco que o pedido dos recorridos é e sempre foi a restituição do imóvel, em virtude da cessação do Contrato de Comodato.

13. É “incontroverso, e só em tais casos, que (se) o autor ainda que implicitamente manifestou a sua vontade de obter tal tutela, e o réu se oponha, ainda que implicitamente à mesma, o julgador pode e deve concede-la.” (António Júlio Cunha, “Direito Processual Civil Declarativo”, 2ª edição, Quid Juris Editora, Lisboa, 2015, págs. 65-66).

14. In casu, a sentença foi ao encontro dos efeitos pretendidos e reclamados pelos embargantes, mesmo que entendidos como implicitamente – a restituição do imóvel e cessação do contrato de Comodato – mas que inquestionavelmente encontravam-se contidos na pretensão.

15. Mais, é entendimento que o critério constante no artigo 609.º, n.º 1, do CPCiv., e a consideração de que o poder jurisdicional se encontra limitado pelas partes, enquanto corolário do princípio do dispositivo (artigo 3.º CPCiv.), não deve ser entendido de forma radical, ou seja, no sentido de que a decisão deve sempre corresponder ipsis verbis à pretensão contida na conclusão.

16. De facto, seguindo a esteira da jurisprudência do STJ, Ac. de 11 de fevereiro de 2015 proc. n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1, “O princípio do dispositivo impede que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, mas não obsta a que profira decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada”.

17. Resulta claro que desde o início do litígio os executados / embargantes pretendem a restituição do imóvel, e a consequente cessação do Contrato de Comodato Vitalício celebrado com a exequente / embargada.

18. Assim, é indispensável ao juiz um “esforço interpretativo” que lhe permita apreender realmente o âmbito objetivo do pedido formulado, tendo o meritíssimo juiz a quo, nesse esforço, procedido a uma alteração da qualificação jurídica da cessação ínsita na notificação judicial, entendendo que esta comportava uma vontade expressa e inequívoca dos comodantes em por termo ao contrato e haver para si a coisa comodatada.

19. A materialidade fática constitutiva do direitoinvocado pelos embargantes / executados permaneceu inalterada, tendo o tribunal a quo subsumido estes factos à previsão legal constante no artigo 1137.º, n.º 2, do CCiv.

20. Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, mas valem independentemente da qualificação realizada pelas partes, uma vez que ela não é vinculativa para o tribunal (artigo 5.º, n.º 3, CPCiv.), não se encontrando este sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

21. Esta diferente qualificação não representa qualquer alteração do objeto do processo. Nesta matéria o juiz não se encontra condicionado à fundamentação de direito ou à pretensão expressamente formulada pelas partes.

22. De facto, a alteração da qualificação jurídica constitui matéria de direito, pelo que não estando o juiz sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, CPCiv.), nas questões a enunciar e decidir pode incluir-se matéria de direito que não tenha sido expressamente alegada pelas partes.

23. Por tudo, não existiu qualquer excesso de pronúncia, tendo o meritíssimo juiz do tribunal a quo agido dentro dos seus poderes ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPCiv.

24. Alega a recorrente, que o Contrato de Comodato tinha uso determinado (habitação) e prazo certo (“enquanto a comodatária fosse viva”), pelo que não pode extinguir-se por denúncia, tendo a decisão recorrida violado, nesta parte, o disposto artigo 1137.º, n.º 2, do C.C..

25. O Comodato é celebrado no interesse do Comodatário que adquire o uso da coisa gratuitamente, funda-se em razões de cortesia, de favor ou de gentileza do Comodante para com o Comodatário, representando uma liberalidade a seu favor, sendo um ato de benemerência.

26. Por todas estas razões, o Comodato é estruturalmente uma situação de duração limitada que não consente uma subsistência indefinida, sendo que um uso genérico e abstrato suscetível de subsistir indefinidamente atingiria a própria noção de comodato plasmada no artigo 1129.º CCiv., que integra a obrigação de restituir e, assim, revela o carácter temporário do uso (Ac. STJ, de 26 de junho de 1997 proc. n.º 97A334 – Relator: Fernando Fabião e Ac. do STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1 – Relator: Salazar Casanova).

27. Ora, um “uso para habitação” estabelece um uso por tempo ilimitado, devendo estas situações ser equiparadas ao não estabelecimento de qualquer prazo (Ac. STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1, Relator Salazar Casanova).

28. Assim, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado artigo 1137.º do CC (referindo expressamente que um uso para habitação não preenche essa determinabilidade temporal, Ac. STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1, Relator: Salazar Casanova e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Proc. n.º 1564/19.0T8BJA.E1 de 19-11-2020, Ac. STJ, proc. n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1 de 21-03-2019, Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 1275/05.4TBCTB.C1 de 14-09-2010).

29. De tudo, extrai-se que um uso para habitação não delimita temporalmente a necessidade que o Comodato visa satisfazer, pois não contém em si a definição do tempo de uso, não constituindo, como tal, fundamento que obste à cessação ad nutum do contrato por parte do Comodante, pois não preenche o disposto no artigo 1137.º, n.º 1, in fine, do CCiv (Ac. Ac. STJ proc. n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S2 de 14 de dezembro de 2021 e Ac. TRL de 04-07-2013, proc. nº 3362/10.8TBFUN.L1-2).

30. Entendendo o contrário, ou seja, admitindo-se que o comodante não pode exigir a restituição da coisa no comodato de imóvel para satisfação de uma necessidade permanente do comodatário (a de habitação), admitiríamos igualmente a possibilidade de nunca vir recuperar a coisa comodada, que é sua.

Estaríamos, assim, perante uma descaracterização do Comodato, convertendo o Comodante numa espécie de doador e impossibilitando-o de reaver a coisa que comodou.

31. O presente contrato estabeleceu um “uso para toda a vida” da comodatária, não tendo sido convencionado qualquer prazo certo.

32. De facto, não existe razão para qualquer diferença de tratamento conferido ao comodato perpétuo ou por um período indeterminado de tempo, de um lado e, de outro, ao comodato sem qualquer fixação de prazo. Pelo contrário a discrepância de tratamento geraria soluções intoleráveis, pois, enquanto que na primeira hipótese, apenas porque foi definido o termo incerto do empréstimo, o comodatário poderia ver assegurado o gozo da coisa por anos, porventura até por toda a vida, na segunda, como o comodante não estabeleceu qualquer momento para a restituição, o comodatário não pode deixar de restituir a coisa logo que lhe for exigido.

33. Logo, uma cláusula que estipule que o Contrato de Comodato dure “até à morte da comodatária” apenas será válida desde que “interpretada no sentido de que não obsta, por imposição da própria lei, a que o comodante possa sempre denunciar o contrato ad nutum” (Ac. do STJ de 15 de dezembro de 2011, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1, Relator: Salazar Casanova).

34. Defendendo esta posição encontra-se a jurisprudência largamente maioritária, sendo exemplos não apenas os acórdãos que citamos em alegações, como os constantes na Sentença proferida em sede de embargos, que aqui damos por inteiramente reproduzidos.

35. Estando em causa um contrato gratuito, não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado por período de tempo indeterminado como é o da própria vida do comodatário.

36. Quando a lei, no artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil, admite a restituição ad nutum “se não foi convencionado prazo para a restituição” tem em vista obstar à restituição apenas quando houve estipulação de prazo certo.

37. Esta é a posição mais consentânea com o sistema jurídico vigente, não apenas porque no actual quadro normativo não seria de aceitar um contrato de comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ter sido estabelecido um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente o uso da coisa.

38. Como também, a vingar a tese dos recorrentes, o entendimento contrário implicaria que o Comodato se tornaria mais sólido que a própria locação, ficando o comodatário numa posição mais sólida e vantajosa e o comodante que cede gratuitamente a coisa, por outro lado, ver-se-ia numa situação substancialmente mais gravosa do que aquela em que ficaria se tivesse querido tirar proveito da coisa, arrendando-a por contrato de duração indeterminada, passível de denúncia ad nutum com a antecedência referida no artigo 1101.º, al. c), CCiv. Ora, num contrato intuitu personae e gratuito – como é o comodato – claramente que não se pretendeu que o comodante ficasse na contingência de não poder reaver a coisa dada em cómodo.

39. Atendendo à natureza jurídica deste tipo Contratual, esta solução não pode ser tolerável pela nossa ordem jurídica.

40. Propugnando a favor desta posição, igualmente vária doutrina (por todos: Menezes Cordeiro “Tratado de Direito Civil XVII – Contratos em Especial”, Almedina, Lisboa, 2018, págs. 166-168 e Menezes Leitão “Direito das Obrigações – Contratos em especial”, Volume III, 11ª edição, Almedina Editora, 2016, pág. 374 (nota 750).

41. Assim sendo, a um contrato de comodato que seja concluído sem fixação de um termo certo ou uso com duração determinada, deve aplicar-se o artigo 1137.º, n.º 2, determinando a possibilidade de cessação do contrato a qualquer momento por decisão unilateral do Comodante assim que comunicada ao comodatário – denúncia (Cfr. Ac. STJ proc. n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S2 de 14 de dezembro de 2021).

42. A denúncia corresponde a uma declaração unilateral reptícia, que consiste numa declaração universal que é emitida por uma das partes num contrato, tendo como destinatário o outro contraente e que apenas se torna eficaz depois de chegar ao poder ou ser conhecida deste, nos termos do artigo 224.º, n.º 1, 1.ª parte, do CCiv.

43. O seu fundamento reside no pressuposto da liberdade de desvinculação, podendo, por isso, ser invocada sem menção de qualquer motivo, sendo exercida ad nutum, de modo discricionário, e tendo como propósito pôr termo a contratos com um período de vigência indeterminado, como é o caso.

44. Esta comunicação e exigência de restituição ocorreu mediante notificação judicial.

45. Ainda que assim não fora, já durante a pendência dos embargos, e até formalmente em audiência de julgamento a própria embargada / recorrente confessou que os embargantes / recorridos lhe haviam comunicado a intenção de reaver o imóvel comodatado e por termo ao contrato de comodato.

46. Desta feita, deve o Contrato de Comodato ser considerado extinto, por denuncia e ordenada a restituição do imóvel aos embargantes/executados.

47. Por tudo, deve o recurso ser considerado improcedente, entendendo que a decisão do meritíssimo juiz a quo se inseriu no âmbito dos seus poderes de decisão, à luz do artigo 5.º, n.º 3, não existindo qualquer excesso de pronúncia ou alteração do objeto do processo (artigo 609.º, n.º 1, do CPCiv.), mas sim uma diferente interpretação e qualificação jurídica, permitidas pelo direito, nos termos da jurisprudência do STJ já convocada, tendo o pedido e a realidade fáctica que o sustenta permanecido inalterada.

48. Em consequência da extinção do Contrato, ordenar a restituição do Imóvel aos embargantes;

49. Se, porém, V. Exas considerarem o recurso procedente, o recorrido, nos termos do artigo 636.º, n.º 2, requer ampliação do objeto do recurso relativamente a dois segmentos por si invocados em alegações orais e escritas e em que decaiu, designadamente;

a. omissão de pronúncia relativamente à nulidade decorrente do desrespeito pela forma legalmente prescrita para a sua celebração.

b. a desconsideração do tribunal a quo sobre a existência de justa causa de resolução do Contrato de Comodato;

50. Assim, acaso V. Ex.ª entendam considerar o recurso procedente, deverão concomitantemente, conhecendo o objeto ampliado, considerar o Contrato de Comodato nulo por falta de forma.

51. Dado que o tribunal a quo não se pronunciou sobre esta questão sendo a mesma de conhecimento oficioso (artigo 286.º do CCiv.).

52. Este tipo contratual, conforme certa orientação jurisprudencial, configurará, um verdadeiro contrato constitutivo de um direito real de Uso e Habitação, devendo, como tal, sujeitar-se a uma forma de celebração solene (artigos 939.º e 947.º CCiv, conforme seja onerosa ou gratuita, respetivamente), por documento particular autenticado ou escritura pública (por todos: Ac. do STJ de 14 março de 2016 –Relator Ribeiro de Almeida, Coleção Jurídica / Supremo XIV (2006) 1, págs. 128-130).

53. Que o presente contrato de Comodato não respeitou.

54. Assim, conforme disposto no artigo (artigo 220.º CCiv), o desrespeito da forma legalmente prescrita para determinada declaração negocial acarreta a sua nulidade.

55. Esta invalidade pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, devendo tal declaração acarretar a imediata restituição do imóvel aos Comodantes.

56. Noutro prisma, a sentença recorrida considera provado que a Comodatária albergou terceiros, facto que, aliás, esta confessou.

57. O comodato é um contrato de natureza intuito personae, pelo que o uso foi autorizado apenas à comodatária e não a terceiros, sendo, neste caso, sempre necessário o consentimento dos Comodantes, sob pena de violação do artigo 1135.º, f), CCiv.

58 .Os Comodantes não foram informados nem autorizaram o uso do imóvel por terceiros, tendo sido surpreendidos com esse facto.

59. Com este ato a recorrente incorreu na violação da obrigação de não proporcionar a terceiro o uso da coisa (artigo 1135.º, f), CCiv.),

60. Atitude especialmente censurável, pois estes terceiros eram arrendatários dos comodantes que foram despejados por estes de prédio contíguo ao comodado face ao incumprimento no pagamento das rendas por um período de dois anos.

61. Ora, a justa causa legitimadora da resolução do contrato de Comodato presente no artigo 1140.º CCiv., deve ser entendida numa aceção de justa causa, mais fraca, tendo um âmbito mais amplo quando comparado com outros tipos contratuais, face à consideração deste contrato como um ato de benemerência (Ac. STJ, proc. n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S2 de 14 de dezembro de 2021 e Menezes Cordeiro em “Tratado de Direito Civil – Contratos em especial, Vol. XVII, Almedina Editora, 2018, pág. 171).

62. Desta feita, o conceito de justa causa presente no artigo 1140.º preenche-se sempre que estejamos perante qualquer motivo atendível, independentemente das condutas do comodatário, que revele a impossibilidade da manutenção das razões de cortesia que fundamentaram o ato.

63. Assim, se é facto provado (e admitido) que a embargada albergou terceiros na habitação, especialmente conhecendo os motivos para o seu despejo, é igualmente evidente a violação, não apenas do disposto no artigo 1135.º, alínea f), como também de deveres de proteção a que se encontra adstrita, como a lealdade, informação e consideração com a pessoa e o património da outra parte, não devendo relevar a transitoriedade ou excecionalidade dessa guarida.

64. A decisão de dar guarida a terceiros sem autorização dos Comodantes, não apenas conhecendo os factos subjacentes ao seu despejo, mas também considerando que, consigo, os embargantes celebraram um contrato gratuito, demonstram uma especial censurabilidade e falta de respeito na atuação da Comodatária, reveladora de uma deterioração das relações familiares e de cortesia que estiveram na base da celebração do contrato de Comodato.

65. Esta deterioração, acrescendo ao caráter marcadamente pessoal assumido pelo Comodato, mina a relação de confiança, amizade e cortesia existente entre as partes para além de constituir uma violação dos deveres que incumbem à comodatária (artigo 1135.º, alínea f)), tornando inexigível ética e juridicamente a manutenção da relação contratual.

66. A circunstância de acolher os terceiros que o comodante havia acabado de despejar numa sua outra propriedade, representou “uma traição à confiança” dos Comodantes e o colmatar de um processo de múltiplos atos de vingança perpetrados pela comodatária em protesto por, considerando as obras que decorriam na propriedade dada em comodato, ter sido deslocada para uma habitação contígua.

67. A resolução foi realizada de forma legalmente válida.

68. Como tal, existindo justa causa para a resolução, e tendo a mesma sido realizada mediante forma legalmente válida, deve o contrato ser declarado validamente cessado.

E, com qualquer um dos invocados fundamentos, ser ordenada a imediata restituição do imóvel comodado aos recorridos/embargantes.


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A questão que importa decidir é a de saber se o contrato de comodato foi celebrado sem termo determinado, ou se a cláusula “para toda a vida” constitui esse termo determinado.
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Os factos a considerar, são os que resultam do relatório inicial e os seguintes:
1. A execução baseia-se em sentença de 14.06.2019, que conheceu o recurso de decisão proferida pelo Julgado de Paz de Palmela, sentença essa cujo dispositivo é o seguinte:
“Nesta conformidade e pelos fundamentos supra expostos, concedo parcial provimento ao recurso e, em consequência:
Condeno os réus (os ora recorrentes/comodantes) a, no prazo de 30 (trinta) dias, entregarem à autora a fração autónoma denominada “habitação n.º 1” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º …/20100311 (…) e inscrito na matriz urbana n.º (…), sita na Rua do (…), n.º 3;
Mantenho a decisão recorrida quanto ao demais (absolvição do pedido de pagamento de compensação por danos não patrimoniais).”
2. Na aludida sentença, que ordenou a restituição da habitação à comodatária, fez-se constar a seguinte, matéria de facto provada:
1 - Os réus são proprietários, desde 16.05.2014, de um prédio urbano composto por duas moradias para habitação, inscrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal (ap. … de 16.05.2014), descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º …/20100311 (…) e inscrito na matriz urbana n.º (…).
2 – O prédio urbano descrito em 1 é composto por:
2.1 – Habitação n.º 1: área coberta de 58,16 m2; área bruta de construção 61,68 m2; área útil 44,45 m2, correspondente ao número de polícia 3 da Rua do (…), freguesia de (…), concelho de Palmela;
2.2 – Habitação n.º 2: área coberta de 114,80 m2; área bruta de construção 147,46/3 = 49,15 m2; área útil 114,32/3 = 38,11 m2, correspondente aos números de polícia 5, 7 e 9 da Rua do (…), freguesia de (…), concelho de Palmela.
3 – A habitação n.º 1 corresponde a uma única fração autónoma com 3 divisões.
4 – A habitação n.º 2 é composta por 3 frações autónomas, cada uma com 3 divisões.
5 – A autora, juntamente com a sua irmã … (já falecida), nasceu e viveu pelo menos até ao dia 21.05.2014 na habitação n.º 1.
6 – Os pais da autora, já falecidos, viveram nessa habitação n.º 1 ao abrigo de contrato de arrendamento, pelo menos desde abril de 1951 (iniciais arrendatários).
7 – Esse arrendamento transmitiu-se, por morte, para a aqui autora e a sua irmã.
8 – Os anteriores proprietários comunicaram à autora e irmã o direito de as mesmas exercerem a sua preferência na compra do prédio.
9 – Pelo que, por várias vezes, a autora falou com o seu sobrinho, ora réu, para que este comprasse o prédio.
10 – O réu disponibilizou-se a adquirir o prédio, dado que a autora não dispunha de recursos económicos para o fazer, e com o intuito de proporcionar às suas tias uma habitação digna, a qual, até então, não tinham.
11 – Em 31.03.2010, no âmbito do processo H-318/10 da Câmara Municipal de Palmela, requerido por (…), foi efetuada vistoria ao seu prédio sito na Rua (…), n.º 38, contíguo à habitação n.º 1, tendo sido verificado que a parede comunicante com esta última habitação apresentava vestígios de humidade e concluindo-se pela necessidade de rebocar e pintar o pano de parede exterior confinante, motivo pelo qual foi determinada a notificação do então proprietário da habitação n.º 1 (…, senhorio da autora) para facultar o respetivo acesso a fim de serem realizadas as obras de proteção contra a humidade.
12 – Os réus, como primeiros outorgantes, e a autora e a sua irmã, como segundas outorgantes, celebraram um contrato de comodato no dia 21.05.2014.
13 – Acordando, além do mais, que:
13.1 Cláusula 2.ª – Pelo presente contrato, os primeiros cedem gratuitamente às segundas, a habitação, composta por 3 divisões, com a área coberta de aproximadamente 58,16 m2 a qual se destina a habitação das mesmas.
13.2 Cláusula 3.ª – Para além da habitação, as segundas outorgantes têm o gozo gratuito de toda a área descoberta que está envolvente à habitação.
13.3 Cláusula 4.ª – O presente contrato tem duração indeterminada, e termina com a morte das duas comodatárias.
13.4 Cláusula 6.ª – As segundas outorgantes obrigam-se a conservar a habitação e a aceitar quaisquer benfeitorias que os primeiros queiram fazer na mesma.
14 – O contrato de comodato foi celebrado porque os réus tendo adquirido a posição de senhorios no contrato de arrendamento que as mesmas possuíam à data da venda, não queriam que a autora e sua irmã, sendo tias do réu, lhes efetuassem qualquer pagamento de renda por habitarem a referida casa (habitação n.º 1).
15 – Esta alteração de arrendamento para comodato foi discutida em reunião familiar entre a autora, réus e demais sobrinhos.
16 – Nenhum dos sobrinhos da autora, com exceção do réu, se disponibilizou a efetuar a compra do prédio.
17 – No início do Verão de 2014, os réus decidiram, com vista a dotar de condições de habitabilidade as habitações do prédio identificado em 1., fazer obras nas mesmas.
18 – As obras começaram na habitação n.º 2 (composta por 3 frações autónomas com entradas independentes) para que nesta acolhessem o mais rapidamente possível a autora e sua irmã.
19 – As obras na habitação n.º 2 já terminaram.
20 – As obras na habitação n.º 1 iniciaram posteriormente às obras na habitação n.º 2.
21 – Factualmente as obras na habitação n.º 1 não terminaram totalmente por os réus não disporem de verbas para o efeito.
22 – Faltando ainda:
22.1 Na divisão 1 (quarto): um veda luzes na janela, porta, roupeiro embutido, pavimento/rodapés;
22.2 Na divisão 2 (quarto/sala): móvel com prateleiras, porta, pavimento/rodapés, veda luz na janela;
22.3 Na casa de banho: porta, bidé, resguardo de duche, móvel para arrumos;
22.4 Na cozinha / sala / kitchenette: instalar eletrodomésticos.
23 – A habitação n.º 2 (cada fração autónoma) tem a seguinte composição: cozinha, sala, quarto, casa de banho, com condições de habitabilidade, embora com menor dimensão interior e exterior que a habitação n.º 1.
24 – A habitação n.º 2 não dispõe de jardim nem de logradouro e apenas tem um pequeno espaço à entrada traseira na qual a autora tem a máquina de lavar.
25 – Atualmente e após o início das obras na habitação n.º 1, a autora habita gratuitamente uma das 3 frações que compõem a habitação n.º 2, com o número de polícia 9 da Rua do (…).
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3. No requerimento executivo, apresentado em juízo em 02.02.2020, alega-se o seguinte:
“(…) Factos:
1. Por sentença condenatória transitada em julgado (a referida no ponto 1.), foram os executados condenados a entregar à exequente (a comodatária) a casa sita na Rua do (…), n.º 3, (…), denominada "habitação n.º 1" com 58,16 m2 do prédio urbano descrito na Conservatória do Reg. Predial de Palmela sob o número … (…) e inscrito na matriz respetiva sob o artigo (…).
2. Os executados (os comodantes) até ao momento não o fizeram e continuam a recusar fazê-lo.
3. Requer-se, pois, a entrega efetiva da casa.”.
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Factos da presente Oposição por Embargos de Executado:
4. Os embargantes requereram a notificação judicial avulsa da exequente no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, para que fosse notificada nos seguintes termos:
“(…) requer a V. Exa. se digne ordenar notificação avulsa da Requerida (…), comunicando-lhe que os requerentes (…) consideram resolvido o contrato de comodato celebrado em 21.5.2014, referente ao prédio urbano (…), com fundamento em justa causa nos termos do artigo 1140.º do C.Civil, e consequentemente fica a requerida (…) obrigada a proceder à entrega imediata do imóvel, livre de pessoas e bens, no estado de conservação em que o recebeu, sob cominação de pagamento de € 50,00 por cada dia decorrido após a efetivação da notificação”.
5. No requerimento para notificação judicial avulsa os embargantes, além da circunstância de pretenderem dispor do imóvel para a sua filha, que atingiu a maioridade e dela carece para fixar habitação, alegaram como justa causa de resolução o seguinte: a exequente intitula-se proprietária do prédio perante terceiros, injuria e ofende diretamente os executados, colhe as plantas e os frutos das árvores e acolheu familiares no imóvel sem o consentimento dos embargantes.
6. A exequente foi notificada nos termos requeridos pelos embargantes em 28.11.2019.
7. Antes da notificação referida no ponto anterior, na habitação n.º 2, sem qualquer contrapartida financeira, durante cerca de dois meses, a exequente acolheu a sua sobrinha, assim como a mãe e a irmã da mesma, o que aconteceu apenas até à altura em que a sobrinha, a mãe e a irmã arranjaram uma outra casa para viver.
8. A sobrinha, a sua mãe e a sua irmã foram para a habitação n.º 2 vindas de uma casa onde eram inquilinas do embargante, e onde não estavam a pagar a renda com a justificação de que tal casa não estava em condições, pois escorria água das paredes e havia muita humidade.
9. A embargante costumava apanhar fruta das árvores e colher flores do quintal, mas deixou de o fazer há cerca de 4/5 anos.
10. As árvores de fruto e as flores tinham sido plantadas pelo pai da exequente e pela própria.
11. Na altura em que foram feitas as obras, o embargante cortou as árvores de fruto, com exceção de uma romãzeira, de uma oliveira, de duas laranjeiras e das estrelícias que existiam no quintal.
12. No período em que decorreram as obras na habitação n.º 1, a exequente recebeu algumas visitas em que permitiu o acesso e mostrou a referida habitação n.º 1.
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B - Factos não provados
1. A exequente intitula-se proprietária do prédio perante terceiros.
2. A exequente injuria e ofende diretamente os executados.
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Conhecendo.
Como se disse, a questão que importa decidir é a de saber se o contrato de comodato dos autos foi celebrado sem termo determinado, ou se a cláusula “para toda a vida” constitui esse termo determinado, sendo este o pomo de discórdia entre as partes.
No primeiro caso, o contrato é resolúvel a todo o tempo (artigo 1140.º do CC) e, no segundo, a resolução a todo o tempo só é possível quando finda o uso para que a coisa foi comodatada (artigo 1137.º/1, do CC).
O contrato de comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, com a obrigação de a restituir (artigo 1129.º do CC).
São traços determinantes deste contrato a sua gratuitidade, o intuitu personae (natureza pessoal do contrato) e a obrigação de restituir; uma vez que se trata de um empréstimo, de onde decorre a obrigação de restituir quando deixa de ser usada para o fim a que foi comodatada; ou no final do prazo previsto; ou a qualquer momento, caso se não se tenha determinado um prazo para a restituição.
Logo, a restituição (elemento fundamental do contrato) nunca pode ser totalmente aleatória; ou se prevê um prazo, ou a restituição pode ocorrer a todo o tempo.
Esta asserção encontra acolhimento no texto legal.
O recorte desde acordo tipificado continua a ser delineado no artigo 1137.º/1 e 2, do C.C., “se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação”; “se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida”.
De onde se infere que existe uma distinção fundamental quanto à fixação de prazo para o uso da coisa: se foi fixado, a restituição só deve ocorrer no final desse prazo (exceto se ocorrer justa causa, artigo 1140.º do CC); se não foi fixado prazo, o comodante pode pedir a restituição a todo o tempo porque integra na sua esfera jurídica o direito de denunciar o contrato ad nutum (basta um sinal), ou seja, basta a manifestação de vontade do comodatário, por qualquer forma admitida em direito, para que o contrato sem prazo se extinga por denúncia (artigo 1137.º/2, do CC).
A questão agora a dilucidar é saber se a cláusula 4ª do contrato “O presente contrato tem a duração indeterminada, e termina com a morte das duas comodatárias”, pode classificar-se como tendo constituído um prazo fixado pelas partes, ou se a sua duração indeterminada implica a sua classificação como comodato sem prazo.
Entendemos que, não se sabendo em que momento ocorre o decesso seja de quem for (excetuando a eutanásia), também neste contrato se desconhecia, aquando da sua celebração, qual a data em que o imóvel deveria ser restituído por morte das comodatárias.
E voltamos a frisar: a restituição é elemento essencial do contrato, não podendo o comodante perder o domínio daquilo que empresta, ou então, outro direito real se constituiria, e não o direito pessoal creditício de gozo, como classifica a doutrina o comodato (cfr. artigo 407.º do CC quanto à defesa deste direito).
A acolher a tese da recorrente, não estaríamos perante um contrato creditício de comodato, mas sim de um contrato de doação (com a inerente transferência da propriedade) ou de um direito real de usufruto ou de uso e habitação.
O mesmo se diga quanto ao fim do contrato, este sim, foi indicado – para habitação das comodatárias –, mas não se poderia saber até que data o objeto do comodato seria necessário, pela duração incerta que tal implica.
Tal como se decidiu no Ac. TRE de 19-11-2020, Proc.º n.º 1564/19.0T8BJA.E1, que merece a nossa inteira concordância: I - O contrato de comodato, revestindo a característica da temporalidade, não consente a sua subsistência indefinida, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta. II- O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável.
O que nos leva a concluir que a cláusula 4ª acima referida não conferiu um prazo determinado após o qual o imóvel deveria se restituído, o que implica não ter sido fixado um prazo para a restituição.
Assim sendo, uma vez que o comodato não tem prazo, a restituição da coisa pode ser exigida a todo o tempo, bastando a comunicação à comodatária para que o contrato seja resolvido, não havendo necessidade de invocar o motivo, sendo a restituição obrigatória (artigo 1137.º/2, in fine, do CC).
Ora, da matéria de facto provada consta que os recorridos requereram a notificação judicial avulsa da recorrente (ponto 4 dos factos provados da oposição por embargos) comunicando-lhe que consideravam resolvido o contrato de comodato celebrado em 21-05-2014.
Aduziram os embargantes/recorridos um conjunto de factos que afirmam integrar o conceito de justa causa (artigo 1140.º do CC) e ainda um outro motivo, a necessidade do imóvel para habitação de uma filha.
Contudo, atendendo a que ao que dispõe o artigo 1137.º/2, in fine, do CC quanto à possibilidade de resolução do contrato ad nutum (basta um sinal), a notificação judicial avulsa revelou a vontade dos comodatários na resolução do contrato (artigo 436.º/1, do CC), extinguindo-o desta forma, sendo irrelevantes os motivos que se invocaram.
É também irrelevante a alegação de que a recorrente foi surpreendida pelo decidido em primeira instância (resolução e entrega imediata do imóvel após notificação judicial avulsa), uma vez que de tais factos teve a recorrente oportunidade de oferecer contestação porque invocados pelos embargantes/recorridos no articulado da oposição e que deu origem ao ponto 4 da matéria de facto provada em sede de oposição por embargos.
Assim sendo, a apelação só pode improceder porque a douta sentença não nos merece censura.
O que implica também a prejudicialidade de conhecimento do recurso subordinado interposto pelos recorridos.
No sentido do decidido, cfr. também o Ac. TRL de 06-12-2022, Proc.º 8416/21.2T8LSB.L1-8: Para efeitos do artigo 1137.º, n.º 1, do C.C., o uso da coisa emprestada só é determinado se o for por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.
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Sumário: (…)

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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a douta sentença recorrida.

Custas pela recorrente – artigo 527.º do CPC.
Notifique.

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Évora, 15-06-2023

José Manuel Barata (relator)

Cristina Dá Mesquita

Rui Machado e Moura