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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
GRAVAÇÃO ILÍCITA
CRIME DE AMEAÇA
Sumário
I - As gravações e fotografias obtidas por particulares, sem qualquer tipo de incumbência legal ao nível da investigação, podem assumir-se como provas especialmente relevantes em processo penal, podendo, no entanto, conflituar com os direitos fundamentais à privacidade, à palavra ou à imagem dos visados. II - De forma a defender a licitude de gravações e fotografias efectuadas por particulares e admitir a sua valoração no processo penal, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores têm vindo a invocar construções baseadas, essencialmente, em causas de justificação legalmente previstas para afastar a falta de consentimento do visado, argumentando-se, também, em determinadas situações, com base em critérios de redução teleológica do tipo, de sentido vítimodogmático, conducentes à atipicidade da conduta. III - No contexto de um crime de violência doméstica marcado, além do mais, por agressões, ameaças, injúrias, humilhações, gritos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, tudo realizado fora do alcance da observação de terceiros, a gravação da “palavra falada” do arguido, ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para se proteger e demonstrar, em termos probatórios, a violência a que era sujeita. IV –Seja por via do argumento de sentido vítimodogmático, excludente da tipicidade, seja porque a situação pode ser enquadrada nas causas de justificação previstas no artigo 31.º do Código Penal, pois trata-se de um caso em que, num juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação, o interesse público de realização da justiça se deve sobrepor ao direito à palavra do arguido, no âmbito do direito de necessidade, o resultado será o mesmo: a não responsabilidade penal de quem, nas referidas situações, procedeu à gravação. V - Não configura a prática de um crime de ameaça, mas um simples aviso ou advertência, a promessa de um mal futuro cuja concretização dependa de uma conduta do próprio destinatário (que não seja legítima), pelo que o anúncio de uma ofensa corporal destinado a motivar uma conduta em conformidade com o direito poderá consubstanciar uma advertência para o futuro, um mero aviso e não uma ameaça.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 924/20.9PBCSC, A, melhor identificado nos autos, foi julgado pela imputada prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos dos artigos 14.°, 26.°, 152.°, n.°s 1, alíneas b) e c), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 14.°, 26.°, 153.°, n.º 1 e 155.°, n.° 1, alínea c), também do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
« Em face do exposto:
1) Não condeno o arguido A na pena acessória de proibição de uso e porte de arma.
2) Condeno o arguido A pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152°, n° 1, alíneas b) e c), e n° 2, alínea a), n° 4 a 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
3) Condeno o arguido A pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arguidos 14°, 26°, 153°, n° 1 e 155°, n° 1, alíneas a) [com referência ao artigo 145°, n°s 1, alínea a) e 2] e b) do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.
4) Em cúmulo jurídico das penas referidas em 2) e 3), condeno o arguido A na pena única conjunta de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, que suspendo na execução por igual período, com regime de prova, subordinada ao cumprimento, entre outras, das seguintes regras de conduta:
i) Não contactar, por qualquer meio, com a vítima, nem se aproximar da sua residência e do local de trabalho, devendo os contactos relacionados com o filho de ambos (...) serem efectuados por terceira pessoa, já designada ou a designar pelo Tribunal de Família e Menores.
ii) Sujeitar-se a avaliação médica, frequentando consultas relacionadas com a adição de produtos estupefacientes e efectuar os tratamentos pertinentes.
5) Condeno o arguido A na pena acessória de proibição de contacto com a vítima B pelo período de 3 (três) anos e 3 (três) meses, que deverá ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância (artigo 152°, n°s 4 e 5 do Código Penal), devendo os contactos relacionados com o filho ... ocorrer através de terceira pessoa, já designada ou a designar pelo Tribunal de Família e Menores.
6) Condeno o arguido A na pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica (artigo 152°, n° 4 do Código Penal).
7) Condeno o arguido A a pagar à vítima B a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), nos termos do disposto no artigo 21.°, n.°2, da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro.
(…).»
3. O arguido interpôs recurso da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Para além da errónea interpretação e aplicação da Lei e do Direito, o presente recurso tem também como fundamento o erro na aplicação da medida da pena, por parte do Tribunal recorrido.
2. Foi ainda admitida prova nula, e por isso proibida, nos termos do art.º 340.º, 126.º e 167.º, n.º 1, todos do C.P.P. e art.º 199.º do C.P., correspondentes à admissão de uma PEN contendo registos áudio constantes da contracapa dos autos.
3. Ora, salvo o devido respeito – que é muito – não se conforma o Arguido com a Douta Decisão do Tribunal a quo.
4. A prova da gravação áudio efectuada pela Ofendida não é admissível, uma vez que se trata de prova ilícita, proibida e nula.
5. O art.º 26.º, n.º 1 da CRP estabelece que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada.
6. Cai neste âmbito a gravação de conversa a viva-voz, no interior de viatura, estabelecida particularmente, entre duas pessoas.
7. Nos termos do n.º 8 do art.º 32º da CRP, é nula - logo ilícita e proibida - a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada.
8. Conforme o também estabelecido na CRP (v. art.º 18.º, n.º 1), tais preceitos são directamente aplicáveis (e exequíveis por si mesmos), e vinculam entidades públicas (a começar pelos tribunais) e privadas.
9. Por outro lado, o art.º 199.º do C.P. tipifica como crime a gravação, sem consentimento, de palavras proferidas, mesmo que dirigidas ao agente, ou a utilização ou permissão de utilização de gravações mesmo que licitamente produzidas, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as mesmas gravações.
10. Assim, trata-se no caso concreto de uma prova nula na sua obtenção e por isso inadmissível, a prova referente à PEN, na qual consta a gravação áudio apresentada pela Ofendida.
11. Em consequência, não sendo admissível a gravação áudio, não podem ser dados como provados os factos constantes dos artigos 13 a 19 da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo.
12. Condenou o Tribunal a quo o Arguido pela prática de um crime de ameaça, devido à expressão utilizada pelo Arguido dirigida ao seu filho menor.
13. No entanto, o mesmo depôs no sentido de confirmar havê-las proferido, mas no calor de uma discussão com a Ofendida, onde foram proferidas frases que serviram o mero propósito de magoar emocionalmente os envolvidos não tendo qualquer objetivo intencional que não o referido.
14. Tratou-se de uma discussão acalorada onde se referiram coisas sem sentido ou intenção, sendo notório que o Arguido nunca agrediu ou exerceu violência sobre o menor, que o Arguido tem carinho pelo seu filho e que ficou emocionalmente perturbado por não lhe ser permitido estar com ele.
15. A ameaça proferida não se revela apropriada a provocar aos seus recetores medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, como se percebe tomando em conta a postura da Ofendida, que ao invés de sair de casa, proceder a queixa-crime e contar aos pais, escolhe continuar a residir com o filho menor e com o Arguido.
16. Aliás, a Ofendida sentiu-se de tal forma ameaçada, pela integridade física do seu filho, e o menor sentiu-se de tal forma ameaçado com a frase proferida pelo progenitor, que no decorrer de toda a investigação não foi possível apurar da data em que a mesma ocorreu e o seu contexto.
17. Só tendo sido possível provar que tal facto tinha ocorrido, porque o Arguido e Recorrente, arrependido de havê-la proferido, a confessou à Mma. Juíza.
18. Uma a ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, como passível de provocar medo ou inquietação.
19. Pelo contrário, a simples utilização daquela expressão, de forma isolada, sem a utilização de nenhum objecto, e de acordo com o contexto descrito pelos assistentes, não é possível extrair a ilação de que o menor e a Ofendida, como qualquer homem médio colocado nas concretas circunstâncias em que ela se encontrava, levou naturalmente a sério o mal anunciado.
20. O facto de ambos os progenitores continuarem a residir, como se nada tivesse acontecido, é sinónimo de que a ameaça não foi, nem pela Ofendida, nem pelo menor, considerada idónea ou suficiente a provocar medo ou inquietação.
21. Nem nunca o Arguido a proferiu com a intenção de a concretizar.
22. Por não se encontrarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos deste crime, deverá o Arguido e Recorrente ser absolvido do crime de ameaça pelo qual foi condenado pelo Tribunal a quo.
23. Acresce que, o Tribunal entendeu por adequado, necessário e proporcional aplicar ao arguido uma pena única conjunta a 3 anos e 3 meses de prisão, atendendo em conjunto aos factos e à personalidade do agente e às demais circunstâncias elencadas na sentença.
24. O Tribunal suspendeu ainda a execução da pena de prisão, por considerar que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
25. No entanto, não concorda o Recorrente com a aplicação da pena no caso concreto.
26. A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (art.º 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na justa medida, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.
27. A favor do arguido é inegável o facto de não possuir registados quaisquer antecedentes criminais, nem pendência de qualquer outro processo judicial (a não ser a regulação das responsabilidades parentais).
28. Durante a pendência do presente processo, nunca o Arguido tentou contactar com a Ofendida, seus amigos ou familiares, excepto para agendamento das visitas do seu filho menor, contactos esses imprescindíveis.
29. As trocas de mensagens electrónicas, via e-mail, foram sempre sobre assuntos relacionados com o filho menor de ambos, nunca tendo o Arguido encetado qualquer contacto com a Ofendida.
30. A Ofendida encontra-se a residir com o seu pai e as visitas do menor, segundo o relatório social, no âmbito do ARRP ficaram estipuladas através da mediação do CAFAP.
31. O Arguido não é um delinquente, trabalha e provém ao respectivo sustento, não existindo qualquer reincidente na prática delituosa.
32. Apesar de se encontrar afastado da sua família, devido à negligência desta, o que originou que o arguido passasse a maior parte da sua vida institucionalizado, ainda assim, o Arguido consegue manter uma relação cordial com o progenitor, o qual reside no centro de acolhimento para sem abrigo na ....
33. A privação do contacto com o seu filho deixa o Arguido emocionalmente afectado, de acordo com o relatório social. Prova que o Arguido tem uma relação próxima com o seu filho e se preocupa com a proximidade da sua relação com este.
34. O Arguido possui o 9.º ano concluído através de um curso profissional de multimédia.
35. O arguido trabalhou juntamente com o pai da ofendida numa empresa de instalação de GPS, tendo ficado um período de cerca de dois anos em situação de desemprego, por insolvência da empresa.
36. O Arguido trabalha desde abril do corrente ano como operador de posto de abastecimento, ..., com contrato de trabalho a termo incerto, auferindo o vencimento mínimo nacional.
37. O arguido encontra-se socialmente inserido, mantendo convívio essencialmente com uma amiga e companheira desta, alegadamente pessoas socialmente inseridas.
38. Ponderando todas as circunstâncias do caso concreto, as exigências de prevenção geral e especial, e a culpa do Arguido, é forçoso concluir que a pena concretamente aplicada, cumulada com as regras de conduta impostas, excede os limites exigíveis à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, encontrando-se desadequada à satisfação da sua função de socialização.
39. Acresce que, desde o primeiro interrogatório que ao Arguido lhe foi aplicada a medida de proibição de contactos, através de meios tecnológicos à distância, que este cumpriu, sem quaisquer incidentes, tempo mais que suficiente para nele incutir a gravidade da respetiva conduta.
40. Ponderado devidamente o supra exposto, conjugado com a correcta apreciação crítica das atenuantes que militam a favor do Arguido Recorrente, entendemos que a pena concreta aplicada é algo elevada, motivo pelo qual deverá ser objecto de compressão.
41. Face a toda a prova carreada nos presentes autos, só se pode inferir que houve erro notório na apreciação da prova, como a violação dos arts.º 14.º, 40.º, 71.ºe 199.º, todos do Código Penal e art.º 340.º, 126.º e 167.º, n.º 1, todos do C.P.P.
Pelo exposto, deverá a douta sentença recorrida ser parcialmente revogada e substituída por outra, que faça bom uso daquelas normas e das demais, cujo douto e indispensável suprimento desde já se requer a V. Exas., declarando nula a prova correspondente às gravações áudio, absolvendo o Arguido do crime de ameaça e reduzida a pena única ao qual o Arguido foi condenado,
ou caso assim não se entenda, à mera cautela de patrocínio, ser a pena única reduzida, devendo ser suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º do C.P., ainda ser revogada, por excessiva, regra de conduta de proibição de contacto, através dos meios técnicos de controlo à distância pelo período da duração da suspensão da pena, por in casu se revelar adequada às finalidades da punição,
assim fazendo JUSTIÇA !
4. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento, formulando as seguintes conclusões:
1.º
Cremos que, não assiste razão ao recorrente, quer no que concerne à fixação da matéria de facto provada, quer quanto à sua fundamentação, mostrando-se a douta sentença bem fundamentada, aí plasmado todo o processo lógico-dedutivo subjacente à convicção firmada, consentâneo com as regras da experiência e a livre apreciação da prova- cfr. Artigo 127.º do CPP, da medida da pena e da sua execução.
2.º
A fundamentação da matéria de facto, provada e não provada, mostra-se em nosso entender isenta de qualquer reparo, porquanto resulta da análise critica e conjugada de toda a prova produzida em julgamento, da valoração das declarações do arguido e explicações apresentadas pelo mesmo, em conjugação com restante prova, declarações da ofendida que mereceram inteira credibilidade, prova documental e restante testemunhal, bem como gravações em suporte digital.
3.º
Ora, dispõe o artigo 127.º do CPP que “salvo quando a lei dispuser de forma diferente a, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
4.º
O arguido impugna a matéria de facto provada, invocando nulidade de decorrente das gravações efetuadas pela vítima, com o seu telemóvel, que deu origem às transcrições juntas nos autos e suporte dos pontos 13. a 19. da matéria de facto considerada provada.
Contudo ambos, quer o arguido, quer a vítima confirmaram as expressões e contexto em que as mesmas foram proferidas.
5.º
A validade da prova colhida pela vítima mediante gravação, numa situação real de agressão verbal, coação, injúrias, ameaças, e de agressão física iminente, dentro de um veiculo em movimento, com o filho menor atrás, do perigo real de o descontrole do arguido provocar um acidente, mostra-se mais do que justificada e mesmo num contexto de legitima defesa.
6.º
Outra coisa não seria de acolher pois se o agressor escolhe locais privados e fechados para praticar os factos (casa e veiculo), locais sem testemunhas e que impedem a defesa da vitima, a sua fuga, não permitir a uma vitima que se possa defender mediante uma gravação, mormente quando tem um telefone na mão e o arguido lhe exige e coage para que escreva mensagens de forma atentatória do tratamento devido a um ser humano — vide pontos 13. a 19. , isso sim seria atentatório da sua dignidade de pessoa humana e dos direitos consagrados na constituição, pelo que andou muito bem o tribunal a quo na interpretação que fez dos valores e interesses em causa e posição que assumiu.
7.º
A gravação permite com toda a clareza perceber aquilo que foi admitido pelo arguido e confirmado pela vítima, sendo ainda esclarecedor o tom de voz, a raiva, o ódio sem qualquer justificação, o terror que o arguido conseguia incutir na vítima que, submissa, ainda pedia desculpas, sem que conseguisse aplacar a raiva do mesmo.
O arguido submeteu a vítima aos maiores desmandos, indignos da pessoa humana, a “castigos”, melhor diríamos a verdadeiras torturas da sua companheira, com exemplo nas táticas de polícia política das ditaduras.
8.º
Andou, pois, muitíssimo bem o tribunal a quo na análise critica que fez de toda a prova, da análise da invocada nulidade, das penas aplicadas, da sua medida e da sua execução.
9.º
Pese embora o arguido não tenha confessado os factos na sua totalidade, o mesmo prestou declarações, podendo dizer que colaborou com o tribunal, acabando por admitir muitos dos factos, principais e acessórias relevantes para, em conjugação com restante prova, o tribunal a quo firmar a sua convicção nos termos em que o faz, tudo em conformidade com o disposto no artigo 127.º do CPP.
10.º
A gravidade dos factos é muito elevada e também a culpa do arguido, mas nada justifica a forma como este exerceu violência sobre ambas as vítimas, a sua companheira e mãe do seu filho e sobre o filho …, de apenas de 4 anos, que assistia, a quase tudo e ainda lhe viu ser dirigida a expressão referida em 12.!
11.º
Pugnou e pugna este MP pela manutenção da condenação do arguido em ambos os crimes imputados, sendo que a expressão que o mesmo dirigiu no ponto 12 da matéria de facto provada, que a mesma, no contexto em que é proferida, e nos precisos termos, é absolutamente idónea e eficaz a criar grande temor numa criança de 4 anos!
O argumento de que a vítima não saiu de casa após a ameaça dirigida ao filho, pelo que não tinha medo, não assume qualquer relevância pois ela também não saiu de casa apesar de ter sido sujeita, em momentos anteriores, a tratamentos degradantes de um ser humano, mormente os descritos nos pontos 5. e 6..
12.º
Assim, o arguido, pelo poder do terror que conseguia incutir na vítima, obrigou a mesma a ficar de pé, por várias horas, nua e descalça no chão da sala com janelas abertas em pleno inverno, e obrigou-a a manter-se no quarto fechada, não a deixando sequer ir à casa de banho, acabando a mesma por urinar no interior do quarto!- vide pontos 5. e 6. Da matéria de facto provada e parcialmente assumida pelo arguido.
13.º
Também não asiste qualquer razão ao arguido no que concerne à medida da pena principal, condições impostas e penas acessórias, com aplicação de VE e da sua duração pelo tempo integral da pena.
O tribunal a quo tratou o arguido com a dignidade e o respeito que o mesmo enquanto ser humano merece, com respeito pelos seus direitos, analisando os seus injustificados e inexplicáveis comportamentos de grande violência para com as vítimas.
14.º
Assim, o tribunal a quo , como é seu apanágio, tratou o arguido, como o mesmo não tratou as vitimas, a ex-companheira e mãe de seu filho e o filho de ambos com apenas 4 anos de idade!, com respeito e dignidade, motivo pelo qual e assente em relatório da DGRSP, andou bem na fixação da medida da pena, principal e acessórias, quer no quantum quer no que concerne à sua execução, das condições fixadas com vista á sua reinserção, justificando uma pena suspensa a ausência de antecedentes criminais, inserção social, prestação de declarações na sua quase totalidade confessórias, e condições pessoais.
15.º
Assim, pese embora a gravidade dos factos e suas consequências nas vítimas, o tribunal a quo, sem descurar as necessidades de proteção das vítimas, ainda assim entendeu dar uma oportunidade de o arguido cumprir a sua pena em regime não privativo de liberdade, assente em regime de prova e condições, manifestamente adequadas e proporcionais e ainda penas acessórias, todas elas proporcionais, adequadas e suficientes à punição e gravidade dos factos e culpa do agente, muitíssima elevada e finalidades de reinserção.
16.º
O tribunal a quo firmou a sua convicção, que deixou plasmada na matéria de facto e sua fundamentação, encontrando-se a douta sentença bem fundamentada, mormente no que concerne ao percurso lógico subjacente à convicção firmada, da analise critica e conjugada de toda a prova, mormente das declarações do arguido, das testemunhas cujos depoimentos relevaram e dos elementos documentais pertinentes, tudo em respeito pelo disposto no artigo 127.º do CPP, logo uma convicção objetivamente passível de controlo e de acordo com a as regras de experiência.
17.º
Inexiste também no nosso entendimento quaisquer dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º2 do CPP.
5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que o recurso não merece provimento.
6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., o arguido/recorrente respondeu ao parecer do Ministério Público.
Procedeu-se a exame preliminar e, uma vez colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões a apreciar no recurso são:
- da nulidade da prova, no que concerne aos registos áudio;
- do preenchimento do crime de ameaça;
- da determinação da pena conjunta resultante de cúmulo jurídico e regras de conduta a que foi subordinada a respectiva suspensão da execução.
2. Da sentença recorrida
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. O arguido e B iniciaram um relacionamento amoroso em 2011, tendo, desde pelo menos 2016, residindo em comunhão de mesa, cama e habitação na Travessa ..., Cascais e sendo a vítima o único sustento do agregado familiar, uma vez que o arguido se encontrou desempregado durante uma grande parte do relacionamento.
2. Desse relacionamento amoroso nasceu o menor ..., em 15 de novembro de 2017.
3. Desde o início do relacionamento e com maior incidência desde 2017 que o arguido iniciou discussões com B, no interior da residência, com frequência praticamente diária, durante as quais, em pelo menos quatro situações, lhe desferiu estalos na face e empurrões. Ordenou-lhe que arrumasse a casa após o seu trabalho (ciente de que se encontrava em casa a tempo inteiro e desempregado), disse-lhe que era uma má mãe e má influência para o seu filho e que lhe "tira o filho" se a vítima terminar a relação.
4. Em data não concretamente apurada mas situada antes de 2020, durante uma discussão na residência, o arguido desferiu uma chapada na face de B, provocando-lhe dores, bem como a apodou de: "burra, galdéria, puta".
5. Em várias ocasiões situadas durante os meses de Dezembro de 2019 e Janeiro de 2020, o arguido impôs castigos sobre B, obrigando-a a ficar de pé, nua e descalça sobre o chão de mosaico, com as janelas abertas, durante várias horas, exposta ao frio, vindo a vítima a adoecer com constipações devido a tais factos.
6. Noutra ocasião situada no mesmo período temporal, o arguido fechou a vítima no interior do quarto do casal um período de tempo não concretamente apurado, não a deixando sair nem sequer para fazer as suas necessidades, ignorando as suas súplicas para que a deixasse sair, acabando a vítima por urinar no interior do quarto.
7. Em várias ocasiões situadas durante o relacionamento amoroso, com frequência quase diária e maior intensidade a partir de Junho de 2021, o arguido dirigiu as seguintes expressões a B, na residência e durante discussões: "és uma burra, és uma péssima mãe, não vales nada, não sabes fazer nada, puta, nojenta, burra, galdéria, incompetente, não prestas para nada".
8. No dia 17 de Agosto de 2021, no interior da residência, o arguido iniciou uma discussão com B durante a qual ameaçou novamente que se iria suicidar e que lhe iria tirar o filho, perturbando-a.
9. Igualmente em data situada em Novembro de 2021, o arguido disse à vítima que caso não fizesse o que ele queria colocaria termo à sua própria vida e, em seguida, colocou-lhe um caderno à frente para que a vítima delineasse uma estratégia para mudarem de casa, ao mesmo tempo que ingeria comprimidos, um de cada vez, pressionando a vítima para que assumisse uma posição sobre o assunto.
10. Em data situada em Fevereiro de 2022, no quarto do casal, durante uma discussão, o arguido agarrou a vítima pelo pescoço, empurrando-a de seguida para cima da cama e apodou-a de "burra, galdéria, puta".
11. Em várias ocasiões situadas em 2022, durante discussões na residência, com frequência praticamente diária, o arguido dirigiu as seguintes expressões a B: "puta, porca, vaca, estúpida de merda, burra de merda, não prestas para nada, vou-te bater, vou-te tirar da cama à chapada, vou-te dar um estalo nessa cara, vais-te arrepender, vais pagar hoje".
12. Pelo menos numa dessas ocasiões o arguido dirigiu-se ainda ao filho menor ..., dizendo-lhe: "... se alguma vez te vir a fazer o que eu estou a fazer eu vou-te bater tanto que tu nem sonhas".
13. No dia 28 de Maio de 2022, numa discussão no interior do veículo automóvel e enquanto o arguido conduzia, e na presença do filho menor, este ordenou à vítima, aos gritos que saísse de um grupo de Whatsapp de pessoas suas conhecidas e acusou-a de estar a mentir por entender não ser necessário estar naquele grupo, continuando a discussão, gritando-lhe: "isso é um capricho que tu aceitas ter!! (...) estás a mentir porquê? estás!!! (...) és uma mentirosa compulsiva e estás-te a cagar (...)"; e referindo-se depois a um presente que alguém deu ao menor ... e a vítima aceitou, o que desagradou ao arguido e sempre aos gritos: estão a estragar o meu filho e tu estás a aceitar (...) vai para o caralho, cala-te (...) se para ti pode repetir-se aquilo que eu estou a fazer agora eu vou-te bater tanto que tu nem sonhas (...) também não consegues parar de mentir pois não? Aldrabona de merda (...) é isso, manda beijinhos e diz que gostas muito dele (...) o que acabaste de fazer agora vais ter consequências tão graves que tu não tens noção (...) vais tê-lo a chorar baba e ranho vais (referindo-se ao filho menor) (...) eu não te vou bater eu vou-te fazer muito pior que isso, tu vais rezar para que eu te tivesse batido, continua a fazer o que estás a fazer".
14. No dia 29 de Maio de 2022, numa discussão no interior do veículo automóvel a propósito da vida financeira do casal, e enquanto o arguido conduzia, este disse aos gritos para a vítima: "tu és uma burra mentirosa que nem as tuas contas consegues gerir (...) não me vou esquecer do que fizeste agora, tu vais sofrer as consequências disto, e espero que tenhas noção (...) estás a prejudicar o teu filho propositadamente", ao que a vítima solicitou que se organizassem financeiramente e o arguido retorquiu, sempre aos gritos: "organizar-mos não! isso quer dizer que vamos ter contas conjuntas e isso não vai existir, tu és uma burra de merda (...) fecha a janela agora! (...) exacto então fica só a pensar ó estúpida de merda, fica calada a pensar! (...) tás-me a tratar mal e achas que eu não te vou fazer o mesmo? (...) a roubar dinheiro aos teus avós, ó ladra de merda? (...) não me vás buscar a horas decentes não, vais ver o que te acontece! (...) vais-te arrepender de tudo o que me estás a fazer, vê as horas que são, ainda bem que sabes as horas que são, não te queixes mas não te queixes mesmo porque tu vais sofrer, vais sofrer como nunca sofreste na vida (...) obrigaste-me a vir mais cedo e aquilo que eu te estou a dizer é que vais sofrer consequências disso".
15. No mesmo dia, noutra discussão no interior do veículo automóvel, o arguido disse à vítima, aos gritos: "eu antes de me despedir vou ao Hospital e vou provar que estou com uma depressão crónica por tua causa e por essa razão eu não consigo trabalhar e tu vais pagar uma indemnização garanto-te, mas estou-te a dizer uma indemnização das grandes, daquelas que todos os meses parte do teu ordenado é meu, ou então vais ter que ir dar a cona para pagares de uma vez só".
16. No dia 2 de Junho de 2022, numa discussão no interior do veículo automóvel conduzido pelo arguido e aos gritos, enquanto conduzia, sendo audível (em registo áudio) a velocidade elevada imprimida ao veículo, o arguido, enfurecido porque estava atrasado, disse para a vítima: "vais pagar caro B, eu espero que o carro do teu avô não morra a meio, meu", ao que a vítima respondeu, assustada: "só não quero é que o carro se despiste" e o arguido retorquiu, em altos gritos: "eu estou-me a cagar, não fizesses a merda que estás a fazer, tivesses ontem feito os 10 minutos que eu te pedi logo, ainda vou trabalhar todo mijado caralho, foda-se, ainda por cima vou ter que levar com estes gajos, tu vais mesmo pagar, tu vais mesmo pagar B", ao que a vítima respondeu, em tom muito baixo, assustada: "desculpa..." e o arguido lhe gritou: "não desculpo! eu espero que tu faças alguma coisa, na próxima hora (...) mas continua a bufar B porque eu juro que te bato, não te ponhas normal (...) criança de merda (...) tu vais pagar caro meu (...) estás a brincar com o meu trabalho também, vai-te sair caro B, vai-te sair caro garanto-te (...) ".
17. Em seguida, o arguido, sempre aos gritos, ordenou à vítima que pegasse no seu telemóvel e escrever uma mensagem para o seu patrão, ditando-lhe as palavras que devia escrever e disse-lhe em seguida: "por estas palavras! escreves uma letra diferente do que eu disse e eu vou-te bater agora! brinca com a minha cara! se escreveste uma palavra diferente eu vou-te bater!", obrigando-a a repetir em seguida o que tinha escrito.
18. A vítima obedeceu-lhe leu a mensagem que tinha escrito e o arguido, sempre enfurecido, gritou-lhe e gritando-lhe "não foi assim que eu te disse!!! Já disseste três vezes diferente. Envia. Agora. Ah tu vais mesmo pagar mas vais pagar já hoje (...) podes-te calar e não abrir a boca, vais pagar ainda mais caro (...) vaca de merda (...) Podes continuar a fazer-te de estúpida que eu vou-te dar uma chapada na cara que vais fazê-lo com razão puta (...) não digas nada, arma-te só em estúpida que isso pelos vistos sabes (...) espero que não haja trânsito aqui à frente porque se houver vou-te dar uma chapada na tua cara (...) amanhã até te vou arrancar da cama à chapada, garanto-te, não posso contar contigo para nada pá, és nojenta meu, a maneira como tu me prejudicas, és nojenta meu".
19. Em seguida, em tom baixo, a vítima pediu desculpa ao arguido, ao que este retorquiu, sempre aos gritos: "não, não pedes, tu vais pagar pelo que estás a fazer, não comeces agora a fazer alguma coisa porque vais pagar ainda mais caro, não comeces agora disse eu duas vezes, não comeces agora, continua a fazer cara de estúpida que é para eles olharem para a tua cara de estúpida, isso continua".
20. Numa dessas discussões, no mês de fevereiro de 2022, já na presença da tia da vítima, ..., que a vítima chamou para a socorrer, o arguido dirigiu-se à tia, na presença da vítima, dizendo: "a B não presta para nada, é uma péssima mãe, é uma péssima filha, é uma péssima mulher, é péssima sobrinha", bem como que preferia que o filho ... estivesse aos cuidados de uma instituição social do que aos cuidados da mãe.
21. No dia 16 de junho de 2022, a vítima saiu de casa e passou a residir junto de familiares.
22. Em consequência directa e necessária das condutas do arguido, B sofreu dores físicas, ficou doente, e sentiu tristeza, nervosismo, ansiedade, vergonha e receio pela sua vida e integridade física e do seu filho.
23. Ao agir do modo supra descrito, o arguido pretendeu e sabia que maltratava física, verbal e psicologicamente a vítima B, sua companheira e mãe do seu filho menor, também no interior da residência e na presença do menor, atingindo-a na sua saúde e bem estar físico, emocional e psíquico, provocando-lhe cansaço extremo e desgaste psicológico, amedrontando-a e perturbando-a no seu descanso e sentimento de segurança, impondo-lhe castigos degradantes, provocando- lhe receio pela sua vida e integridade física e ainda ofendendo na sua honra e consideração pessoal, atentando assim contra a sua dignidade humana, tudo o que quis, conhecia e logrou.
24. Com a sua conduta e palavras proferidas, sabia o arguido que as mesmas eram idóneas a provocar receio no seu filho ..., de 4 anos de idade, e nessa razão particularmente indefeso, tudo o que quis, conhecia e logrou.
25. O arguido agiu sempre consciente, voluntária, livre e deliberadamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
26. O arguido não tem antecedentes criminais.
27. Quando se separaram, o arguido passou a viver em casa de uma amiga durante alguns dias, até que foi residir para um quarto arrendado, na morada referida nos autos, encontrando-se a pagar € 275,00 por um quarto, com despesas incluídas.
28. A ofendida foi residir juntamente com o filho, com a avó paterna e com o seu pai.
29. No âmbito do ARRP ficou estipulado pelo Tribunal de Família e Menores de Cascais, que a criança ficava aos cuidados da progenitora, e que as visitas do arguido ao filho seriam mediadas através de um Ponto de Encontro de um Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP), o que ainda não aconteceu por falta de vaga, situação que, de acordo com o referido, deixa A emocionalmente afetado. Assim, apenas pode contactá-lo por meio de chamadas telefónicas e vídeo chamadas, intermediadas pelo avô materno da criança, o que tem acontecido com alguma regularidade. Ficou determinado o pagamento de 150€ de pensão de alimentos ao menor, que tem sido cumprido.
30. Com o 9.º ano concluído através de um curso profissional de multimédia, o arguido trabalhou juntamente com o pai da ofendida na instalação de aparelhos GPS na empresa "Frotcom", tendo posteriormente, por insolvência da empresa, ficado um período de cerca de dois anos em situação de desemprego.
31. A trabalha desde abril do corrente ano como operador de posto de abastecimento, ..., com contrato de trabalho a termo incerto, auferindo o ordenado mínimo nacional.
32. A não tem proximidade com familiares, contactando pontualmente com o progenitor, que reside no centro de acolhimento para sem abrigo na ..., com o qual mantém uma relação cordial, e com a progenitora não mantém qualquer contacto há mais de 10 anos. O afastamento familiar aconteceu na sequência de negligência da família, o que originou que o arguido passasse a maior parte da sua vida institucionalizado.
33. A terá iniciado o consumo de haxixe, juntamente com a ofendida, em contexto recreativo há alguns anos. Afirma ter abandonado o consumo do referido estupefaciente desde a instauração do presente processo, por iniciativa própria e sem necessidade de sujeição a qualquer tratamento.
2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Não se provou:
a) O episódio referido em 20) ocorreu no dia 11.06.2022.
b) A vítima saiu de casa no dia 11.06.2022.
c) No episódio referido em 6), o arguido trancou a porta do quarto.
Não se provaram quaisquer outros factos, sendo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
A convicção do Tribunal foi adquirida a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, bem como da prova documental junta aos autos e com recurso a juízos de experiência comum e à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 127° do Código de Processo Penal.
A prova dos factos descritos nos pontos 1) e 2) assentou nas declarações do arguido, no depoimento da vítima B e na certidão de assento de nascimento do filho ..., que se encontra junta aos autos a fls. 143.
Referiu o arguido que apenas esteve desempregado cerca de dois anos e meio, entre outubro de 2019 e maio de 2022. No entanto, a vítima contou que, quando o seu filho ... nasceu (novembro de 2017), o arguido ficou desempregado e que esta situação perdurou cerca de três ou quatro anos, tendo por referência a idade do menor.
Da mesma forma, as testemunhas ..., mãe da vítima, e ..., amiga do arguido, também referiram que o arguido e a vítima discutiam muitas vezes sobre a vontade que o arguido tinha de mudar de casa, acrescentando que o arguido não tinha rendimentos próprios para pagar uma renda de casa. Apesar de ter estado a trabalhar com o pai da vítima, foi por muito pouco tempo (depoimento da testemunha ...).
No que concerne à conduta do arguido descrita nos pontos 3) a 20) e 22), o arguido admitiu que: a) lhe "pedia" que arramasse a casa quando esta regressava do trabalho (ciente de que se encontrava desempregado, em casa); b) dizia à vítima que era uma má mãe, uma má influência para o filho, uma burra, uma galdéria, uma puta, nojenta, incompetente, porca, vaca, estúpida de merda, burra de merda, que não sabia fazer nada e não prestava para nada; c) por uma vez, mandou a vítima ficar nua, de pé e descalça num chão de mosaico, durante cerca de vinte minutos (as janelas não estavam abertas e a vítima não adoeceu. Não a obrigou, pediu e ela fez); d) mandou-a ficar no quarto, de castigo, durante cerca de três ou quatro vezes, e a vítima fez xixi para dentro de uma garrafa (a porta do quarto não estava trancada. Não ficou mais do que uma hora. Disse-lhe para não sair do quarto, mas ela podia sair...); e) disse-lhe que se iria suicidar; f) ingeriu comprimidos e disse que ia colocar termo à própria vida; g) disse à vítima que lhe ia bater, que a ia tirar da cama à chapada, dar-lhe um estalo na cara, que ela se ia arrepender e que ia pagar; h) proferiu a expressão referida em 12), dirigindo-se ao filho ...; i) dirigiu-se à vítima, nos termos descritos nos pontos 13) a 19), no interior do carro e na presença do filho ... (não seguia em excesso de velocidade).
Negou que bateu na vítima, tendo apenas virado o queixo da mesma para o lado, quando estava deitada sobre a cama, para evitar levar uma cabeçada. Também negou ter dito à vítima que lhe ia tirar o filho se esta terminasse a relação.
Ouvidas as declarações que o arguido prestou em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido, contrariamente ao que contou em audiência de julgamento, admitiu que lhe deu um estalo na cara em "legitima defesa".
Analisadas as declarações do arguido, entende o Tribunal que o arguido praticou todos os factos acima descritos (e não apenas aqueles que admitiu).
Resultou do discurso do arguido e, bem ainda, daquilo que admitiu ter feito e dito à vítima que o arguido se encontra bastante perturbado, apresentando um discurso ilógico, irrazoável e surreal.
Sentiu necessidade de subjugar a sua ex-companheira, mostrando que era ele quem mandava na relação e que a vítima teria que aceitar e cumprir os comportamentos que ditava ("mandava-a para o quarto", "mereces ficar assim para saberes o que eu sofro", "ela escondia a carne que eu comprava", etc).
Referiu o arguido que não lhe incutia castigos. Mas, ao mesmo tempo, também referiu que a "mandava" para o quarto. Ora, não é a mesma coisa? Quem manda noutra pessoa assume que tem um poder sobre ela, que lhe superior e que esta tem que obedecer.
Também referiu que a vítima podia dizer "não" aos castigos ou podia sair do quarto. No entanto, tendo presente o tipo de ordens que o arguido dirigia à vítima - ficar nua, de pé, no chão frio da sala e ficar no quarto - e que a vítima acatava estas ordens, estamos perante alguém que adquiriu uma posição de domínio perante a vítima, em consequência de diversos factores.
Apenas se compreende que a vítima tivesse feito xixi no quarto porque acreditava que não podia ou devia sair do quarto, caso contrário, o normal seria que tivesse ido à casa de banho.
Ao acatar e obedecer a estas ordens que o arguido lhe ditava, a vítima demonstrou uma total submissão, ausência de auto-estima e receio/dependência do arguido, que é tão comum, infelizmente, neste tipo de processos.
O arguido contou ao Tribunal que lhe irritava a forma como a vítima geria o dinheiro. No entanto, tendo presente que o arguido esteve desempregado durante um período de tempo considerável, que a vítima era a única pessoa que trabalhava e que ambos dependiam da ajuda financeira da família da vítima para, p. ex., custear as despesas de supermercado, não se compreende como pode o arguido arrogar-se no direito de reclamar da forma como a vítima gastava o seu dinheiro ou o dinheiro da sua família.
Contou, ainda, que não obrigou a vítima a enviar a mensagem referida em 17) a 19) e que esta podia ter dito que não a ia enviar. No entanto, considerando que o arguido estava aos berros e tendo presente o teor bastante insultuoso e ameaçador destas mensagens e, bem ainda, o restante comportamento do arguido para com a vítima, seguramente que a vítima teve receio de desobedecer ao arguido. Na verdade, apesar de não ter culpa, a vítima, quando estava a ser enxovalhada (e na presença do filho), ainda pedia desculpa ao arguido.
Tal demonstra a fragilidade da vítima e o receio que a discussão assumisse maiores proporções.
O arguido referiu que não isolou a vítima da família e que, se esta não ia aos aniversários e festas de família, era porque não queria. Contudo, o discurso do arguido demonstra bem que tinha uma obsessão: sair de Cascais e afastar a vítima da família.
Se o arguido não tinha rendimentos próprios, se a vítima era a única pessoa que trabalhava (ganhava cerca de € 500,00, segundo a testemunha ...), se viviam numa casa dos pais da vítima a custo quase zero, se os pais da vítima ainda ajudavam financeiramente o casal, se tinham um filho menor a seu cargo, como poderiam dar-se ao luxo de arrendar uma casa, longe da família da vítima que tanto os ajudava? E por que motivo é que este tema era objecto de discussões violentas quando não era um projecto minimamente concretizável?
A obsessão do arguido para com as tarefas da casa também é incompreensível. A vítima passava o dia a trabalhar fora de casa e, quando chegava a casa, tinha que tratar do filho .... Encontrava-se exausta, como referiram muitas das testemunhas e o arguido ainda lhe exigia que executasse as tarefas que fez constar de uma folha exel, que pediu à vítima para assinar.
Referiu que, a partir de certa altura, deixou de fazer quaisquer tarefas da lide doméstica. Assim, como pôde o arguido deixar de fazer as tarefas da casa para punir a vítima? Alguém que passava o dia a trabalhar fora de casa e que ainda tinha um filho pequeno para cuidar. O arguido vivia à custa da vítima e da família desta (casa, carro e ajuda financeira) e ainda achava que podia infligir castigos à vítima, ofendê-la e exigir-lhe que tratasse das lides da casa....
Também referiu que a vítima lhe faltava ao respeito, pois usava saias curtas e decotes...
Referiu que as agressões verbais eram mútuas - arguido e vítima -, o que não foi confirmado por ninguém, nem sequer pela amiga ..., que contou que, durante as discussões que presenciou, a vítima não lhe respondia da mesma forma.
Por fim, contou que nunca disse à vítima que lhe ia tirar o filho, caso esta terminasse a relação. Contudo, a testemunha ..., sua amiga, relatou o contrário.
A vítima B prestou declarações merecedoras de grande credibilidade, tendo-o feito de forma pormenorizada, muito coerente e isenta de contradições.
O seu discurso pareceu muito verdadeiro, atenta a forma muito sofrida com que relatou e descreveu estes episódios. De forma muito clara, simples e emotiva contou ao Tribunal o tipo de violência física e verbal a que foi sujeita por parte do arguido.
Ao longo das suas declarações e à medida que se ia recordando dos diferentes episódios ia-os descrevendo com alguns pormenores próprios de quem, de facto, está a falar verdade.
Em sede de alegações, referiu a Il. Defensora que a vítima não tinha medo do arguido, tinha sim medo que o arguido lhe tirasse o filho ..., apresentando, por exemplo, uma denúncia na CPCJ.
No entanto, se é verdade que a vítima referiu que no início não tinha medo do arguido, também referiu que, mais para o final, ficou assustada com o comportamento do arguido, o que a levou a apresentar queixa crime. Ademais, tendo presente aquilo que o arguido dizia à vítima ("vou-te bater tanto que tu nem sonhas", "vais ter consequências tao graves que tu não tens noção", "eu não te vou bater, eu vou-te fazer muito pior que isso, tu vais rezar para que eu te tivesse batido", "vais ver o que acontece", "vais-te arrepender de tudo o que me estás a fazer", "vais sofrer como nunca sofreste na vida", "eu juro que te bato", etc), aos gritos e na presença do filho menor, é expectável e normal que a vítima tivesse sentido medo do arguido.
A Il. Defensora também referiu que uma vítima de violência doméstica sabe com exactidão o dia, as horas e os locais de todos os factos.
Errado.
Diz-nos a experiência que estando em causa a prática frequente dos mesmos factos e tratando-se de uma vítima exausta, sem auto-estima, submissa, o normal é que perca a noção do tempo, não conseguindo enquadrar com exatidão o momento da prática dos factos.
O depoimento da vítima B foi corroborado pelo depoimento de todas as testemunhas e pela pen que contém áudios de gravações efectuadas pela vítima, relativas a conversas que o arguido teve com a vítima.
O Tribunal já se pronunciou pela validade destas gravações. No entanto, ainda que tivesse concluído pela nulidade deste meio de prova, o arguido sempre reconheceu que se dirigiu, verbalmente, à vítima e ao filho ... nos termos descritos nos pontos 4), 7), 8), primeira parte, 10) a 20).
A testemunha ..., mãe da vítima, contou que a sua filha a chamou várias vezes a casa, desesperada, quando discutia com o arguido.
Referiu que a sua filha não lhe atendia o telefone e, quando o fazia em casa, despachava-a. A vítima deixou de ir à casa da mãe e pediu-lhe que não fosse a sua casa (onde residia com o arguido), para evitar confusões. Quando passava à porta de casa da filha, esta descia logo com o filho ..., para evitar que a testemunha, a sua mãe, subisse.
Confirmou que ajudava o casal, deixando-os residir numa casa que lhe pertencia, onde só pagavam água, luz e gás. Também os ajudava financeiramente. Contou que a sua filha andava exausta e ainda tinha que cuidar do filho. Quando ia ao supermercado tinha que levar o ..., pois o arguido raramente ficava com ele sozinho.
Baseando-se no depoimento desta testemunha, que referiu que a filha chegou a sair de casa e a ir para sua casa, por poucos dias, reatando depois com o arguido, a Il. Defensora sustentou que quem sai de casa, com receio da outra pessoa e tendo apoio da família, não volta para casa. No entanto, mais uma vez é algo comum às vítimas de violência doméstica, que ora se separam, ora reatam. A dependência emocional e a fragilidade e exaustão das vítimas não lhes permite agir de forma racional.
A testemunha ..., irmão da vítima, também confirmou que a relação da irmã e do arguido era muito conflituosa. Ouviu-o dirigir-se à irmã, chamando-a de porca, puta, badalhoca, nojenta, galdéria, dizendo-lhe ainda que não valia nada, que era uma merda de mãe e que não prestava para nada.
Esta testemunha ainda viveu uns meses em casa da vítima e do arguido. Uma vez, vendo o arguido muito alterado, agressivo e a aproximar-se da vítima, sentiu necessidade de se meter no meio, com medo do que o arguido pudesse fazer à sua irmã.
Também viu, uma vez, a irmã nua, descalça e de pé no chão da sala, encontrando-se as janelas abertas. Era inverno. Explicou que ficou sem reacção e foi logo para o seu quarto, tendo ainda visto as lágrimas da irmã a descerem pela cara abaixo.
Poder-se-á questionar: porque é que a testemunha não reagiu? Por que não foi tapar a irmã e fechar as janelas?
A testemunha explicou que ficou sem reacção, sem saber o que fazer. E ainda hoje se arrepende de não ter feito nada.
A testemunha ..., tia da vítima, também confirmou que a sua sobrinha se afastou e que arranjava desculpas à última da hora para faltar às festas e aniversários da família (estava com dores de cabeça, p ex).
Confirmou o facto descrito no ponto 20), que foi negado pelo arguido.
Contrariamente ao que referiu a Il. Defensora, a testemunha não soube precisar a data exacta deste episódio, referindo, por diversas vezes, que não se recorda com precisão da data, talvez há um ano, ou talvez há menos. Conseguiu, contudo, descrever com rigor o que ouviu do arguido, o que a deixou muito chocada.
Por fim, a testemunha ..., amiga do arguido, começou por dizer que o arguido era uma boa pessoa, calma, controlada e nada impulsiva. Contudo, quando foi confrontada com as palavras que o arguido reconheceu ter dito à vítima, ficou em silêncio, sem saber o que dizer.
Acabou por referir que também ouviu o arguido dizer à vítima que se ela saísse de casa, a iria meter em Tribunal e que iria apresentar queixa à CPCJ (diferente do que disse o arguido). Também o ouviu chamar a vítima de puta e de burra de merda, com frequência. A vítima não lhe respondia da mesma forma (diferente do que disse do arguido), limitando-se a pedir-lhe para parar e, já mais para o fim, a pedir desculpa (para não haver uma escalada na discussão).
Deste modo, todas as testemunhas que foram ouvidas em audiência de discussão e julgamento e a pen que consta do processo com gravações de discussões entre o arguido e a vítima corroboraram as declarações da vítima.
Em suma, a solidez e coerência das declarações da vítima, corroboradas por outros meios de prova, permitem ao Tribunal concluir, com a necessária e exigida segurança, que o arguido praticou estes factos.
A prova do facto descrito no ponto 21) assentou nas declarações da vítima, que não teve quaisquer dúvidas em afirmar que saiu de casa no dia 16 de junho de 2022.
No que tange aos factos descritos nos pontos 23) a 25), teve-se em atenção a natureza, gravidade e o carácter reiterado dos factos praticados, contra a sua companheira, muitas vezes na presença do filho, na residência comum. Teve-se, ainda, em atenção as regras da lógica e da experiência comum que nos dizem que qualquer cidadão médio colocado na posição do arguido saberia que não poderia actuar desta forma e que, ao fazê-lo, estaria a adoptar condutas claramente proibidas e punidas por lei penal.
Teve-se, ainda, em atenção o teor da expressão proferida contra o filho, a idade do mesmo e, por fim, o facto de o menor ... ter presenciado muitos episódios de violência do pai contra a mãe, o que seguramente contribuiu para atribuir veracidade à ameaça do arguido e ao medo sentido pelo filho.
A respeito da ausência de antecedentes criminais, o Tribunal teve em atenção o CRC junto aos autos.
No que concerne às condições de vida do arguido - pontos 27) a 33) -, teve-se em atenção o relatório social que se encontra junto aos autos e as declarações que o arguido prestou em audiência de julgamento.
Relativamente aos factos que não resultaram provados, tais factos não foram confirmados pela vítima ou por outros meios de prova, sendo que, a respeito da alínea a), a vítima referiu que esta situação ocorreu no mês de Fevereiro de 2022 ( e não no dia 11.06.2022), em relação à alínea b), referiu que saiu de casa no dia 16.06.2022 (e não no dia 11.06.2022) e, a respeito da alínea c), referiu que a porta do quarto estava fechada, mas não trancada.
***
3. Apreciando
3.1. Alega o arguido/recorrente que o tribunal firmou a sua convicção a partir de registos áudio gravados pela vítima que constituem “prova ilícita, proibida e nula” por terem sido obtidos mediante abusiva intromissão na vida privada, invocando, a esse propósito, os artigos 26.º, n.º 1 e 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, 199.º do Código Penal e 126.º do C.P.P.
A sentença recorrida pronunciou-se sobre essa questão do seguinte modo:
«Sustenta o arguido, no requerimento que juntou aos autos no dia 25.10.2022, que os registos áudios que foram gravados pela vítima constituem um meio de prova proibido, na medida em que foram obtidos mediante abusiva intromissão na vida privada - artigos 26°, n° 1 e 32°, n° 8 da Constituição da República Portuguesa, 199° do Código Penal e 126° do Código de Processo Penal.
Em consequência, defende que este meio de prova não deve ser admitido e valorado, arguindo a nulidade do mesmo.
O Ministério Público pronunciou-se pela validade deste meio de prova (promoção de 31.10.2022).
Apreciando.
Em tese, as proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva, as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais», (cfr. Costa Andrade in "Sobre as proibições de prova em processo penal", Coimbra Editora, 1992, p. 83).
Reflexo deste entendimento, encontra-se plasmado no artigo 126° do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "métodos proibidos de prova", que refere, no seu n° 3, que "ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular".
Seguindo muito de perto a jurisprudência do Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, diremos que, sendo o processo penal «direito constitucional aplicado», "ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.°/ 3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais. É o caso de normativos como os já acima referidos arts. 187. CPP ou 6.° da Lei 5/2002, em concretização ainda do respeito pelos direitos fundamentais contemplados nos arts. 26.° e 34.° da CRP".
Continua dizendo: "No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade. Bem ilustrativo desta linha de concretização legislativa se revela o normativo inserto no art. 167.° do CPP ao fazer depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal" (cfr. Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, Proc. n° 10210/2008-9, disponível nas bases de dados da dgsi).
Aqui chegados, cumpre verificar se estamos ou não perante um crime de gravações
ilícitas.
Assim, refere o n° 1 do artigo 199° do Código Penal que incorre na prática de um crime quem, sem consentimento, "gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas" ou "utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas".
Na senda de Costa Andrade, "o art. 199.º contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis". E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, destaca o Senhor Professor, desde logo, que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida "sem consentimento", enquanto a fotografia só será ilícita quando produzida "contra a vontade", o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa (para maiores desenvolvimentos, cfr. Costa Andrade in "Comentário Conimbricense do Código Penal", em anotação ao artigo 199).
Mas voltemos ao caso...
A vítima B procedeu a gravações de uma conversa que o arguido teve consigo, sem que tivesse obtido da parte deste o necessário e prévio consentimento. Encontram-se, por isso, preenchidos os elementos do tipo legal (artigo 199° do Código Penal).
Diríamos, portanto, numa análise mais superficial, que a gravação é ilícita e que, consequentemente, não poderá servir de meio de prova (nem tão pouco as transcrições da gravação, por dela decorrerem). Todavia, como bem chama a atenção o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, "ao estabelecer-se, no art. 167.° do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo.
(...) Importa, porém, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude ou mesmo da culpa configuráveis no caso. Tal como salientado por Costa Andrade (Comentário cit.), a razão para algumas controvérsias suscitadas em torno da justificação nos crimes de gravações e fotografias ilícitas radicam sobretudo na necessidade de aplicar velhas causas de justificação (historicamente vinculadas a factos como homicídio, ofensas corporais, dano, etc.) novas expressões de comportamento penalmente relevante», concluindo mais adiante que não há razão nenhuma para não se aplicar a figura da legítima defesa, por exemplo, à gravação da palavra no crime de extorsão, não cabendo o argumento que por vezes costuma contrapor-se da falta de verificação de pressupostos como a actualidade da agressão ou a idoneidade e necessidade do meio".
Idêntica jurisprudência, resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, onde se considerou que "as imagens recolhidas pela assistente só não poderão ser valoradas como meio de prova se a sua obtenção constituir um ilícito criminal, por isso, importa apurar se a conduta da assistente integra um ilícito criminal". E acrescenta: "tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui a obtenção de imagens, mesmo sem o consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento (como p. ex. estado de necessidade, legitima defesa) ou quando enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente" (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, Proc. n° 2499/08.8TAPTM.E1. No mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.06.2012, Proc. n° 914/07.7TDLSB.L1-9, os dois disponíveis nas bases de dados da dgsi).
No caso em apreço, as gravações áudios reportam-se a discussões que o arguido teve com a vítima, aos berros, por vezes na presença do filho menor, onde a insultou, ameaçou e atormentou.
Resulta do teor das mesmas que o arguido se encontrava muito alterado e perturbado, o que é revelador de uma personalidade violenta e impulsiva. Não se coibiu de atormentar a sua ex-companheira, mesmo na presença do filho menor, diminuindo-a enquanto ser humano.
A vítima explicou em audiência de julgamento que sente medo do arguido e que as gravações foram a forma que encontrou de explicar o que se estava a passar, pois achava que ninguém iria acreditar em si ou até conseguir explicar por palavras suas o que se estava a passar com o arguido.
Encontramos um arguido descontrolado e uma vítima submissa, que fala baixo e pede desculpa (mesmo quando não tem de o fazer).
De facto, analisado o teor das gravações e aquilo que a vítima relatou em audiência de julgamento, concluímos que esta se socorreu de um meio necessário para fazer face a um perigo actual e iminente (injúrias e ameaças do arguido).
A situação de perigo não foi criada pela vítima, como resulta das gravações.
Há, ainda, uma manifesta superioridade dos seus interesses em detrimento dos interesses do arguido. Na verdade, ponderados os interesses e os bens jurídicos em confronto (dignidade da pessoa humana vs direito à palavra), fácil é de concluir que o direito do arguido à palavra terá que ceder perante o direito da vítima, hierarquicamente superior e que merece, desta forma, preferência e outra tutela legal.
Em suma, o Tribunal conclui que a vítima B, ao ter gravado conversas que o arguido teve consigo, actuou, pelo menos, em Estado de Necessidade (artigo 34° do Código Penal), não sendo, desta forma, ilícito o facto por si praticado.
E ao não ter praticado um facto ilícito, a gravação pode e deve valer como meio (legítimo) de prova, nos termos do disposto no artigo 167° do Código de Processo Penal.
Termos em que, de harmonia com o disposto nos artigos 167° do Código de Processo Penal e 34° e 199° do Código Penal, declaro válidas as gravações das conversações ntre o arguido e a vítima B.»
Vejamos.
Dispõe o artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), sob a epígrafe “Garantias de processo criminal”, no n.º 8:
«São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.»
Por sua vez, estabelece o artigo 26.º, n.º1, da C.R.P. que:
«A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.»
A própria lei fundamental, porém, no seu artigo 18.º, n.º 2, admite a restrição dos “direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não do respectivo agente e a determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar (cfr. artigo 124.º, n.º 1, do C.P.P.).
De harmonia com o artigo 125.º, do C.P.P., são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei.
Por sua vez, relativamente aos “métodos proibidos de prova”, estabelece o artigo 126.º do C.P.P.:
« 1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.»
Também com relevância para a solução do caso em apreço, importa reter o regime do artigo 167.º do C.P.P., sob a epígrafe “valor probatório das reproduções mecânicas”, ao dispor:
«1 - As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
2 - Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro.»
Finalmente, sob a epígrafe “Gravações e fotografias ilícitas”, dispõe o artigo 199.º do Código Penal:
«1 - Quem sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade:
a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197.º e 198.º.»
Segundo o arguido/recorrente, as gravações de áudio efectuadas pela ofendida, B, de conversas daquele com a mesma, traduzem-se em prova obtida mediante intromissão na vida privada, mediante a gravação não autorizada da sua voz, razão por que considera tratar-se de prova “ilícita, proibida e nula”.
O transcrito artigo 167.º impõe uma condição para que a reprodução mecânica
seja admitida como prova em processo penal: que não seja ilícita, nos termos do direito penal material.
Por outras palavras, é estabelecida uma conexão entre a ilicitude penal substantiva e a inadmissibilidade da prova em processo penal, constituindo a não ilicitude penal substantiva da reprodução mecânica condição essencial para a prova ser admissível - o que não significa que seja, efectivamente, admitida, pois existe, ainda, o crivo de outros critérios gerais sobre a admissibilidade probatória.
Assim, se for de concluir que a conduta traduzida na gravação áudio em causa configura um ilícito penal, não poderá ser atribuído valor probatório à gravação; caso não configure um ilícito penal, tendo sido admitida e a tal não obstando os critérios gerais sobre admissibilidade probatória, será prova válida e sujeita à livre apreciação, nos termos do artigo 127.º do C.P.P.
É sabido que as gravações e fotografias obtidas por particulares, sem qualquer tipo de incumbência legal ao nível da investigação, podem assumir-se como provas especialmente relevantes na descoberta da verdade, podendo, no entanto, conflituar com os direitos fundamentais à privacidade, à palavra ou à imagem dos visados, sendo que os direitos à palavra e à imagem aparecem como os direitos primordialmente violados e penalmente tutelados no transcrito artigo 199.º do Código Penal.
De forma a defender a licitude de gravações e fotografias efectuadas por particulares e admitir a sua valoração no processo penal, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores têm vindo a invocar construções baseadas, essencialmente, em causas de justificação legalmente previstas para afastar a falta de consentimento do visado pelas gravações ou fotografias.
Importa não esquecer que também os particulares no âmbito do processo penal têm um direito à prova, fornecendo às autoridades responsáveis pela investigação elementos importantes – seja porque, muitas vezes, através de gravações ou fotografias dão conhecimento da notitia criminis, seja porque, sendo os próprios particulares vítimas do crime, têm um maior conhecimento de causa e um interesse que não pode ser desconsiderado.
A nossa jurisprudência tem abordado essencialmente a questão a propósito da temática da utilização probatória de gravações obtidas por particulares através de sistemas de videovigilância.
Na identificação dos critérios que são invocados para permitir a utilização processual de gravações ou fotografias obtidas por particulares sem consentimento dos visados, encontramos frequentemente o entendimento de que não constitui crime a obtenção de gravações/imagens, sem o consentimento do visado, sempre que exista justa causa para esse procedimento e não diga respeito ao núcleo duro da vida privada do mesmo (entre muitos, ac. do STJ, de 28/09/2011, proc. 22/09.6YGLSB.S2; ac. TRP, de 23/10/2013, proc. 585/11.6TABGC.P1; ac. TRC, de 10/10/2012, proc. 19/11.6TAPBL.C1; ac. TRL, de 04/03/2010, proc. 1630/08.8PFSXL.L1-9; ac. TRC, de 20/09/2017, proc. 167/15.3PBVFX.C1 - todos respeitantes a fotogramas obtidos através de videovigilância, estando os arestos disponíveis em www.dgsi.pt, como outros que venham a ser citados sem diversa indicação).
Quer no que concerne à realização de gravações e fotografias, quer no tocante à sua posterior utilização, argumenta-se, por vezes, com base em critérios de redução teleológica do tipo, de sentido vítimodogmático, conducentes à atipicidade da conduta, ou justifica-se a exclusão da ilicitude por apelo a causas de justificação.
O direito à palavra e o direito à imagem configuram-se como bens jurídicos autonomamente tutelados pelo artigo 199.º do Código Penal, face à privacidade / intimidade em cujo âmbito começaram por se revelar.
No caso do direito à palavra, que é o que nos importa, são punidas a gravação e a utilização da gravação (e permissão de utilização) sem consentimento – nos casos de utilização ou permissão de utilização, mesmo que a gravação tenha sido licitamente produzida, pelo que a legitimidade na obtenção da gravação não se comunica à sua posterior utilização.
Entre os casos de exclusão da relevância típica ditada pelo comportamento do titular do direito à palavra assinalam-se, habitualmente, as situações das gravações (ou fotografias) feitas sem consentimento dos visados pelas vítimas de crimes como extorsão, injúrias, ameaças, coacção; por aqueles que recebem propostas de corrupção e, em geral, incitamentos à prática de comportamentos ilícitos.
A construção é dogmaticamente suportada pela invocação, inter alia, dos limites imanentes dos direitos fundamentais, no sentido de que o comportamento censurável da vítima das gravações e fotografias determina a perda da dignidade penal e a caducidade da protecção jurídica. De acordo com Schmitt (conforme citação de Manuel da Costa Andrade, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, p. 1219), “quem abusivamente se serve da linguagem para realizar uma conduta típica e ilícita faz caducar a tutela da sua personalidade em termos tais que já não pode ser defendido contra a gravação secreta daquelas mesmas declarações”.
A tese dos limites imanentes dos direitos fundamentais parece estar subjacente à interpretação de Paulo Pinto de Albuquerque do artigo 167.º do C.P.P., ao afirmar poderem ser valoradas como meio de prova as “reproduções da materialidade da palavra criminosa” e da “materialidade da imagem do crime”, porquanto “o art. 26.º, n.º 1, da CRP não reconhece um direito à palavra criminosa e, portanto, o direito penal, incluindo a incriminação do artigo 199.º do CP, não protege a palavra criminosa (…)” (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.º edição actualizada p. 449, em anotação ao artigo 167.º).
Basicamente, no que se reporta à atipicidade, parte-se do princípio de que, nos casos de “palavra criminosa”, a sua gravação pela vítima dessa “palavra”, para utilização como prova, situa-se fora da área de protecção da norma penal.
A doutrina parece apontar, em alternativa, a ilicitude /justificação como a instância indicada para enquadrar dogmaticamente as soluções de não punibilidade dos agentes de gravações e fotografias, fazendo apelo, para além das causas gerais e tradicionais de justificação - consentimento /acordo, legítima defesa, direito de necessidade -, a dirimentes como adequação social, ponderação de bens ou interesses, prossecução de interesses legítimos, situação-de-quase-legítima defesa (Costa Andrade, ob. cit., pp. 1221-1222).
Tem sido sobretudo no âmbito da legítima defesa e do direito de necessidade que a questão é enquadrada, como dirimentes gerais em princípio reservadas aos particulares para a salvaguarda de interesses privados, para além dos que defendem que a exclusão da responsabilidade ocorre em momento prévio, logo em sede de tipicidade, ao abrigo de uma redução teleológica do tipo, como já referimos.
A construção vítimodogmática na determinação da irrelevância penal, por exclusão da tipicidade da conduta, refere-se essencialmente ao comportamento daquele que procede à captação de um facto ilícito-típico com fins probatórios, em que a «vítima» do potencial ilícito de gravações e fotografias ilícitas está a praticar um facto com relevância jurídico-penal, sendo o seu comportamento a desencadear / precipitar a acção de que vem a ser alvo por parte da «vítima» desse mesmo facto.
Pensemos no crime de violência doméstica, que integra o conceito de criminalidade violenta do artigo 1.º, al. j), do C.P.P.
Em muitos casos, as condutas que integram a respectiva tipicidade decorrem de forma oculta, longe da “vista” de terceiros, pois que, reconhecidamente, os maus-tratos físicos ou psíquicos são infligidos, por via de regra, dentro do domicílio conjugal, em contexto intrafamiliar, fora da esfera de observação alheia, o que é garantido, até, pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal.
Em consequência, a prova da verificação dos factos, por força das circunstâncias, pode ser particularmente difícil, já que escasseia a prova directa e, regra geral, só o arguido e a vítima têm conhecimento da maioria dos factos, praticados no recato de uma “impunidade não presenciada”.
No contexto de um crime de violência doméstica como o que está em causa nos presentes autos, marcado, além do mais, por agressões, ameaças, injúrias, humilhações, gritos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, tudo realizado fora do alcance da observação de terceiros e constituindo prática criminosa, a gravação da “palavra falada” do arguido, ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para se proteger e demonstrar, em termos probatórios, a violência a que era sujeita.
Coarctar à vítima / ofendida de um crime de violência doméstica, com as características do aqui em causa – a total submissão/dependência da vítima em relação ao arguido está particularmente documentada no acatamento às ordens / castigos que aquele lhe impunha, de que o episódio em que urinou no quarto é particularmente ilustrativo - a possibilidade de gravar a “palavra falada” do arguido – “palavra” que este usava para a maltratar e cometer um ilícito penal grave --, constituiria uma intolerável limitação da possibilidade de apresentação de meios de prova passíveis de corroborar as declarações que viessem a ser prestadas pela ofendida, situação ainda mais inaceitável e incompreensível se tivermos em conta o que já se sublinhou supra: que o crime em apreço ocorre, na maioria das vezes, “entre quatro paredes”, longe dos olhares de terceiros, sendo comuns as situações em que a vítima não possui quaisquer outros elementos probatórios, para além das suas próprias declarações.
Em casos de gravações (ou fotografias) sem consentimento que sejam efectuadas, por exemplo, pelas vítima de crimes de extorsão, injúrias, ameaças, coacção, relativamente ao agente desses crimes, a exclusão da responsabilidade da vítima que procede às gravações resulta consensual (Costa Andrade, ob. cit., p. 1218).
Como diz Costa Andrade (Sobre as proibições de prova em processo penal, 1992, pp. 242-272, particularmente a p. 255), ao referir-se àquelas situações no âmbito da análise de questões pertinentes à determinação da área da tutela típica e da ilicitude/causas de justificação, em matéria de incriminação por gravações (e fotografias) ilícitas, como momento comum àquelas mesmas situações, «… sobressai um comportamento ilícito ou ao menos, eticamente censurável, por parte da pessoa cuja palavra é, sem o seu consentimento gravada. Igualmente comum e consensual entre a doutrina e a jurisprudência, é o entendimento de que os autores destas gravações não devem ser criminalmente sancionados.»
Seja por via do argumento de sentido vítimodogmático, excludente da tipicidade, seja porque a situação poder ser enquadrada nas causas de justificação previstas no artigo 31.º do Código Penal, pois trata-se de um caso em que, num juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação, o interesse público de realização da justiça se deve sobrepor ao direito à palavra do arguido, no âmbito do direito de necessidade, o resultado é o mesmo: a não responsabilidade penal de quem, nas referidas situações, procedeu à gravação.
Embora a atipicidade ou licitude da gravação levada a cabo pela vítima de outro crime, não implique, por si, a mesma conclusão para a utilização das reproduções respectivas, em virtude de o legislador incriminar expressamente a utilização contra vontade de reproduções licitamente obtidas [al. b) do n.º 2 do artigo 199.º, do Código Penal], afigura-se-nos que as razões que conduzem à atipicidade ou exclusão da ilicitude do comportamento da vítima, devem estender-se à utilização das reproduções em processo penal, como meio de prova. Seria incongruente reconhecer a atipicidade ou a licitude da gravação por parte da vítima, mas julgar punível a utilização daquelas reproduções para prova do crime em processo penal.
Podemos apelar, como fazem alguns autores, à existência de um estado de necessidade probatório cujo fundamento tem por base a afirmação de que a tutela efectiva do direito do particular /vítima de crime que viu ser considerada atípica ou pelo menos justificada a sua actuação no quadro do direito de necessidade (no contexto primário da captação), exige, para ser consequente, que a gravação que obteve possa ser depois efectivamente utilizada para a prova, sobretudo num caso de violência doméstica com as características do aqui em causa.
Não podemos deixar de observar que a jurisprudência dos tribunais superiores de que o arguido/recorrente se socorre para sustentar a sua posição reporta-se à utilização / valoração de prova obtida por particulares – gravações e fotografias - no âmbito do processo civil e não em processo penal.
Os únicos acórdãos citados que se referem ao âmbito processual penal não sufragam a posição do arguido.
Realmente, o acórdão da Relação do Porto, de 27/01/2016, processo 1548/12.0TDPRT.P1, afirma expressamente que pode ser considerada válida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio.
Por sua vez, o acórdão da mesma Relação, de 06/11/2019, processo 457/17.0PAVFR.P1, também se refere à validade como prova da gravação, efectuada pelo particular/vítima de crime, mesmo que efectuada sem consentimento do agente.
Estes acórdãos referem-se a situações distintas da que está em causa nos presentes autos, mas ainda assim não se percebe como pode o arguido/recorrente mencioná-los no recurso sem, aparentemente, se inteirar do seu teor.
Em suma, conclui-se, sem margem para dúvidas, no sentido da licitude das gravações em questão e da sua posterior utilização probatória, pelo que o tribunal recorrido não incorreu em qualquer valoração de prova ilícita, nula e proibida.
Refere o arguido, em sede conclusiva, que a sentença enferma de erro notório na apreciação da prova.
Tal vício, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, do C.P.P., verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).
Julgamos que tal alegação resulta da circunstância de o recorrente integrar as proibições de prova no âmbito de delimitação do erro notório.
Analisada a sentença recorrida, não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta, como também não se verifica, como já se viu, que tenha sido valorada prova proibida.
3.2. O crime de violência doméstica, após a autonomização operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, visa tutelar não só a integridade física da pessoa individual, mas também a sua integridade psíquica, protegendo o bem jurídico “saúde” do agente passivo, no seu sentido mais amplo.
Neste sentido, Taipa de Carvalho identifica a protecção da “saúde” como bem jurídico complexo, abrangendo a saúde física, psíquica, mental e moral, orientada para o desenvolvimento harmonioso da personalidade (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512).
Identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que “é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (actual ou anterior) de afectos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-activa, porquanto em várias hipóteses do art. 152.º são divisáveis deveres legais de garante” (André Lamas Leite, A violência relacional íntima, Revista Julgar n.º 12, Set-Dez. 2010, p. 51).
Essa especial relação – actual ou passada – fundamenta a ilicitude e justifica a punição do agente.
O tipo abrange as situações de violência familiar ou para-familiar reveladoras de um abuso de poder nas relações afectivas, tutelando a integridade da pessoa em determinado contexto de relação, protecção que perdura nas situações de ruptura do casamento ou da relação análoga, retroagindo mesmo à relação de namoro, pelo que a sua razão de ser não reside na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas na protecção da pessoa individual que a integra.
O bem jurídico, segundo Lamas Leite (ob. cit., pp. 49-51), é uma “concretização do direito fundamental da integridade pessoal” (art. 25.º CRP), “mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade” (art. 26.º CRP), ambos “emanações directas do princípio da dignidade da pessoa humana”. Trata-se da protecção da dignidade de quem vive (ou viveu) em relação íntima com outrem. A abrangência do tipo “permite recobrir a integridade física e psíquica, a liberdade, a autodeterminação sexual, entre outros”. Está em causa para este autor o livre desenvolvimento da personalidade humana no âmbito de “uma relação interpessoal dominada por vínculos familiares (conjugalidade ou hipóteses análogas, coabitação) ou análogos”.
No tipo de crime em questão impõe-se proceder sempre a uma avaliação da imagem global do facto, pois tal decorre da própria natureza (e construção) do tipo.
Abrangidos pela violência doméstica estão tanto os casos de “microviolência continuada” (que Nuno Brandão refere como caracterizando-se pela “opressão (…) exercida (…) através de repetidos actos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação” (“A tutela especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, n.º 12, 2010, p. 21-22), como os actos isolados mas intensos.
Nuno Brandão (ob. cit., pp. 19-20) exemplifica como agressões que entram na esfera dos maus-tratos físicos “empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos”. E como exemplos de maus-tratos psíquicos, “os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc ”.
Assim, na violência doméstica podem distinguir-se comportamentos que não assumem relevância típica à luz de outros tipos de crime e comportamentos que podem logo assumi-la. Há condutas que, tomadas isoladamente, pela sua gravidade e intensidade, preenchem logo o crime de violência doméstica, bem como condutas que o realizam atenta já a frequência e a reiteração, tudo dependendo dos específicos contornos do caso e de acordo com uma avaliação da imagem global do facto.
Perante os factos provados, não subsistem quaisquer dúvidas quanto ao preenchimento pelo arguido do crime de violência doméstica por que foi condenado.
Questiona o arguido o crime de ameaças por que foi também condenado.
Lê-se na sentença recorrida:
«O arguido está, ainda, acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arguidos 14°, 26°, 153°, n° 1 e 155°, n° 1, alíneas a) (com referência ao artigo 145°, n°s 1, alínea a) e 2) e b) do Código Penal.
Resulta do artigo 153°, n° 1 do Código Penal que "quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a sua vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias".
O crime de ameaça encontra-se sistematicamente inserido no capítulo IV da Parte Especial do Código Penal relativa aos crimes contra a liberdade pessoa. Pretendeu, assim, o legislador reprimir jurídico-penalmente os ataques ou afectações ilícitas da liberdade individual, acolhendo-a como bem jurídico intrassocial, e tutelando-a enquanto interesse jurídico individual e próprio de cada indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, à possibilidade de, nas múltiplas formas de interacção social, tranquilamente se conformar e dispor de si mesmo, dentro dos limites traçados pela lei.
No mesmo sentido, Américo Taipa de Carvalho defende que " há na verdade, uma conexão íntima entre a paz individual e a liberdade de decisão e de acção. Por isto, as expressões "provocar-lhe medo ou inquietação" e " prejudicar a sua liberdade de determinação" não se referem a bens jurídicos autónomos entre si (paz individual e liberdade de determinação), mas ao bem jurídico liberdade pessoal, que vê na paz individual uma condição da sua realização" (cfr. Taipa de carvalho in "Comentário Conimbricense ao Código Penal", Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 342).
Debruçando-nos sobre o tipo objectivo de ilícito do crime de ameaça, podemos afirmar que o mesmo é constituído pela prática de actos susceptíveis de configurar uma ameaça, a qual deverá corresponder à imputação de um mal (de natureza pessoal ou patrimonial), futuro e cuja ocorrência esteja dependente da vontade do agente.
O mal imputado deverá ser futuro. Neste sentido, veja-se o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 16.04.2008, onde se afirma que crime de ameaça o mal anunciado tem de ser futuro, não estando preenchido o crime se o mal anunciado for iminente (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 16.04.2008, Proc. n° 0717222, disponível nas bases de dados da DGSI).
Na verdade, é a característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir o crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento.
Por outro lado, o mal com que a vítima é ameaçada tem de constituir a prática de um crime de entre aqueles que o tipo legal enumera, ou seja, um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
A ameaça pode, assim, ser praticada por qualquer forma - oral, escrita, gestual -, e para o seu preenchimento, tem de configurar, em si mesma, um facto ilícito típico, que tem de chegar ao conhecimento pessoal do visado ou vítima.
Vertendo as considerações acima tecidas acerca do conceito de ameaça sobre o caso vertente, diremos o seguinte.
O arguido, dirigindo-se ao filho ..., depois de ter insultado a sua ex companheira, disse-lhe: "... se alguma vez te vir a fazer o que eu estou a fazer, eu vou-te bater tanto que tu nem sonhas".
Por conseguinte, não restam dúvidas ao Tribunal que o arguido, ao dizer ao ofendido ... que lhe ia bater muito (se ele se comportasse como o arguido), cominou o ofendido com a prática de um crime contra a integridade física qualificada, de execução futura.
E não estamos perante um acto de execução imediata, desde logo porque o arguido se ficou pelas palavras, nada tendo feito em seguida que pudesse indiciar que tinha a intenção, naquela altura, de acabar com a vida daquele.
O crime de ameaça tal como hoje se encontra consagrado no artigo 153° do Código Penal exige tão só para a sua consumação que a ameaça seja "adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação". De forma diferente, o Código Penal de 1982 concebia o crime de ameaça como um crime de resultado, exigindo para a sua consumação a produção de um receio, medo, inquietação ou prejuízo na liberdade de determinação do ofendido.
Assim, refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.05.2002 (SASTS, 61/67) que "na actual versão do art. 153.° do Código Penal, o crime de ameaça configura-se, não como um crime de resultado e de dano, mas como um crime de mera acção e de perigo. Deve considerar-se existente sempre que a ameaça com a prática de algum dos crimes referenciados na previsão da norma seja susceptível, segundo a experiência comum, de ser tomada a sério pelo destinatário da mesma, atendendo aos termos da actuação do agente e às circunstâncias do visado, conhecidas daquele, independentemente de o destinatário da ameaça ficar ou não com medo ou inquietação ou prejudicado na sua liberdade de determinação".
Por outro lado, trata-se de um crime de perigo concreto, na medida em que, para a sua consumação, não se exige a ocorrência de dano, mas também não se basta com a simples ameaça, sendo necessário que, em concreto, a ameaça seja adequada a provocar no ofendido medo ou inquietação (neste sentido, vide, entre outros os Acórdãos da Relação de Évora de 24.04.2001, CJ, pág. 270 e da Relação de Coimbra, CJ, tomo II, pág. 45).
No que concerne ao critério adoptado para ajuizar da adequação da ameaça, o mesmo "deverá ser objectivo e individual: - objectivo, no sentido de que a ameaça deve considerar-se adequada, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida, bem como a personalidade do agente e a susceptibilidade de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa e - individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada" (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 09.02.2000, in CJ, Tomo I, pág. 147).
Na verdade, estando em causa um crime de perigo concreto, é necessário, para afirmar a respectiva prática, que, através de um juízo ex ante, se reconheça na ameaça perpetrada efectiva potencialidade intimidatória, ou seja, aptidão para criar sentimentos de medo ou de inquietação no visado. E uma vez que o critério de adequação a utilizar para um tal efeito será do tipo objectivo-individual, para se aferir da idoneidade da ameaça, deve levar-se em consideração, além do mais:
i) «as circunstâncias do caso concreto (mal anunciado, sua credibilidade e exequibilidade, forma, tempo e lugar da conduta maléfica anunciada, capacidade do agente para delinquir e seus antecedentes criminais, costumes locais, etc.);
ii) as particulares condições do sujeito passivo (impressionabilidade, passividade, estado psicológico, idade, capacidade de resistência, etc.) e ao conhecimento que o agente activo tenha, no momento da conduta, dessas particulares condições do sujeito passivo (neste exacto sentido, cfr. F. Mantovani, in "Manual de Direito Penal, Crimes Contra as pessoas", CEDAM, págs. 398/399).
Em particular, a ameaça para ser idónea deve ser séria, ou seja, razoavelmente credível na perspectiva da vítima, devendo o mal anunciado aparecer, com verosimilhança, realizável.
Pois bem.
Não se exigindo que o destinatário da expressão se sinta efectivamente ameaçado, há que verificar se a mesma é idónea a causar medo e receio.
Ora, no caso em apreço, o teor da expressão proferida, com uma forte carga intimidatória, a idade de vítima, o facto de o arguido ser seu pai e, por fim, de o ofendido ter presenciado, por diversas vezes, o arguido a insultar a mãe é deveras concludente para considerarmos que a expressão que o arguido proferiu é idónea a causar medo e receio.
A ameaça é agravada pelo facto de estarmos perante uma ameaça dirigida contra um menor, nascido no dia 15.11.2017, tratando-se de uma vítima particularmente indefesa em razão da idade - artigo 155°, n° 1, alínea b) do Código Penal.
É, ainda, agravada nos termos do disposto na alínea a) do n° 1 do artigo 155° do Código Penal (ameaça com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a três anos), atento o disposto nos artigos 143°, 145°, n°s 1, alínea a) e 2 e 132°, n°s 1 e 2, alíneas a) e c) do Código Penal.
A respeito do elemento subjectivo, apurou-se que com a sua conduta e palavras proferidas, sabia o arguido que as mesmas eram idóneas a provocar receio no seu filho ..., de 4 anos de idade, e nessa razão particularmente indefeso, tudo o que quis, conhecia e logrou.
O arguido agiu sempre consciente, voluntária, livre e deliberadamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
Deste modo, na falta de causas de exclusão da ilicitude da conduta ou da culpa, resta concluir que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo disposto nos artigos 153°, n° 1 e 155°, n° 1, alíneas a) - com referência ao artigo 145°, n°s 1, alínea a) e 2 - e b) do Código Penal.»
O arguido/recorrente não questionou a decisão de facto que suporta a condenação, pelo que os factos em causa estão assentes.
A forma de o arguido se dirigir ao seu filho, então com apenas 4 anos de idade, é inaceitável e repreensível.
Importa ponderar se está em causa uma ameaça ou um simples aviso ou advertência.
Estabelece o artigo 153.º, n.º1, do Código Penal:
«1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido (…).»
O bem jurídico tutelado pela norma é a liberdade de decisão e de acção, porque as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade (cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2012, 2.ª edição, pág. 552).
Para além dos demais elementos desse normativo, o tipo objectivo consiste na comunicação de uma mensagem que traduza a prática futura de um mal ao destinatário. O mal futuro há-de consistir no cometimento, pelo agente ou por um terceiro a mando do agente, de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor do destinatário da mensagem ou de terceiro. Tem a mensagem de ser adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do destinatário.
A verificação do crime de ameaça depende, pois, dos seguintes pressupostos:
- anúncio de um mal, pessoal ou patrimonial, que configure, em si mesmo, um facto ilícito típico: o mal ameaçado tem de constituir crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;
- o mal ameaçado tem de ser futuro, não iminente;
- a ocorrência desse mal tem de depender, nas palavras do agente, apenas de si próprio;
- a ameaça tem de ser adequada a provocar medo no destinatário ou a afectar a sua liberdade de determinação.
Como o refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 2008, p. 413), referindo-se ao crime base, «atenta a natureza do crime, não é aplicável a teoria da adequação do resultado à acção, mas a mensagem comunicada tem de ser "adequada" a provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação do destinatário. Isto é, não é necessário que o destinatário tenha efectivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade (daí, se afigurando como mais adequada a qualificação como crime de perigo abstracto-concreto e não como crime de perigo concreto, como pretende TAIPA DE CARVALHO, anotação 23.ª ao artigo 153.°, in CCCP, 1999, nem como crime de perigo abstracto, como defendem SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETIE, 2008: 412, anotação 13.ª ao artigo 153.°; e, na jurisprudência, acórdão do STJ, de 26.4.2001, in SASTJ, 50, 55, e acórdão do TRE, de 24.4.2001, in CJ, XXVI, 2, 270). Nas palavras proferidas por FIGUEIREDO DIAS na comissão de revisão do CP de 1989-1991, “O que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação” (actas CP/Figueiredo Dias, 1993: 500”».
Para se saber se estamos perante o anúncio de um “mal futuro” que se projecta na liberdade de acção e de decisão futura (visando, portanto, o agente limitar ou coarctar a liberdade pessoal do visado), ou antes diante de um “mal iminente” que pode considerar-se já um acto de execução de um dos crimes do catálogo legal, é fundamental a contextualização da situação.
Se para haver crime de ameaça, o mal (anunciado) tem de ser futuro, não importa, porém, que haja uma clara concretização do tempo no qual se pretende concretizar esse mal, bastando que não seja presente (ou passado) e, não menos importante, importa ainda, como já se disse, que a concretização (desse mal futuro) dependa da vontade do agente. A ameaça tem ainda de ser proferida em termos tais que se mostrem adequados a provocar medo ou inquietação, ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado.
Mas, indispensável se mostra ainda que o mal futuro dado a conhecer esteja na dependência da vontade do agente e não da vítima, pelo menos nos casos em que em causa está uma eventual próxima acção ilícita-típica desta.
Não configura a prática de um crime de ameaça, mas um simples aviso ou advertência, a promessa de um mal futuro cuja concretização dependa de uma conduta do próprio destinatário (que não seja legítima).
O anúncio de uma ofensa corporal destinado a motivar uma conduta em conformidade com o direito, em situações, por exemplo, como a relatada no acórdão da Relação de Évora, de 15/05/2012, processo 539/10.0GAOLH.E1, consubstancia uma advertência para o futuro, um aviso que visa alcançar uma conduta conforme ao direito, e não uma ameaça.
Como já dissemos, entendemos que a forma como o arguido se dirigiu ao seu filho, então com apenas 4 anos de idade, é inquestionavelmente inaceitável e repreensível.
Não duvidamos que a criança tenha ficado, efectiva e justificadamente, assustada.
Porém, no contexto em que as palavras foram proferidas - "... se alguma vez te vir a fazer o que eu estou a fazer eu vou-te bater tanto que tu nem sonhas" – e visto o seu teor, verificamos que tais palavras traduzem, afinal, um juízo do arguido que foi de auto-censura da sua conduta, pelo que afigura-se-nos estarmos, apenas, perante um aviso, uma advertência – desajustada e inapropriada, certamente –, tendo em vista condicionar o comportamento futuro do menor, em ordem a que não se comportasse (mal) como o próprio arguido se estava a comportar, e não a uma conduta que se possa considerar integradora da tipicidade de um crime de ameaça.
Termos em que, por se não mostrarem preenchidos todos os elementos típicos do crime de ameaça, cumpre da sua prática absolver o recorrente.
3.3. Questiona o arguido/recorrente a determinação da pena.
Lê-se na sentença recorrida:
« O crime de violência doméstica praticado pelo arguido é punível com pena de prisão de dois a cinco anos - artigo 152°, n°s 1, alíneas b) e c) e 2, alínea a) do Código Penal.
O crime de ameaça agravada é punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Analisando conjuntamente as condutas do arguido, diremos que este actuou sempre com dolo directo, representando a ilicitude dos factos praticados e actuando com a intenção de os realizar (artigo 14°, n° 1 do Código Penal).
É bastante elevada a ilicitude da conduta do arguido, bem como o desvalor da acção.
Com efeito, o arguido, de forma reiterada, molestou física e emocionalmente a sua ex-companheira, adoptando comportamentos lesivos da sua integridade física, honra, liberdade de movimentos e de autodeterminação, paz e sossego, fazendo-a recear pela sua integridade física e vida e causando-lhe receio, medo e intranquilidade.
Também provocou medo no seu filho ..., ao dizer que lhe ia bater tanto que ele nem sonhava.
Foram vários os factos praticados, reiterados, tratando-se de actos de uma grande violência, física e psicológica.
Estes actos eram praticados na residência de ambos e na presença do filho ..., menor de idade.
O arguido não se coibiu de agredir, insultar e ameaçar a vítima, tendo-o feito por diversas vezes, impondo-lhe castigos degradantes e atentatórios da dignidade da pessoa humana.
Foram muitas as situações de violência física e psicológica, que mostram que o arguido não tem auto-controle.
Pese embora tenha admitido a prática de uma grande parte dos factos, não demonstrou estar arrependido, nem ter interiorizado a gravidade e a ilicitude da sua conduta. Justificou sempre as suas condutas, imputando a responsabilidade à vítima (ex: não a obriguei a fazer, ela podia ter dito que não; não gostava da forma como ela desperdiçava o dinheiro; a porta do quarto não estava trancada, ela fez xixi no quarto porque quis; eram mentiras constantes, uma pressão psicológica constante; ela deixava a casa toda suja e não arrumava a casa; era para ela sentir aquilo que eu sentia; ela mentia-me; escondia a carne que eu comprava, etc.).
Demonstrou uma personalidade inconstante, perturbada e impulsiva, tendo tentado explicar o que é absolutamente inexplicável.
Refere o relatório social, a este respeito:
"A não assume a manifestação de comportamentos violentos nas suas relações de intimidade, mas reconhece a existência de comportamentos desajustados no relacionamento com a ofendida, nomeadamente discussões entre o casal, motivadas, de acordo com o apurado, pela imaturidade de ambos os elementos do casal".
(...) O arguido, no plano amoroso, parece revelar alguma imaturidade afetiva e dificuldade em gerir as suas emoções, características que associadas ao consumo de haxixe se apresenta como um fator de risco quando à adoção de comportamentos desajustados, sobretudo em contexto familiar e em situações de inatividade profissional".
Em desfavor do arguido é, ainda, de atender ao elevado índice de criminalidade no que concerne a agressões entre cônjuges e ex-cônjuges e entre unido de facto e ex unidos de facto, sendo elevadas as exigências de prevenção geral positivas.
Há que atender aos danos causados às vítimas - B e .... B sofreu dores físicas, ficou doente, e sentiu tristeza, nervosismo, ansiedade, vergonha e receio pela sua vida e integridade física e do seu filho.
... presenciou muitos destes episódios e, apesar da sua idade (à data tinha 4 anos), ainda ouviu o pai dizer-lhe que lhe ia bater tanto, que nem sonhava.
Em favor do arguido:
Teve um passado de vida difícil. Negligenciado pelos pais, passou por várias instituições até conhecer a vítima, com quem começou a namorar e foi depois viver junto.
Não tem antecedentes criminais.
Encontra-se profissionalmente integrado.
Por conseguinte, o Tribunal entende por adequado, necessário e proporcional aplicar ao arguido as seguintes penas parcelares:
- Pela prática do crime de violência doméstica: 3 anos de prisão.
- Pela prática do crime de ameaça agravada: 6 meses de prisão.
Resta determinar a pena concreta, pelo que temos que lançar mão das regras do concurso de crimes.
Dispõe o artigo 77°, n°s 1 e 2 que "quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes".
A moldura legal da pena única conjunta é de 3 anos de prisão a 3 anos e 6 meses de prisão, pelo que atendendo em conjunto aos factos e à personalidade do agente e às demais circunstâncias acima elencadas, entendemos ser de aplicar uma pena única conjunta a 3 anos e 3 meses de prisão.
Atendendo ao princípio processual segundo o qual "se ao crime forem aplicáveis (...) pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição", impende sobre o Tribunal um "poder-dever ou um poder funcional dependente da verificação dos pressupostos formal e material fixados na lei" para a suspensão da execução das pena (Acórdão da Relação de Coimbra de 20/10/97, CJ, V, p. 53), não correspondendo a uma mera faculdade à disposição do Tribunal.
O Tribunal suspenderá a execução da pena de prisão se, "atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" (artigo 50° do Código Penal).
Vejamos agora se é possível formular ao arguido um juízo de prognose favorável, i.e., se a censura do facto e a ameaça de aplicação da pena de prisão são suficientes para a protecção dos bens jurídicos e para a reintegração do agente na sociedade.
Desde logo, encontra-se preenchido o pressuposto formal, na medida em que ao arguido foi aplicada uma pena de 3 anos e 3 meses de prisão.
Relativamente ao pressuposto material de aplicação deste instituto - o juízo de prognose favorável - entendemos que o mesmo ainda se encontra verificado, na medida em que o arguido não tem antecedentes criminais e está inserido profissionalmente.
Por outro lado, afigura-se-nos também que a suspensão da pena de prisão é compatível com as "exigências de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico" (Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português. Das consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, p. 344), sendo a censura resultante da aplicação de uma pena de prisão, mesmo que suspensa na sua execução, suficiente para tutelar os bens jurídicos da causa, reafirmando-os contrafacticamente.
A respeito da pena de prisão suspensa na execução, determina o artigo 34° B da Lei n° 112/2009, de 16.09, com a redacção dada pela Lei n° 129/2015, de 03.09, que "a suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.° do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio".
No caso em apreço, em face da gravidade dos factos praticados e da reduzida autocritica do arguido, entende-se por necessário, adequado e proporcional que a pena de prisão seja suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.
O regime de prova deverá ser sujeito ao cumprimento, entre outras, às seguintes regras de conduta:
- Não contactar, por qualquer meio, com a vítima, nem se aproximar da sua residência e do local de trabalho, devendo os contactos relacionados com o filho de ambos (...) serem efectuados por terceira pessoa, já designada ou a designar pelo Tribunal de Família e Menores.
- Sujeitar-se a avaliação médica, frequentando consultas relacionadas com a adição de produtos estupefacientes e efectuar os tratamentos pertinentes.
*
B) Penas acessórias:
O Ministério Público requereu a aplicação ao arguido das penas acessórias a que alude o artigo 152°, n°s 4 a 6 do Código Penal.
No que respeita à pena acessória de proibição de contacto com a vítima, refere o n° 5 do mesmo artigo que esta "deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância".
"A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração), quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa ou de intimidação)" - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.05.2010, Proc. n° 258/08.7GDLRA.C1, disponível nas bases de dados da dgsi.
A pena acessória, como pena que é, está sujeita aos critérios de determinação da medida da pena principal, ou seja, aos factores mencionados no artigo 71.° do Código Penal concretamente, é fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo por base "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele".
Chamamos, por isso, à colação as circunstâncias a que fizemos referência a propósito da determinação e fixação da pena principal.
Foram vários os episódios de violência física e psíquica a que foi sujeita.
Esta pena acessória deverá ser cumprida e fiscalizada com recurso aos meios técnicos de controlo à distância, o que se mostra imprescindível para a protecção da vítima.
Não é necessário o consentimento do arguido - artigo 36°, n° 7 da Lei n° 112/2009, de 16.09.
Assim, tem-se por adequada a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de 3 anos e 3 meses, que deverá ser fiscalizada, pelos motivos acima referidos, através de meios técnicos de controlo à distância.
Os contactos relacionados com o filho ... deverão ocorrer através de terceira pessoa, já designada ou a designar pelo Tribunal de Família e Menores.
No que respeita à pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica, tendo presente a gravidade dos factos praticados pelo arguido contra a sua ex-companheira, importa prevenir situações de reincidência, sendo também de aplicar esta pena.»
Em função da absolvição quanto ao crime de ameaça, subsiste apenas a condenação pelo crime de violência doméstica.
Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cfr., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).
Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exacto de pena.
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.
A moldura penal abstracta é de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão.
Assim, dentro da moldura legal, estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. , pp. 227 e segs.).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
Como refere o S.T.J., em acórdão de 17 de Abril de 2008, «as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (proc. 08P571, disponível em www.dgsi.pt; também relativamente à questão da determinação da medida da pena, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J. de 9 de Março do 2006, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss., e o Acórdão do S.T.J., de 29 de Maio de 2008, proc. 08P1145, em www.dgsi.pt).
Volvendo ao caso concreto em apreciação, verificamos que o crime de violência doméstica praticado na pessoa da ofendida apresenta uma ilicitude elevada, tendo o arguido, de forma reiterada, molestado física e emocionalmente a sua ex-companheira, mediante comportamentos lesivos da sua integridade física, honra, liberdade de movimentos e de autodeterminação, paz e sossego, fazendo-a recear pela sua integridade física e vida, causando-lhe receio, medo e intranquilidade.
Como se salienta na sentença recorrida, o arguido não se coibiu de agredir, insultar e ameaçar a vítima, tendo-o feito por diversas vezes, impondo-lhe castigos degradantes e atentatórios da dignidade da pessoa humana.
Como decorre do que se escreve na motivação da decisão de facto, o arguido não demonstrou estar arrependido, nem ter interiorizado a gravidade da sua conduta, imputando a responsabilidade à vítima e tentando justificar e explicar o que é injustificável e inexplicável
Em favor do arguido o seu passado de vida difícil, a ausência de antecedentes criminais e a circunstância de estar profissionalmente integrado.
As necessidades de prevenção especial são significativas, tendo em vista a personalidade do arguido documentada na sua actuação.
As necessidades de prevenção geral são muito elevadas relativamente ao crime de violência doméstica, atenta a sua frequência e gravidade das suas consequências, reclamando a necessidade de se reafirmar, de forma eficaz, a validade das normais incriminadoras e a tutela dos bens jurídicos afectados.
Face ao exposto, no quadro circunstancial que o tribunal tem de ponderar, sopesando as circunstâncias face ao binómio da culpa e da prevenção, entende o tribunal adequada a pena parcelar principal de 3 (três) anos de prisão, que foi imposta na sentença recorrida, e bem assim a suspensão da sua execução, por período que agora se fixa em 3 (três) anos, com regime de prova.
A Lei n.º 129/2015, de 3 de Setembro [entrada em vigor em 3 de Outubro, artigo 7.º], aditou ao regime da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro – que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas -, o artigo 34.º-B (cuja redacção foi alterada recentemente), que dispõe em matéria de suspensão da execução da pena de prisão:
«Suspensão da execução da pena de prisão
1 - A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.
2 - O disposto no número anterior sobre as medidas de proteção é aplicável aos menores, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.»
Com a Lei n.º 129/2015, de 3 de Setembro, o que o Código Penal estabelece como pena acessória surge, também, configurado como imposição de regras de conduta para protecção da vítima no âmbito da pena (de substituição) de suspensão da execução da pena de prisão.
O regime regra nos casos de condenação de um agente pela prática do crime em causa, em pena de prisão suspensa na sua execução, será o da sua subordinação à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, mas sempre se incluindo regras de conduta de protecção da vítima.
O tribunal recorrido entendeu determinar que a suspensão da execução da pena fosse acompanhada de regime de prova, sujeito ao cumprimento, entre outras, às seguintes regras de conduta:
- Não contactar, por qualquer meio, com a vítima, nem se aproximar da sua residência e do local de trabalho, devendo os contactos relacionados com o filho de ambos (...) serem efectuados por terceira pessoa, já designada ou a designar pelo Tribunal de Família e Menores.
- Sujeitar-se a avaliação médica, frequentando consultas relacionadas com a adição de produtos estupefacientes e efectuar os tratamentos pertinentes.
Por outro lado, aquela regra de conduta que consiste na ausência de contacto, por qualquer meio, com a vítima, foi reforçada pela imposição, como pena acessória, da proibição de contacto com a vítima, B pelo período de 3 (três) anos e 3 (três) meses, a ser fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distância, devendo os contactos relacionados com o filho ... ocorrer através de terceira pessoa, já designada ou a designar pelo Tribunal de Família e Menores, para além da pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica.
Não temos nenhuma reserva ao regime de prova imposto, nem à aplicação da pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica.
Em rigor, o arguido, para além da pena única que entende dever ser reduzida – e já dissemos que, pela absolvição quanto ao crime de ameaça, remanesce a pena de 3 (três) anos de prisão, agora suspensa na sua execução por igual período de 3 (três) anos -, apenas se insurge quanto à pena acessória, que reputa de excessiva, de proibição de contacto, com fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância, durante o período de suspensão da execução da pena.
No caso em apreço, a sentença recorrida invocou as circunstâncias referidas a propósito da determinação e fixação da pena principal, terem sido vários os episódios de violência física e psíquica a que foi sujeita a vítima, ajuizando ser a fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância imprescindível para a protecção daquela.
A reiteração das condutas, conjugada com a ausência de sentido crítico por parte do arguido sobre os seus sucessivos comportamentos, como decorre do que consta da motivação da decisão de facto, que causaram na vítima cansaço extremo e desgaste psicológico, amedrontando-a e perturbando-a no seu descanso e sentimento de segurança, impondo-lhe castigos degradantes, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física e ainda ofendendo na sua honra e consideração pessoal, justificam plenamente, pelo receio que as circunstâncias do caso suscitam, a aplicação dos ditos meios de fiscalização e a temporalidade fixada, impondo-se, nessa medida, concluir pela respectiva imprescindibilidade.
A decisão no sentido de suspensão da execução da prisão, constituindo sempre um risco ponderado, não contradiz minimamente, a necessidade imperiosa dos meios de vigilância, como adjuvante à não frustração da fundada esperança de que o arguido, no futuro, não reincida nas condutas que justificam a sua condenação por violência doméstica.
Razão por que entendemos não merecer o recurso, nesta parte, acolhimento.
3.5. Em síntese:
i. há que revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido/recorrente pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arguidos 14.º, 26.º, 153.º, n.º 1 e 155.º, n° 1, alíneas a) [com referência ao artigo 145.º, n.°s 1, alínea a) e 2] e b) do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
ii. importa confirmar a condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n° 2, alínea a), n.º 4 a 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
iii. a pena em questão deverá suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, com regime de prova, nas condições determinadas na sentença recorrida;
iv. finalmente, há que confirmar a sentença recorrida no que toca às penas acessórias impostas, mas com fixação da proibição de contactos pelo tempo de duração da suspensão da execução da pena principal.
3.6. Uma vez que o recorrente obteve o provimento, ainda que parcial, do recurso que interpôs, não é responsável pelo pagamento de taxa de justiça (artigos 513.º, n.º1 e 514.º do C.P.P., na redacção da Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais – R.C.P.).
***
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento parcial ao recurso interposto por A, e, em consequência:
A) Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido/recorrente pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arguidos 14.º, 26.º, 153.º, n.º 1 e 155.º, n° 1, alíneas a) [com referência ao artigo 145.º, n.°s 1, alínea a) e 2] e b) do Código Penal, desse crime absolvendo o arguido;
B) Confirmam a condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n° 2, alínea a), n.º 4 a 5, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
C) A referida pena é suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, com regime de prova, nas condições determinadas na sentença recorrida;
D) Confirmam a sentença recorrida no que toca às penas acessórias impostas, mas com fixação da proibição de contactos pelo tempo de duração da suspensão da execução da pena principal.
Sem tributação.
Lisboa, 23 de Maio de 2023
Jorge Gonçalves
Maria da Graça Santos Silva
Maria José Machado