I - A interpretação da petição inicial como ato jurídico, em conformidade com as regras hermenêuticas previstas nos arts. 236.º a 238.º do CC (por remissão operada pelo art. 295.º do mesmo Código) permite deduzir da factualidade alegada pelo autor, em conjugação com o alcance do pedido formulado, que o autor pretendeu obter a destruição dos efeitos do contrato, pretensão compaginável com a figura da resolução do contrato, que assim se entende como um pedido implícito.
II - Estando em causa o incêndio súbito de um automóvel, alienado por uma empresa a um consumidor, a ausência de prova acerca da concreta causa do incêndio do automóvel e acerca do sujeito a quem a mesma seja imputável (o vendedor, o comprador ou terceiro) deve ser resolvida, de acordo com uma interpretação sistemática e teleológica do regime legal (arts. 2.º, n.º 2, al. d), e 3.º, n.º 2, do DL n.º 67/2003, de 08-04), em desfavor do vendedor profissional.
III - Tendo as instâncias decidido pela resolução do contrato de compra e venda de consumo, tinham poderes para ordenar a restituição integral de tudo o que foi prestado em conformidade com o disposto no art. 433.º, conjugado com o art. 289.º, n.º 1, ambos do CC, ainda que não tivesse sido pedido pela ré, em reconvenção, a restituição do automóvel incendiado.
IV - Os efeitos restitutórios na sequência da invalidade do contrato (declaração de nulidade ou anulação) são norteados pelo princípio da restituição integral, a fim de cada uma das partes ser colocada na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado, devendo este princípio aplicar-se à resolução do contrato (art. 433.º do CC).
V - A liquidação do contrato como efeito da sua extinção deve ter em conta o princípio da justiça comutativa, no sentido de se manter, relativamente às obrigações de restituição, a mesma correspetividade que as partes procuraram entre as prestações realizadas em execução do negócio inválido ou resolvido.
VI - Em caso de resolução do contrato de compra e venda de automóvel usado, deve ser restituído à ré, vendedora, o automóvel incendiado como contrapartida do seu dever de reembolso do preço pago pelo comprador.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. Nos presentes autos de processo comum proposta por AA contra Keicode, Unipessoal, Lda., ambos melhor identificados nos autos, pede o Autor que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 38.080,00, sendo € 25.5000,00 o valor que pagou pela aquisição à Ré do veículo com matrícula ..-ZL-.., € 5.150,00€ o preço da aquisição de um outro veículo que teve que adquirir para se deslocar, € 2.430,00 pela perda do uso do referido veículo e € 5.000,00 por danos não patrimoniais, quantia global a que devem acrescer juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alega os factos em que fundamenta a sua pretensão, mormente a aquisição do referido veículo à Ré, as garantias que lhe foram dadas por esta quanto ao estado veículo, o incêndio do veículo, as necessidades decorrentes da falta do mesmo, os danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu.
Mais alega de direito, invocando os artigos 4.º, nº 1 e 5º, do DL 67/2003, de 8 de abril, bem como os artigos 1º-A, nº1, 1ºA, als. a), b) e c) e 2º do mesmo diploma legal, a Lei da Defesa do Consumidor (Lei 24/96 de 31 de julho, atual redação) e os artigos 913º e seguintes do Código Civil.
2. Citada, a Ré contestou, pugnando pela improcedência da ação.
Alega em síntese que o A. deveria ter alegado e depois provar qual a avaria que provocou o incêndio do veículo, competindo-lhe alegar e provar os necessários pressupostos da não conformidade, sendo que nenhum dos factos relatados pelo A. são enquadráveis na situação de presunção de não conformidade enumerados no artigo 2º, nº2 do Dec. Lei nº57/2003.
Nada diz o A. sobre algum defeito pré-existente do veículo, podendo o incêndio ter ocorrido por uso anormal do veículo, falta de manutenção ou intervenção mecânica desajustada, ou prévio acidente. A existir no momento da venda a anomalia havia de se manifestar logo nos dias seguintes à compra feita pelo A.
Quanto aos danos diz, em síntese, que entende o pedido de compensação pelo valor de custo do veículo nos termos do artigo 921º do Código Civil pela imputação que o A. quer fazer à R. da sua culpabilidade, mas não pode entender que não calcule uma desvalorização do veículo pela respetiva utilização por mais de 6 meses e mais de 16.000km, desvalorização nunca inferior a 20% do valor da viatura, isto partindo da hipótese, meramente académica, de que o defeito que deu origem ao incidente é uma não conformidade. Mais diz não entender o fundamento do pedido relativo à imobilização do veículo, pois nada impedia o A. de ter feito a sua substituição quando muito bem entendesse, como não tem justificação o pedido por danos morais e o de indemnização sobre o valor de aquisição do seu veículo novo, que não têm fundamento legal.
3. O Juízo Local Cível de ... - Juiz . julga a acção e, consequentemente, decide:
“Em face do exposto, julgo a ação parcialmente procedentee, em consequência, condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia de 24.660,00€ (vinte e quatro mil seiscentos e sessenta euros), acrescida de juros de mora vencidos desde 18/11/2021 e vincendos, até integral pagamento, à taxa legal, de 4% ou à que eventualmente a substituir, absolvendo a Ré quanto ao mais peticionado.
Custas por Autor e Ré, na proporção do respetivo decaimento – art. 527º, nos 1 e 2 do CPC »
4. A Ré, Keycode, Unipessoal, Lda, não se conformando com tal decisão, dela interpõe recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por seu acórdão de 13 de setembro de 2022, confirmou a sentença impugnada, concluindo no respetivo dispositivo: “Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Local Cível de ...-Juiz .”.
5. Novamente inconformada, a Ré Keycode interpõe recurso de revista excecional, nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
«A. O presente recurso versa sobre Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que decidiu manter a decisão proferida na 1a Instância.
B. Concretamente está em causa a não pronúncia sobre a revogação do contrato de compra e venda e respetivas consequências e a aplicação da presunção em matéria de ónus da prova instituída pelo Decreto-Lei nº 84/2021.
C. Proferindo decisão que não se caracteriza pela segurança nem permite que fiquem decididos todos os factos que derivam das consequências da decisão proferida.
D. A resolução ou nulidade do contrato de compra e venda nem sequer foi requerida pelo A.
E. E a decisão final nem sequer as aborda, apesar de estarmos no plano da responsabilidade civil contratual.
F. E a decisão não se pronunciou sobre a nulidade do contrato que é até de conhecimento oficioso -Assento nº45/95 do Supremo Tribunal de Justiça.
G. Caso a decisão assumisse a resolução do contrato de compra e venda ou até a sua resolução, ordenaria a entrega do veículo sinistrado à R.
H. A decisão proferida consagra a má-fé e abuso de direito do A., consumidor, porque lhe permite resolver o contrato, receber a indemnização equivalente ao valor do veículo (menos a sua desvalorização pelo uso) e simultaneamente ficar com o veículo sinistrado que tem sempre um valor económico de assinalar.
I. A decisão proferida deveria ter a restituição do prestado, até porque impede a R. de acionar o seu direito de regresso junto do produtor.
J. Na decisão apenas existe como fundamento da decisão a existência do evento que foi o incêndio do veículo e nada mais e não foram concretizados os efeitos da revogação ou nulidade do contrato de compra e venda.
K. A aplicação da Lei das Garantias e da Proteção do consumidor foi feita com claro desequilíbrio beneficiando sem medida o consumidor.
L. A aplicação da Lei das Garantias como foi realizada perpetua a garantia dos automóveis bastando para tal que estes sejam revendidos por comerciantes.
M. A decisão coloca em causa a segurança do comércio automóvel e abre a porta a várias injustiças, por exemplo a existência de uma transformação no veículo ou uma utilização intensiva, que não havendo necessidade de provar o defeito são avarias que vão ter suporte na garantia do veículo.
N. Para o consumidor basta que o veículo não ande e provar que tal acontece, não tendo qualquer outra obrigação, quando o contrato de compra e venda gera obrigações recíprocas.
O. Perante a decisão proferida, a R. nem sequer tem acesso ao software do veículo onde estão registados, os quilómetros, o tipo de avaria, os avisos e até, provavelmente a causa do sinistro.
P. Esta aplicação da Lei abre totalmente a porta ao comércio de automóveis através de sociedades criadas apenas no papel sem património ou a vendedores que se vestem de consumidores.
Q. Não se pode presumir o defeito porque o defeito é a base da presunção legal de que o mesmo existia à data da venda, como aliás acontece nos outros países europeus, nomeadamente em ... onde a proteção do consumidor é ajustada à presunção de que o defeito provado existia à data da venda.
R. A aplicação da Lei feita na decisão abre a porta a enormes abusos por parte dos consumidores, pois permite que mesmo sem qualquer defeito o mesmo se presuma e assim tenham garantia sobre causas que os próprios provocaram.
S. Torna-se evidente que a aplicação da Lei feita não serve os interesses gerais e é capaz de causar mesmo alarme social.
T. Assim, deve ser outra a aplicação da Lei das garantias, onde a prova da existência do defeito tem sempre que ser feita pelo consumidor.
Termos em que se deve anular o Acórdão recorrido nos exatos termos em que foi proferido, com as legais consequências, fazendo-se, assim, a tão costumada
JUSTIÇA!»
6. O Autor apresentou contra-alegações em que pugna pela manutenção do decidido.
7. A Relatora verificou a dupla conformidade e os pressupostos de recurso da revista ordinária, remetendo o processo à Formação constituída nos termos do n.º 3 do artigo 672.º do CPC, a qual admitiu o recurso de revista excecional por Acórdão de 18-01-2023, por entender que de Processo Civil(...)«(...) é manifesto o destacado relevo social da matéria que integra o objeto do presente recurso, donde se justifica o acesso ao terceiro grau de jurisdição, ao abrigo do art.o 672º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil».
E fê-lo, pelos motivos que agora se enuncia transcrevendo um excerto do Acórdão da Formação:
«Impõe-se, pois, afirmar que a matéria atinente ao ónus da prova dos defeitos, no âmbito da venda de bens a consumidores, beneficiou de parco tratamento jurisprudencial ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, tratando-se de matéria com inequívoca repercussão em outros litígios.
Ora, a matéria dos direitos dos consumidores tem vindo a desenrolar, nos últimos anos, um papel determinante na forma como as relações comerciais se estabelecem, justificando, assim, um profuso tratamento legislativo, por um lado, e doutrinário e jurisprudencial por outro.
É por este motivo que consideramos que sempre que se verifique a inexistência de uma jurisprudência consolidada sobre tais matérias, se justifica a intervenção norteadora deste Supremo Tribunal de Justiça, de forma a garantir a certeza e segurança jurídicas.
É o que sucede quanto à questão atinente ao ónus da prova dos defeitos nos casos, como o dos autos, em que está em causa a celebração de um contrato de compra e venda de bens a um consumidor».
8. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto de recurso, as questões a decidir são as seguintes:
I – Das nulidades da sentença e do acórdão recorrido;
II – Do ónus da prova do defeito no âmbito das relações estabelecidas com consumidores;
III – Dos efeitos restitutórios da resolução do contrato.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A) Os factos provados e não provados
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos, que o Tribunal da Relação, indeferindo a impugnação da matéria de facto requerida pela apelante, manteve:
1. A R. dedica-se ao “comércio, importação, exportação, reparação e manutenção de veículos automóveis. Consultoria e assistência técnica relacionada com as atividades desenvolvidas. Mediação de seguros. Intermediação de crédito”
2. O Autor adquiriu à R., na K......, em ..., um veículo marca BMW, modelo 320D, matrícula ..-ZL-..,, ano de fabrico ..., em 06 de novembro de 2019, tendo a venda sido faturada em 15-11-2019, pelo preço de 25.500,00€, que foi pago à Ré através da entrega de outro veículo e o restante com recurso ao crédito.
3. O referido veículo foi entregue ao Autor no dia do contrato.
4. Foi dada garantia ao A. de que o veículo se encontrava como novo e em perfeitas condições a nível mecânico.
5. No ato da compra foi dito pelo vendedor BB ao A. que o veículo tinha todas as revisões efetuadas pelos representantes oficiais da marca, encontrando-se, por isso, em plenas condições de funcionamento, sendo que a próxima revisão deveria ser efetuada até aos 128.000 kms do veículo ou até ao mês de novembro de 2020.
6. No dia 10 de junho de 2020, por volta das 10h, o A. circulava na ... sentido norte/sul, próximo do Km 15,6 (...) quando o veículo disparou um alerta de avaria no propulsor.
7. Ao mesmo tempo, o A. apercebeu-se que começou a sair fumo branco do capô e de imediato encostou e parou o veículo na berma da estrada.
8. De seguida, o A. abriu o capô, deparando-se com o motor em chamas, tendo a viatura incendiado por completo, ficando totalmente destruída.
9. O veículo tinha 104.000kms na data da compra e cerca de 120.000kms na data em que se incendiou, não tendo sido objeto de qualquer manutenção em tal período.
10. O A. utilizara o veículo de forma prudente e a título particular, nas deslocações para o trabalho (é bancário) e para viagens de lazer, em família, não tenho o veículo sido objeto de qualquer manutenção no período de utilização pelo A.
11. O A., em 17 de junho de 2020, enviou uma carta registada com aviso de receção à Ré a denunciar a situação, interpelando-a para acionar a garantia e pedindo o agendamento de reunião com vista a resolver a situação.
12. A Ré respondeu, dizendo que a questão suscitada pelo A. não tinha enquadramento na garantia que prestara e referiu que poderia ser um problema de fabrico da viatura a que era alheia, aconselhando o A. a fazer reclamação junto à BMW.
13. Dado o estado em que ficou o veículo, o A. não procedeu à reparação do mesmo, que está paralisado desde o dia do incêndio.
14. O A. precisava de se deslocar diariamente para o trabalho e nos primeiros tempos a cunhada emprestou-lhe um carro, mas depois adquiriu um Peugeot em 2º mão, em agosto de 2020.
15. No dia da ocorrência o A. ficou com o sistema nervoso alterado e nos dias que se seguiram andava nervoso, angustiado, ansioso pelo susto e desgostoso por ter ficado sem o veículo.
16. Para além do A., seguiam no veículo no referido dia e hora a mulher e o filho.
17. Também estes, quando se aperceberam do fumo, e assim que o A. parou o carro, saíram de imediato do interior do veículo, com receio de explosão.
18. Todos estavam apavorados, todos viram o carro a arder e temeram pela própria vida e pelas vidas uns dos outros.
B) Factos não provados, com interesse para a decisão da causa:
1. O carro referido em II. 1 A) 14. é um Peugeot 308 SW, de 2009, adquirido pelo valor de 5.150,00€.
2. No dia da ocorrência o A. foi assistido no local por uma ambulância e apresentava a tensão arterial muito baixa.
3. Durante o período de utilização pelo A. o veículo não sofreu qualquer desvalorização a nível comercial.
4. O veículo estava em conformidade com o contrato na aceção do artigo 2º do Decreto-Lei nº 67/2003.
5. O evento de um incêndio no veículo, mesmo causado por avaria é totalmente incompatível com as caraterísticas de uma falta de conformidade do veículo.
6. As causas do incêndio podem nada ter que ver com más condições mecânicas.
7. Sendo público e notório a deficiência nos motores 3.20 d da BMW, que foi noticiada em vários órgãos de informação.
8. O veículo do A. tinha essa ação técnica para fazer na BMW e o A. não foi fazer assistência de substituição do radiador de gases de escape ao seu veículo como recomendava a marca e lhe oferecia gratuitamente.
9. Não é normal no caso dos relatos que há sobre incêndios por causa dos gases de escape que os veículos ardam por completo.
10. Mesmo que a causa do incêndio tenha sido um problema com os gases de escape, este só apareceu no veículo muito depois da venda pela R. pelo que esta nada pode ter que ver com essa eventual anomalia ou deficiência.
11. A existir no momento da venda, a anomalia havia de se manifestar logo nos dias seguintes à compra feita pelo A., até ao final do mês de novembro de 2019.
12. A utilização do veículo por mais de 6 meses e mais de 16.000km causou desvalorização nunca inferior a 20 % do seu valor.
B) O Direito
1. O presente recurso versa sobre Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que decidiu manter a decisão de 1.ª instância e consequentemente determinou a procedência parcial da ação, condenando a Ré, aqui recorrente, a pagar ao A. a quantia de € 24.660,00 (vinte e quatro mil seiscentos e sessenta euros) acrescida de juros de mora vencidos desde 18.11.2021 e vincendos à taxa legal de 4%.
2. Nestes autos, vem provado que a Ré, uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, importação, exportação, reparação e manutenção de veículos automóveis, no exercício de tal atividade, vendeu o veículo de marca BMW, modelo 320D, matrícula ..-ZL-..,, ao Autor, a fim de que este utilizasse o veículo para se deslocar para o trabalho e para viagens de lazer, em família (factos provados n.ºs 1, 2 e 10).
O artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 67/2003, de 08-04 remete para o conceito de consumidor previsto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31/07 (Lei da Defesa do Consumidor), que considera consumidor “(...) todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
A doutrina aponta um conjunto de elementos subjetivo, objetivo, teleológico e relacional para estarmos perante um consumidor para o efeito de aplicação da legislação protecionista desta categoria de sujeitos, descrevendo o consumidor, em síntese, como a pessoa que adquire bens ou serviços a um profissional e os destine a um uso não profissional (cfr. Micael Martins Teixeira, «A prova no direito do consumo. Uma abordagem tópica», in I Congresso do Direito do Consumo, coord. Jorge Morais Carvalho, Almedina, Coimbra, 2016, p. 140).
O Autor deve, assim, ser considerado “Consumidor”, visto que adquiriu o veículo para uso não profissional, nos termos do artigo 2º, nº1 da Lei de Defesa do Consumidor).
A recorrente não questiona a qualidade de consumidor do Autor pelo que esta questão serve apenas de pressuposto para a distribuição do ónus da prova entre autor e ré, não carecendo de maior desenvolvimento.
Em causa está um contrato de compra e venda que teve por objeto um veículo usado, alegadamente defeituoso – cuja falta de conformidade se manifestou posteriormente à entrega – compra e venda essa realizada entre Ré/recorrente, como vendedora e Autor/recorrido, como comprador. Assim, também não é objeto de controvérsia que entre as partes foi celebrado, em 06-11-2019, um contrato de compra e venda de um veículo usado, contrato esse que se integra na subcategoria de contrato de compra e venda de bem de consumo, já que ficou provado que o autor, ora recorrido, adquiriu o veículo para uso não profissional.
A compra e venda vem definida no artigo 874º, do Código Civil, como sendo “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”. Deste modo, a celebração deste tipo de contrato gera obrigações recíprocas: a obrigação do vendedor de transmitir a propriedade da coisa ou a titularidade do direito e a obrigação de entregar a coisa; a obrigação do comprador de pagar o preço - artigos 879º, 882º e 883º, todos do Código Civil.
Como subtipo do contrato de compra e venda, surge o contrato de compra e venda para consumo, regulado, para além das regras gerais do Código Civil, pela Lei n.º 24/96, de 31 de julho – que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores – e por outros diplomas de proteção dos consumidores, o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril (alterado posteriormente pelo Decreto-Lei. n.º 84/2008, de 21 de maio, pelo Decreto-Lei nº 9/2021, de 29 de janeiro e pelo Decreto-Lei nº84/2021, de 18 de outubro), que “procede à transposição para o direito interno da Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores”.
3. O acórdão recorrido entendeu que o Autor, enquanto consumidor, apenas tem que fazer prova do deficiente funcionamento da coisa, sem que sobre si impendam os ónus de alegar e provar a causa concreta da origem do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega, consagrando a seguinte fundamentação:
«Como é sabido, a introdução desta regulamentação, específica, mais protetora do comprador consumidor consiste em haver o legislador considerado o comprador – que seja consumidor – a parte mais fraca no respetivo negócio de compra e venda, e, por isso, carecido de uma maior proteção legal.
Dada a dificuldade da prova da existência do defeito à data da entrega, quando ele se manifesta ao longo de um período de tempo relativamente longo, a lei, protegendo o consumidor, consagra a presunção de que a falta de conformidade verificada dentro do referido prazo, faz presumir que o defeito já existia à data da entrega, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade - nº2, do art. 3º, do Dec. Lei n.º 67/2003.
Assim, o consumidor/comprador apenas tem de fazer a prova do defeito de funcionamento da coisa - da falta de conformidade/facto base da presunção -, sem que sobre si impendam os ónus de alegar e provar a causa concreta da origem do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega - v. arts. nº1, do art. 342º, 349º e nº1, do 350º, do Código Civil».
I - Nulidade da sentença e do acórdão recorrido
4. Questiona a recorrente, em termos genéricos, no requerimento de interposição do recurso de revista a nulidade da sentença e a nulidade do acórdão recorrido, sem, todavia, qualificar a nulidade ou as nulidades peticionadas à luz das espécies taxativamente admitidas pelo artigo 615.º, n.º 1, do CPC.
Quanto à nulidade da sentença, esta questão não será conhecida, pois erros processuais cometidos na tramitação do processo no tribunal de 1.ª instância não são suscetíveis de integrar o objeto de um recurso de revista, como se tem entendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-12-2000 Revista n.º 2858/00 «O Supremo não conhece das nulidades cometidas na sentença de 1a instância, mas sim das nulidades do acórdão da Relação, por força do n.o 1 do art.o 716, do CPC, podendo apenas apreciar a bondade da decisão que recaiu sobre a arguição de nulidade da sentença»).
4.1. Quanto à nulidade do acórdão recorrido, parece a recorrente estar a referir-se, em primeiro lugar, a uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.a parte, impugnando o acórdão recorrido por entender que a aplicabilidade da figura da resolução do contrato, à semelhança do regime jurídico da nulidade do contrato, implicaria necessariamente que o acórdão recorrido decidisse as consequências da extinção do contrato e uma pronúncia sobre a devolução do automóvel não conforme à empresa vendedora, em vez da solução desequilibrada de considerar que o comprador, além de ter direito à restituição do preço, pode manter o direito de propriedade sobre o automóvel não conforme.
Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 03-10-2017 Revista n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 - 1.ª Secção, «I - As causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas no art. 615.º do CPC, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão ou a não conformidade dela com o direito aplicável. II - A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada. III - A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia. IV - É em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver. V - Não padece de nulidade por omissão de pronúncia o acórdão reclamado que conheceu de todas as questões que devia conhecer, resolvendo-as, ainda que a descontento da recorrente/reclamante».
4.2. Ora, nesta sede, o acórdão recorrido após elencar os direitos do comprador em caso de venda de coisa defeituosa, nos termos do artigo 4.o do Decreto-Lei n.o 67/2003, e afirmar que não havia qualquer hierarquia entre os meios de tutela previstos na lei – a reparação ou substituição da coisa, a redução do preço ou a resolução do contrato – concluiu que “(...) a pretensão do Autor de indemnização no montante pago a título de preço do carro se enquadra na resolução do contrato de compra e venda celebrado com a Ré”.
A propósito das consequências da resolução do contrato, o acórdão recorrido decidiu o seguinte, reproduzindo a sentença do tribunal de 1.ª instância:
«(...) no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato (...) a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (cfr. o espirito do art. 434º, nº2 do Código Civil).
É que, o objetivo da lei é colocar as partes o mais possível na situação que estariam se não tivessem celebrado o contrato.
Nos termos do nº 4 do referido art. 4º a impossibilidade de restituição por parte do comprador da coisa adquirida, como acontece em casos como o dos autos, de destruição por força de incêndio (restando apenas o salvado do veículo), não afasta o direito do comprador ao reembolso do preço por resolução do contrato. Poderá, sim, o valor do preço ser reduzido nos termos referidos. - sublinhado nosso
Voltando ao caso dos autos, do exposto e dos factos provados resulta que o A. pode pedir o reembolso do preço que pagou, descontado o benefício que teve com a utilização do carro desde a aquisição até ao incêndio, pois que se é certo que a Ré não provou que no período de utilização pelo Autor, o veículo sofreu a alegada desvalorização, também é certo que a sua utilização trouxe um benefício para o Autor».
Ora, decorre da transcrição deste excerto do acórdão recorrido que o Tribunal da Relação de Coimbra ponderou, no cálculo da indemnização, a eventual entrega do automóvel danificado à vendedora, tendo, contudo, concluído que o incêndio o tinha destruído, pelo que se verificava uma impossibilidade de restituição do mesmo à vendedora, limitando-se a deduzir à devolução do preço as vantagens retiradas pelo autor da utilização do automóvel durante o período em que este funcionou.
4.3. Assim sendo, não se verifica qualquer nulidade por omissão de pronúncia do acórdão recorrido, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, em conjugação com o artigo 666.º do CPC, pois que efetivamente o tribunal recorrido decidiu a questão. A circunstância de não a ter decidido a contento da recorrente não consiste numa nulidade, mas, quando muito, num eventual erro de julgamento. O que, na verdade, se verifica, é que a recorrente confunde aqui nulidade do acórdão recorrido – vício estrutural ou formal da decisão – com erro de julgamento, a analisar em sede de mérito do recurso.
5. O Autor invoca ainda que o acórdão recorrido conheceu uma questão de que não podia tomar conhecimento por não ter sido pedida pelo autor na petição inicial: a resolução do contrato de compra e venda.
5.1. Analisadas as conclusões da apelação, deteta-se que a recorrente na conclusão 11. peticionou ao Tribunal da Relação que tratasse da questão que assim descreve: «11) O A. não pediu a resolução do contrato de compra e venda com a R».
Todavia, o Tribunal da Relação de Coimbra, como qualquer tribunal, pode decidir de direito ex officio, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, no sentido em que escolhe a norma a aplicar aos factos, não se colocando, portanto, por este motivo, qualquer nulidade por omissão ou excesso de pronúncia.
Tem sido esta a orientação deste Supremo Tribunal (cfr., por todos, Acórdão de 14-07-2020, processo n.º 2359/18.4T8GMR.G1.S1): «I - Não devem ser abrangidos no objeto do processo, para o efeito de aferir da nulidade por excesso de pronúncia, razões ou argumentos usados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas, nem a determinação da lei aplicável, que compete oficiosamente ao tribunal. II - O enquadramento jurídico diverso do pugnado pela parte não integra excesso de pronúncia, antes se baseia no princípio ínsito no n.º 3 do artigo 5.º do CPC (oficiosidade do julgador quanto à matéria de direito)».
5.2. A recorrente assaca, ainda, erro à decisão recorrida ou uma nulidade genérica, afirmando, se bem interpretamos, que o pedido formulado pelo autor de obtenção de uma indemnização nunca poderia proceder porque o mesmo não pediu a resolução ou a nulidade do contrato.
Acrescenta o recorrente, de modo algo contraditório ao anteriormente expendido, que o tribunal deveria ter declarado a nulidade do contrato, já que este vício é de conhecimento oficioso.
É exato que o autor não peticionou, de modo expresso, a resolução do convénio - tendo-se limitado a peticionar a atribuição de uma indemnização que, entre o mais, integrava o valor do preço pago pela aquisição do automóvel (€25.500,00) - tendo as instâncias assumido que o demandante pretendia operar a resolução do contrato.
Questiona-se: podiam tê-lo feito?
5.3. Com efeito, interpretando a petição inicial, como ato jurídico que é, em conformidade com as regras hermenêuticas previstas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil (por remissão operada pelo artigo 295.º do mesmo Código), concluímos que a matéria alegada pelo autor aponta, em conjugação com o alcance do pedido formulado, para a compreensão da sua pretensão como implicando a destruição dos efeitos do contrato, compaginável com a resolução do mesmo, num contexto em que a reparação do automóvel em segunda mão se mostrou impossível pelo facto de o mesmo ter ficado destruído pelo incêndio.
A interpretação do pedido em conjugação com a “parte narrativa da petição inicial” (a expressão pertence ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-12-2008, Processo n.º 3597/08) leva-nos, pois, a integrar a resolução do contrato no domínio categorial do pedido implícito, que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem reiteradamente admitindo no âmbito de ações em que se peticiona a restituição do sinal prestado na sequência da celebração de contratos-promessa.
5.4. Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-10-1998 (Processo n.º 83/98, não publicado na “dgsi.”), “(...) o pedido resolutivo está implícito como condição processualmente declarativa que fundamenta a seguir o pedido condenatório de restituição do sinal.”, fazendo notar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-10-2004 (Processo n.º 04A2667), que, “no pedido de restituição do sinal em dobro está implícito o pedido de resolução do contrato promessa”. No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-10-2013 (Processo n.º 04A2667) decidiu que “em acção fundada no art. 432.º do CC a resolução pode ser apenas um pressuposto do pedido de devolução do sinal e respectivos juros, sem que este seja expressa e necessariamente formulado.”
5.5. A respeito da admissibilidade de pedidos implícitos que se afigurem como pressupostos dos pedidos expressamente formulados ou se retirem, por dedução ou interpretação, da alegação formulada pela parte, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-01-2012 (Processo n.º 1790/2002.L1.S1, não publicado na “dsgi”), que apresenta o seguinte sumário conclusivo:
“(...) VI - Ainda que a Autora, na petição inicial, não tenha expressamente formulado um pedido de condenação dos Réus a verem decidida a nulidade dos contratos, o certo é que o pedido de condenação solidária dos Réus na restituição das quantias entregues a título de preço e despesas feitas com a celebração do negócio, implica – para a sua procedência – que o tribunal conheça e declara os negócios celebrados como nulos. VII - Trata-se de um pedido implícito, circunstancial, não autónomo, entendido como pressuposto do pedido expressamente formulado, cujo conhecimento se impõe como via de acesso ao conhecimento deste.”
No mesmo sentido, em datas mais recentes, vejam-se os seguintes Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça:
- Acórdão de 08-11-2018, Processo n.º 48/15.0..., no qual se consagrou a orientação de que « É desnecessário que a invocação, em processo judicial, dos factos reveladores da usucapião seja acompanhada do pedido do seu reconhecimento, bastando que esses factos integrem a causa de pedir de um outro pedido que a pressuponha ou sejam alegados como elemento integrador da legitimidade de quem na ação a invoca».
- Acórdão de 19-05-2020, Processo n.º 1642/13.0..., não publicado na “dsgi”), em cujo sumário se pode ler “(...) VII - O pedido de anulação do contrato de seguro deve considerar-se contido, de forma implícita, na contestação quando ela assenta na existência de um vício na formação da vontade da seguradora, alegando que foi induzida em erro pelo segurado, decorrente da omissão sobre o seu estado de saúde.”
- Acórdão de 29-09-2022, Processo n.º 605/17.0..., em cujo sumário se postula que «Pedido implícito é aquele que com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado expressis verbis, ou seja, o pedido apresentado na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia.”
5.5. De todo o modo, a alegação do recorrente neste particular encontra-se desprovida de operatividade jurídica: não apenas porque o mesmo não assaca ao acórdão recorrido a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. e), do CPC, por condenação em objeto diverso do pedido, ao ter reconhecido ao autor o direito de resolução do contrato que, na sua ótica, não tinha sido pedido, mas igualmente porque os efeitos da resolução decretada se equiparam, em regra, aos efeitos da nulidade do contrato (artigo 433.º do Código Civil), sanção que a própria recorrente sustenta ser aplicável ao caso (ponto 13 da motivação e ponto F das conclusões de recurso).
6. Conclui-se, pois, que não obsta à atribuição da indemnização peticionada pelo autor o facto de o mesmo não ter pedido expressamente a resolução do contrato de compra e venda celebrado com o réu.
Assim, não se verifica qualquer nulidade do acórdão recorrido e improcedem as conclusões A) a F) e J) da alegação de recurso da recorrente.
II - Do ónus da prova da falta de conformidade do bem
7. Entende a recorrente, em síntese, que a posição do Tribunal da Relação, segundo a qual o comprador tem apenas de provar o deficiente funcionamento do bem, mas não já o ónus de alegar e provar a causa concreta da origem desse funcionamento deficiente, nem a sua existência à data da entrega, consiste num erro de direito que provoca uma superproteção dos consumidores, sem atender à possibilidade de fraude ou de abuso destes.
A matéria de facto que ficou provada e que apresenta utilidade para a análise do caso vertente apresenta os seguintes contornos: o autor adquiriu à ré um veículo marca BMW, modelo 320D, matrícula ..-ZL-..,, tendo sido dada a garantia de que o veículo se encontrava como novo e em perfeitas condições a nível mecânico, sendo que, no ato da compra, foi dito pelo vendedor BB ao autor que o veículo tinha todas as revisões efetuadas pelos representantes oficiais da marca, encontrando-se, por isso, em plenas condições de funcionamento, sendo que a próxima revisão deveria ser efetuada até aos 128.000 kms do veículo ou até ao mês de novembro de 2020.
No dia 10 de junho de 2020, por volta das 10h, o autor circulava na ... sentido norte/sul, próximo do Km 15,6, (...) quando o veículo disparou um alerta de avaria no propulsor. Ao mesmo tempo, o autor apercebeu-se que começou a sair fumo branco do capô e de imediato encostou e parou o veículo na berma da estrada. De seguida, o autor abriu o capô, deparando-se com o motor em chamas, tendo a viatura incendiado por completo, ficando totalmente destruída. Assente ficou que o veículo tinha 104.000kms na data da compra e cerca de 120.000kms na data em que se incendiou, não tendo sido objeto de qualquer manutenção em tal período.
Numa primeira linha de argumentação, a recorrente sustenta que deveria ter sido o autor a provar a existência do defeito do carro, afirmando que “não se pode presumir o defeito porque o defeito é a base da presunção legal de que o mesmo existia à data da venda”, concluindo que a prova da existência do defeito tem sempre de ser realizada pelo consumidor. Retorque que a aplicação da lei, no caso, redundou num “claro desequilíbrio beneficiando sem medida o consumidor.”
Considerou o tribunal recorrido a respeito da demonstração da falta de conformidade do veículo: “Dada a dificuldade da prova da existência do defeito à data da entrega, quando ele se manifesta ao longo de um período de tempo relativamente longo, a lei, protegendo o consumidor, consagra a presunção de que a falta de conformidade verificada dentro do referido prazo, faz presumir que o defeito já existia à data da entrega, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade - nº2, do art. 3º, do Dec. Lei n.º 67/2003. Assim, o consumidor/comprador apenas tem de fazer a prova do defeito de funcionamento da coisa - da falta de conformidade/facto base da presunção -, sem que sobre si impendam os ónus de alegar e provar a causa concreta da origem do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega - v. arts. nº1, do art. 342º, 349º e nº1, do 350º, do Código Civil. (...) É certo, como alega a Apelante, que as causas do incêndio podem nada ter que ver com más condições mecânicas, podem resultar de problemas eléctricos com cabos, problemas de falta de arrefecimento do motor ou falta de arrefecimento de gases de escape e que o A. nada diz sobre o assunto, sobre a causa do incêndio. Nem o teria de dizer, com todo o respeito pela posição da Apelante.”
8. O Decreto-Lei n.º 67/2003, que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva 1999/44/C, do Conselho e do Parlamento Europeu, relativa às garantias que tenham por objeto bens de consumo, afirma, no seu artigo 2.º, n.º 1, que “O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, estabelecendo uma garantia contratual relativamente aos bens de consumo que redunda na imposição da sua conformidade com as descrições constantes do contrato.
Esclarece Menezes Leitão (Direito das Obrigações, volume III, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 142) que se trata de um critério que “(...) tem vindo a ser adotado para unificar a nível internacional as diversas soluções existentes nos vários ordenamentos sobre a garantia edilícia, constando quer da Convenção da Haia de 1964 sobre a compra e venda internacional de mercadorias (cfr. arts. 19/1 e 33.º e ss), quer da Convenção de Viena de 1980 sobre a venda internacional de mercadorias (arts. 35.º e ss.) e que a Diretiva 1999/44/CE agora transposta decidiu igualmente adoptar como critério de uniformização dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados membros.”
Estatui o n.º 2 do artigo 2.º do diploma em exame, na sua alínea d), que se presume que os bens de consumo não são conformes com o contrato se “Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.”
O conceito chave que releva para a interpretação do mencionado artigo 2.º é, pois, o de conformidade do bem com o contrato. Nas palavras de Paulo Mota Pinto (“Conformidade e garantias na venda de bens de consumo”, Estudos de Direito do Consumidor, Centro do Direito do Consumo, n.º 2, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2000, p. 222), “O legislador comunitário recebeu assim o conceito de conformidade com o contrato de compra e venda, já utilizado na Convenção de Viena das Nações Unidas sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias" e noutras ordens jurídicas, utilizando-o em lugar das noções de "defeito", "vício" ou "falta de qualidade" da coisa vendida, ou, em geral, de não cumprimento ou inexecução do contrato. Trata-se, aliás, de noções que não são equivalentes, traduzindo a de "falta de conformidade" uma concepção ampla e unitária de não cumprimento, e neste sentido sendo mais abrangente do que as noções de "defeito" (empregue, sem maiores esclarecimentos, no artigo 12.º, n. 1, da LDC), "vício" ou "falta de qualidade" (utilizadas no artigo 913.°, n.° 1, do Código Civil).”
De acordo com Mafalda Miranda Barbosa (“O futuro da compra e venda de coisas defeituosas”, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 79 nºs. 3-4, Jul.-Dez, 2019, p. 729), “Embora o regime do Código Civil já garantisse em certa medida a posição do comprador, o consumidor passa a estar dotado de uma tutela acrescida. Por um lado, deixa de recair sobre si o ónus, muitas vezes excessivo, de verificar as qualidades da coisa no momento da entrega, passando a impender sobre o vendedor a garantia da inexistência de desconformidades do bem com o contrato. A existência de factos que sustentam a presunção de não conformidade é disso reflexo bastante. Por outro lado, a operacionalidade das referidas presunções de não conformidade, constantes do artigo 2.º, n.º 2 do decreto-lei n.º 67/2003, parece beneficiar a parte mais frágil da relação no contrato de compra e venda.”
Como explica Calvão da Silva (Venda de Bens de Consumo, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2010, p. 84), os critérios presuntivos de determinação da não conformidade são consonantes com os do direito comum, mesmo os constantes dos artigos 913.º e 919.º do Código Civil. De acordo com o civilista, a presunção prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º repousa na circunstância de o objeto adquirido pertencer a determinado tipo ou categoria de bens, valendo como uma «(...) regras legais de integração do contrato de consumo, que tem correspondência no artigo 913.º, n.º 2, do Código Civil e no artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, numa conceção objetiva de conformidade (à função normal das coisas da mesma categoria/qualidades e desempenho a possuir pelos bens do mesmo tipo para serem idóneos ao seu “uso habitual”) integrativa da noção fundamentalmente subjetiva da conformidade do bem com o contrato» (ob. cit., pp. 88-89).
Calvão da Silva (ob. cit., p. 89) realça que “Quanto à natureza do bem relevará a sua idade ou vetustade, a coisa ser nova ou usada, pouco ou muito usada, assim como os diferentes preços por que sejam oferecidos bens do mesmo tipo dotados das características imprescindíveis à sua utilização habitual, presumindo-se contratualmente queridos só os bens que entrem no mesmo escalão de preço da aquisição.”
No caso da presunção de não conformidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril, estão em causa, como afirma Menezes Leitão (Direito das Obrigações, volume III, 6:ª edição, Coimbra, Almedina, pp. 148-149), “(...) dois critérios, sendo o primeiro a correspondência das qualidades e desempenho com o habitual em bens do mesmo tipo e o segundo as expectativas razoáveis do consumidor, face à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas”. O autor pronuncia-se pela relação de alternatividade existente entre os dois critérios, solução que, por razões de tutela do consumidor, deve ser de acolher, embora não seja consensual na doutrina.
9. A jurisprudência deste Supremo Tribunal já se debruçou sobre a aplicação da norma prevista no artigo 2.º, n.º 2, al. d), do Decreto-lei n.º 67/2003 a casos em que não se provou a causa da não conformidade do bem vendido, recusando a presunção de desconformidade por falta da prova do defeito. Numa situação em que ficou demonstrado que o veículo alienado se incendiou quando estava estacionado, há longo tempo, junto à residência do proprietário, considerou o Supremo, em Acórdão de 20-03-2014 (Processo n.º 783/11.2TBMGR.C1.S1) que “o incêndio do veículo, só por si, desacompanhado da prova da existência de defeito (repete-se, o incêndio não consubstancia qualquer defeito) não pode deduzir-se a falta de qualidades e de desempenho habituais a que se refere o nº 2, d) do Artº 2 do D.L. 67/2003, ou a falta de conformidade ou adequação prevista nas alíneas a) b) e c) do preceito”, concluindo que “provado, pura e simplesmente, o facto incêndio (que, como se disse repetidamente, é uma consequência de um facto anterior, e não um defeito visto que nenhum foi alegado), não ficam densificados quaisquer dos conceitos abertos do Arto 2º do D.L. 67/2003, o mesmo é dizer, não ficam provados os factos índices, ou os factos base da presunção legal, pelo que não pode presumir-se a falta de conformidade do veículo vendido pela Ré ao A., com o respectivo contrato de compra e venda.” Este acórdão foi sujeito a uma argumentação crítica da doutrina (vide, Micael Martins Teixeira, “A Prova no Direito do Consumo: Uma Abordagem Tópica”, I Congresso de Direito do Consumo, ob. cit., p. 445) e teve um contexto factual muito específico e distinto, que indica negligência do adquirente.
Num caso em que apenas ficou provado que as luzes, existentes no painel de instrumentos do automóvel, avisadoras de que o filtro de partículas se encontrava saturado, se acendiam frequentemente, não tendo ficado provada a causa para tal facto, considerou o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 19-11-2015 (Processo n.º 139/12.0TVLSB.L1.S1) que “perante a não demonstração dos factos indiciários da presunção referida na transcrita alínea d) do nº2 do artigo 2º do Decreto-lei 67/3003, não se pode considerar que o veículo vendido pela ré BB à autora estivesse desconforme com o contratado”. Este Acórdão entendeu que a norma em análise remete para uma conceção objetiva de desconformidade, segundo a qual “(...) o bem tem de ser conforme com aquilo que qualquer pessoa possa razoavelmente esperar, independentemente de, em concreto, o consumidor ter essa expetativa.”
Esta orientação jurisprudencial também suscitou críticas por parte da doutrina (cfr. Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 8ª edição, p. 416, nota 967, p. 419, nota 979), que propugna que tal caso devia ter sido decidido a favor do consumidor, já que “o vendedor é quem está em melhores condições de provar que o problema não é devido a desconformidade do automóvel.”
10. A questão que o presente caso suscita reside na de saber se o automóvel alienado pela recorrente, que se incendiou em movimento, deverá ser considerado desconforme por não funcionar como seria expectável que funcionasse um bem do mesmo tipo (desconformidade enquanto incapacidade de utilização) ou se, para afirmar tal falta de conformidade, seria necessário que o consumidor demonstrasse que a falha de funcionamento se ficou a dever a uma causa inerente ao bem (desconformidade enquanto defeito de funcionamento).
Ora, dada a finalidade protecionista da lei e o seu enquadramento sistemático, entendemos que o consumidor apenas tem de provar a desconformidade enquanto incapacidade de utilização, e não já a desconformidade enquanto defeito de funcionamento, cabendo aos vendedores, devido à sua natureza profissional e conhecimentos técnicos, a prova que a causa do defeito não é inerente ao bem, nem existia à data da entrega, tendo resultado da ação do comprador ou de terceiros.
Segundo a doutrina (Micael Teixeira, ob. cit., p. 153), “(...) a atribuição aos consumidores dos direitos previstos no n.o 1 do art. 4.º assentam na verificação de duas presunções (cfr. art. 3.º, n.º1): a presunção de desconformidade do bem com o contrato (art. 2o, nº 2) e a presunção de existência da desconformidade no momento de entrega do bem ao consumidor (art. 3.º, n.º 2, primeira parte)”, não sendo exigível a necessidade de demonstração da causa da falha de funcionamento, mas apenas dos factos (factos-base) que revelam a incapacidade de utilização do bem (ibidem, pp. 153-154). Acrescenta o autor (ob. cit., p. 157) que a interpretação defendida, para além de corresponder ao sentido literal da regra, “(...) é a que se mostra mais conforme com o princípio da proteção do consumidor, visto que é aquela que permite conferir aos consumidores maior confiança na aquisição de bens de consumo e, por essa via, estimular o crescimento económico baseado no consumo privado, garantindo que para o exercício dos direitos do art. 4.º, n.º 1 é apenas necessário que se verifiquem os factos (constitutivos) demonstrativos da desconformidade enquanto incapacidade de utilização, sem prejuízo do efeito (exclusivamente) extintivo dos factos que eventualmente demonstrem que a causa do defeito de funcionamento é atribuível a «acção de terceiro ou caso fortuito»” – o que afastaria a presunção da desconformidade do bem no momento da entrega, nos termos da parte final do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 67/2008, de 8 abril.
11. A esta luz, na linha do decidido pelo acórdão recorrido, a circunstância de o motor ter incendiado consubstancia, inequivocamente, um desvio nas qualidades e desempenho habitual de bens do mesmo tipo, qualidades e desempenho, tal como razoavelmente expectáveis pelo consumidor médio em relação a um automóvel, ainda que usado, pertencente à gama média/alta e cujo preço de aquisição foi medianamente elevado – o que integra o facto-base da presunção legal consagrada na alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 67/2003, de 08 de abril.
Deve assim entender-se, para que seja respeitada a ratio legis do regime jurídico de defesa do consumidor, que o autor-consumidor logrou, no presente caso concreto, provar a não conformidade do automóvel vendido pela recorrente, ainda que não tenha ficado demonstrado que a falha de funcionamento se tivesse ficado a dever a uma causa inerente ao bem.
Por outro lado, de acordo com o que estabelece o artigo 3.o do diploma em análise, “1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue. 2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.”
A norma contida no citado artigo 3.º, n.º 2 prevê a dispensa ou liberação legal do ónus da prova da anterioridade da falta de conformidade, precisando Jorge Morais de Carvalho (ob. cit., p. 416, nota 967) que a mesma não consagra, em rigor, “uma presunção, uma vez que não existe uma relação de verosimilhança factual entre o facto base (a desconformidade) e o facto presumido (a anterioridade), verosimilhança que carateriza a presunção. Trata-se de um caso em que o legislador regula de forma casuística a distribuição do ónus da prova, tendo em conta, por um lado, a maior facilidade relativa que a parte onerada (neste caso, o vendedor) tem de produzir a prova e, por outro lado, a finalidade de proteção do consumidor.”
Como faz notar Pinto Monteiro (“Garantias na venda de bens de consumo – A transposição da Diretiva 1999/44/CE para o Direito Português”, Estudos de Direito do Consumidor, Centro de Direito do Consumo, n.º 5, Coimbra, 2003, pp. 134-135), a falta de conformidade apura-se no momento da entrega do bem, o que constitui um desvio à regra estabelecida no artigo 882.º, n.º 1, do Código Civil, que estabelece que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da venda.
O legislador nacional expressamente dispensou o consumidor de provar que a falta de conformidade já existia no momento da entrega, por se tratar de uma prova diabólica, estabelecendo uma presunção de não conformidade do bem com o contrato na data da entrega, no caso de verificação de algum dos factos enunciados nas alíneas do n.º 2 do artigo 2.º, desde que a desconformidade se manifeste no prazo de 2 anos a contar da data da entrega de coisa móvel corpórea, ressalvadas as situações em que tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade (cfr. Januário da Costa Gomes, “Ser ou não ser conforme, eis a questão. Em tema de garantia legal de conformidade na venda de bens de consumo”, Cadernos de Direito Privado, n.º 21, janeiro-março, 2008, pp. 11 e16). Assim, o consumidor não fica dispensado do ónus da prova da anterioridade da desconformidade, se tal anterioridade for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade. A regra da dispensa ou liberação do ónus da prova da anterioridade do defeito é incompatível com a natureza da coisa se se tratar de um bem de desgaste rápido ou sujeito a um prazo de validade (Jorge Morais de Carvalho, ob. cit., p. 417), e incompatível com as caraterísticas da falta de conformidade “quando resultar de forma evidente que esta não se ficou a dever a circunstâncias relativas ao próprio bem e à sua utilização segundo os termos normais ou fixados pelas partes” (Jorge Morais de Carvalho, ob. cit., p. 418).
Numa argumentação que assume plena relevância para o tratamento do caso vertente, assinala o autor (ob. cit., pp. 418-419) o seguinte:
“Se as caraterísticas da falta de conformidade não forem claras no sentido de que o incêndio se ficou a dever a um facto externo ao bem, apontando até no sentido de que a origem se encontra no próprio bem, mantém-se a dispensa ou liberação do ónus da prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega do bem, cabendo ao vendedor provar que se deve a facto posterior que não lhe seja imputável, nomeadamente por ser imputável ao comprador ou a um terceiro É o caso, por exemplo, de um automóvel que se incendeia, sem razão aparente, quando estava estacionado ou em circulação.”
12. Em harmonia com este entendimento, considerou o acórdão do TJUE, prolatado a 04-06-2015 (Processo n.º C‐497/13, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62013CJ0497), no âmbito de um pedido de reenvio prejudicial (denominado “acórdão Faber”), que “(...) o artigo 5.º, n.º 3, da Diretiva 1999/44 deve ser interpretado no sentido de que a regra segundo a qual se presume que a falta de conformidade existia no momento da entrega do bem - se aplica quando o consumidor faça prova de que o bem vendido não está em conformidade com o contrato e que a falta de conformidade em causa se manifestou, isto é, se revelou materialmente, num prazo de seis meses a contar da entrega do bem. O consumidor não está obrigado a provar a causa dessa falta de conformidade nem que a origem da mesma é imputável ao vendedor – esta regra só pode ser excluída se o vendedor demonstrar cabalmente que a causa ou a origem da referida falta de conformidade reside numa circunstância ocorrida depois da entrega do bem” (destaque nosso).
13. No caso em apreço, tendo-se manifestado a avaria num prazo de dois anos a contar da entrega do veículo, presume-se a sua existência nessa data, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril, ficando o autor, ora recorrido, dispensado de demonstrar a anterioridade da desconformidade do bem no momento da entrega. E isto porque não se poderá afirmar – e, seguramente, a recorrente não fez tal prova – que não seja possível existir à data da entrega do veículo uma avaria que conduziu, cerca de 7 meses depois, à saída de fumo branco do capô do carro (pontos 6 e 7 da matéria de facto provada) e que veio a causar o incêndio que destruiu a viatura alienada. Equivale isto a dizer que a recorrente não logrou provar – como lhe competia, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil – que o incêndio de causa não determinada, pelas suas características, fosse incompatível com a existência de uma falta de conformidade do automóvel à data da sua entrega, não tendo chegado sequer a alegar em termos consistentes – e, por conseguinte, a demonstrar – que tal incêndio se tenha ficado a dever a circunstâncias externas ao próprio automóvel ou decorrentes de uma utilização desviada dos parâmetros de normalidade.
Com efeito, a recorrente, na qualidade de vendedora, apresentou meras conjeturas para a causa de incêndio do veículo, não tendo logrado demonstrar, tal como agora afirma, que o incêndio do motor se tenha ficado a dever à existência de uma transformação no veículo ou a uma utilização intensiva do mesmo pelo recorrido. Ao invés, ficou provado que, à data em que se verificou a avaria, o veículo ainda não tinha atingido o limite de quilómetros necessário à realização de uma revisão ou mesmo a data-limite para que esta fosse realizada (factos n.º 5 e n.º 9). Por outro lado, o uso dado pelo autor ao veículo, conforme se extrai do ponto 10 da factualidade assente, não permite concluir pela invocada utilização intensiva ou irregular enquanto causa adequada do incêndio no motor do carro.
No caso, aliás, foi dada garantia ao autor de que o veículo se encontrava “como novo” e em perfeitas condições a nível mecânico (ponto 4 dos factos provados), garantia convencional essa que reforça a conclusão de que ao autor bastava provar o deficiente funcionamento do bem, encontrando-se dispensado de identificar a respetiva causa ou de provar que tal mau funcionamento remontava ao momento da entrega. Competia, pelo contrário, ao vendedor, a alegação e prova de que a causa de tal defeito ou desvio de funcionamento foi posterior ao ato de entrega e imputável ao comprador, a terceiro ou a caso fortuito – em sentido similar, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-09-2011 (Processo n.º 4757/05.4TVLSB.L1.S1), em cujo sumário se estipulou o seguinte: «I - Mediante a concessão contratual de uma “garantia de bom funcionamento” o vendedor assegura, pelo período da sua duração, o bom funcionamento da coisa, assumindo a responsabilidade pela sanação das avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem.
II - Nesse caso, o vendedor assume a “garantia de um resultado” bastando ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da garantia, sem necessidade de identificar a respectiva causa ou demonstrar a respectiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade (obrigação de reparação, troca, indemnização) opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa - afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento - e imputável a acto do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito.»
14. O argumento da recorrente segundo a qual este regime jurídico permite a fraude dos compradores não pode ser decisivo para resolver a questão do ónus da prova, pois para além de não ser essa a regra em termos estatísticos e de não se poder presumir a má fé dos consumidores, manifestamente no caso concreto não decorre da matéria de facto provada qualquer indício de fraude.
15. Em suma, a ausência de prova acerca da concreta causa do incêndio do automóvel e acerca do sujeito a quem a mesma seja imputável (o vendedor, o comprador ou terceiro) deve ser resolvida, de acordo com uma interpretação sistemática do regime legal orientada pela sua teleologia específica, em desfavor do vendedor. São aqui pertinentes as palavras do Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11-03-2003 (Proc. n.º 02A4341) «É a ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou a menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa».
Improcedem, assim, neste segmento, as conclusões K) a T) da alegação de recurso da recorrente.
16. Assim, não tendo afastado a recorrente as presunções de desconformidade do automóvel e de anterioridade dessa desconformidade em relação ao momento da respetiva entrega, ao autor era lícito fazer atuar o n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-lei. n.º 67/2003, de 08 de abril, segundo o qual “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.
Preceituam, ainda, os n.ºs 4 e 5 da mesma disposição o seguinte: “4 - Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador. 5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.”
A maioria da doutrina tem se pronunciado a favor da inexistência de uma hierarquia entre os vários direitos do consumidor consagrados no artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 67/2003 – cfr. João Calvão da Silva, ob. cit., pp. 110-112; Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume III, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 155- 156; José Engrácia Antunes, Direito do Consumo, Coimbra, Almedina, 2019, p. 162; Jorge Morais de Carvalho, ob. cit., p. 420;
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não tem adotado uma posição unânime sobre a matéria.
Considerando existir uma hierarquia entre os direitos especiais à disposição do consumidor em caso de falta de conformidade do bem, pronunciou-se o Acórdão de 13-12-2007 (Processo n.º 07A4160), em cujo sumário se pode ler, entre o mais, que “VII - O comprador de coisa defeituosa pode, por esta ordem, exigir do fornecedor/vendedor: 1º - a reparação da coisa; 2º - a sua substituição; 3º - a redução do preço ou a resolução do contrato, conquanto exerça esse direito, respeitando o prazo de caducidade - art. 12.º da LDC.”
Diversamente, propugnando existir liberdade de escolha do consumidor neste domínio, com o limite do abuso do direito, identificam-se os seguintes arestos, cujos sumários e transcrevem na parte relevante:
• Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-02-2008 (Processo n.º 4677/07, não publicado na “dgsi.”): “(...) II - O DL n.º 67/03, de 08-04, procede à transposição para o direito interno, da Directiva Nº 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25-05 (cf. art. 1.o, n.o 1, do DL), enunciando os direitos do consumidor no caso de falta de conformidade da coisa: direito de reparação ou substituição da coisa, redução do preço ou resolução do contrato. III - Não coloca, porém, de uma forma indiscutível a questão da hierarquia dos direitos conferidos ao consumidor, isto é, se o consumidor pode optar, discricionariamente, por qualquer deles, ou se, antes, o exercício desses direitos tem alguma espécie de procedência, ao contrário do que acontece na Directiva (1999/44/CE), onde é estabelecida uma hierarquia de exercício dos direitos conferidos ao consumidor. IV - No contexto normativo actual, o consumidor poderá optar por qualquer dos direitos legalmente conferidos no caso de falta de conformidade, a não ser que se verifique um caso de impossibilidade ou constitua abuso de direito, nos termos gerais (art. 334.º do CC).”
• Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-05-2013 (Processo n.º 4457/04.2TVLSB.L1.S1, não publicado na “dgsi): “(...) VII - O DL n.º 67/2003 estabelece uma série de presunções de não conformidade dos bens de consumo com o contrato, bastando a verificação de algum dos factos enunciados nas alíneas do art. 2.º, n.º 2, para que tal ocorra, devendo o consumidor, após a entrega, suscitar a falta de conformidade, cabendo ao vendedor o ónus da prova de ter entregue o bem em conformidade com o contrato. VIII - O consumidor, em caso de não conformidade do bem com o contrato, tem o direito – ao abrigo do art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003 –, a que a conformidade seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, conferindo-lhe, outrossim, os direitos à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, cabendo-lhe provar que a falta de conformidade já existia no momento da entrega, sem prejuízo da presunção constante do art. 3.º, n.º 2. IX - A par dos direitos enumerados no art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, coexiste o direito do consumidor ser indemnizado pelos danos – de carácter patrimonial e não patrimonial – que o mesmo sofra, por aplicação do art. 12.º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor. (...)”
• Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-05-2015 (Processo n.º 1725/12.3TBRG.G1.S1), segundo o qual resulta do mencionado artigo 4.º, n.º 5.º, do Decreto-lei. n.º 67/2003, de 08 de abril, que “(...) a escolha do meio legal para ser usado pelo consumidor em caso de desconformidade do objeto com o contrato, deixou de estar sujeita a uma hierarquização que resultava da Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio”, assinalando o aresto que “(...) tal divergência em relação ao teor da Directiva é legal por o conteúdo desta constituir o mínimo de protecção legal aos consumidores imposta pela Directiva, mas os Estados membros ficam com a liberdade de estabelecer regime mais favorável aos consumidores, o que o caso do regime da não hierarquização – art. 8º nº 2 da Directiva. Porém, o alcance da alteração introduzida pelo referido nº 5 do art. 4º mencionado é menor do que o que aparenta à primeira vista. Com efeito, se o consumidor, perante um objecto defeituoso, optar pelo meio mais gravoso para o vendedor e essa natureza gravosa se não justificar perante o caso concreto atendendo ao interesse do consumidor, haverá um abuso de direito e, por isso, não será legítima a utilização desse meio mais gravoso.”
No caso vertente, as instâncias consideraram, em sentido convergente, “que considerando as alternativas previstas no referido art. 4º, nº1 do Dec. Lei nº 67/2003, importa concluir que a pretensão do Autor de indemnização no montante pago a título de preço do carro se enquadra na resolução do contrato de compra e venda celebrado com a Ré.”
Ultrapassada a questão sustentada pela recorrente de o direito de resolução não ter sido pedido, conforma-se, pois, a resolução do contrato de compra e venda decretada pelas instâncias.
Importa, ainda, por integrar o objeto do recurso, decidir acerca dos efeitos restitutórios da resolução do contrato.
III – Dos efeitos restitutórios da resolução do contrato
17. Entende a recorrente que o acórdão recorrido errou ao não ordenar ao autor a entrega do automóvel, após o incêndio, no estado em que se encontrava, como decorre obrigatoriamente do regime jurídico da resolução do contrato.
18. Com efeito, a resolução tem por efeito principal a extinção do contrato, ordenando a lei, no artigo 433.º do Código Civil, que «Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos seguintes», e que, tal como a invalidade negocial, a resolução tem efeito retroativo, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução (artigo 434.º do Código Civil)
Por sua vez, o artigo 289.º do Código Civil que se refere às consequências da declaração de nulidade ou da anulação do contrato, estipula o seguinte:
«1 - Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
2 - Tendo alguma das partes alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efetiva contra o alienante a restituição do valor dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento.
3 - É aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, diretamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes».
19. Têm entendido a doutrina e a jurisprudência que os efeitos restitutórios na sequência da invalidade do contrato (declaração de nulidade ou anulação) são norteados pelo princípio da restituição integral a fim de cada uma das partes ser colocada na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado, devendo este princípio aplicar-se à resolução do contrato com as necessárias adaptações.
A liquidação do contrato como efeito da sua extinção deve ter em conta «(...) o princípio da justiça comutativa, no sentido de se manter, relativamente às obrigações de restituição, a mesma correspectividade que as partes procuraram entre as prestações realizadas em execução do negócio inválido. Tal solução é exigida pela moderna concepção de contrato como troca económica de bens, assente no princípio da confiança ou da boa fé, que regula não só a conclusão do contrato mas também a troca das prestações e a restituição das prestações executadas durante o período intermédio entre a conclusão do contrato e a sua anulação ou declaração de nulidade» (cfr. Maria Clara Sottomayor, «A obrigação de restituir o preço e o princípio do nominalismo das obrigações pecuniárias», Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Universidade do Porto, 2003, p. 554; Hörster, H. E./Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil português, Almedina, Coimbra, 2022, p. 658, n.º 1017).
A esta luz devem entrar no juízo de ponderação acerca do conteúdo dos deveres de restituição os princípios do equilíbrio das prestações e da reciprocidade das obrigações (cfr. Acórdão de 22-06-2021, proc. n.º 1901/17.2T8VRL.G1.S1).
Na feliz expressão da doutrina francesa (CARBONNIER, Droit Civil,Tome 4, Les Obligations, PUF, Paris, 1992, p. 207; MALAURIE/AYNES, Cours de droit civil, Tome VI, Les Obligations, Éditions Cujas, 1997, p. 330), os efeitos da anulação correspondem a um “contrato sinalagmático de sentido inverso”.
Assim, no caso do contrato de compra e venda executado anulado por sentença judicial, como afirmam H. E. Hörster/Eva Moreira da Silva (ob. cit., p. 657, n.º 1015)“(...) a situação corresponde, de uma maneira inversa, aos efeitos do contrato de compra e venda”, verificando-se a retransmissão automática da propriedade para o vendedor, a cargo de quem fica o cumprimento da obrigação de restituir o preço, que tem como pólo oposto a obrigação do comprador de entregar a coisa. Os deveres de restituição são o reflexo de cada um dos efeitos previstos nas três alíneas do artigo 879.o do Código Civil (ibidem, p. 657, n.º 1015). Nestes termos, o vendedor passa a assumir a qualidade dupla de proprietário e de devedor do preço e o comprador a qualidade de possuidor de coisa alheia e de credor do preço. No caso da nulidade do contrato de compra e venda, embora para efeitos práticos a solução seja a mesma – obrigação de restituir a coisa a cargo do comprador e obrigação do vendedor de devolver o preço recebido – a fundamentação jurídica é distinta pois a sentença meramente declara ou constata a nulidade, não operando a retransmissão da propriedade que se entende nunca ter saído da esfera jurídica do alienante, nem havendo efeitos jurídicos a destruir, salvo os efeitos negociais laterais por força de disposição legal (Ibidem, p. 657, n,ºs 1015 e 1016).
Em termos jurídicos, tem razão, pois, a recorrente, quando afirma que as consequências jurídicas da resolução do contrato, aferidas através da remissão do artigo 433.º do Código Civil para o artigo 289.º, n.º1, do mesmo diploma legal, exigem ao comprador o dever de restituir o automóvel danificado ou destruído.
Invoca a recorrente, nas conclusões da revista, para fundamentar o dever de o consumidor restituir o automóvel destruído, o risco de fraude da parte dos consumidores, que não tendo de restituir o automóvel, poderiam repará-lo e continuar a colocá-lo em circulação, obtendo um enriquecimento ilegítimo e defraudando expetativas dos vendedores que poderiam ainda, após reembolsar o preço ao comprador, retirar vantagens da utilização do automóvel ou da venda de peças do mesmo, e ainda exigir responsabilidades ao fabricante.
Compulsados os autos, verifica-se, contudo, que a ré não peticionou, desde logo por via reconvencional, a restituição do salvado do automóvel em caso de procedência do pedido do autor, tão-só pugnando por tal restituição em sede de alegações do presente recurso de revista.
Por sua vez, as instâncias consideram a restituição do veículo impossível por ter o mesmo sido destruído, restando apenas o respetivo salvado. Deduziram à indemnização atribuída ao autor, correspondente ao preço de aquisição da viatura, somente o valor equivalente ao período temporal no decurso do qual o recorrido beneficiou do veículo.
A questão em crise não se assume, assim, como questão nova, tendo em conta que as instâncias já se pronunciaram sobre a possibilidade de determinar a restituição do veículo, considerando-a inviável pela circunstância de o mesmo ter sido destruído.
Mas não acompanhamos a conclusão das instâncias, visto que, não obstante o veículo ter ficado totalmente destruído (ponto 8 dos factos provados), subsiste o que é usualmente apelidado de “salvado”, como se depreende do teor do ponto 13 da factualidade assente, de acordo com o qual “dado o estado em que ficou o veículo, o A. não procedeu à reparação do mesmo, que está paralisado desde o dia do incêndio.”
No Direito dos seguros, em particular no seguro automóvel, o valor do salvado corresponde ao valor do bem no estado em que ficou após o sinistro. No seguro automóvel, o valor do salvado designa, habitualmente, o valor de um automóvel cujo sinistro foi regularizado como perda total e, apesar disso, tenha algum valor de mercado, como por exemplo, para reparação ou para fornecimento de peças.
Sendo o salvado do automóvel um objeto passível de restituição, cumpre, pois, aquilatar se tal restituição à recorrente pode ser determinada, não obstante não ter sido tempestiva e regularmente peticionada.
Há, desde logo, que sublinhar não ser transponível para o caso a doutrina uniformizada pelo AUJ n.º 4/95 (Processo n.º 085202, publicado no Diário da República, 1.ª Série de 17-05-1995) – segundo a qual “Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico, invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no n.º 1 do artigo 289 do Código Civil” – uma vez que, na situação agora em apreço, não foi formulada qualquer pretensão diretamente dirigida à restituição ao património do réu do bem alienado, ao contrário do que sucedeu no caso objeto de tratamento pelo assento, em que se pretendia que, independentemente da validade ou invalidade do negócio, se operasse a restituição do bem ou valor que havia sido prestado.
A jurisprudência do Supremo Tribunal não tem dado resposta uniforme à questão de saber se o tribunal pode determinar oficiosamente a restituição do bem prestado na sequência da declaração de nulidade ou anulação do contrato subjacente ou da sua resolução.
No acórdão de 05-11-2009 (Processo n.º 308/1999.C1.S1), considerou-se que, sob pena de violação do princípio do dispositivo, se o autor se limitou “a formular um pedido de anulação de certo negócio jurídico, não é lícito ao tribunal proferir sentença de condenação na restituição ou entrega dos bens, consequente ao decretamento da invalidade.” Desenvolveu o aresto a seguinte linha de argumentação: “E não se diga que, perante o disposto no art.289º do CC, a obrigação de restituir tudo o que foi prestado é meramente consequencial da invalidação do negócio: tal significa apenas que, no caso, tal pedido consequencial, a ser formulado, seria um pedido dependente, constituindo mesmo, porventura ,um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, sujeito ao regime mais favorável de ampliação pelo A.( cfr. art. 233º do CPC)- mas já não que seja lícito ao tribunal proceder, ele próprio, na sentença e a título oficioso, a tal «ampliação» que o A. não curou de requerer, sob pena de resultar violado o princípio do pedido, ínsito na figura estruturante do princípio dispositivo que sempre caracterizou o processo civil.”
Em sentido diverso, entendeu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-07-2008 (Processo n.º 08A249) que “a Relação, ao decidir pela resolução do contrato-promessa, tinha de ordenar a restituição integral de tudo o que fora prestado em conformidade com o disposto no art. 433.º do CC, conjugado com o art. 289.º, n.º 1, ambos do CC, ainda que tal não tivesse sido pedido.”
No caso, pode defender-se que a tutela requerida pelo autor – que, como acima se demonstrou através de uma abordagem compreensiva do peticionado, inclui a resolução do contrato – abrange, como efeito necessário, porque legalmente prescrito (artigos 433.º e 289.º, n.º 1, do Código Civil), a restituição do veículo acidentado à ré. O princípio do dispositivo, material e teleologicamente compreendido à luz de uma visão holística da relação jurídica admitirá, assim, que o tribunal, mesmo na ausência de um pedido reconvencional nesse sentido, determine a restituição do bem prestado na sequência de um contrato declarado resolvido, tratando-se de, na formulação utilizada pelo acórdão do STJ de 09-05-1996 (Processo n.o 088244), conceder os “efeitos totais da tutela jurisdicional deduzida” pelo autor.
Ora, se o tribunal pode decretar tal restituição oficiosamente, poderá, por maioria de razão, fazê-lo quando tal restituição é pedida pela parte em sede de recurso, como sucede no caso.
20. Decidimos, assim, que o recurso, neste segmento, deverá ser julgado procedente, determinando-se a restituição à ré do veículo alienado e afetado pelo incêndio, no estado em que se encontrar.
Em consequência, procedem as conclusões G) a I) da alegação de recurso da recorrente.
21. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:
I – A interpretação da petição inicial como ato jurídico, em conformidade com as regras hermenêuticas previstas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil (por remissão operada pelo artigo 295.º do mesmo Código) permite deduzir da factualidade alegada pelo autor, em conjugação com o alcance do pedido formulado, que o autor pretendeu obter a destruição dos efeitos do contrato, pretensão compaginável com a figura da resolução do contrato, que assim se entende como um pedido implícito.
II – Estando em causa o incêndio súbito de um automóvel, alienado por uma empresa a um consumidor, a ausência de prova acerca da concreta causa do incêndio do automóvel e acerca do sujeito a quem a mesma seja imputável (o vendedor, o comprador ou terceiro) deve ser resolvida, de acordo com uma interpretação sistemática e teleológica do regime legal (artigo 2.º, n.º 2, al. d) e 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º67/2003, de 8 de abril), em desfavor do vendedor profissional.
III – Tendo as instâncias decidido pela resolução do contrato de compra e venda de consumo, tinham poderes para ordenar a restituição integral de tudo o que foi prestado em conformidade com o disposto no artigo 433.º, conjugado com o artigo 289.º, n.º 1, ambos do Código Civil, ainda que não tivesse sido pedido pela ré, em reconvenção, a restituição do automóvel incendiado.
IV - Os efeitos restitutórios na sequência da invalidade do contrato (declaração de nulidade ou anulação) são norteados pelo princípio da restituição integral, a fim de cada uma das partes ser colocada na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado, devendo este princípio aplicar-se à resolução do contrato (artigo 433.º do Código Civil)
V - A liquidação do contrato como efeito da sua extinção deve ter em conta o princípio da justiça comutativa, no sentido de se manter, relativamente às obrigações de restituição, a mesma correspetividade que as partes procuraram entre as prestações realizadas em execução do negócio inválido ou resolvido.
VI – Em caso de resolução do contrato de compra e venda de automóvel usado, deve ser restituído à ré, vendedora, o automóvel incendiado como contrapartida do seu dever de reembolso do preço pago pelo comprador.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder parcialmente a revista e ordenar ao Autor a restituição à Ré do veículo incendiado.
No mais mantém-se o Acórdão recorrido.
Custas pelo autor e ré na proporção do decaimento de cada um.
Supremo Tribunal de Justiça, 30 de maio de 2023
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Pedro Lima Gonçalves (1.º Adjunto)
Maria João Vaz Tome (2.ª Adjunta)