Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INCAPACIDADE PERMANENTE
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário
I - A incapacidade permanente constitui um dano patrimonial indemnizável, quer acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral, quer dela resulte apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar, físico ou/e psíquico, para obter o mesmo resultado. II - Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho. III - Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo lesado está o julgador subordinado a critérios de equidade, que pondere, todavia, a situação económica do lesado e do obrigado à reparação, a intensidade do grau de culpa do lesante, e extensão e natureza das lesões sofridas pelo titular do direito à indemnização, considerando, como ponto de equilíbrio, as próprias finalidades prosseguidas pela indemnização por este tipo de danos. IV - Os componentes de maior relevância do dano não patrimonial são: a) o dano estético: traduzido no prejuízo anatomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; b) o prejuízo de afirmação social: dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica); c) o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”: nele se destacam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; d) o pretium juventutis: que compreende a frustração de viver em pleno a designada “primavera da vida”; e) e o pretium doloris - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária.
Texto Integral
Processo n.º 27266/17.4T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.RELATÓRIO.
Autor: AA.
Ré: A..., S.A..
Intervenientes: B... – Companhia de Seguros, S.A., e BB.
Objecto do litígio: responsabilidade civil extracontratual (exercida contra seguradora).
Demandou o Autor a Ré, reclamando o ressarcimento dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência de acidente de viação (atropelamento) de que foi vítima e cuja responsabilidade exclusiva imputa à condutora de veículo segurado pela segunda, formulando os seguintes pedidos: “ser a ré condenado ao pagamento das seguintes quantias:
A) A título de danos patrimoniais, a quantia de 2868 euros (…)
B) A título de lucro cessante, a quantia de 212 000 euros (…)
C) A título de dano emergente, 500.000 euros (…)
D) A título de danos não patrimoniais 300.000 euros
E) Deve ainda a companhia ser condenado ao pagamento de todas as despesas que venham a decorrer na sequência do acidente, e a quantificar em execução de sentença. (…)
G) Deve ser ainda condenada ao pagamento de juros desde a data do sinistro até integral e efectivo pagamento”.
Contestou a ré, requerendo a suspensão da instância, com base na pendência de processo por acidente de trabalho, impugnando os factos (embora aceite a responsabilidade da condutora do veículo por si segurado) e alegando que a obrigação de ressarcimento de parte dos danos cabe à seguradora de acidentes de trabalho. Pediu a intervenção acessória desta seguradora e da condutora do veículo segurado, por conduzir sob a influência de álcool.
A B... – Companhia de Seguros, S.A., requereu a sua intervenção principal espontânea, o que foi admitido, tendo pedido a condenação da ré a reembolsá-la da quantia de € 168.592,13, que despendeu em resultado do sinistro, enquanto seguradora de acidentes de trabalho, acrescida daquele que venha a ser ampliado e dos respetivos juros de mora, contados desde a citação até total e efetivo pagamento.
Ulteriormente, a interveniente requereu a ampliação do pedido, pedindo o reembolso de € 26.871,25 adicionais.
Foi admitida a intervenção passiva acessória da condutora do veículo atropelante.
Contestou esta sustentando que o sinistro se ficou a dever a culpa do autor.
O autor concretizou e ampliou o pedido nos seguintes termos:
“No que diz respeito aos danos não patrimoniais sofridos até à presente data:
A ré deve ser condenada a pagar ao autor as seguintes parcelas indemnizatórias:
1 – Pelo dano da ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), a indemnização no montante de 250.000€
2 – Pelo dano estético, a indemnização no montante de 50.000€;
3 – Pelo quantum doloris, a indemnização no montante de 20.000€;
4 – Pela incapacidade permanente absoluta para a prática de toda e qualquer profissão, a indemnização no montante de 250.000€;
5 – Por cada dia de internamento hospitalar, desde 23/12/2014 até 14/11/2016, num total de 692 dias, a indemnização no montante de 100€/dia, o que perfaz um total de 69.200€;
6 – Pelos danos consubstanciados nos factos vertidos nos arts. 14.º, 15.º, 18.º, 22.º a 43.º, 59.º a 64.º, 93.º a 105.º, 110.º, 119.º a 161.º, 164.º a 191.º, da petição, a indemnização no montante de 250.000€.
Os danos não patrimoniais sofridos pelo autor até à presente data ascendem a 889.200€.
No que diz respeito aos danos patrimoniais sofridos até à presente data:
1 – Pelas perdas salariais desde a data do acidente até à presente data, a indemnização no montante de 60.533€
2 – As despesas comprovadamente suportadas pelo autor em consequência das lesões sofridas no acidente, a indemnização no montante de 1.218,60€
3 – Juros vencidos à taxa legal desde a data do acidente até efetivo e integral pagamento.
Os danos patrimoniais sofridos pelo autor até à presente data ascendem a 61.771,60€, a que acrescem juros.
No que diz respeito aos danos futuros:
A ré deve ser condenada a pagar ao autor as seguintes parcelas indemnizatórias:
1 – Pelas perdas de retribuição, o valor mensal de 822,50€, o qual deverá ser atualizado anualmente em percentagem igual ao do aumento do salário mínimo nacional;
2 – Pelas despesas com a contratação de terceira pessoa, o valor mensal de 1.050€, o qual deverá ser atualizado anualmente em percentagem igual ao do aumento do salário mínimo nacional;
3 – Pelos danos não patrimoniais futuros, o valor mensal de 1.200€, a atualizar anualmente de acordo com índice da inflação.
4 – Estes danos valorizam-se, na presente data, em 750.000€, correspondente ao capital necessário para o autor suportar tais valores, esgotando-se o mesmo no final de vida do autor, devendo a ré ser condenada ao pagamento deste montante, caso não seja atribuída indemnização na forma de renda mensal, como se pede no ponto seguinte.
5 – Estes danos devem ser indemnizados na forma de renda mensal vitalícia, a atualizar nos termos propostos, o que se requer, devendo, na presente data ser fixada no valor mensal de 3.072,50€.
6 – Deve, ainda, a ré ser condenada a suportar todas as despesas de que o autor vier a necessitar em resultado do acidente, designadamente com prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e ajudas técnicas, mediante apresentação de declaração médica a atestar tal necessidade e relação com o sinistro”.
Realizou-se audiência prévia, com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova.
Concluído o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Julga-se a ação parcialmente provada e procedente, condenando-se a ré, A..., S.A., a pagar ao autor, AA: a) a quantia de € 24 013,84 (vinte e quatro mil, treze euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescida de juros contados desde a data de citação e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civ., a título de danos patrimoniais; b) a quantia de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), a título de danos não patrimoniais; c) a renda mensal vitalícia corresponder ao valor de 300% (trezentos por cento) da remuneração mínima mensal (Portugal continental) que em cada momento vigorar, até ao dia 8 (oito) de cada mês, a partir (inclusive) do mês de calendário seguinte ao da prolação desta sentença; d) o preço das intervenções médicas, medicamentosas, tratamentos, ajudas técnicas e apoios técnicos ulteriores ao encerramento da audiência final, documentadas por faturas ou recibos, emitidos em nome do autor, e declaração ou prescrição médica a atestar a sua necessidade e relação com o sinistro. Condena-se a ré a liquidar à interveniente B... – Companhia de Seguros, S.A., a quantia de € 193 601,86 (cento e noventa e três mil seiscentos e um euros, oitenta e seis cêntimos) acrescida de juros contados desde a data de 7 de dezembro de 2018, sobre a quantia de € 166 730,61 (cento e sessenta e seis mil setecentos e trinta euros, sessenta e um cêntimos), e desde a data de 24 de março de 2022, sobre a quantia de € 26 871,25 (vinte e seis mil oitocentos setenta e um euros, vinte e cinco cêntimos), e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civ., a título de danos patrimoniais No mais, vai a ré absolvida dos pedidos. Custas da ação a cargo da(s) partes, na proporção do decaimento, sem prejuízo de apoio judiciário. Dispensa-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça, considerando a simplicidade da causa (art. 6.º, n.º 7, do RCP). Valor da causa: o dado pelas partes. Registe eletronicamente e notifique.
Não se resignando a ré A..., COMPAÑIA DE SEGUROS Y REASEGUROS, S.A. SUCURSAL EM PORTUGAL com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões: “1. A recorrente entende se mostra incorretamente julgada a subalínea x), da alínea m), do ponto 28. dos factos provados, sendo que, em seu entender, os mesmos deveriam ter sido dados como não provados, por ausência de prova por parte do recorrido sobre os mesmos, e por prova em contrário, constante das conclusões da perícia médico-legal realizada nos autos. 2. Tratamos, in casu, de uma questão essencialmente médica, pelo que se impunha, pois, que fosse, como foi, apreciada por um perito na área, com especiais conhecimentos na matéria. 3. No nosso direito predomina o princípio da livre apreciação das provas, consagrado no art. 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. 4. No entanto, o juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 5. O julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação. 6. Não se compreende, atenta a total falta de fundamentação, de que meios de prova extraiu o Ilustre Julgador a conclusão segundo a qual o Autor carece de auxílio de terceira pessoa, para o coadjuvar no dia-a-dia, nem se vislumbra qual o concreto fundamento quanto ao tempo diário em que será necessária essa prestação de auxílio. 7. Na verdade, o que resulta da leitura atenta do relatório pericial de fls., junto aos autos em 26/02/2021, com a referência Citius 28240577, é que nenhum dos peritos médicos que examinaram o Autor determinou, antes afastou, a necessidade assistência de terceira pessoa para o auxiliar nas tarefas da vida diária. 8. De resto, foi o próprio autor quem, conforme consta de tal relatório pericial, declarou o seguinte à Sr.ª Perita Médica que o examinou: “− Atos da vida diária: independente e autónomo para as atividades da vida diária referindo que pontualmente necessita de auxílio de um filho para movimento de despir/vestir alguma peça de vestuário; − Vida afetiva, social e familiar: refere ter reaprendido a cozinhar aquando da sua estadia em C... referindo também ter aprendido a fazer a gestão das compras de alimentos de forma a que não seja necessário transportar mais de 4 kg de cada vez;” 9. Ou seja, o exame objetivo feito ao sinistrado pela Senhora Perita Médica, afastou a necessidade do Autor de assistência de terceira pessoa para o auxiliar nas tarefas da vida diária, e o próprio negou ter essa necessidade! 10. Assim, o tribunal a quo não só não fundamentou devidamente o motivo da sua discórdia, neste ponto, com o resultado do relatório pericial, com o qual de resto até o Autor se conformou, como não fundamentou de todo essa dissidência. 11. E, ademais, nunca seriam os depoimentos da testemunha CC, ex-mulher do Autor, ou da testemunha a seu familiar DD, aptos a infirmar as conclusões da Sr. Perita Médica, tanto mais que não só possuem habilitações técnicas, académicas ou profissionais que lhe permitissem infirmar a Perícia Médico-Legal, como nenhuma das preditas testemunhas reside com o Autor ou sequer convive diariamente com ele. 12. O tribunal, neste particular (necessidade de ajuda terceira pessoa), simplesmente desconsiderou o relatório pericial, quando neste âmbito se mostrou contraditório com a tese defendida pelo Autor. 13. Como é bom de ver, relativamente a este ponto, o A. . perfeitamente capaz de tomar banho sozinho, fazer a barba, calçar e apertar os atacadores dos sapatos, usar talheres, escrever ou apertar fechos e botões, devendo alterar-se, em conformidade, a resposta à subalínea x) da alínea m) do ponto 28. dos factos provados, devendo tal facto ser dado como não provado. 14. Assim, pelo somatório das razões que ficaram aduzidas, ao abrigo do disposto no artigo 662º. do Código de Processo Civil, requer-se, pois, a V. Exas. Que alterem a douta decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto, nos precisos termos que se deixam sustentados. 15. Procedendo-se à alteração da matéria factual provada (e não provada) nos moldes que se deixam preconizados, a indemnização fixada ao A., destinada a indemnizar os danos patrimoniais que sofreu terá de ser proporcionalmente reduzida, cingindo-se a um salário mínimo nacional, relativo à perda total da sua capacidade de ganho. 16. Sem prescindir, mesmo que venha a entender-se que a matéria de facto apurada na douta decisão ora em crise deve manter-se, o que somente por cautela de patrocínio se aceita, ainda assim . a douta sentença em crise merecedora de diversos e profundos reparos, que passaremos a expor. 17. O valor arbitrado pelo tribunal a quo, a título de compensação do recorrido pelos danos de natureza não patrimonial (400.000,00 €) parece-nos manifestamente exorbitante e excessivo, quase inédito até, sem qualquer respaldo doutrinal ou jurisprudencial. 18. Apesar de se reconhecer que os danos não patrimoniais sofridos pelo recorrido são muito relevantes e dignos de uma compensação pecuniária expressiva, entende a ora recorrente que o montante indemnizatório fixado a esse título (400.000,00€) é desajustado, quer face às concretas circunstâncias do caso, quer quando confrontado com o sentido das decisões que vêm sendo proferidas pela nossa Jurisprudência em casos análogos. 19. Na verdade, os nossos Tribunais Superiores, em casos substancialmente mais graves do que o presente, vêm atribuindo montantes indemnizatórios por danos não patrimoniais muito inferiores àquele que aqui fixado pelo Tribunal a quo. 20. São muitíssimas as decisões dos nossos Tribunais superiores que demonstram o exagero da indemnização arbitrada como compensação do dano não patrimonial, como por exemplo: - O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13/02/2014, proferido no processo n.º 114/10.9TBPTL.G2, da 2.ª Secção - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/02/2015, proferido no processo n.º 99/12.7TCGMR.G1.S1 - O Acórdão do S.T.J., de 23/02/2012 e proferido no processo n.º 31/05.4TAALQ.L2.S1 - O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/03/2015, proferido no processo n.º 332/11.2TBMGL.C1 - O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/11/2012, proferido no processo n.º 2286/08.3TBTVD.L1-6 - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/09/2019, proferido no proc. n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1 - E o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/07/2010, proferido no processo n.º 1879/03.0TBACB.C1 21. Estes doutos arestos, que acabam de ser citados – e que são apenas alguns, entre muitos outros – evidenciam bem que o valor fixado pelo Tribunal a quo é excessivo, afastando-se, e muito, dos parâmetros que vêm sendo estabelecidos pela Jurisprudência dos nossos Tribunais superiores. 22. Considerando os factos provados nestes autos, com relevância para a fixação de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo recorrido e o sentido da Jurisprudência conhecida, a indemnização a arbitrar ao mesmo recorrido a título de danos não patrimoniais não deverá situar-se em montante superior a 100.000,00 €, sob pena de não se coadunar aos danos morais por ele sofridos. 23. Relativamente à indemnização arbitrada ao Autor para ressarcir a perda total da capacidade de ganho, pretendendo a Recorrente colocar em causa ou menosprezar gravosas consequências que do acidente dos autos resultara para o Autor, tornando-o incapaz para o exercício de toda e qualquer profissão, a verdade é que não podemos deixar de manifestar a nossa profunda discórdia quanto à forma de cálculo desta indemnização e ao valor mensal a que chegou o tribunal a quo. 24. Com todo o relevo, ficou provado (ponto 36. dos factos provados) que o Autor auferia, como vencimento mensal, o montante de 505,00€, à data do acidente (23/12/2014), correspondente ao salário mínimo nacional. 25. Nesta conformidade, o valor da renda mensal a atribuir ao Autor como indemnização pela impossibilidade absoluta de trabalhar e de angariar sustento terá de ser indexado ao salário que auferia, sendo que no dia de hoje, o A., caso pudesse trabalhar auferiria, previsivelmente, o salário mensal de 705,00€, que é o valor atual do salário mínimo nacional (RMMG). 26. Portanto, sob pena de indevido locupletamento, o valor da renda mensal a atribuir ao recorrido como compensação pela impossibilidade de trabalhar não poderá exceder, atualizada nos dias de hoje, o montante mensal de 705,00€. 27. Ao valor máximo admissível (705,00€ mensais) sempre deverá ser abatido, sob pena de duplo e indevido ressarcimento do mesmo dano, o valor da pensão mensal vitalícia que o recorrido está a auferir da interveniente B... no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, que se cifra em cerca de 400,00€ mensais. 28. Embora entenda a Recorrente que não poderá dar-se como provado que o Autor careça de apoio de terceira pessoa, visto dispor de autonomia suficiente para assegurar e executar as tarefas da vida quotidiana, cautelarmente, haverá, porém, que admitir que venha a entender-se o contrário. 29. Se assim se entender e vier a decidir-se que existe necessidade de efetivo apoio de terceira pessoa, o respetivo encargo não poderá nunca importar no valor mensal de 1,5 salários mínimos nacionais, conforme arbitrado da sentença. 30. A este propósito, apenas se apurou, na subalínea x) da alínea m) do ponto 28.º que o Autor: “m) apresenta/experimenta permanentemente: (…) x) descoordenação motora que o impede de tomar banho sozinho, fazer a barba, calçar e apertar os atacadores dos sapatos, usar talheres, escrever ou apertar fechos e botões;” 31. Como vemos, o auxílio de que o Autor, eventualmente, necessitará, prende-se exclusivamente com tarefas pontuais, rápidas e circunscritas a determinados períodos do dia, não tendo resultado provado, nem quando se entenda, contrariamente à ora recorrente, que se deve manter inalterada a matéria de facto provada, que o autor necessite quem lhe limpe a casa e confecione as refeições. 32. Em face disto, entendemos que seria suficiente que o mesmo fosse auxiliado por um profissional, no máximo, durante 2 horas diárias, ou seja 1/4 do período normal de trabalho diário. 33. Considerando, pois, que o vencimento mensal de um prestador de cuidados domésticos posse auferir, a tempo inteiro (8 horas/dia), cerca de 1.000,00€ mensais, a prestação de 2horas/dia implicará um custo de cerca de 250,00e mensais. 34. E, assim, caso venha a sufragar-se o entendimento de que o Autor carece de apoio de terceira pessoa (a tempo parcial) a renda mensal que deverá ser-lhe atribuída para satisfação deste encargo não deverá exceder 250,00€ por mês. 35. Também aqui, portanto, a indemnização atribuída em primeira instância foi fixada arbitrariamente e sem fundamento válido. 36. A douta sentença recorrida violou, entre outras normas, o artigo 607, n.º 4 e 5 do Código de Processo Civil e os artigos 494, 496, 562, 564 e 566, todos do Código Civil. Concedendo provimento ao presente recurso, revogando a douta sentença recorrida em conformidade, com o exposto. V. Exas. farão, como sempre, INTEIRA e SÃ JUSTIÇA!”.
O apelado AA apresentou contra-alegações nas quais pugna pelo não provimento do recurso interposto pela apelante seguradora.
O mesmo, igualmente inconformado com a sentença proferida, dela interpôs recurso de apelação, rematando as alegações com as seguintes conclusões: “1) O tribunal recorrido julgou provado, em 28, al. k), dos Factos Provados, que, após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor, após alta hospitalar, em novembro de 2016, retornou o domicílio, sendo auxiliado por terceira pessoa. 2) O Recorrente entende que o tribunal recorrido, neste ponto da matéria de facto, deveria ter julgado provado que, após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor, após alta hospitalar, em 16 novembro de 2016, retornou ao domicílio, sendo auxiliado por terceira pessoa. 3) Ou seja, devia ter julgado provado o dia concreto do mês do retorno a casa, e não limitar-se a dar como provado o mês. 4) Tal decisão impunha-se em face do depoimento da testemunha CC, na passagem gravada de 05:30 a 6:17. 5) O próprio tribunal recorrido, na motivação da decisão da matéria de facto, menciona, a respeito desta testemunha, que esta disse que “o autor teve alta hospitalar em 16 de novembro de 2016”, e que “Depôs de modo claro e coerente.”. 6) Assim, o tribunal cometeu um lapso, erro, ao não ter dado como provada o dia exato em que o A. retornou ao seu domicílio, devendo a decisão proferida sobre a matéria de facto em causa ser alterada. 7) Tendo em conta os danos não patrimoniais sofridos pelo A. que resultam dos Factos Provados na sentença, a sua gravidade e extensão, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e a do A., e que tais danos prologar-se-ão continuadamente para o futuro, o tribunal recorrido deveria, a título de compensação por tais danos não patrimoniais, ter condenado a R. a pagar ao A. as seguintes quantias: a. Pelo internamento hospitalar e privações dele decorrente, que durou 694 dias, uma compensação à razão de 100€ por dia de internamento, ou seja, 67.900€; b. Pela dor sofrida pelo A., com o acidente, com a recuperação e com os esforços que lhe foram exigidos, 25.000€; c. Pelo dano biológico, 250.000€; d. Pela afetação da sua aparência (imagem estética), 50.000€; e. Pela incapacidade para o exercício de toda e qualquer profissão, 250.000€; f. Pelas diversas lesões imediatas ao acidente, anteriores à consolidação médico-legal, 100.000€; g. Pelos exames, cirurgias e tratamentos a que teve de ser sujeito, 100.000€; h. Pela alteração da personalidade, receios e medos, 50.000€; i. Pela rutura do seu casamento e do relacionamento com os filhos, com a destruição dos projetos de vida familiar, 100.000€; j. Pelas repercussões sociais e a privação de atividades de lazer, 25.000€. 8) No total, o tribunal recorrido deveria ter condenado a R. a pagar ao A., a título de compensação pelos danos não patrimoniais, a quantia de 1.017.900€. 9) Ao não o fazer, o tribunal recorrido violou o disposto no art. 496.º, n.º 1 e n.º 4 e no art. 494.º, do CC. 10) A decisão recorrida deve ser alterada em conformidade”.
A apelada/Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso do apelante/Autor.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;
- os montantes fixados na sentença a título de indemnização por danos sofridos pelo Autor.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1 – Em 23 de dezembro de 2014, cerca da uma hora e 50 minutos, o autor encontrava-se sobre a faixa de rodagem avenida ..., próximo do n.º de polícia ..., junto ao lancil do passeio do lado direito, considerando o sentido poente-nascente.
2 – O autor encontrava-se a efectuar trabalhos de limpeza da faixa de rodagem, por determinação da sociedade D..., L.da, à qual se encontrava cedido pela sua entidade patronal, E..., S.A..
3 – O autor tinha vestido um blusão e calças, tendo todas estas peças faixas retrorrefletoras, ao nível dos tornozelos, joelhos, cintura, tronco, braços e antebraços, circundando os membros e o tronco, em circunferência completa.
4 – O autor segurava um carro de mão de trabalho de recolha de lixo, cujos dois baldes possuíam, cada um, duas fitas retrorrefletores que os circundavam, sensivelmente, a um terço e a dois terços da sua altura.
5 – Os trabalhos de limpeza da faixa de rodagem realizados pelo autor traduziam-se na remoção de detritos existentes no pavimento na zona imediatamente adjacente ao passeio direito, atendendo ao sentido poente-nascente, desenvolvendo o demandante tal actividade junto ao referido passeio, subindo a avenida ... (sentido poente-nascente).
6 – No local, a avenida ... apresenta duas faixas de rodagem, cada uma permitindo um sentido de trânsito, divididas por um separador central, desenvolvendo-se numa recta com várias centenas de metros de extensão, com direcção ponte-nascente.
7 – Cada uma das duas faixas de rodagem tem duas vias de trânsito, sendo que na faixa da direita, considerando o sentido poente-nascente, uma terceira via de trânsito tem o seu início na zona central, destinada à inversão do sentido de marcha.
8 – A faixa de rodagem ascendente da avenida ... (sentido poente-nascente), não considerando a terceira via referida no ponto, 7 – factos provados –, tem 7 metros de largura, sendo dividida a meio por uma linha longitudinal descontínua.
9 – No local, a avenida ... é dotada de iluminação pública, estando esta em funcionamento no referido momento.
10 – Na ocasião, o pavimento estava seco e o ar límpido, sendo possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura a uma distância superior a 100 metros.
11 – A avenida ... situa-se no interior da cidade do Porto, sendo ladeada por edifícios de habitação, comércio e serviços.
12 – No mesmo dia, hora e local, circulava na avenida ... o veículo automóvel da marca Porsche, modelo ..., com matrícula ..-..-PI, no sentido poente-nascente, conduzido por BB, pertencente a EE.
13 – Antecedendo o Porsche, circulando à sua frente, seguia um veículo ligeiro (jipe) conduzido por FF.
14 – Na ocasião, não circulavam na avenida ... outros veículos a uma distância inferior a 300 metros do Porsche, à frente e atrás, considerando o seu sentido de marcha, salvo o veículo referido no ponto 13 – factos provados –, o qual circulava entre 50 a 100 metros à frente à frente daquele veículo.
15 – Na ocasião, a uma distância de 300 metros do local do embate, à frente e atrás, a hemifaixa direita da faixa de rodagem ascendente da avenida ... (sentido poente-nascente) encontrava-se totalmente desobstruída (desocupada), ressalvado o Porsche, o autor e o carro de mão que este segurava, e o veículo referido no ponto 13 – factos provados –, não existindo nenhum obstáculo na hemifaixa da esquerda da referida faixa de rodagem ascendente, em toda a referida extensão (600 metros).
16 – O Porsche tem uma largura de cerca de 180 cm.
17 – O carrinho de mão que o autor segurava tem cerca de 80 cm de largura máxima (entre os lados exteriores das rodas)
18 – O autor e o carrinho de mão que este segurava não ocupavam qualquer ponto da faixa de rodagem a partir de um metro (perpendicular) de distância do passeio do lado direito, atendendo ao sentido de marcha poente-nascente.
19 – FF avistou o autor e o carro de mão que este segurava, quando se encontrava a não menos de 50 metros de distância, ultrapassando-os sem incidentes.
20 – BB conduzia desatenta à sua condução, ao trânsito automóvel e aos restantes ocupantes da faixa de rodagem, não se apercebendo da presença do autor e do carro de mão de trabalho de recolha de lixo por este segurado, junto ao passeio do lado direito, atento o seu sentido de marcha.
21 – BB conduzia sob a influência de uma taxa de álcool no sangue de 2,02g/l.
22 – O autor apercebeu-se da aproximação do Porsche, pelo barulho produzido pelo motor deste.
23 – O Porsche embateu no autor e no carro de mão de trabalho de recolha de lixo por este segurado, projectando ambos pelo ar.
24 – O autor caiu desamparado sobre a via pública, alguns metros mais à frente.
25 – Imediatamente antes, durante e após o atropelamento, o Porsche não se imobilizou não abrandou a sua marcha, prosseguindo BB a sua condução pela avenida ..., em direcção ao seu domicílio.
26 – A ré, enquanto seguradora, e EE, enquanto tomador, declararam acordar que a primeira assumiria o risco da ocorrência de sinistros causados pelo veículo de matrícula ..-..-PI, nos termos constantes do documento intitulado apólice n.º ..., junto aos autos e que aqui se dá por transcrito, suportando a indemnização eventualmente devida a terceiros lesados.
2. Danos sofridos
2.1. Repercussões pessoais
27 – Em resultado do sinistro referido:
a) Durante 463 dias, o autor viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
b) Durante 463 dias, o autor viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos actos inerentes à sua atividade profissional;
c) O autor sofreu dor quantificável num grau 5, numa escala até 7 (quantum doloris);
d) O autor ficou definitivamente afectado na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 59, numa escala até 100;
e) O autor sofreu uma afectação da sua aparência (imagem estética) num grau 3, numa escala até 7;
f) O autor encontra-se incapaz para o exercício de toda e qualquer profissão;
g) O autor carece vitaliciamente de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e de ajudas técnicas, designadamente de locomoção;
h) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo autor ocorreu em 30 de Março de 2016.
28 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor:
a) em 23 de Dezembro de 2014, foi admitido no serviço de urgência do serviço de urgência do Hospital ...;
b) à entrada no Hospital ... apresentava:
i) traumatismo cranioencefálico grave, com hemorragia cerebral: contusão hemorrágica na vertical medical do tálamo direito, registando ainda pequenos focos de contusão temporais bilaterais;
ii) sangue subracnoideu disperso em alguns sulcos da convexidade, com conteúdo hemático nas cisternas interpedunculares e ambiente (à esquerda) e na tenta do cerebelo;
iii) espessamento dos tecidos moles periorbitários à direita;
iv) fraturas expostas do 1/3 distal dos ossos da perna esquerda;
v) fratura do maléolo tibial à direita.
c) no Hospital ... foi submetido a:
i) intervenção cirúrgica, com redução fechada de fratura (exposta), com fixação interna de tíbia e perónio – a encavilhamento tíbia com ETN e do perónio com cravo de steinmann à esquerda e osteossíntese com parafuso de maléolo à direita;
ii) duas TC CE, uma TC cervical, uma TC abdominal, diversas radiografias;
d) durante cinco dias, ficou internado na unidade de cuidados intensivos do Hospital ..., sendo transferido para o serviço de neurocirurgia TCE ao quinto dia;
e) em 30 de Dezembro de 2014, foi transferido para serviço de neurocirurgia do Hospital 1..., onde ficou internado;
f) à entrada no Hospital 1... apresentava:
i) hemorragia talâmica direita em reabsorção;
ii) foco de contusão edemotaso temporal esquerdo com sinais de reabsorção do componente hemático direita em mínimo conteúdo hemático da cisterna interpeduncular;
iii) pequeno volume hemático subaracnoideu;
iv) imobilidade do membro superior esquerdo;
v) reflexo cutâneo plantar duvidoso à esquerda;
vi) paresia do membro superior esquerdo;
g) em 13 de Janeiro de 2015, foi transferido para o serviço de medicina física e de reabilitação do Hospital 2..., polo do Centro Hospitalar ...;
h) em 30 de Janeiro de 2015, foi transferido para o Centro de Reabilitação ...;
i) em 25 de Maio de 2015, foi transferido para o Hospital 3..., para continuação da reabilitação, onde, em Agosto de 2015, foi retirado parte do material de osteossíntese;
j) realizou diversos exames de diagnóstico, designadamente, radiografias e tomografias computorizadas;
k) após alta hospitalar, em Novembro de 2016, retornou ao domicílio, sendo auxiliado por terceira pessoa;
l) em Novembro de 2016, passou a frequentar o Centro de Reabilitação ..., onde faz regularmente piscina e fisioterapia, entre outras terapias e acções de formação;
m) apresenta/experimenta permanentemente:
i) marcha claudicante, com recurso a ajudas técnicas (bengala canadiana que usa à direita, e marcha de base alargada);
ii) ROT´s diminuídos do membro superior direito;
iii) Hiperreflexia do membro superior esquerdo;
iv) no membro inferior direito: cicatriz cirúrgica maléolo medial 4 cm; força muscular globalmente diminuída para grau IV/V4; mobilidades articulares neste membro conservadas em articulação coxo femoral e em joelho, com limitação no movimento em tornozelo para dorsiflexão; Hiperreflexia.
v) no membro inferior esquerdo: cicatrizes cirúrgicas (três) em área de tornozelo e pé; atrofia muscular de 2 cm (quando comparado com o contra lateral onde também sofreu lesão traumática); na medição de comprimento real e aparente identifica-se diferença, por defeito, de 1.5 cm neste membro inferior; instabilidade articular ântero-posterior em joelho; limitação no movimento em tornozelo para dorsiflexão; hiperreflexia; força muscular globalmente diminuída para grau III/V;
vi) ocasionais convulsões epilépticas;
vii) intolerância à frustração directamente relacionada com o sofrimento psicológico, incrementados pela deterioração física, emocional, relacional e afectiva;
viii) défices cognitivos na atenção, na linguagem e na memória, bem como marcadas alterações na organização e funcionamento da personalidade;
ix) constrição de campo visual no olho direito (isóptera I/4-e limita os 10º centrais);
x) descoordenação motora que o impede de tomar banho sozinho, fazer a barba, calçar e apertar os atacadores dos sapatos, usar talheres, escrever ou apertar fechos e botões;
xi) tem dificuldade em deslocar-se em transportes públicos, designadamente, em subir as escadas do autocarro e manter-se em pé no seu interior.
xii) dificuldades da fala e para se situar no tempo e no espaço, tendo uma capacidade cognitiva diminuída para interpretar e avaliar a realidade à sua volta e para tomar decisões em função desta;
xiii) necessidade de usar calçado especial, o qual se desgasta mais rapidamente, em resultado das suas deficiências da marcha;
xiv) dificuldades de se exprimir, tendo um discurso incoerente, muitas vezes projectando saliva ao falar e engasgando-se;
n) sente:
i) revolta, hostilidade com quem o rodeia, angustia, tristeza profunda, desalento e impotência;
ii) ser inútil e imprestável;
iii) ser um encargo e um estorvo para a sua família;
iv) vergonha da sua nudez, não conseguindo ver-se ao espelho;
v) culpa pelos efeitos do sinistro sobre a sua família;
vi) incapacidade de falar em público;
vii) dificuldade em dormir, tendo pesadelos com o atropelamento.
29 – No instante imediatamente antes do atropelamento e durante os tratamentos a que foi sujeito(a), o autor sentiu medo de morrer e de não mais ver os seus filhos.
30 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor:
a) tornou-se uma pessoa amarga, triste, revoltada, solitária, pouco dialogante, com variações de humor súbitas e despropositadas;
b) perdeu a alegria de viver, apresentando um discurso depressivo, não desejando viver;
c) teme pelo seu futuro, designadamente na sua velhice.
31 – O autor nasceu em .../.../1978.
32 – Até à data do atropelamento, o autor era globalmente saudável e fisicamente robusto, sofrendo de astigmatismo hipermetrópico.
2.2. Danos patrimoniais
33 – Em resultado do atropelamento, o ficou sem a camisola e roupa interior que tinha vestida.
34 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor:
a) recorre e continuará a recorrer a transportes públicos, individuais ou coletivos, nas suas deslocações, designadamente para as unidades de saúde e de reabilitação onde é tratado e acompanhado, no que já despendeu a quantia de € 498,40;
b) toma e continuará a tomar mensalmente diversa medicação, designadamente antidepressivos e analgésicos.
2.3. Repercussões profissionais
35 – Na data do atropelamento, o autor trabalhava para a entidade patronal E..., S.A., tendo a categoria profissional e exercendo as funções de cantoneiro.
36 – Como vencimento base mensal, o autor auferia o valor de € 505,00, a que acrescia a quantia € 4,27 a título de subsídio de alimentação.
37 – Desde 10 de Março de 2016, o autor encontra-se desempregado.
2.4. Repercussões familiares
38 – Na data do atropelamento, o autor era casado, mantendo um relacionamento conjugal, designadamente sexual, normal com a sua esposa.
39 – O autor participava nas lides domésticas e cuidava dos filhos, indo frequentemente buscá-los à escola.
40 – Na constância do casamento nasceram três filhos, respectivamente, GG, nascido em .../.../2006, HH, nascido a .../.../2003, e II, nascido a .../.../2014.
41 – Até à data do atropelamento, o autor passeava com os filhos em jardins e centros comerciais, tomando algumas refeições nestes, indo a família à praia no verão.
42 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes:
a) os filhos do autor rejeitam-no, dele tendo vergonha e não compreendendo o sucedido, perdendo-se as relações de afectividade e de proximidade entre pai e filhos;
b) o filho mais velho do seu casamento à data necessitou de acompanhamento psicológico, perdendo aproveitamento escolar, o que perturbou muito o autor, sentindo-se responsável e incapaz de resolver o problema;
c) os filhos em idade escolar perderam rendimento escolar, afectados pelo sucedido ao pai, o que muito desgostou o autor;
d) o autor nunca mais brincou com os filhos, nem pegou no mais novo ao colo;
e) o autor deixou de ser capaz de contribuir para as lides domésticas e de cuidar dos filhos;
f) o agregado nunca mais saiu ou passeou em família;
g) o casal nunca mais teve relações sexuais.
43 – Em 9 de Outubro de 2018, a então cônjuge do autor instaurou acção de divórcio sem consentimento contra o ora demandante, pedindo o decretamento do divórcio, alegando, designadamente, que: 1. A requerente e o requerido contrariam casamento, sob a forma católica sem convenção antenupcial, no dia 18 de junho de 2004 (…) 2. Durante (…) mais de uma década, tiveram uma relação matrimonial. (…) 3. Ainda que não vivessem de forma abastada, a verdade é que eram uma família feliz e unida com projetos para o futuro que iam superando as dificuldades e obstáculos do quotidiano. 4. Sucede, porém, que a boa dinâmica familiar e todos os projetos comuns, sofreram um duro golpe por ocorrência de um acidente de trabalho e de viação que ocorreu no dia 23 de dezembro de 2014, em que o requerido foi interveniente /vitima. (…) 7. Por conta disto, o recorrente nunca mais foi o mesmo e consequência direta do acidente alterou a sua forma de ser e de estar associado a forte incapacidade limitativa quer do ponto de vista psicológico quer físico 8. Quer a nível físico; quer a nível psicológico. 9. Se até à data do sinistro era uma pessoa alegre e extrovertida, pai extremoso e dedicado que gostava de conviver com amigos e familiares, depois desta ocorrência, mudou diametralmente o seu comportamento para com todos em geral e em especial com os que lhe são próximos. 10. Passou a ser uma pessoa sem paciência para os outros, por vezes agressiva, alheio e indiferente a tudo o que o rodeia, com dificuldades de verbalização quer no discurso quer na coerência do mesmo. 11. Com evidentes sequelas do acidente pois decorre evidente traumatismo, a nível físico e psicológico as mudanças foram plasmantes (sic). (…) 13. A requerente durante cerca de três anos prestou todo o auxilio e cuidados que se impunham, privou-se dos seus tempos livres abdicou do seu "eu" e passou a viver em função do requerido e dos filhos, foi mãe e pai, lutou contra todas as adversidades, e prestou todos o auxílio, como lhe competia enquanto sua esposa. 14. Constatou porem o inevitável afastamento dos interesses comuns, o requerido tornou-se distante, indiferente, alheado, frio etc, etc. 15. De retorno ao lar, e flagelado pelo acidente, acentuou-se a agressividade, ciumento, desconfiado, conflituoso, incoerente, problemático, criando sistematicamente situações de conflito, de desconfiança, ao ponto de tornar insustentável a vida em comum 16. Manifestando desinteresse pelos filhos pela família pela requerente, desrespeitando-os. 17. A requerente passou a viver com medo, incapaz de controlar os impulsos do requerido que passou a gerar um clima de tensão, medo e inquietação. 18. Aliás, com o passar do tempo, a requerente constata que a relação não existe a não ser no papel se distanciou, e que deixaram de ter interesses comuns 19. Toda a sua dinâmica foi completamente alterada. 20. Nunca mais tiveram relações sexuais. 21. Deixaram de ter interesses comuns, o requerido deixou de comer em casa e passou a integrar a casa da progenitora aos fins de semana, não dando conta das ausências, não se importando com horários de saída e de entrada, não respeitando os filhos, tao pouco com as suas necessidades mantendo inclusive com a própria, com o cuidador e com filho maior, situações de tensão/conflito ao ponto de correr termos processos crime, por violência domestica. 22. Toda esta situação levou a um afastamento total do casal que não fala. e vive na mesma casa, separados, apenas e só por inexistência de possibilidades económicas para cada um ter o seu espaço, não tendo no presente qualquer interesse comum e qualquer relação de proximidade quer com a requerente quer com os filhos a quem tão pouco pretende dar sustento.
44 – Em 21 de Março de 2019, o autor divorciou-se, após a relação com a sua esposa se ter degradado e tornado insustentável.
2.5. Repercussões sociais
45 – Até à data do atropelamento, o autor convivia com os amigos.
46 – Após o sinistro, e em consequência do seu estado anímico e psicológico, o autor afastou-se e foi afastado pelos amigos e familiares.
47 – Após o sinistro, e em consequência das dificuldades cognitivas, de expressão e de locomoção de que ficou a padecer, o autor é alvo de comentários e de pena alheia, sentindo-se vexado e diminuído na sua autoestima e dignidade
48 – Após o sinistro, o autor não mais participa em aniversários, convívios, reuniões ou festividades familiares ou comunitárias.
3. Danos ressarcidos
49 – A B... – Companhia de Seguros, S.A., enquanto seguradora, e E..., S.A., enquanto tomadora, declararam acordar que a primeira assumiria o risco da ocorrência de acidente de trabalho, nos termos constantes do documento intitulado apólice n.º ..., junto aos autos e que aqui se dá por transcrito, suportando os encargos obrigatórios do tomador do seguro em caso de sinistro, abrangendo como pessoa segura, designadamente, o ora autor.
50 – Até 16 de março de 2022, em consequência do sinistro, a B... liquidou as quantias seguintes respeitantes aos seus efeitos sofridos pelo autor:
51 – Até 16 de Março de 2022, a B... liquidou as quantias seguintes respeitantes à regularização do sinistro dos autos, por acidente de trabalho:
III.2. A mesma instância considerou não provados os restantes factos alegados, designadamente que:
52 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor perdeu dois dentes.
53 – Para tratamento da perda de dois dentes, o autor despenderá com a colocação de implantes quantia não inferior a € 1.500,00.
54 – O autor nunca tinha tido um problema de saúde antes do atropelamento.
55 – Até à data do atropelamento, o autor era bem-parecido, sem cicatrizes, com boa postura e com boa aparência.
56 – Até à data do atropelamento, o autor era um cidadão activo, bem-disposto, educado, bom pai de família, bom marido e companheiro, bom filho e bom pai.
57 – Até à data do atropelamento, o autor praticava atletismo e fazia caminhadas.
58 – Até à data do atropelamento, o autor avocava as principais tarefas domésticas.
59 – Na data do atropelamento, o autor recebia subsídio nocturno.
60 – Inexiste qualquer relação causal entre a verificação do sinistro e a taxa de alcoolemia de que a condutora do Porsche era portadora.
61 – Nas horas que antecederam o atropelamento, a condutora do Porsche havia participado numa reunião.
62 – No momento do atropelamento, a condutora do Porsche conduzia de modo prudente, a menos de 50 km/h e com os faróis médios acesos.
63 – No local do embate, a faixa de rodagem encontrava-se deficientemente iluminada.
64 – A condutora do Porsche não parou por estar convencida de que embatera num objecto propositadamente colocado na faixa de rodagem para a obrigar parar e poder ser assaltada.
65 – O Porsche circulava a uma velocidade superior a 80 km/h.
66 – O carro de mão de recolha de lixo segurado pelo autor e respectivos baldes não possuíam reflectores.
67 – Na data do atropelamento, o autor padecia de acentuada falta de visão não corrigida.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Não se conformando a recorrente com a decisão proferida em primeira instância quanto à matéria de facto submetida a julgamento, reclama desta instância o reexame da mesma.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[2] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[3].
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[4].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[5], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
1.1. A recorrente A... manifesta a sua discordância com a apreciação da matéria de facto submetida ao escrutínio do tribunal de primeira instância, mais concretamente na parte em que deu como provada a matéria elencada na subalínea x), da alínea m) do ponto 28.º dos factos provados [Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor apresenta/experimenta permanentemente descoordenação motora que o impede de tomar banho sozinho, fazer a barba, calçar e apertar os atacadores dos sapatos, usar talheres, escrever ou apertar fechos e botões], defendendo que tal matéria, não se achando a respectiva decisão fundamentada, nem existindo prova que lhe sirva de suporte, sendo mesmo contrariada pelo relatório da perícia médico-legal constante dos autos, deve ser julgada não provada.
Como se pode ler na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, as testemunhas CC, ex-cônjuge do Autor, e JJ e DD, familiares do mesmo, depuseram sobre a vida do demandante, antes e depois do sinistro, referindo, pelo menos, esta última necessitar aquele da ajuda de uma terceira pessoa para efectuar tarefas domésticas.
Argumenta a recorrente A..., S.A. que “nunca seriam os depoimentos da testemunha CC, ex-mulher do Autor, ou da testemunha e seu familiar DD, aptos a infirmar as conclusões da Sr.ª Perita Médica, tanto mais que não [só] possuem habilitações técnicas, académicas ou profissionais que lhe permitissem infirmar a Perícia Médico-Legal...”.
Porém, ao contrário do que sustenta a recorrente não só as testemunhas em causa têm plena aptidão para avaliarem e se pronunciarem sobre dados objectivos, como a capacidade ou incapacidade evidenciada pelo Autor de praticar autonomamente actos do seu quotidiano como tomar banho, fazer a barba, calçar e apertar os atacadores dos sapatos, usar talheres, escrever ou apertar fechos e botões, como o seu depoimento não afronta qualquer juízo técnico constante do relatório pericial quanto àquela capacidade ou incapacidade.
Não resulta do exame objectivo realizado ao examinado, nem da discussão e conclusões constantes do mencionado relatório que o mesmo tenha capacidade para, de forma independente e autónoma, praticar todos os actos da vida diária.
Com efeito, no ponto 2 do capítulo “A. Queixas” retira-se tão somente que o examinado refere, quanto aos actos da vida diária, ser “independente e autónomo para as atividades da vida diária referindo que pontualmente necessita de auxílio de um filho para movimento de despir/vestir alguma peça de vestuário” e ainda ter “ter reaprendido a cozinhar aquando da sua estadia em C... referindo também ter aprendido a fazer a gestão das compras de alimentos de forma a que não seja necessário transportar mais de 4 kg de cada vez”, devendo essas afirmações ser ponderadas tendo, nomeadamente, em conta as limitações de natureza cognitiva e de expressão que afectam o demandante, assentes nas subalíneas xii) e xiv) da também alínea m) do ponto 28.º dos factos provados, e as conclusões das perícias de especialidade de psiquiatria, que apontam a existência de “perturbação mental resultante das sequelas cerebrais consequentes ao acidente” e de psicologia, que registam “um comprometimento global cognitivo e marcadas alterações na organização e funcionamento da personalidade do examinado”.
Por outro lado, o relatório da perícia médica fixa em 59 pontos o défice funcional permanente do autor em função das sequelas registadas em decorrência do acidente, as quais “são causa de limitações funcionais importantes com repercussões na independência do examinado, tornando-o dependente de ajudas medicamentosas, ajudas técnicas e humanas”, o que claramente contraria a independência e autonomia afirmados pelo demandante.
Em conclusão: o relatório pericial não só não desdiz as limitações funcionais que as mencionadas testemunhas referem que o demandante apresenta em consequência das sequelas resultantes do acidente sofrido e a forma como elas condicionam a sua capacidade para a prática de actos correntes do dia a dia, carecendo, por isso, de auxílio de terceira pessoa, como ele próprio confirma a existência de limitações funcionais, tornando-o dependente de vários tipos de ajudas, incluindo humanas.
Para além disso consta dos autos que o Autor vem beneficiando de auxílio de terceira pessoa e apoio domiciliário, tendo a interveniente B..., S.A. liquidado, até 16 de Março de 2022, as importâncias de € 461,14 e € 34.604,55, conforme assente no ponto 50.º dos factos provados, e recibos juntos aos autos.
Não há, assim, razão que justifique a alteração pretendida pela recorrente seguradora quanto ao sentido probatório do indicado segmento decisório.
Como tal, improcede o recurso nesta parte.
1.2. Também o autor AA expressa a sua dissidência quanto à apreciação da matéria constante do ponto 28.º, alínea k) dos factos provados na medida em que fixa, sem indicação de dia, em Novembro de 2016 a data da alta hospitalar do autor e o seu retorno ao domicílio, quando resulta do depoimento da testemunha CC que os factos em causa ocorrem a 16 de Novembro de 2016, o que consta da fundamentação da respectiva decisão, consignando-se que a referida testemunha prestou um depoimento claro e coerente.
Após audição da gravação que contém o depoimento da indicada testemunha constata-se ter a mesma afirmado que o Autor teve alta a 14.11.206, uma sexta-feira, acabando, no entanto, por permanecer mais dois dias no hospital, regressando a casa no dia 16.11.2016.
Se já se estranha o rigor da data da alta hospitalar indicada pela testemunha, considerando o tempo já decorrido sobre o evento (mais de cinco anos), o convencimento acerca da mesma desvanece-se por completo após consulta do calendário referente ao mês de Novembro de 2016. Contrariamente ao que refere a testemunha, o dia 14 de Novembro não corresponde a sexta-feira, mas antes a segunda-feira (sendo quarta-feira o dia 16 seguinte), pelo que, em termos de normalidade, não se compreende que tenha o demandante permanecido mais dois dias no hospital, não se interpondo fim de semana entre as duas datas (14 e 16 de Novembro).
Por outro lado, ainda que não conste dos autos a nota da alta hospitalar, documento fundamental para atestar a data exacta em que a alta ocorreu, a última factura emitida pela Misericórdia ..., Unidades Operacionais Saúde ... referente ao internamento do demandante refere-se ao período entre 31.11.2016 e 14.11.2016, sendo esta última aí referenciada como data de alta – documento n.º 82, junto pela interveniente B..., S.A.-, o que, desde logo, afasta a versão daquela depoente, pois se o Autor tivesse permanecido internado até 16.11.2016 certamente seria esta a data atendida para efeitos de processamento das despesas de internamento.
Acresce ainda que, de acordo com a alínea l) do mesmo ponto n.º 28 dos factos provados, não objecto de qualquer impugnação, o Autor “em Novembro de 2016, passou a frequentar o Centro de Reabilitação ..., onde faz regularmente piscina e fisioterapia, entre outras terapias e acções de formação”. Este facto, necessariamente posterior à alta hospitalar, também não se acha temporalmente localizado quanto ao dia concreto em que a frequência daquele Centro passou a verificar-se.
Sendo possível determinar, com grau absoluto de certeza, que a alta e o retorno a casa do Autor ocorreu no mês de Novembro do ano de 2016, mas não existindo elementos probatórios que permitam alcançar o mesmo juízo de certeza quanto ao dia concreto em que o evento em causa ocorreu, mostra-se avisado o juízo formulado quanto à matéria da alínea k), cuja redacção, assim, se mantém intocada, improcedendo igualmente nesta parte o recurso do Autor.
2. Responsabilidade da Ré pelos danos causados ao Autor em consequência do acidente.
Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da simples leitura do preceito, resulta que, no caso de responsabilidade por facto ilícito, vários pressupostos condicionam a obrigação de indemnizar que recai sobre o lesante, desempenhando cada um desses pressupostos um papel próprio e específico na complexa cadeia das situações geradoras do dever de reparação.
Reconduzindo esses pressupostos à terminologia técnica assumida pela doutrina, podem destacar-se os seguintes requisitos da mencionada cadeia de factos geradores de responsabilidade por factos ilícitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso aqui em discussão aceita a Ré que o acidente que vitimou o Autor resultou exclusivamente da actuação culposa da condutora do veículo por si seguro, aceitando o dever de indemnizar aquele pelos danos causados.
Sem questionar esse dever de indemnizar, apenas se insurge a Ré em relação aos valores indemnizatórios fixados na sentença recorrida, que reputa de excessivos.
Resta, assim, indagar se tais valores se ajustam aos danos que visam ressarcir.
2.1. Dos valores indemnizatórios devidos ao Autor pelos danos sofridos em consequência do acidente.
O artigo 562.º do Código Civil, que consagra o princípio da reconstituição natural, preceitua que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Por dano deve entender-se “a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito viola ou a norma infringida visam tutelar”[6].
Podendo os danos ser patrimoniais ou não patrimoniais, os primeiros compreendem, por sua vez, o dano emergente e o lucro cessante, abrangendo este último “os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que ainda não tinha direito à data da lesão”[7].
Não sendo possível a reconstituição natural, não reparando ela integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro[8].
2.1.1. Danos não patrimoniais.
No caso aqui concretamente debatido, contabiliza o Autor em € 1.017,90,00 o valor total dos danos não patrimoniais sofridos em consequência do acidente de viação que o vitimou, e cuja reparação reclama, insurgindo-se pelo facto de a sentença recorrida não lhe haver reconhecido indemnização nesse montante – artigo 8.º das conclusões.
Nessa categoria de danos integra o dano biológico, o dano estético, o quantum doloris, a incapacidade permanente absoluta, o internamento hospitalar, além de outros danos da mesma natureza.
A sentença recorrida fixou em € 400.000,00 a indemnização para reparação dos referidos danos não patrimoniais, valendo-se, para o efeito, desta fundamentação: “Em face de tudo o que ficou provado, conclui-se que o autor sofreu um dano e que este foi grave. Porém, dentro desta gravidade (intensidade), o montante da indemnização deve refletir a relativamente moderada extensão do mesmo em face da potencial dimensão que a agressão a um direito de personalidade pode atingir. Não é possível pôr um preço à dor; menos ainda é possível avaliar o mero comprometimento de capacidades motoras sem repercussões patrimoniais. A este respeito, devemos ter em conta o critério legal prescrito para a liquidação deste dano: o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso designadamente, os motivos do agente, o comportamento do(a) lesado(a) e os restantes comportamentos do lesante. Com a utilização deste critério, pretende-se, no entanto, que a indemnização cumpra uma função compensatória e não, atenta a natureza do dano, ressarcitória em sentido próprio cfr. o Ac. do TRL de 2 de dezembro de 1993, CJ, Ano XVIII, t. V, p. 172. Por outro lado, na fixação do montante devido, dever-se-ão ter em conta os valores normalmente praticados no ressarcimento deste tipo de danos; isto é, há que ter uma perspetiva de proporcionalidade ou de justiça relativa cfr. o art. 8.º, n.º 3, do CC, bem como o Ac. do TRL de 8 de abril de 1992, CJ, Ano XVII, t. II, p. 183. Do exposto se extrai ser ajustada a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, alguns totalmente pretéritos, outros que se prolongarão continuadamente para o futuro, pelo autor no valor de € 400.000,00 − quantia calculada (atualizada) por referência à presente data”.
Também a Ré seguradora não se conformou com essa quantificação dos danos não patrimoniais, reputando-a de exorbitante, sem respaldo na jurisprudência, defendendo que “Considerando os factos provados nestes autos, com relevância para a fixação de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo recorrido e o sentido da Jurisprudência conhecida, a indemnização a arbitrar ao mesmo recorrido a título de danos não patrimoniais não deverá situar-se em montante superior a 100.000,00 €, sob pena de não se coadunar aos danos morais por ele sofridos – artigo 22.º das suas conclusões.
Aos danos não patrimoniais refere-se o n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil, quando determina: “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
De acordo com o n.º 3 da mesma disposição legal, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º...”.
Com explica o Acórdão da Relação do Porto, 06.11.90[9] “... nos termos dos artigos 496º, nº 3 e 494º, como critério da sua determinação equitativa, há que atender à natureza e intensidade do dano causado, grau de culpa do lesado, e demais circunstâncias que seja equitativo ter em conta”.
Por outro lado, “sempre que se trate de compensar a dor física ou a angústia moral sofridas pela pessoa directamente lesada ou a dor pessoal sofrida pelos terceiros referidos no nº 2 do artigo 496º, segue-se normalmente o critério pelo qual a quantia em dinheiro há-de permitir alcançar situações ou momentos de prazer bastantes para neutralizar, na medida do possível, a intensidade dessa respectiva dor. A isso se chama impropriamente o “preço da dor”[10].
Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc., reflectindo, mais ou menos, melhor ou pior, manifestações de perturbações emocionais.
Nesta categoria de danos se compreendem todos aqueles que afectam a personalidade moral, nos seus valores específicos tais como “as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização”[11].
Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis: não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, contrabalançar o dano, compensá-lo mediante satisfações derivadas da utilização. Não se trata, portanto (como já ensinava o saudoso professor Mota Pinto), de atribuir ao lesado um “preço de dor” ou um “preço de sangue”, mas de lhe proporcionar uma satisfação em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo interesses de ordem refinadamente ideal.
Nos danos não patrimoniais estão em causa lesões que não se refletem directamente sobre o património, não o diminuindo, nem frustrando o seu acréscimo. Tratam-se de danos que atingem bens de carácter imaterial, sem expressão ou tradução económica. A ofensa objectiva desses bens tem em regra um reflexo subjectivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou de natureza moral.
Os componentes de maior relevância do dano não patrimonial são:
- o dano estético: traduzido no prejuízo anatomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima;
- o prejuízo de afirmação social: dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica);
- o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”: nele se destacam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida;
- o pretium juventutis: que compreende a frustração de viver em pleno a designada “primavera da vida”;
- e o pretium doloris - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária.
Pode extrair-se do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2017[12]: “Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho, já que, havendo uma incapacidade permanente, dela sempre resultará uma afetação da dimensão anátomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que, de futuro, terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo”.
Afirma-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2012: “o dano biológico merece, logo porque tem lugar, tutela indemnizatória, compensatória ou ambas;
A extrema amplitude que o nosso legislador confere ao conceito de incapacidade para o trabalho, aliada à orientação sedimentada da jurisprudência de que é de indemnizar, quer esta leve a diminuição de proventos laborais, quer não leve, já o contempla indemnizatoriamente, ainda que noutro plano;
Do mesmo modo a relevância que a nossa lei confere aos danos não patrimoniais também aliada à amplitude deste conceito que a jurisprudência vem acolhendo – englobando, nomeadamente os prejuízos estéticos, os sociais, os derivados da não possibilidade de desenvolvimento de actividades agradáveis e outros – já o contempla neste domínio.
Pelo que a conceptualização do dano biológico não veio “tirar nem pôr” ao que, em termos práticos, já vinha sendo decidido pelos tribunais, quanto a indemnização pelos danos patrimoniais de carácter pessoal ou compensação pelos danos não patrimoniais.
Onde releva é na fundamentação para se chegar a tal indemnização, afastando as dúvidas que poderiam surgir perante a não diminuição efectiva de proventos apesar da fixação da IPP ou, em casos de verificação muito rara, como aqueles em que o lesado já estava totalmente incapacitado para o trabalho antes do evento danoso ou até, no que respeita aos danos não patrimoniais, em que ficou definitivamente incapacitado para ter consciência e sofrer com a sua situação”.
Idêntico entendimento foi perfilhado pelo acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2010[13], quando refere que a “compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas”.
E no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.2022[14] pode ler-se: “Diverge a jurisprudência quanto à classificação, ou melhor, à natureza do chamado dano biológico (o decorrente da incapacidade permanente sem reflexo profissional): se um dano meramente patrimonial, se um dano moral, se um tertium genus. E procuram os vários arestos, cada um à sua maneira, justificar o quantum indemnizatório arbitrado para estes danos geradores de incapacidade permanente que se não repercutam directamente na capacidade de ganho do lesado (na medida em que não implicam uma diminuição da retribuição, embora implicando esforços acrescidos, ou, então, porque o lesado está fora do mercado de trabalho, como ocorre com desempregados, crianças, reformados).
O dano biológico tem suscitado especiais perplexidades na relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, por poder incidir numa, noutra ou em ambas as vertentes.
Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais[...]. É um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. Poderá exigir do lesado, esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho[...]. Ou, por outras palavras, é um dano que se traduz na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.
Ora, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais. Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar[...].
Como quer que seja visto ou classificado este dano, o certo é que o mesmo é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos”.
E acrescenta o mesmo acórdão: “O lesado não pode ser objecto de uma visão redutora e economicista do homo faber[...]. A incapacidade permanente (geral) de que está afectada a vítima constitui, nesta perspectiva, um dano em si mesmo, cingindo-se à sua dimensão anátomo-funcional.
A incapacidade permanente geral (IPG) corresponde a um estado deficitário de natureza anatómica-funcional ou psicosensorial, com carácter definitivo e com impacto nos gestos e movimentos próprios da vida corrente comuns a todas as pessoas. Pode ser valorada em diversos graus de percentagem, tendo como padrão máximo o índice 100. Esse défice funcional pode ter ou não reflexo directo na capacidade profissional originando uma concreta perda de capacidade de ganho”.
O dano biológico não se reporta apenas ao período temporal subsequente à alta clínica, devendo, por maioria de razão, abranger o período em que o facto incapacitante foi mais intenso (incapacidade temporária absoluta) e é indemnizável ainda que o lesado à data do evento lesante não exercesse actividade laboral remunerada[15].
Há ainda a notar, como o faz o Acórdão da Relação do Porto de 20.03.2012[16], que “os Tribunais, na fixação das indemnizações por danos decorrentes de sinistros rodoviários, não estão sujeitos ao regime previsto na Portaria n.º 377/2008, de 26/05, por este diploma não ter por objectivo a fixação definitiva dos valores indemnizatórios mas, apenas e só o estabelecimento de regras/princípios que visam agilizar a apresentação de propostas razoáveis numa fase pré-judicial”.
Como esclarece Antunes Varela[17], “a indemnização reveste, no caso de danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”.
Resulta do exposto que o juiz, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que o manda julgar de harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu.
A doutrina nacional, pela voz de conceituados civilistas[18], tem, desde há algum tempo, vindo a tecer reparos pela parcimónia com que, no seu entender, o Supremo Tribunal de Justiça vem fixando os valores indemnizatórios para compensação dos danos não patrimoniais, embora reconheça o esforço positivo desenvolvido, sobretudo nos últimos anos, para alterar tal tendência.
Assim, sustenta Menezes Cordeiro que “é inegável a presença de um certo esforço, no sentido da dignificação das indemnizações. Importante é, ainda, a consciência do problema, por parte dos nossos tribunais. Há, agora, que perder a timidez quanto às cifras. A vida humana não tem preço. Mas quando haja que avaliá-la para efeitos de compensação, a cifra a reter será (actualmente), da ordem do milhão de euros, majorada ou minorada conforme as circunstâncias. Todos os outros danos são, depois, alinhados abaixo desse valor de topo”. E acrescenta o mesmo autor: “Entretanto, há que manter, de modo operacional, as várias parcelas indemnizatórias: supressão do bem vida; danos morais da vítima; danos morais dos familiares referidos no artigo 496º/2, devidamente alargado pela interpretação; danos patrimoniais da vítima; danos patrimoniais dos familiares; lucros cessantes. Não vale a pena dispormos de uma Constituição generosa, de uma rica e cuidada jurisprudência constitucional e de largos desenvolvimentos sobre os direitos de personalidade quando, no terreno, direitos fundamentais como a vida valham menos de 60.000 €”.
Essa tendência tem vindo, de facto, a revelar-se, sobretudo nos últimos tempos, havendo uma clara preocupação, ainda que manifestando-se de forma cautelosa e gradual, em conferir maior dignidade aos danos não patrimoniais, traduzida no aumento dos valores compensatórios em relação aos anteriormente fixados.
É dado incontroverso que o Autor sofreu, em consequência do acidente, das lesões corporais dele resultantes e das sequelas permanentes que o afectam, danos de natureza não patrimonial que, pela sua extensão e gravidade, indiscutivelmente reclamam e merecem tutela reparadora.
Assim, sendo, no caso do demandante, indemnizáveis que são os referidos danos não patrimoniais que sofreu por virtude do acidente, alguns dos quais ainda o afectam de forma significativa, o correspondente valor indemnizatório há-de ser calculado com base em critérios de equidade, que assente numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida e que não seja colidente com critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
Sendo expressivamente graves os danos em causa[19], designadamente pela sua repercussão - física, psicológica, sexual, familiar e social – na vida do Autor, na quantificação dos mesmos deve ponderar-se o grau, intenso, de culpa da lesante, a situação económica dos abrangidos pelo dever de indemnizar, a idade do demandante à data do evento lesante e a sua expectativa de vida, não poderão ser ignorados os valores arbitrados pelas instâncias superiores para situações similares.
Efectuando uma análise comparativa quanto a esses valores, não poderá deixar de se reputar de excessivo o valor fixado em primeira instância, apesar da amplitude das componentes que integram os danos não patrimoniais a indemnizar e a gravidade dos mesmos.
E é atendendo à extensão, natureza e gravidade desses danos, mas não podendo menosprezar os valores fixados pelos tribunais superiores para situações similares, que se entende ser ajustada à reparação dos danos em causa uma indemnização no valor de € 200.000,00.
Como tal, procede, em parte, a apelação da Ré A..., S.A. e improcede totalmente o recurso do Autor AA no que concerne à quantificação dos danos não patrimoniais.
2.1.2. Danos patrimoniais – perda total da capacidade de ganho e despesas decorrentes do auxílio de terceira pessoa.
O dano biológico não se pode reduzir aos danos de natureza não patrimonial na medida em que nestes estão apenas em causa prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária e naquele estão também em causa prejuízos de natureza patrimonial provenientes das consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado.
Tal como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.06.2016[20], “O chamado dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis”.
Em consequência do sinistro, o Autor encontra-se incapaz para o exercício de toda e qualquer profissão.
Na data do atropelamento, trabalhava para a entidade patronal E..., S.A., tendo a categoria profissional e exercendo as funções de cantoneiro.
Como vencimento base mensal, auferia o valor de € 505,00, a que acrescia a quantia € 4,27 a título de subsídio de alimentação.
Desde 10 de Março de 2016, encontra-se desempregado.
Como já salientava o Acórdão da Relação do Porto, de 07.05.2001 (www.dgsi.pt), “sem dúvida que e é tarefa melindrosa calcular o valor indemnizatório, já que, tirando a idade do Autor e a incapacidade que o afecta, tudo o mais é aleatório. Com efeito é inapreensível, agora, qual vai a ser a evolução do mercado laboral, o nível remuneratório do emprego, a evolução dos níveis dos preços, dos juros, da inflação, a evolução tecnológica, além de outros elementos que influem no nível remuneratório, como por exemplo, os impostos.
Daí que, nos termos do n.º 3 do art. 566° do Código Civil, haja que recorrer à equidade ante a dificuldade de averiguar com exactidão a extensão dos danos”.
A Portaria n.º 377/08, de 26/5, com inspiração no direito espanhol e francês, no sistema dos “barèmes“, que estabelece meras propostas, indica critérios orientadores para apresentação aos lesados, em caso de acidente de viação, por dano corporal, estabelece no seu art.º 6.º b), que, para fins de cálculo de prestações em caso de violação do direito à vida e de prestações de vida ao cônjuge ou descendente incapaz por anomalia psíquica, se presume que o sinistrado trabalharia até aos 70 anos.
Também a jurisprudência dos tribunais superiores, na tentativa de adaptação às actuais condições socio-económicas do país, quando se perspectiva a possibilidade da idade da reforma vir a ser elevada para os 70 anos a relativamente curto prazo, vem abandonando a ideia de que o período de vida activa tem como limite os 65 anos de idade, antes se devendo atender ao tempo provável de vida do lesado, por referência à esperança média de vida estabelecida em relação à data em que ocorreu o facto danoso gerador do dever de indemnizar.
Como já defendia o acórdão do STJ de 28.09.1995[21], “finda a vida activa do lesado não é razoável ficcionar que também a vida física desaparece no mesmo momento e com ela todas as necessidades do lesado e, por outro lado, geralmente, continua a receber remunerações, ou como pensão de aposentação da própria profissão, ou como prestação da segurança social”, entendimento que passou a ser seguido pela jurisprudência dos tribunais superiores[22] após ter sido defendido no Parecer do Provedor de Justiça de 19.03.2001, elaborado a propósito do denominado caso “ponte Entre-os-Rios”.
Perante a constatação das dificuldades associadas à fixação do montante indemnizatório para reparação dos danos futuros, traduzidos em lucros cessantes, e perante a diversidade de resultados obtidos com o recurso a critérios diferentes, a Espanha sentiu necessidade de introduzir, através da Ley nº 30/1995, de 8/11, medidas de “baremación”, vinculativas para os tribunais. Ainda que sem o mesmo carácter vinculativo, mas sendo um sistema fundado em “barèmes”, o regime que se encontra implantado em França, assente numa Convenção destinada a regularizar sinistros de circulação automóvel, adoptada depois da publicação da Loi nº 85-677, de 5 de Julho de 1985, destinando-se à generalidade dos danos emergentes de acidente de viação, revela circunstâncias diversificadas, de forma a integrar a generalidade dos sinistros, com valores antecipada e objectivamente fixados, sem prejuízo da possibilidade de ponderação de situações específicas.
Sem idêntica consagração legislativa, os tribunais portugueses têm recorrido a diferentes fórmulas para determinar o quantum indemnizatório para a reparação desses danos.
Essas fórmulas oscilaram entre o recurso às tabelas de cálculo das pensões por incapacidade laboral e sua remição, que depressa foi abandonado, e o recurso a fórmulas matemáticas, além do recurso a critérios para cálculo do usufruto para fins fiscais.
O recurso às tabelas matemáticas ou tabelas legalmente fixadas para a regularização dos sinistros laborais tem vindo a ser posto em crise por não garantirem a justa reparação do dano em causa, já que “na avaliação dos prejuízos verificados o juiz tem que atender sempre à multiplicidade e à especificidade das circunstâncias que concorreram no caso e que o tornarão sempre único e diferente”[23].
Um dos outros critérios possíveis para ponderar o montante indemnizatório em discussão foi preconizado pelo Acórdão do STJ, de 18.01.79[24], segundo o qual “em relação ao futuro, a indemnização deve ser calculada em atenção ao tempo provável de vida activa da vítima, de forma a representar um capital produtor do rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual até final do período, segundo as tabelas financeiras usadas para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente ao juro anual de 9%”.
A partir de então este critério passou a ser adoptado em várias decisões dos tribunais superiores, servindo-se, para o efeito, das taxas de juro estabelecidas para as operações bancárias activas de crédito, passando depois para as de depósito a prazo, adaptando a taxa de juro às flutuações respectivas no mercado financeiro.
Estes critérios foram sendo sucessivamente perfilhados por decisões do Supremo Tribunal de Justiça, que, todavia, não deixam de lhes reconhecer a natureza de índices meramente informadores da fixação do cálculo, meros instrumentos auxiliares de orientação, não dispensando o recurso à equidade, que pressupõe uma solução em sintonia com a lógica e o bom senso, com apelo às regras da boa prudência, da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem submissão a critérios subjectivos de ponderação, e que pese a gravidade do dano.
Note-se que o critério fundado nas tabelas financeiras não é isento de críticas: as taxas de capitalização devem corresponder à previsível remuneração do dinheiro no período a considerar, o que sendo impossível de quantificar de forma exacta, exige um juízo de previsibilidade, que, atendendo às modificações sociais e económicas, cada vez mais sentidas, se revela muitas vezes temerário.
Comprovando essa realidade, constata-se na jurisprudência uma larga oscilação nos valores das taxas de capitalização[25].
Talvez por isso, já alguma jurisprudência tende a defender que o recurso às tabelas deve ser posto de parte, devendo-se antes confiar no prudente arbítrio do tribunal, com recurso à equidade[26].
A discussão acerca da metodologia a seguir[27] continua, assim, em aberto, como já o reconhecia o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.2002[28], dada a incerteza que envolve o cálculo deste dano futuro, aceitando mesmo, como critério possível, permitindo uma certa flexibilização no cálculo, a aplicação de uma regra de três simples, na qual se procura determinar qual o capital produtor do rendimento anual que se deixou de obter, tendo em conta a taxa de juro de 3%; ou seja qual o capital que à taxa de juro em alusão reproduz aquele rendimento, a que é de deduzir um factor de correcção.
De todo o modo, tem-se vindo a consolidar na jurisprudência, como solução para definir os parâmetros da reparação deste tipo de dano, determinar o capital necessário, que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo de vida do lesado, lhe proporcione o mesmo rendimento que auferiria se não tivesse ocorrido a lesão[29].
Entende-se, de todo o modo, que a determinação do montante indemnizatório deve ser obtida com recurso a processos objectivos (fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas), servindo para determinar um limite mínimo indemnizatório, o qual, deverá posteriormente ser corrigido com recurso a outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa.
Seja qual for o critério norteador (já que todos os critérios até hoje seguidos não são vinculativos, são meramente indiciários), haverá que ter sempre presente a figura da equidade, a qual visa alcançar “a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, de forma que se tenha em “conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida…”[30].
Em todo o caso, o cálculo do quantum indemnizatório, fixado para reparação pela perda da capacidade aquisitiva futura, tem, necessariamente, por base, critérios de equidade, assente numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida, sem que, todavia, colida com critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
De acordo com a jurisprudência seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, a determinação de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, com recurso a critérios de equidade, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações, a par de um outro factor que contende com a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado[31].
Dispõe o n.º 1 do artigo 567.º do Código Civil: “Atendendo à natureza continuada dos danos, pode o tribunal, a requerimento do lesado, dar à indemnização, no todo ou em parte, a forma de renda vitalícia ou temporária, determinando as providências necessárias para garantir o seu pagamento”.
No caso em apreço, tendo os danos sofridos pelo Autor natureza continuada, requereu o mesmo que a atribuição da indemnização por perda de capacidade geral de dano se efectuasse sob a forma de renda vitalícia.
A sentença sob recurso equacionou a atribuição da indemnização devida àquele título ao Autor, sob a forma de renda vitalícia, nos seguintes termos: “O autor ficou definitivamente afetado(a) na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 59, numa escala até 100, encontrando-se incapaz para o exercício de toda e qualquer profissão. Tanto basta para que se deva concluir pela perda total da capacidade de ganho. O valor da renda mensal deve corresponder ao valor da remuneração média mensal (Portugal continental), respeitante aos profissionais não qualificados (caso do autor), por ser este o valor do dano previsível (art. 564.º, n.º 2, do Cód. Civil). De acordo com o portal Pordata (https://www.pordata.pt/), a “Remuneração base média mensal dos trabalhadores do sexo masculino por conta de outrem”, no que toca a “profissionais não qualificados”, no ano de 2019, no município ..., foi de € 693,70. Sendo considerados “horas extra, subsídios ou prémios”, constata-se que o “Ganho médio mensal dos trabalhadores do sexo masculino por conta de outrem”, no que toda a “profissionais não qualificados”, no ano de 2019, no município ..., foi de € 887,00. Se tivermos presente que, no mesmo ano, a remuneração mensal mínima garantida foi de € 600,00, chegamos à conclusão de que a remuneração média dos trabalhadores não qualificados, na área onde o autor trabalhava, é de cerca de 1,3 vezes aquela remuneração mínima. O mesmo raciocínio vale para o custo da remuneração de terceira pessoa que auxílio autor, já que não resulta que o mesmo, para os efeitos que agora nos interessam, careça de um acompanhamento domiciliário de natureza mais especializada, designadamente, por um auxiliar de saúde ou de enfermagem, mas sim por quem o auxilie na sua higiene, limpe a casa e confecione refeições. Vale isto dizer que o valor da renda mensal deve, ainda, abranger mais 1,3 vezes a remuneração mensal mínima garantida. Quer a perda de remuneração, quer a necessidade de liquidação de uma remuneração dizem respeito a 14 prestações por ano (por incluírem o subsídio de Natal e o subsídio de férias). Por assim ser, à renda mensal acima liquidada, correspondente a 2,6 vezes a remuneração mensal mínima garantida, acrescem 2/12, o que corresponde a uma renda mensal de 3 vezes a remuneração mensal mínima garantida. Em suma, o valor da renda mensal vitalícia a arbitrar ao autor deverá corresponder ao valor de 300% da remuneração mínima mensal (Portugal continental) que em cada momento vigorar. O mesmo é dizer que, a valores atuais (€ 2115,00), a condenação encontra-se compreendida no pedido (€ 3072,50)”.
Não partilhamos da opinião acolhida na sentença aqui escrutinada quanto ao cálculo da renda vitalícia a atribuir ao Autor pela perda total de capacidade de ganho.
O valor da renda deve ser calculado em função do valor que o Autor recebia efectivamente do seu trabalho à data do evento danoso e que, em consequência do mesmo, deixou de auferir em virtude do défice funcional resultante do acidente o incapacitar para o exercício de qualquer profissão.
Como observa o acórdão da Relação de Lisboa de 8.03.2012[32], “A renda, no caso, deve ser igual ao rendimento mensal perdido pelo autor. Se ele ganha 100 e passa a ganhar 50, o dano sofrido são os 50 mensais.
E como a perda de capacidade aquisitiva é um dano permanente, a renda deve vigorar para o resto da sua vida, ou seja, deve ser vitalícia”.
À data do acidente, o Autor trabalhava para a entidade patronal E..., S.A., tendo a categoria profissional e exercendo as funções de cantoneiro.
Como vencimento base mensal, auferia o valor de € 505,00, correspondente ao € salário mínimo na altura em vigor para o continente português, a que acrescia a quantia € 4,27, a título de subsídio de alimentação.
Por conseguinte, a renda vitalícia a fixar ao Autor, pela referida perda aquisitiva, deve corresponder ao valor do salário mínimo nacional em cada momento em vigor, a pagar 14 vezes por ano.
Essa renda deve ser integralmente satisfeita pela Ré seguradora, porquanto dos autos apenas resulta comprovado que a interveniente B... pagou ao Autor pensões no período compreendido entre 31.03.2016 e 16.03.2022, no total de € 29.625,00 – ponto 50.º dos factos provados -, nada deles resultando demonstrado que, para além desta última data, continua a pagar-lhe qualquer importância a título de pensão.
Quanto à remuneração devida a terceira pessoa na ajuda ao Autor: este não está acamado, tem autonomia para, por si só, concretizar tarefas próprias do seu dia a dia. Apenas não consegue executar determinados actos da sua vida diária, ou tem dificuldade em fazê-lo, carecendo do apoio de terceira pessoa, designadamente para cuidar da higiene pessoal do Autor.
Tratando-se de tarefas pontuais, não se exige do cuidador, que não carece de possuir habilitações especiais, trabalho a tempo inteiro, permanecendo oito horas por dia, sete dias por semana, ao serviço do Autor.
Aliás, da listagem de horas prestadas ao Autor pela empresa F..., de serviços relativos a higiene e cuidados pessoais pode encontrar-se entre um mínimo de uma hora e uma máximo de sete horas.
Achando-se actualmente o Autor certamente dotado de maiores capacidades para gerir o seu dia a dia, mercê dos esforços de recuperação física a que submeteu, não carecerá do apoio de terceira pessoa mais do que três horas por dia no auxílio das tarefas que não consegue desempenhar.
Socorrendo-nos, uma vez mais, da equidade para determinar os custos das despesas em causa, os mesmos não deverão exceder os € 500,00 mensais.
Por conseguinte, procede parcialmente, nesta parte, o recurso da apelante A..., S.A., alterando-se, em conformidade, a sentença.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:
A. Julgar improcedente o recurso interposto pelo apelante AA;
B. Julgar parcialmente procedente o recurso da apelante A..., S.A., alterando o decidido nas alíneas b) e c) do dispositivo decisório, nos seguintes termos: - alínea b) - A quantia de € 200.000,00 (duzentos mil euros), a título de danos não patrimoniais;
- alínea c) – renda mensal vitalícia correspondente ao valor da remuneração mínima mensal que em cada momento vigorar em Portugal continental, 14 vezes ao ano, acrescida da importância mensal de € 500,00 (quinhentos euros), igualmente 14 vezes ao ano e actualizada todos os anos de acordo com o índice de inflação, até ao dia 8 (oito) de cada mês, a partir (inclusive) do mês de calendário seguinte à prolação deste acórdão.
B) Quanto ao mais, confirmar a sentença recorrida.
Custas:
- do recurso do apelante AA: a cargo do mesmo;
- do recurso da apelante A..., S.A.: por apelante e apelado, na proporção do respectivo decaimento.
Porto, 1.06.2023
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
______________ [1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225. [2] Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil. [3] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade. Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”. [4] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 15 7.ve [5] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt. [6] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 7ª ed., pág. 591. [7] Ibid, pág. 593. [8] Artigo 566º, nº1 do Código Civil. [9] Colectânea de Jurisprudência XV, 5, pág. 186. [10] Dario M. de Almeida, “Manual de Acidentes de Viação”, págs. 188-189. [11] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, volume I, Almedina, 7.ª ed., pág. 595. [12] Processo n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1, www.dgsi.pt [13] Processo nº 270/06.0TBLSD.P1.S, www.dgsi.pt. [14] Processo n.º 96/18.9T8PVZ.P1.S1, www.dgsi.pt. [15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.12.2011, processo nº 52/06.0TBVNC.G1.S1, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2011, processo nº 160/2002.P1.S1, ambos em www.dgsi.pt. [16] Processo nº 571/10.3TBLSD.P1, www.dgsi.pt. [17] “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág. 488. [18] Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. I, 2.ª ed., pág. 318; Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português II, Direito das Obrigações, tomo III, 2010, págs. 748 a 756. [19] Défice funcional fixado em 59 pontos, numa escala até 100, dele resultando incapacidade permanente para o exercício de qualquer, quantum doloris quantificável em grau 5 numa escala até 7, dano estético quantificável em grau 3 numa escala até 7. [20] Processo n.º 2603/10.6TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt [21] CJ.STJ.95.III, pág. 36. [22] Entre outros, cfr. acórdãos do STJ de 19/04/2012 (3046/09.0TBFIG.S1); de 20/10/2011 (428/07.5TBFAF.G1.S1); de 07/06/2011 (524/07.9TCGMR.G1.S1); de 20/05/2010 (103/2002.L1.S1); de 25/06/2009, do 08B3234, e de 17/06/2008 (08A1266), www.dgsi.pt [23] Acórdão do STJ, 4/2/93, Colectânea de Jurisprudência/ Acórdãos do STJ, ano 1, tomo 1, pág. 129. [24] BMJ 283º-275. [25] A título de exemplo: Acórdão do STJ de 4/2/93, CJSTJ, tomo I, pág. 128: 9%; Acórdão do STJ de 5/5/94, CJSTJ, tomo II, pág. 86: 7%; Acórdão do STJ de 15/12/98, CJSTJ, tomo III, pág. 155: 5%; Acórdão do STJ de 16/3/99, CJSTJ, tomo I, pág. 167: 4%. [26] Entre outros, Acórdão do STJ de 28/9/95, CJSTJ, 1995, tomo 3º, pág. 36. [27] Uma das fórmulas habitualmente seguidas para a determinação dos danos futuros por perda ou redução da aquisição de rendimentos do trabalho surge desta forma enunciada: C = [(1 + i)N – 1 / (1 + i)N x i] x P Sendo: C = capital; P = prestação a pagar no 1º ano; i = taxa de juro; e N = o nº. de anos de vida provável, e em que: i = (1 + r / 1 + k) – 1, sendo que: r = taxa de juro nominal líquida, que actualmente se entende dever ser fixada em 1,5%. k = taxa anual de crescimento de P (inflação + ganhos da produtividade + promoções profissionais (inflação de 0,5% + ganhos da produtividade de 0,375% + promoções profissionais de 0,375%) = 1,25%). [28] CJ/Supremo Tribunal de Justiça, ano X, t. II, págs. 132, 133. [29] Acórdão do STJ de 04.12.2007, processo n.º 07A3836, www.dgsi.pt. [30] Acórdão do STJ, 10/2/98, CJSTJ, tomo I, pág. 65. [31] Cfr, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2014, Processo n.º 436/11.1TBRGR.L1.S1), de 19 de Fevereiro de 2015, Processo n.º 99/12.7TCGMR.G1.S1, de 4 de Junho de 2015, Processo n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, de 7 e Abril de 2016, Processo n.º 237/13.2TCGMR.G1.S1), e de 14 de Dezembro de 2016, Processo n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1), todos em www.dgsi.pt.) [32] Processo 1370/05.0TBBNV.L1-2, www.dgsi.pt.