FIANÇA
BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA
INSOLVÊNCIA DA ARRENDATÁRIA
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
Sumário


I – Renunciando ao beneficio da excussão prévia, fica excluída a subsidiariedade, e o fiador é, ao lado do devedor, um principal pagador, tornando-se assim solidariamente responsáveis pela dívida.
II – Estando perante um caso de litisconsórcio voluntário passivo, a desistência do pedido de pagamento de rendas contra o arrendatário não faz extinguir a obrigação do fiador.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

AA e BB, intentaram contra I...- Unipessoal, Lda e CC, ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo:

a) Seja declarado resolvido o contrato de arrendamento entre os autores e o réu;
b) O réu condenado a entregar o arrendado aos autores, livre de pessoas, bens e animais nas condições em que o mesmo, lhe foi entregue;
Solidariamente,
c) Serem os réus condenados, no pagamento de todas as rendas não pagas vencidas no valor de €7.875,00 e as vincendas até á efetiva saída do arrendado;
d) Serem os réus condenados          no pagamento de indemnização, ou seja, 20% sobre o valor de todas rendas vencidas e vincendas, até á efetiva saída do arrendado, o que, á presente data, perfaz a quantia de €1.575,00.
e) Serem os réus condenados, a pagarem as quotas de condomínio, vencidas no valor de €623,50, e as vincendas, até á efetiva saída do arrendado.

Invoca a celebração de um contrato de arrendamento comercial com a 1ª ré, no qual a 2ª ré interveio como fiadora, assumindo juntamente com a primeira o cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato, renunciando ao beneficio da excussão prévia.
Os autores vieram, entretanto, desistir do pedido formulado na alínea d).
Certificada nos autos a declaração de insolvência da ré I...- Unipessoal, Lda, vieram os autores informar que pretendiam o prosseguimento dos autos, contra a outra ré, CC.

Foi então proferida a seguinte decisão:
«Nos presentes autos de processo comum, propostos por AA e BB contra I...- Unipessoal, Lda. e CC, veio aquele, após ter tomado conhecimento da declaração de insolvência quanto à 1.ª Ré desistir dos pedidos formulados contra esta (ref.ª n.º ...62). Ademais, através da resposta sob ref.ª n.º ...35 veio o Autor desistir do pedido formulado na al. d) da petição inicial.

Cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 1, do Código do Processo Civil “[o] autor pode, em qualquer altura, desistir de todo o pedido ou de parte dele”, sendo que, nos termos do artigo 285.º, n.º 1, daquele diploma, “a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer”.
Portanto, a desistência do pedido é livre, mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor (artigo 286.º, n.º 2, do Código do Processo Civil).
No entanto, a desistência não é permitida quando importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis (artigo 289.º, n.º 1, do Código do Processo Civil). Ora, compulsados os autos, verifica-se que os mesmos se reportam a direitos disponíveis, pelo que a desistência é permitida.
No que concerne à formalização da desistência, preceitua o artigo 290.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, que: “[a] confissão, a desistência ou a transação podem fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo.”
In casu, a desistência foi formalizada através de requerimentos juntos ao processo, subscritos por advogado com poderes especiais para desistir, conforme se alcança da procuração junta aos autos, pelo que estava autorizado a fazê-lo, ao abrigo do disposto no artigo 45.º, n.º 2, do Código do Processo Civil.
Pelo exposto, atento o objeto da presente ação, que configura direitos disponíveis, dada a qualidade da desistente, que para o efeito tem legitimidade e os necessários poderes e, atenta a forma por que foi exarada a desistência, julgo válida e homologo a mesma, declarando extinto o direito que a Autores aqui pretendem exercer contra a 1.ª Ré e ainda o direito inserto no pedido da al. d) que os Autores pretendem exercer contra a 2.ª Ré, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 283.º, n.º 1, 285.º, n.º1, 286.º, n.º 2, 289.º, n.º 1, a contrario, e 290.º, n.º 1, todos do Código do Processo Civil.
Custas pela Autores desistentes, nos termos do artigo 537.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na proporção de metade, o que se fixa provisoriamente.
Valor da ação: € 30 375,00 (cf. artigos 298.º, n.º 1 e 306.º, do Código de Processo Civil). Registe e notifique.
Não obstante a desistência dos pedidos homologada supra, a instância não se extingue de imediato (artigo 277.º, al. d), do Código de Processo Civil) atenta a existência de outra có- Ré relativamente à qual não ocorreu desistência de todos os pedidos formulados, impondo-se ainda a apreciação dos pedidos formulados nas als. c) e e) da petição inicial. (…)».

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Inconformada com a decisão veio a ré CC dela interpor recurso, terminando com as seguintes conclusões:

I – A desistência de todos os pedidos formulados contra a 1.ª Ré arrendatária – incluindo os pedidos de pagamento de rendas e quotas de condomínio formulados sob as al. c) e e) também contra a co-Ré recorrente - tem como consequência a extinção desses direitos/obrigações, como determina o artigo 285 n.º 1 do CPC, pelo que ficam os AA. impedidos de exigir o pagamento das rendas e das quotas de condomínio, sendo que, ao desistirem dos pedidos, renunciaram ao direito de exigir o cumprimento daquelas alegadas obrigações.
II - A obrigação de pagamento das rendas recai sobre o arrendatário, sendo que o fiador é apenas o garante do cumprimento daquela obrigação, de modo que a obrigação do fiador apenas se mantém, enquanto existe a obrigação do devedor principal.
III - Extinta a obrigação principal, extingue-se a obrigação do fiador, porquanto a fiança é uma garantia acessória, dependente da obrigação principal, nos termos do disposto nos artigos 627 n.º 2, 634 n.º 1 e 651 do CC.
IV - Extinta a obrigação da devedora principal no contrato de arrendamento em causa, extinguiu-se a obrigação da fiadora recorrente, pelo que a desistência pelos AA. de todos os pedidos formulados determina a extinção da instância quanto à Ré recorrente também.
V - Pelo exposto, ao determinar o prosseguimento dos autos contra a co-Ré recorrente para apreciação dos pedidos formulados sob as al. c) e e) da petição inicial, a douta sentença recorrida viola o disposto nos artigos 285 n.º 1 do CPC e nos artigos 627 n.º 2, 634 n.º 1 e 651 do CC.
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Os Recorridos apresentaram contra-alegações concluindo pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A questão a apreciar consiste em saber se com a desistência do pedido de pagamento de rendas contra a ré arrendatária se extingue a obrigação da ré fiadora.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

A questão posta em recurso consiste em saber se numa ação intentada contra o arrendatário e o fiador, se na sequência da insolvência do arrendatário o senhorio desistir dos pedidos de pagamento de quantias em atraso contra este, se extingue a obrigação do fiador.
A resposta à questão é negativa.
O seu fundamento normativo assenta no regime jurídico da fiança e a natureza da obrigação do fiador.
A fiança apresenta-se como a garantia pessoal típica e caracteriza-se pelo facto de um terceiro assegurar com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente obrigado perante o respetivo credor - art. 627.º, n.º 1 do Código Civil.
A fiança é caracterizada, em primeiro lugar, pela acessoriedade, o que significa que a fiança se determina pela obrigação do devedor principal.
Este atributo da acessoriedade é conferido pelo n.º 2 do art. 627.º do Código Civil, onde se estatui que «a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor».
Como ensina Antunes Varela “O fiador, ao contrário do que sucede com o terceiro que constitui uma hipoteca ou um penhor sobre os seus bens a favor do credor, é o verdadeiro devedor do credor. Mas a obrigação que o fiador assume é acessória da que recai sobre o obrigado, visto que ele apenas garante que a obrigação (afiançada) do devedor será satisfeita. A obrigação que ele assume é a obrigação do devedor[i].
Esclarece, ainda, o autor que “após a constituição da fiança passa a haver uma obrigação principal, a que vincula o (principal) devedor e, por cima dela, a cobri-la, tutelando o seu cumprimento, uma obrigação acessória, a que o fiador fica adstrito”.[ii]
Nos dizeres de Calvão da Silva, “o fiador assume pois uma obrigação perante o credor que se encontra numa relação de dependência em relação à obrigação do devedor, dependendo dela geneticamente – a invalidade do negócio principal acarreta a invalidade da fiança -, funcionalmente – o fiador pode opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor – e, por último, há ainda uma dependência extintiva, uma vez que extinta a obrigação principal extinta fica também a fiança”.[iii]
No mesmo sentido, Meneses Leitão, referindo-se à característica da acessoriedade da fiança diz que esta característica significa que a obrigação do fiador se apresenta na “dependência estrutural e funcional da obrigação do devedor, sendo determinada por essa obrigação em termos genéticos, funcionais e extintivos[iv]. E acrescenta que “por força do princípio da acessoriedade, a fiança extingue-se quando se extinguir a obrigação principal (artigo 651.º). Trata-se de uma solução óbvia, uma vez que, se a função da obrigação do fiador é assegurar o cumprimento pelo devedor da sua obrigação, naturalmente que a fiança fica sem objecto, a partir do momento em que se extingue a obrigação principal, devendo consequentemente extinguir-se também[v].
Uma outra característica da fiança é a subsidiariedade, que se expressa no facto de o fiador poder invocar o benefício da excussão prévia, nos termos do art. 638.º do Código Civil, ou seja, o fiador só responde pelo pagamento se e quando se provar que o património do devedor é insuficiente para o cumprimento da obrigação contraída: é assim uma garantia subsidiária.
A invocação desse benefício impede que o credor execute o património do fiador sem que primeiro tenha tentado, sem sucesso, a execução do património do devedor (art. 745.º CPC) ou sem que se tenha executado primeiro os bens que são objeto de garantia real (art. 639.º, n.º 1, do Código Civil).  O benefício da excussão prévia diz respeito apenas à fase executiva, pelo que o credor pode instaurar ação declarativa contra o fiador, isolada ou conjuntamente com o devedor (art. 641.º, n.º1, do Código Civil), de modo a obter título executivo contra qualquer dos dois.
Renunciando ao beneficio da excussão prévia, fica excluída a subsidiariedade, e o fiador é, ao lado do devedor, um principal pagador, tornando-se assim solidariamente responsáveis pela dívida. 
O negócio constitutivo da fiança pode sofrer de qualquer dos vícios próprios dos contratos, referindo-se o art. 637º do Código Civil aos “meios de defesa do fiador”, especificando no n.º 1 que além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador tem o direito de opor ao credor aqueles que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador.
Este normativo permite que o fiador invoque perante o credor a extinção da fiança caso se extinga a obrigação principal.
Tal é argumento aduzido pela recorrente. Cumprindo, em conformidade, averiguar se a obrigação principal se extinguiu.
Na base da desistência dos pedidos contra a arrendatária na ação declarativa está a sua declaração de insolvência.
A declaração de insolvência da afiançada não é fundamento de extinção ou exoneração da responsabilidade da fiadora.
Com efeito, a decretação da insolvência do devedor principal não determina a extinção da obrigação do fiador, por não se traduzir numa situação de desaparecimento voluntário das garantias ou acessórios do crédito e, cumulativamente, por o CIRE salvaguardar a posição dos garantes, ao permitir-lhes a reclamação do seu crédito, sob condição suspensiva (art. 95.º, n.º 2, do CIRE)[vi].
Considera-se, até, que a fiança está legalmente concebida para cobrir sobretudo o risco de insolvência[vii].
Com efeito, a fiança sendo, embora, caracteristicamente, uma garantia de cumprimento, é também uma “garantia de solvência” do devedor que protege o credor contra as dificuldades de realização da prestação do devedor e contra a sua impotência patrimonial.
Ademais, declarada a insolvência da arrendatária, o contrato de arrendamento mantém-se válido e vigente salvo se for denunciado pelo administrador da insolvência, nos termos e prazos estipulados no CIRE (art. 108.º). Por tal razão, o fiador que assumiu solidariamente com o arrendatário, entretanto declarado insolvente, o cumprimento das obrigações decorrentes do respetivo contrato de arrendamento, mantém-se vinculado a este, nos termos da fiança prestada, após a declaração de insolvência.[viii]
Como refere Gravato Morais “a fiança é um negócio que envolve um risco assaz elevado para o garante, muito maior até do que o contrato de arrendamento para o próprio inquilino, que, v.g., pode pôr termo ao contrato a todo o tempo, ao contrário daquele, que não pode extinguir a fiança nas mesmas circunstâncias. A sua vinculação fica inteiramente dependente da vontade (e do cumprimento) do inquilino[ix].
Também não se podem considerar preenchidos os pressupostos que permitem a extinção da fiança por liberação por impossibilidade de sub-rogação, como prevê o art. 653.º do Código Civil. É que, à luz deste preceito, a desoneração do fiador implica que a impossibilidade derive de facto, positivo ou negativo, do próprio credor, sendo que, como afirma Januário Gomes, nenhuma impotência patrimonial superveniente do devedor, impede que o fiador, cumprindo, fique subrogado na posição de credor – no direito de crédito[x].
Com a declaração de insolvência, a obrigação de pagamento de rendas não se extinguiu, deixou é de ser processualmente exigível contra a insolvente nesta ação.
A recorrente constituiu-se fiadora, sem direito de excussão prévia, da 1ª ré sociedade, garantido assim o pontual pagamento das rendas e quotas de condomínio que ora lhe estão a ser exigidas.
Pese embora a insolvência da sociedade e a desistência do credor em reclamar nesta ação aquelas quantias, contra a insolvente, certo é que se mantém em vigor a obrigação afiançada e por consequência a obrigação da fiadora.
A obrigação da fiadora é solidária.
A obrigação é solidária quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles (art. 512.º, n.º1, do Código Civil). A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles (art. 512.º, n.º2, do Código Civil).
O credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela (art. 519.º, n.º 1, do Código Civil), ou seja, a solidariedade da obrigação dá ao credor o direito de exigir o pagamento a qualquer dos obrigados.
A solidariedade não impede que os devedores solidários demandem conjuntamente o credor ou sejam por ele conjuntamente demandados (art.517.º, n.º1 do Código Civil), ou seja, o litisconsórcio é voluntário (art. 32.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
No caso a arrendatária e a fiadora foram demandados conjuntamente, mas essa circunstância não retira ao litisconsórcio a sua natureza de litisconsórcio voluntário.
Por isso, a desistência relativamente a um dos litisconsortes passivos não sofre a limitação que decorre do art. 288.º, n.º 2 do CPC que vale para o litisconsórcio necessário, sendo, ao invés, livre a desistência individual, limitada ao interesse de cada um na causa (art. 288.º, n.º 1, do CPC)[xi].
Pelas razões expostas, a desistência do pedido contra a arrendatária não fez extinguir a obrigação da fiadora, devendo a ação prosseguir contra esta.
Termos em que improcede a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)
I – Renunciando ao beneficio da excussão prévia, fica excluída a subsidiariedade, e o fiador é, ao lado do devedor, um principal pagador, tornando-se assim solidariamente responsáveis pela dívida. 
II – Estando perante um caso de litisconsórcio voluntário passivo, a desistência do pedido de pagamento de rendas contra o arrendatário não faz extinguir a obrigação do fiador.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 7 de Junho de 2023

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. – Des. Anizabel Sousa Pereira
2º Adj. – Jorge Alberto Martins Teixeira



[i] In Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª Edição, pág. 479.
[ii] Ob. e loc. cit.
[iii] In “Estudos de Direito Comercial”, pág. 334.
[iv] In Direito das Obrigações, volume II, Almedina, 5ª edição, pág. 329.
[v] Ob. Cit., pág. 336.
[vi] Neste sentido, Acórdão da Relação de Guimarães de 23.02.2017, proferido no processo n.º 484/13.7TBBRG.G1, em que foi Relatora Lina Castro Baptista, disponível em www.dgsi.pt.
[vii] A este propósito, Evaristo Mendes, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 765.
[viii] Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 5.03.2013, proferido no processo n.º 388/11.8TBBRG-A.P1, em que foi Relator José Igreja Matos, disponível em www.dgsi.pt.
[ix] In Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, Almedina, 2010, pág. 80.
[x] In Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, pág. 117.
[xi] Neste sentido, Ac. da Relação de Lisboa, de 12.07.2007, relator: Salazar Casanova, proferido no processo 4095/2007-8.L1