RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO CAUSADO POR ANIMAL
Sumário

I - Os danos provocados pela mordedura de um cão de guarda inserem-se no enquadramento ou previsão do artigo 502 do Código Civil, sendo a "utilização" a obtenção de um preceito material ou meramente recreativo.
II - A responsabilidade do dono fica excluída se houver culpa do agente.
III - Entende-se que esta existe se o cão guardava um espaço delimitado por muros e grades (todos tapados até 1,415 m e gradeado daí para cima) e a vítima é mordida quando introduz o nariz dentro do espaço através dos interstícios da dita grade.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I - B....., residente na Rua....., no....., intentou a presente acção de condenação, com processo ordinário contra C....., com domicilio profissional na Rua....., também na cidade do....., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de Esc.l.908.320$00, a titulo de indemnização pelos danos patrimoniais, e Esc. 4.050.000$00 a título de danos morais.
Em síntese, alega que a Ré é responsável pelos danos que sofreu, e que especifica, em consequência da mordida do cão de que é proprietária, sendo que a Ré responde independentemente de culpa, até porque não tomou as necessárias cautelas para evitar o acidente.

Citada a Ré, contestou, impugnando a forma como a Autora descreve o acidente, afasta a culpa que lhe é atribuída e acrescenta que a culpa foi antes da Autora que actuou de forma imprudente.
Conclui pela improcedência da acção com a sua consequente absolvição do pedido e, subsidiariamente, a exclusão da indemnização ou a sua redução ao mínimo.

Foi proferido despacho saneador e organizado o mapa de factos assentes e a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento na forma legal, após o que foi proferida a sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 3.000.000, a título de indemnização pelos danos que sofreu.

Inconformadas, apelaram, sucessivamente, a Ré e a Autora.

A Ré formula na respectiva alegação as seguintes conclusões:
1ª - Na responsabilidade pelo risco da utilização de animais, veículos ou instalações de energia eléctrica ou gás, o papel desempenhado pela culpa e pela ilicitude, no esquema clássico da responsabilidade subjectiva, é de certo modo substituído pela determinação dos perigos ou riscos especiais da utilização daqueles animais, veículos ou instalações, pelo que só existirá responsabilidade objectiva, se os riscos próprios do animal, veículo ou instalação, se apresentarem como causa adequada do dano verificado.
2ª - A sentença recorrida reconheceu (e muito acertadamente) que nenhuma culpa poderia ser assacada à Ré (fls. 286) e que a autora devia “ter evitado aproximar-se, como fez, do único local que permitia um contacto com os canídeos, que era precisamente o gradeamento do portão, à altura da sua cara, para o que se empoleirou para o efeito na respectiva soleira e meteu inclusivamente o nariz por entre as grades” (fls. 290).
3ª - Concluindo que a situação se deveu exclusivamente ao comportamento culposo da Autora, uma vez que “se a autora se mantivesse ao nível do passeio, mesmo parada, junto e em frente ao portão, não havia qualquer possibilidade de contacto físico com o cão, atenta a largura entre grades, e a altura tapada do portão” (fls. 290).
4ª - Antes de ponderar se a indemnização deveria ser totalmente concedida, reduzida, ou mesmo excluída, era necessário demonstrar - e o Tribunal recorrido não o logrou fazer - se essa obrigação de indemnizar existia sequer.
5ª - A esse respeito, o tribunal recorrido limitou-se a afirmar (algo tautologicamente) que “a ré, pese embora não ter tido qualquer comportamento susceptível de emissão de um juízo de censura, tal não a isenta de responsabilidade» e que «a sua “culpa” objectiva concorre assim com a culpa efectiva da autora”, o que, com o devido respeito, é o mesmo que reduzir os pressupostos da responsabilidade pelo risco da utilização de animais a um pressuposto único e negativo: a ausência de culpa de quem no seu próprio interesse os utiliza.
6ª - Se tivesse efectivamente indagado sobre a verificação dos pressupostos dessa responsabilidade objectiva, o Tribunal a quo teria certamente concluído sem qualquer reticência - que não existia obrigação de indemnizar, porquanto a actuação da autora quebrou o nexo de causalidade adequada entre os riscos inerentes à utilização do animal em causa e os danos que este infligiu àquela.
7ª - É que, como assinala LARENZ, “[o] primeiro requisito da responsabilidade pelo risco (ou pelo perigo: einer Gefahrddungshaftung) é que entre a conduta do animal, a exploração ou a instalação, de um lado, e o prejuízo, por outro, exista um nexo de causalidade adequada (ein [adaquater] Kausalzusammenhang)”.
8ª - Ora, sendo o lesado quem dá causa aos danos, os riscos próprios da utilização do animal “deixarão de funcionar, no caso concreto, como causa adequada do acidente registado”..
9ª - Não tendo concluído pela inexistência do dever de indemnizar, por falta do nexo de causalidade adequada legalmente exigido, o tribunal recorrido fez errada interpretação do disposto nos artigos 499.°, 502.° e 563.° do CC.
10ª - Dito isto, a mesma solução sempre resultaria da correcta interpretação e aplicação do regime legal da responsabilidade pelo risco, que inequivocamente rejeita a possibilidade de concurso de risco/culpa do lesado.
11ª - Como sublinha BRANDÃO PROENÇA, “o legislador de 1966 e a dogmática dominante optaram muito claramente pela recusa do concurso risco-culpa do lesado, invocando, para tal, a lógica de uma causalidade exclusiva e o repúdio do concurso heterogéneo”.
12ª - Com efeito, a lei apenas prevê a repartição de responsabilidade ou a atenuação dela nos casos em que há culpa de várias pessoas, ou quando são várias as pessoas que respondem objectivamente, pelo que “não pode admitir-se a concorrência entre o risco de um e a culpa do outro para responsabilizar os dois”.
13ª - Segundo cremos, foi por ter rejeitado a possibilidade de concurso risco/culpa do lesado que o legislador entendeu desnecessário referir-se-lhe no nº 2 do artigo 570.° do CC e não (como nos parece evidente) porque pretendesse restringir a exclusão do dever de indemnizar à hipótese de concurso presunção de culpa/culpa do lesado, mantendo esse dever no concurso risco/culpa do lesado.
14ª - É que, como doutamente acentuam ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, “se a culpa do lesado, nos termos do nº 2 do artigo 570º, exclui o dever de indemnizar quando a responsabilidade se funda na presunção de culpa (e não na culpa realmente provada), por maioria de razão a deverá excluir quando ela assentar na simples ideia do risco”.
15ª - De outro modo, a seguir a interpretação expressamente assumida na douta sentença recorrida, teríamos de concluir - e o artigo 9.°, nº 3, do CC não o admite - que o legislador teria consagrado uma solução absurda:
a) Aquele que, por ter assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, se presume culpado pelos danos que estes causarem (493.° CC), mesmo que não consiga elidir esta presunção, verá automaticamente excluído o seu dever de indemnizar, sempre que demonstre a culpa do lesado, por força da aplicação do nº 2 do artigo 570,° do CC;
b) Aquele que, por utilizar animais no seu próprio interesse, responde pelos danos resultantes do perigo especial que envolve essa utilização (502,° CC), mesmo que logre demonstrar que não houve qualquer culpa da sua parte e que o acidente se deveu exclusivamente à actuação culposa do lesado (como a ré logrou provar nos presentes autos) responderá sempre por esses danos, salvo se o Tribunal, de acordo com o seu livre arbítrio, entender reduzir ou excluir essa indemnização, nos termos do nº 1 do citado artigo 570°.
16ª - Finalmente, não se vislumbra porque motivo o tribunal recorrido rejeitou a aplicação à responsabilidade pelo risco do nº 2 do artigo 570.° por este se referir apenas ao concurso presunção de culpa/culpa do lesado, mas já não hesitou em recorrer ao n.o 1 da mesma disposição legal, que se refere apenas ao concurso culpa efectiva do agente/culpa do lesado.
17ª - Este último preceito, recorde-se, comete ao Tribunal a faculdade de reduzir ou mesmo excluir a indemnização quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, o que este deverá decidir, “com base na gravidade das culpas de ambas as partes” e, que se saiba, nenhuma responsabilidade pelo risco é mais ou menos grave: ou há responsabilidade pelo risco, ou há responsabilidade por facto culposo e só nesta podemos comparar a gravidade da conduta do agente com a gravidade da culpa do lesado.
18ª - Diversamente, em caso de concurso culpa do lesado/culpa presumida do agente, ou, por maioria de razão, em caso de concurso culpa do lesado/responsabilidade pelo risco, está vedada ao tribunal aquela ponderação, uma vez que o dever de indemnizar é automaticamente excluído.
19ª - A douta sentença recorrida fez assim errada interpretação do regime legal da responsabilidade pelo risco, quer dos acima referidos artigos 499.°, 502.° e 563.° do CC, quer do artigo 570.° do mesmo Código, devendo ser revogada e julgando-se a acção totalmente improcedente.

Contra-alegou a Autora, pugnando pela improcedência do recurso da Ré.

Por sua vez, a Autora formula na sua alegação as seguintes conclusões:
1ª - A indemnização fixada na sentença recorrida é manifestamente injusta e insuficiente para ressarcir os danos sofridos pela recorrente, os quais se provaram ser graves e com sequelas irreversíveis, pelo que a indemnização a fixar deverá ser a que se encontra discriminada nos arts. 08, 09 e 10 supra, ou seja, € 9.000 para as dores sofridas e € 7.000,00, pelo dano estético; € 4.250,00, pelo dano da maior sensibilidade com que ficou ; e € 7.500,00, pela IPP de que ficou a sofrer.
2ª - A indemnização atribuída à recorrente não deve sofrer redução ao abrigo do Art. 570º do CC, visto que a sua actuação não se encontra abrangida pela previsão daquela norma.
3ª - Com efeito, a recorrente limitou-se a espreitar para dentro do estabelecimento comercial da recorrida, não prevendo, nem lhe sendo exigível que o fizesse, que os cães desta tivessem acesso ao portão e, muito menos, que pudessem saltar a uma altura de, pelo menos, 1/60 mordendo-a na cara através das grades.
4ª - Ou seja, não pode dizer-se que a actuação da recorrente tenha sido censurável (porque dolosa ou negligente), pois outra atitude não lhe era exigível, condição para que seja aplicada tal norma.
5ª - Além de não existir culpa da recorrente, para efeito da aplicação do Art. 570° do CC, a verdade é que tem sido entendido pela nossa jurisprudência que este artigo não pode ser aplicado quando o lesante responde a título de responsabilidade objectiva, como é o caso.
6ª - A sentença recorrida violou, assim, o disposto nos arts. 562° e 566°-2, ambos do C.C..
Termina, pedindo se revogue a douta sentença recorrida

Houve resposta da Ré .
Corridos os vistos, cumpre decidir.

II – Na 1ª instância foi considerada provada a seguinte matéria de facto:
1 - A ré tem um estabelecimento de antiguidades “D.....”, sito numa moradia, onde e no jardim da mesma a ré tem três cães que aí andam à solta, sendo um deles pelo menos da raça pastor alemão, treinados pela GNR para defesa de intrusos da casa referida sita no Bairro.....;
2 -Após 28/08/99 a ré mandou colocar uma rede metálica no gradeamento do portão de ferro existente na moradia supra referida;
3 - No dia 28.08.99, por volta das 21.15 horas, a autora saiu de casa para ir passear o seu cão;
4 - A autora reside próximo do estabelecimento supra referido em 1;
5 - E encaminhou-se, por isso para a rua onde este se situa;
6 - Tendo o cão da autora parado perto da porta do estabelecimento referido em 1), a autora parou aí também;
7 - A autora encostou-se de lado ao portão de tal casa;
8 – O portão é todo tapado até á altura de 1,415 metros, mas constituído daí para cima por um gradeamento vertical, cuja distância entre as grades varia entre os 10 cm e os 6,5 cm, sendo estes na sua base, conforme fotografia junta a fls. 18, (o portão em referência é aquele que se encontra fechado);
9 - A autora mede cerca de 1,60 metros;
10 - Estando então a sua cara à altura do gradeamento;
11 - Quando assim se encontrava a autora, o pastor alemão supra referido em 1), surgiu subitamente;
12 - E mordeu a autora na cara, apanhando-lhe o nariz;
13 - No portão, ou noutro local, não existe qualquer aviso quanto à existência de cães de guarda;
14 - A soleira do portão tem a altura de 8 cm;
15- A autora colocou-se em cima da soleira, assim ficando ao nível do gradeamento;
16- A soleira era pouco larga;
17- A autora encostou a cabeça ao gradeamento, enfiando o nariz por entre as grades;
18 - A autora tinha o hábito de passear o seu cão pela rua e estabelecimento da ré;
19 - Pelo que sabia que o mesmo estava protegido com cães de guarda;
20 - Depois da mordedura, a autora seguiu de imediato para o Hospital de....., onde foi assistida nos Serviços de Urgência;
21 - A mordedura provocou na autora esfacelamento do nariz, com perda de tecidos na ponta do mesmo;
22 - No Hospital supra referido, a autora acabou por ser observada e tratada no Serviço de Cirurgia Estética e Reparadora, no qual se procedeu á reconstrução do nariz, através de enxerto de tecidos colhidos através do pavilhão auricular esquerdo;
23 - Como consequência das lesões sofridas, ficou a autora com uma cicatriz em forma de "6" na ponta do nariz, com 5 cm/s de comprimento e diâmetro (do círculo do 6) de 1 cm;
24 - Que se salienta por ter uma tonalidade mais rósea;
25 - E cicatriz de 4 cm na zona retroauricular esquerda, onde foram colhidos os tecidos para o enxerto;
26 - Ficou ainda a autora a padecer de ansiedade, sempre que relembra o evento, o que lhe provoca sudação, palpitações, tensão muscular e cefaleias;
27 - E perturbações do sono com pesadelos relacionados com a ocorrência;
28 - E dores na ponta do nariz provocadas pelo tacto e por temperaturas mais baixas;
29 - E mais sensibilidade do nariz aos raios solares;
30- No que concerne à vida afectiva e social, como consequência das lesões sofridas, a autora tende a isolar-se e a evitar conhecer novas pessoas, sentido dificuldade em encarar desconhecidos;
31-Sente-se desfigurada e com desgosto por não poder recuperar a sua anterior fisionomia;
32 - Tem dificuldade em andar durante o dia, sem qualquer tipo de protecção do nariz, agora mais sensível aos efeitos dos raios solares;
33 - Á data do acidente a autora tinha 45 anos de idade;
34 - Era pessoa de escorreita fisionomia e de boa apresentação pessoal;
35 - Em consequência das lesões sofridas a autora ficou a padecer de uma IPP de 5%;
36 - Á data do acidente recebia Esc.159.552$00 por mês;
37 - As leões sofridas causaram-lhe uma ITA de 60 dias;
38 - Durante o período de ITA a entidade patronal da autora não lhe pagou o subsidio de alimentação de Esc.l.330$00 diários;
39 - Após a mordedura do cão sofreu dores;
40 - Dores estas que se mantiveram durante os 165 dias correspondentes ao período de ITA e ITP com maior ou menor intensidade;
41 - E durante esse período a autora viveu angustiada de ver o seu nariz esfacelado e de ter dúvidas relativamente ao estado em que ficaria depois dos tratamentos;
42 - Também a IPP supra referida causa na autora perturbações de stress pós traumático;
43 - O trabalho no Serviço de relações públicas exige contacto com o público;
44 - O desgosto e constrangimento que esta situação lhe causa originou perturbações de tipo depressivo-ansioso-fóbico e perda de auto-estima.

III - O DIREITO.
Como se sabe, são as conclusões da alegação dos recorrentes que delimitam o objecto do recurso e este Tribunal, exceptuadas as de conhecimento oficioso, só pode conhecer e resolver as questões por eles suscitadas (art.s 684º, nº3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil), e não também as razões ou argumentos que expendem em defesa dos seus pontos de vista.
Importa, pois, analisar tais conclusões.

APELAÇÃO DA RÉ:
As questões a decidir, que resultam das respectivas conclusões, circunscrevem-se à de saber se a Ré/apelante C..... deve, ou não, ser responsabilizada civilmente pelas consequências danosas da mordedura do seu cão causadas na pessoa da Autora B..... e, em caso afirmativo, se em termos exclusivos ou em concorrência com culpa da Autora.

Será que a matéria de facto provada, acima exposta, enquadra, um caso de responsabilidade civil, por danos causados por animais?
É que esta responsabilidade, tanto pode ter por base a responsabilidade civil por facto ilícito, como a responsabilidade civil objectiva ou pelo risco.
Estipula, efectivamente, o artº 493º, nº 1 do Cód.Civil (de que serão todos os que vierem a ser citados sem expressa menção de origem):
Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que não houvesse culpa sua.
Este normativo (artº 493°, n° 1) refere-se à culpa in vigilando, contemplando os casos em que o dano resulta da não observância do dever de guarda dos animais.
Presumindo-se aqui a culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou animais, assiste-se a uma inversão do ónus da prova (art. 350°, n° 1, do CC).
A responsabilidade assenta sobre a ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano.
Diferente é a situação brangida pelo artº 502, em que existe responsabilidade baseada no risco inerente à utilização dos animais.
Dispõe este normativo:
Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização.
Neste caso, prescinde-se da culpa, observando-se a responsabilidade objectiva.

Diga-se ainda que a palavra “utilização”, usada no art. 502.°, na sua dimensão conceitual, não significa apenas obtenção de proveito imediato, mas também potencial. Utilizar, é ter de servir-se de uma coisa, cuja função é dar proveito, que pode ser material ou meramente recreativo
O perigo especial que a utilização do animal envolve (art. 502.°), é o resultante da sua natureza de ser vivo, que actua por impulsos próprios - cfr. Prof. V. Serra, in Rev. Leg. e Jur., 103, pág. 379, nota 23. Na verdade, ninguém ignora que há determinadas atitudes de animais (cães, bovinos ou outros), resultantes das forças instintivas que os dominam, que, quando causadoras de danos, acarretam para o seu dono o dever e a obrigação legal de indemnizar os lesados.
De um modo geral, poderá dizer-se que haverá responsabilidade por facto ilícito, no caso em que existe apenas o encargo de guarda e vigilância dos animais (depositário, mandatário, comissário, etc.), enquanto a responsabilidade pelo risco verificar-se-á no caso em que o dano produzido pelo animal esteja em conexão adequada com a utilização do animal no interesse próprio (proprietário, usufrutuário, possuidor, etc.).

No caso sujeito, como decorre dos factos provados, a Autora B....., no dia 28 de Agosto de 1999, saiu de casa e foi passear o seu cão.
Quando, sendo 21H15, ia a passar numa rua do Bairro....., da cidade....., junto do estabelecimento de antiguidades pertencente à Ré C....., onde, de resto esta também reside, a Autora parou.
Depois encostou-se de lado ao respectivo portão, que é tapado até à altura de 1,415 metros, tendo daí para cima um gradeamento vertical, com a distância, entre as grades, de entre 10 cms e 6,5 cms.
A soleira desse portão tem a altura de 8 cms.
A Autora colocou-se em cima da soleira, ficando a sua cara ao nível do gradeamento.
E encostou a cabeça ao gradeamento, enfiando o nariz por entre as grades.
Quando assim se encontrava, um pastor alemão que andava à solta no jardim dessa moradia da Ré surgiu subitamente e mordeu a Autora na cara, apanhando-lhe o nariz.
A Autora tinha o hábito de passear o seu cão pela rua e estabelecimento da Ré, pelo que sabia que o mesmo estava protegido por cães de guarda.

Será que destes factos decorre, estarem verificados os pressupostos da responsabilidade objectiva ou pelo risco previstos no falado artigo 502º do Código Civil?
É que se argumenta neste recurso que não há obrigação de indemnizar, uma vez que, sendo o lesado quem dá causa aos danos, os riscos próprios da utilização do animal, deixam de funcionar como causa adequada do acidente.

Cremos que à Ré/apelante assiste a razão.
A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o agente, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo (c.f.r. A. Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª ed., pág.456).
Já quanto ao princípio da responsabilidade objectiva ou pelo risco, ele caracteriza-se, como se disse, por não depender de culpa do agente.
Voltando à culpa, como juízo assente no nexo existente entre o facto e a vontade do agente, ela pode revestir duas formas diferentes: o dolo e a negligência ou mera culpa.
O dolo caracteriza-se por uma estreita identificação estabelecida entre a vontade do agente e o facto.
Dentro da negligência ou mera culpa, há que distinguir, desde logo, os casos em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar.
Estamos perante a mera culpa consciente.
Porém, para além destes casos, há numerosas situações em que o agente não chega, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto lesivo se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida.
Trata-se da chamada culpa inconsciente.
No entanto, em qualquer dos casos, uma coisa é certa: o grau de reprovação é tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo.
Assentando a mera culpa na omissão de um dever de diligência, põe-se a questão de saber quais são as coordenadas que definem essa diligência e qual é verdadeiro conteúdo desse dever.
Em primeiro lugar, trata-se da questão de saber qual é o padrão pelo qual se afere a conduta do lesante : será a diligência que o agente costuma aplicar nos seus actos, de que ele se revela habitualmente capaz, ou, pelo contrário, é a diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso?
No primeiro caso, mede-se a culpa em concreto, pelo figurino real do lesante.
No segundo caso, mede-se a culpa em abstracto, pelo padrão de um homem ideal, que vem a ser o tipo de homem médio ou normal que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade, a que os romanos davam a designação prosaica de “bonus pater famílias” (c.f.r. ob. cito de Antunes Varela, pág. 464).
A este respeito, estabelece o nº 2 do art. 487º do Cód.Civil, que a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de “um bom pai de família”, em face das circunstâncias de cada caso.
É a consagração expressa da teoria da culpa em abstracto.
Com a expressão “em face das circunstâncias de cada caso”, como assinala A. Varela, in ob.cit., pág.466, se “quer apenas dizer que a diligência relevante para a determinação da culpa é a que um homem normal (um bom pai de família) teria em face do condicionalismo próprio do caso”.

No caso sujeito, a responsabilidade pelos danos verificados não poderá, em face das circunstâncias, ser imputada à Ré, como aproveitadora do animal.
Este não saiu do espaço que lhe estava reservado, naquele jardim ou pátio, que lhe cumpria guardar.
Onde, aliás, nada fazia prever que a Autora, sem que nada o justificasse, fosse introduzir o nariz.
A conduta da Autora, é forçoso reconhecê-lo, não é a que uma pessoa normal teria tido, em face das circunstâncias concretas.
Pelo contrário, a sua conduta foi manifestamente imprudente. Ela agiu inconvenientemente, embora lhe tivesse sido possível, com o cuidado exigível, comportar-se em termos convenientes.
E tal conduta foi também causal da ocorrência, enquanto, sendo 21H15 desse dia, ao passar junto da casa da Ré, subiu à soleira do portão de entrada, aliás, todo tapado até à altura de 1,415 metros, e com gradeamento daí para cima, enfiando depois o nariz por entre as grades, para o pátio ou jardim da Ré, que era guardado, como era do seu conhecimento, por três cães, um dos quais então a mordeu.

Não sofre dúvidas, pois, que, no caso sub judice, foi a atitude insólita e imprudente da Autora que veio a originar o acidente, e já não o perigo especial criado pela presença dos cães no jardim da Ré, pelo que esta não pode ser obrigada, nem parcialmente, a reparar os respectivos danos, impondo-se a sua absolvição do pedido.
Procedem, desta sorte, as conclusões recursivas.
APELAÇÃO DA AUTORA:
De acordo com as respectivas conclusões, a questão a conhecer anda à volta do valor da adequada indemnização.
Insurge-se a ora apelante contra o montante da indemnização fixada, por o considerar insuficiente.
Ora, dados os termos a que se chegou, de que a Autora/recorrente não tem o direito de indemnização que se arroga, fica prejudicado apurar se a indemnização fixada em 1ª instância é insuficiente para ressarcir os danos sofridos pela Autora, por respeito ao artº 660º, nº 2 do Cód. Proc. Civil.
***
IV – Em face do exposto, acordam em:
Julgar procedente a apelação interposta pela Ré que, em consequência, se absolve do pedido.
- Custas pela Autora.
b) Julgar improcedente a apelação interposta pela Autora, com as devidas e legais consequências.
- Custas pela Autora.
*
Porto, 15 de Fevereiro de 2005
Durval dos Anjos Morais
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho