CONTRATO DE AVENÇA COM ADVOGADO
CESSAÇÃO DE MANTADO POR RESOLUÇÃO
REVOGAÇÃO
RESOLUÇÃO COM JUSTA CAUSA
CLÁUSULA PENAL
Sumário

1- O contrato de avença é aquele que tem por objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal, com remuneração certa mensal. E destinando-se, no caso dos autos, à prática de actos próprios de advogado, trata-se de contrato de avença de serviços de advocacia.
2- O contrato de avença de serviços de advocacia é legalmente atípico mas socialmente típico e, como tal, no que toca à hierarquia das suas fontes, deve ser regido, sucessivamente, pelas estipulações das partes, pelas disposições gerais análogas relativas a negócios afins, pelas disposições gerais das obrigações e pelas que o juiz criar de acordo com a boa fé e demais regras que o autorizam a complementar o direito.
3- No que concerne à cessação do mandato por resolução, o Código Civil não a prevê expressamente, tendo o Legislador optado por incluir, na subsecção da revogação, as situações de resolução mediante justa causa, conforme decorre do art.º 1170º nº 2.
4- Será justa causa qualquer facto, situação ou circunstância em face dos quais não seja exigível, segundo a boa fé, a continuação da vinculação da parte à relação contratual.
5- Não está prevista, directamente na disciplina do contrato de mandato civil, a indemnização ao mandatário que revoga o contrato ad libitum ou que resolve o contrato por justa causa/motivo justificado.
6- Se o credor e o devedor acordam em fixar uma pena que substitui o cumprimento, fixando o pagamento da totalidade das prestações mensais até final do contrato, em caso de resolução (por justa causa) trata-se de estipulação de uma cláusula penal em sentido estrito.
7- O princípio da boa fé, no âmbito da matéria de cláusulas penais, tem a sua expressão máxima no art.º 812º nº 1 do CC, no instituto da redução da equitativa da cláusula penal.
8- Tratando-se de uma cláusula penal em sentido estrito, em que as partes acordaram em fixar uma pena que substitui o cumprimento, fixando o pagamento da totalidade das prestações mensais até final do contrato, em situações destas, e no que respeita aos critérios relevantes para a redução da cláusula penal, não será o prejuízo real o factor a considerar, antes o interesse do credor ao cumprimento, tratando-se fundamentalmente de perguntar pelo montante necessário para estimular o devedor a cumprir, atendendo às circunstâncias do caso, mormente o tempo do contrato já decorrido e o prazo que ainda restava por cumprir à data da declaração de cessação do contrato.

Texto Integral

Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO

1- RFR, instaurou procedimento de injunção contra TN, pedindo:
- A condenação da ré a pagar a quantia de 5.904,00€, acrescida de juros vencidos no valor de 457,44€, despesas no valor de 76,50€ e a taxa de justiça.

Alegou, em síntese, que como advogado prestou serviços jurídicos à requerida, no âmbito do contrato celebrado entre ambos, mas que a requerida não pagou, apesar de instada a fazê-lo, enviando a respetiva factura e nota de honorários e despesas por conta do cliente, sem, contudo, obter resposta por parte da mesma.

2- Citada a requerida deduziu oposição, alegando, em síntese, que o requerente esteve incomunicável desde março de 2020, não tendo a requerida conseguido obter informação acerca do estado dos processos de execução fiscal pendentes. Veio a informar-se junto da administração fiscal que o requerente não havia deduzido impugnação, nada tendo feito no âmbito do contrato de avença. O valor peticionado, 5.904€, corresponde à totalidade das mensalidades da avença entre 01/11/2019 e 01/11/202, mas pagou ao requerente 1.230,00€, em numerário, para pagamento da avença dos meses de novembro de 2019 a março de 2020.

3- Notificado para o efeito, respondeu à oposição, dizendo, em síntese, que esteve sempre contactável, que apresentou impugnações e pediu apoio judiciário mas, tendo este sido indeferido, foi a requerida quem não pagou a taxa de justiça devida. Mais nega ter recebido qualquer pagamento.

4- Realizada a audiência final, foi proferida sentença, datada de 03/07/2022, com o seguinte teor decisório:
 “3. DECISÃO
Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, consequentemente:
i)- Condeno a requerida no pagamento ao requerente da quantia de 5904,00€ (cinco mil, novecentos e quatro euros), a que acrescem os juros de mora à taxa supletiva legal para os juros civis de 4%, desde a data de vencimento de cada fatura e até integral pagamento.
ii)- Absolvo a requerida do pedido de pagamento de 76,50€ (setenta e seis euros e cinquenta cêntimos).
Custas pelo requerente e pela requerida, na proporção dos respetivos decaimentos (art.º 527º, n.º 1 do Código do Processo Civil).
Fixo o valor da ação em 6437,94€ (seis mil, quatrocentos e trinta e sete euros e noventa e quatro cêntimos).

5- Inconformada, a requerida interpôs o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
Das faturas correspondentes ao período compreendido entre 1 de Novembro de 2019 e 31 de Dezembro de 2020, no valor total de 3.198,00€ (três mil cento e noventa e oito euros).
A) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida na 1.ª instância, que julga parcialmente procedente a ação interposta pelo A., ora apelada, e condena a Ré, ora apelante, no pagamento à referida A. da quantia de 5.904,00€ (cinco mil, novecentos e quatro euros), a que acrescem os juros de mora à taxa supletiva legal para os juros civis de 4%, desde a data de vencimento de cada fatura e até integral pagamento.
B) A sentença recorrida enferma de vários crassos erros de julgamento, que culminaram na decisão de condenar a apelante no pagamento de uma quantia exorbitante que não é, minimamente, devida ao apelado. Veja-se:
C) O apelado concebeu um contrato de prestação de serviços jurídicos, que remeteu à apelante para assinar, com efeitos no dia 1 de Novembro de 2019, e com a duração de 24 meses;
D) O referido contrato foi resolvido pelo A., através de comunicação escrita em 10 de Dezembro de 2020, com efeitos a partir de 31/12/2020. (facto provado n.º 13);
E) Para o efeito da prestação de serviços pelo R., a Apelante outorgou duas procurações forenses para que o Apelado apresentasse as respetivas oposições fiscais no âmbito dos processos n.º 3069201801263072; 3409201701300334; 3069201901023276; 3069201901047590; 306920190106961; 3069201901060970; 3069201901061232; 3069201901080059; 3069201901086880 e apensos; 3069201901105213 e apensos; 3069201901140817; 3069201901144898; 3069201901174037;
F) Sucede que, conforme prova documental junta pelo A. apenas foi apresentada uma
única oposição fiscal concernente ao processo n.º 3069201801263072;
G) A Apelante, desde Novembro de 2019, solicitou por diversas vezes ao Apelado os
comprovativos da entrega das peças processuais, informação essa que nunca lhe foi
prestada;
H) O Apelado, somente remetia faturas para o e-mail, ignorando os pedidos dos comprovativos da entrega das peças processuais;
I) A apelante, sempre teve a convicção que nada tinha sido feito, uma vez que nunca lhe fora comprovado que tinham sido entregues as respetivas peças processuais;
J) Nos termos do artigo 424.º n.º 1 do Código Civil, quando a prestação contratada não seja realizada, o credor pode recusar-se a proceder ao pagamento;
K) No caso dos presentes autos, resultou provado, que dos 13 processos e respetivos apensos, em que o Apelado se encontrava mandatado, apenas foi apresentada prova
da realização de um deles. (processo n.º 3069201801263072);
L) Ora, nesse sentido, não poderá o ora Apelante, proceder ao pagamento do montante peticionado, dado que nos restantes processos não foi comprovado que foram alvo de apresentação de oposição fiscal, como deveriam;
M) E mesmo com referência ao único processo que foi alegadamente realizado, nunca a Apelante teve disso conhecimento, uma vez que o Apelado sempre se remeteu ao silêncio, apenas interrompido, para remeter faturas por e-mail à Apelante;
N) Inexistindo qualquer prova do cumprimento da prestação, a Apelante legitimamente recusou-se ao cumprimento da prestação de pagamento do preço, pois não iria liquidar o que quer que fosse, sem que tivesse qualquer confirmação que as impugnações judiciais referentes aos processos identificados nas procurações forenses tivessem sido deduzidas, o que de facto, se veio a não verificar, somente com exceção a um único processo;
O) A Apelante só apenas em sede da presente ação judicial, teve conhecimento que foi apresentada uma oposição, com referência ao processo n.º 3069201801263072, dado que nunca lhe foi remetido qualquer comprovativo de entrega;
P) O referido processo, viria a ser indeferido liminarmente, através de despacho judicial proferido em 3 de Fevereiro e 2021, por falta de pagamento da taxa de justiça, após o mandatário, ora apelado ter sido notificado para o pagamento da taxa de justiça, sem que tivesse remetido as referidas notificações para a Apelante;
Q) Alegou o Apelado que a Apelante foi notificada pessoalmente, porém olvidou de esclarecer o Tribunal que as notificações foram remetidas para a morada antiga da Apelante, nunca tendo a mesma conhecimento das guias para proceder ao pagamento das taxas de justiça;
R) O Apelado tinha pleno conhecimento desde 21 de Novembro de 2019, que a sede social da Apelante era na Rua …Amadora, tendo a mesma sido alterada junto da conservatória do registo comercial em 11 de Fevereiro de 2020;
S) Nunca o Apelado remeteu à Apelante via e-mail (meio de comunicação utilizado entre as partes), a guia das taxas de justiça para que a mesma procedesse ao seu pagamento, evitando o desfecho de indeferimento liminar que veio a ocorrer;
T) Ao Autor, ora apelado, cumpria-lhe apresentar as impugnações judiciais nos processos para os quais foi mandato, e bem assim, informar a Apelante do estado dos processos, o que não fez;
U) A Ré, ora Apelante, após diversas tentativas de contacto com o A., sem que obtivesse qualquer resposta, tinha a faculdade de recusar a sua prestação (pagamento do preço), até que a prestação fosse cumprida ou que lhe fosse enviado comprovativo da sua realização, o que fez;
V) Nestes termos, e, uma vez que o A. apenas fez prova de ter apresentado um único processo de entre todos os que foi mandatado, encontrando-se tudo documentalmente provado junto aos autos, deverão ser aditados os seguintes factos como provados:
a) “No dia 14 de Dezembro de 2019, nos termos do artigo 1.º al. c) do contrato deprestação de serviços jurídicos o representante legal da R. outorgou duas procurações forenses para que o A. procedesse à oposição fiscal referente aos processos n.º 3069201801263072; 3409201701300334; 3069201901023276; 3069201901047590; 306920190106961; 3069201901060970; 3069201901061232; 3069201901080059; 3069201901086880 e apensos; 3069201901105213 e apensos; 3069201901140817; 3069201901144898; 3069201901174037. “Cfr. Doc. n.º 1 junto pela A.
b) “O A., apenas apresentou uma oposição fiscal referente ao processo n.º 3069201801263072.”
W) A R., ora apelante, sem prejuízo de a oposição à execução ter sido liminarmente indeferida por falta do cumprimento do dever de comunicação do Apelado perante a Apelante, entende que poderá ser reconhecido ao Apelado o direito a ser ressarcido pelo seu trabalho referente ao processo apresentado, assistindo à Apelante o direito à redução do preço através de um juízo de equidade nos termos do artigo 566.º n.º 3 do código civil, redução do preço essa que se requer seja efetuada pelo Tribunal “ad quem”.
Da Inexigibilidade da Fatura A20/-000071 no montante de 2.706,00€ (dois mil setecentos e seis euros), referente aos meses após a resolução do contrato por parte do Autor, ora Apelado, em virtude da nulidade da cláusula 4.º al. b) que serviu fundamento contratual para a sua emissão:
X) No dia 10 de Dezembro de 2020, veio o A., através de comunicação escrita resolver
o contrato com efeitos a partir do dia 31/12/2020.
Y) Nesse seguimento, emitiu a fatura A20/-000071 no montante de 2.706,00€ (dois mil setecentos e seis euros), com referência aos meses de Janeiro a Novembro de 2021, com
base na cláusula 4.º al. b) do contrato de prestação de serviços: “Se o primeiro ou segundo outorgante pretender resolver o contrato ou se verificar o seu incumprimento, o segundo outorgante fica vinculado ao pagamento da totalidade das avenças mensais com IVA ainda em falta, até ao final do prazo do presente contrato.
Z) Sucede que, conforme já sobejamente alegado, a cláusula com que o Apelado se baseou para emitir a fatura A20/-000071 e peticionar o valor exorbitante de 2.706,00€ (dois mil setecentos e seis euros), é abusiva (por atentatória do vetor da boa-fé), proibida e nula, porquanto a referida cláusula introduz um significativo desequilíbrio contratual entre as partes, obrigando sempre o segundo outorgante, ora Apelante, a pagar todas as prestações até ao final do contrato seja por que motivo for, e independentemente de quem resolva o contrato.
AA) Não esquecer que este contrato foi integralmente elaborado pelo Apelado, que é advogado, sendo que o legal representante não tinha e não tem qualquer conhecimento jurídico.
BB) O Apelado tinha perfeita consciência que a cláusula que elaborou era abusiva e nula,
mas ainda assim não coibiu de a fazer constar do contrato, e bem assim, de se servir dela para emitir uma fatura num valor astronómico, sem que para tal, tivesse prestado qualquer serviço jurídico.
CC) A nulidade da cláusula contratual, por atentatória do vetor da boa-fé, pode e deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, a qual pode ser declarada a todo o tempo.
DD) A declaração de nulidade da referida cláusula, importa a destruição de todos os efeitos que a mesma deu origem, mormente a emissão da fatura A20/-000071, tornando inexigível o pagamento da quantia ali peticionada no montante de 2.706,00€ (dois mil setecentos e seis euros).
EE) Pelo que se requer, seja declarada nula a cláusula n.º 4 do contrato de prestação de serviços com todas as legais consequências, mormente a absolvição da R. no pagamento da quantia de 2.706,00€ (dois mil setecentos e seis euros), concernente à fatura A20/-000071, a qual foi emitida com base na referida cláusula n n.º 4 al. b).
FF) Por fim, apenas por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá, que o A. não cumpriu o prazo de 30 dias de aviso prévio previsto para a resolução do contrato na al. a) da cláusula n.º 4, uma vez que comunicou apenas no dia 10 de Dezembro de 2020 que iria cessar as suas funções a partir do dia 31 de Dezembro de 2020, isto é, apenas com 21 dias de antecedência.
GG) A Inobservância por parte do Apelado do prazo estipulado de 30 dias concernente à resolução do contrato de prestação de serviços, traduz-se na obrigação do mesmo em indemnizar a R., o que resulta da aplicação do disposto no artigo 1172º al. d) do Código Civil, no entanto, para além de não ter indemnizado a R., ainda exigiu 2.706,00€ com base numa cláusula nula.
HH) Face ao incumprimento do prazo contratualmente definido, obsta à regular resolução do contrato por parte do A., o que se traduz na inexigibilidade da fatura A20/-000071, a qual foi emitida com base no pressuposto da resolução da relação contratual levada a cabo pelo A.
II) A emissão da fatura A20/-000071, pressupõe que existisse uma resolução do contrato válida, o que não se verificou.
JJ) Assim, também por este motivo, a R., ora Apelante, deverá ser absolvida da condenação do pagamento da fatura A20/-000071, no montante de 2.706,00€ (dois
mil setecentos e seis euros), o que se requer, com todas as legais consequências.
KK) Nestes termos, e uma vez que estamos perante prova documental, deverá ser aditada à matéria de facto como provada os seguintes pontos:
“As partes poderiam resolver o contrato, com 30 dias de antecedência.”
“O A. resolveu o contrato no dia 10 de Dezembro com efeitos a partir do dia 31 de Dezembro de 2020, sendo por isso a referida resolução do contrato ilícita, por violação do prazo de pré-aviso estabelecido no contrato.”
Da Condenação ilegal do pagamento de juros à Autora sobre o montante de IVA
LL) Por fim, no que concerne à condenação a título de juros moratórios, sempre se dirá que a R. foi incorretamente condenada, uma vez que, no que concerne aos montantes peticionados nas faturas juntas aos autos, o valor referente ao IVA nunca foi entregue ao Estado pelo A., não sendo, por isso devido qualquer valor a título de juros moratórios sobre um montante que não foi despendido pela A.;
MM) Assim, a ser condenada a R. no pagamento de juros à A., os mesmos deverão ser contabilizados apenas sobre o montante da fatura sem IVA, pois caso contrário, estaria o ora A. a enriquecer à custa de um imposto que é devido ao Estado, e não ao prestador de serviços, funcionando este último como um mero intermediário, que se obriga à entrega do referido valor, assim que o mesmo lhe seja entregue.
A sentença recorrida enferma, assim, de vários erros de julgamento devendo o presente recurso ser julgado procedente, sendo a sentença recorrida anulada e substituída por outra que, pelas razões supra expostas, ou por quaisquer razões diferentes que o Tribunal “ad quem” entenda serem aplicáveis, em abono da tese defendida pela apelante, decida pela:
a) Absolvição da R. do pagamento integral das faturas referentes aos meses de Novembro de 2019 até Dezembro de 2020, devendo o montante do preço ser reduzido com base num juízo de equidade.
b) Declare nula a al. b) da cláusula 4.º do contrato de prestação de serviços, seguindo-se a Absolvição da R. do pagamento da fatura A20/-000071 no montante de 2.706,00€ (dois mil setecentos e seis euros).
c) Não procedendo o pedido anterior, declare ilícita a resolução do contrato de prestação de serviços, efetuada pela A. na comunicação remetida a R. em 10 de Dezembro de 2020, por desrespeito do prazo de pré-aviso de 30 dias acordado, seguindo-se a absolvição da R. do pagamento da fatura A20/- 000071 no montante de 2.706,00€ (dois mil setecentos e seis euros).
d) Absolva a R. do pagamento de juros moratórios sobre os montante de IVA.

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6- Não foram apresentadas contra-alegações.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.

1-Objecto do Recurso.

É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (art.ºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, caso as haja, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- A Impugnação da Matéria de Facto;
b)- A revogação da sentença.

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2- Matéria de Facto.

A 1ª instância decidiu a seguinte matéria de facto:

Factos Assentes
A) O Requerente exerce a atividade de Advogado, enquanto profissional Liberal, fazendo-o de modo contínuo e lucrativo, na comarca de Braga.
B) No âmbito da sua atividade, celebrou um contrato de prestação de serviços jurídicos com a requerida.
C) O Requerente enviou à requerida a respetiva faturas e nota de Honorários e despesas por conta do cliente sem, contudo, obter resposta por parte da mesma,
*
Factos Provados
1) O contrato referido em B) foi celebrado por escrito, em 1 de novembro de 2019, com a denominação de “Contrato de Prestação de Serviços Jurídicos”, junto como documento n.º 1 da resposta.
2) Nos termos da sua cláusula 1ª, o objeto do contrato é:
Patrocínio da cobrança de dívidas quer judicialmente, quer extrajudicialmente, Patrocínio em qualquer tipo de ação cível, ação crime ou ação administrativa ou fiscal;
Para os efeitos do estabelecido no parágrafo antecedente, a segunda outorgante habilitará os primeiros outorgantes com procuração bastante, incluindo a faculdade de substabelecer em advogado do seu escritório,
Consultadoria e apoio jurídico que se traduz, na prestação de serviços quer no escritório dos Primeiro ou Segundo outorgante, quer por telefone ou outro meio de comunicação regular,
3) De acordo com as suas cláusulas terceira e quarta, o contrato entrou em vigor no dia 1 de novembro de 2019, com validade até ao dia trinta de novembro de dois mil vinte um, podendo ser revisto quinze dias antes do fim do prazo,
4) Autor e Ré acordaram seria atribuída uma avença mensal no valor de 200,00Euros (duzentos euros mensais), correspondente a 12 meses no valor de 2.400,00 Euros (dois mil e quatrocentos euros) anuais; ao valor da avença mensal acresce IVA à taxa legal em vigor de 23%, sendo que, a avença será paga mensalmente com IVA incluído, a ser transferida para o IBAN do primeiro outorgante, IBAN: PT50 0033 0000 4526 8539 7700 5.
5) Mais acordaram que o referido contrato poderia ser resolvido pelas partes com comunicação 30 dias anterior à resolução pretendida do contrato e que, o primeiro ou segundo outorgante pretender resolver o contrato ou se verificar o seu incumprimento, o segundo outorgante fica vinculado ao pagamento da totalidade das avenças mensais com IVA ainda em falta, até ao final do prazo do presente contrato,
5-A- a)- “No dia 14 de Dezembro de 2019, nos termos do artigo 1.º al. c) do contrato de prestação de serviços jurídicos o representante legal da R. outorgou duas procurações forenses para que o A. procedesse à oposição fiscal referente aos processos n.º 3069201801263072; 3409201701300334; 3069201901023276; 3069201901047590; 306920190106961; 3069201901060970; 306920190106123; 3069201901080059; 3069201901086880 e apensos; 3069201901105213 e apensos; 3069201901140817; 3069201901144898; 3069201901174037” * (aditado em consequência da impugnação da matéria de facto).
6) No processo de execução fiscal n.º … que correu termos no Tribunal Tributário de Lisboa (Unidade Orgânica 1), tendo como exequente a Autoridade Tributária e Aduaneira e como executada a ora requerida, foi apresentado articulado de oposição à execução subscrito pelo ora requerente, com comprovativo da apresentação de requerimento de apoio judiciário. Foi proferido despacho de indeferimento liminar do qual consta que “Por ofício datado de 06.02.2020, veio o Instituto da Segurança Social, I.P. informar que o pedido de apoio judiciário formulado pela Oponente para dispensa do pagamento de taxa de justiça foi indeferido. Notificada da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário e para pagar a taxa de justiça no prazo de 10 dias, não o veio fazer como nada disse. (…) No caso dos autos, não tendo a petição inicial sido ainda admitida, não é de ordenar o seu desentranhamento, tendo, antes, que se determinar o seu indeferimento liminar, por verificação da exceção dilatória inominada da falta de pagamento da taxa de justiça, a qual impede o conhecimento do mérito da presente oposição.”.
7) Consta da cláusula 6 do contrato de prestação de serviços que são da responsabilidade da segunda outorgante todas as despesas realizadas pelos primeiros outorgantes no desempenho das respetivas atividades, nomeadamente despesas postais, despesas judiciais, impressos, taxas de justiça, certidões, e despesas com Solicitadoria, despesas de deslocação e estadia, assim como outras despesas inerentes aos serviços contratados
8) Em 11 de fevereiro de 2020 o requerente enviou email à requerida, do qual consta: “Quanto ao processo que me foram enviados são os seguintes: (…) Solicito que verifique se porventura foi liquidado algum valor referente a estes processos. Veja diariamente o email CTT se por acaso receber algo das finanças”.
9) Em 2 de março de 2020 foi enviado pelo requerente à requerida uma fatura referente ao mês de novembro de 2019, a fatura n.º A20/04.
10) Em 3 de abril de 2020 foi enviado novo correio eletrónico para a requerida para pagamento de fatura respeitantes aos meses de novembro e dezembro de 2019, janeiro e fevereiro 2020, respetivamente, as Faturas números A20/04, A20/09, A20/10, A20/15.
11) Em 20 de abril de 2020 o requerente remeteu por carta registada para a sede da requerida a fatura respeitante a março de 2020, n.º A20/16,
12) Em 31 de agosto de 2020, o requerente remeteu à requerida por correio eletrónico, as faturas respeitantes a abril, maio, junho, julho e agosto de 2020 – faturas A20/47, A20/48, A20/49ª, A20/50 e A 20/51,
13) No dia 10 de dezembro de 2020, o requerente remeteu à requerida por correio eletrónico a fatura para pagamento respeitante a setembro, outubro, novembro e dezembro de 2020, - faturas A20/62 - mais referindo na sua comunicação, que apesar de diversas vezes enviadas as faturas vencidas, ainda nesta data não tinha sido liquidada qualquer fatura, e que perante tal incumprimento, cessaria as suas funções em 31/12/2020,
14) Em 10 de fevereiro de 2021, o requerente remeteu missiva à requerida, para liquidar as faturas vencidas e não pagas desde a celebração do contrato de avença, as faturas n.º A20/004; 009; 010; 015; 016; 047; 048; 049; 050; 051;062; 071.
*
Factos Não Provados
a) Que desde o mês de março de 2020 que a Requerida tentou contactar diversas vezes, via telefone e e-mail, o Requerente para que este lhe prestasse informações acerca dos processos de execução fiscal que contra aquele corriam, nunca tendo sido possível um contacto com este.
b) Que a requerida apenas tenha conseguido um contacto telefónico em abril de 2020, não tendo o requerido prestado quaisquer informações sobre os processos que corriam contra aquela.
c) Que em junho de 2020, a Requerida tenha sido informada pela Autoridade Tributária que o requerente não havia dado entrada de qualquer impugnação nos processos de execução fiscal que sobre aquela pendiam.
d) Que a requerida tenha pago ao requerente, em fevereiro de 2020, a quantia de 1230,00€ por conta dos serviços prestados no âmbito do contrato de prestação de serviços.

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3- As Questões Enunciadas.

3.1- A Impugnação da Matéria de Facto.

A recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo, em síntese, que seja aditada a seguinte factualidade:
a) “No dia 14 de Dezembro de 2019, nos termos do artigo 1.º al. c) do contrato de prestação de serviços jurídicos o representante legal da R. outorgou duas procurações forenses para que o A. procedesse à oposição fiscal referente aos processos n.º 3069201801263072; 3409201701300334; 3069201901023276; 3069201901047590; 306920190106961; 3069201901060970; 306920190106123; 3069201901080059; 3069201901086880 e apensos; 3069201901105213 e apensos; 3069201901140817; 3069201901144898; 3069201901174037.”
b) “O A., apenas apresentou uma oposição fiscal referente ao processo nº 3069201801263072.
Fundamenta esta sua pretensão de aditamento destes dois pontos de facto, dizendo que o ponto a) resulta do teor do documento 1 junto pela autora e, que a factualidade do ponto b) decorre da certidão junta do processo de execução fiscal junta também pelo autor.
Requer ainda o aditamento de mais outros dois pontos de facto:
- “As partes poderiam resolver o contrato, com 30 dias de antecedência.”

- “O A. resolveu o contrato no dia 10 de Dezembro com efeitos a partir do dia 31 de Dezembro de 2020, sendo por isso a referida resolução do contrato ilícita, por
violação do prazo de pré-aviso estabelecido no contrato.”
Fundamenta este pretendido aditamento dos dois pontos de facto, quer no teor da cláusula do contrato quer no teor da carta remetida pelo autor à ré.
Vejamos se há fundamento para os pretendidos aditamentos à matéria de facto.
Pois bem, começando pelos dois últimos mencionados factos.
Recordemo-los:
 “As partes poderiam resolver o contrato, com 30 dias de antecedência.”

O A. resolveu o contrato no dia 10 de Dezembro com efeitos a partir do dia 31 de Dezembro de 2020, sendo por isso a referida resolução do contrato ilícita, por violação do prazo de pré-aviso estabelecido no contrato.”
Ora, aquele primeiro facto já se mostra dado como provado no ponto 5 dos factos provados que tem a seguinte redacção:
5-Mais acordaram que o referido contrato poderia ser resolvido pelas partes com comunicação 30 dias anterior à resolução pretendida do contrato e que, o primeiro ou segundo outorgante pretender resolver o contrato ou se verificar o seu incumprimento, o segundo outorgante fica vinculado ao pagamento da totalidade das avenças mensais com IVA ainda em falta, até ao final do prazo do presente contrato,
Por conseguinte, torna-se desnecessário o pretendido aditamento daquele ponto de facto.

Quanto ao segundo.
Uma primeira nota. O trecho do facto que a ré pretende aditar “…sendo por isso a referida resolução do contrato ilícita, por violação do prazo de pré-aviso estabelecido no contrato”, constitui uma conclusão jurídica e, por conseguinte, não pode figurar no elenco dos factos provados ou não provados. Saber se a resolução é ilícita e se violou o prazo contratualmente estabelecido decorre de um raciocínio de subsunção da declaração de resolução ao regime contratual (e legal).
Uma segunda nota. Quanto à primeira parte do trecho do facto pretendido aditar – “O A. resolveu o contrato no dia 10 de Dezembro com efeitos a partir do dia 31 de Dezembro de 2020,…” – importa que sejam feitas as seguintes considerações:
- Primeira: a data da comunicação mostra-se dada como provada no ponto 13 dos factos provados;
- Segunda: a afirmação “O A. resolveu o contrato…” constitui, igualmente, uma conclusão jurídica e, daí, não poder ser aditada à matéria de facto.
De resto, o facto relevante – a comunicação, sua data e conteúdo – mostram-se provados no ponto 13 dos factos provados
Sem necessidade de outros considerandos, conclui-se não haver fundamento para aditar o referido segundo grupo de factos constantes da alínea KK das conclusões.

Quanto ao primeiro grupo de factos que a apelante pretende ver aditados.
Recordemo-los:
a)- “No dia 14 de Dezembro de 2019, nos termos do artigo 1.º al. c) do contrato de prestação de serviços jurídicos o representante legal da R. outorgou duas procurações forenses para que o A. procedesse à oposição fiscal referente aos processos n.º 3069201801263072; 3409201701300334; 3069201901023276; 3069201901047590; 306920190106961; 3069201901060970; 306920190106123; 3069201901080059; 3069201901086880 e apensos;3069201901105213 e apensos; 3069201901140817; 3069201901144898; 3069201901174037.”
b)-“O A., apenas apresentou uma oposição fiscal referente ao processo nº 3069201801263072.
Começando pelo ponto indicado na alínea b).
Essa factualidade já está incluída no ponto 6 dos factos provados que se baseou no teor da certidão da execução fiscal junta aos autos e que tem a seguinte redação:
No processo de execução fiscal n.º 7/20.1BELRS que correu termos no Tribunal Tributário de Lisboa (Unidade Orgânica 1), tendo como exequente a Autoridade Tributária e Aduaneira e como executada a ora requerida, foi apresentado articulado de oposição à execução subscrito pelo ora requerente, com comprovativo da apresentação de requerimento de apoio judiciário. Foi proferido despacho de indeferimento liminar do qual consta que “Por ofício datado de 06.02.2020, veio o Instituto da Segurança Social, I.P. informar que o pedido de apoio judiciário formulado pela Oponente para dispensa do pagamento de taxa de justiça foi indeferido. Notificada da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário e par pagar a taxa de justiça no prazo de 10 dias, não veio fazer como nada disse. (…) No caso dos autos, não tendo a petição inicial sido ainda admitida, não é de ordenar o seu desentranhamento, tendo, antes, que se determinar o seu indeferimento liminar, por verificação da exceção dilatória inominada da falta de pagamento da taxa de justiça, a qual impede o conhecimento do mérito da presente oposição.”.
Saber se essa foi “apenas” a única oposição que o autor apresentou aos processos de execução fiscal contra a apelante, salvo o devido respeito a ré não fez prova desse facto. Invocou-o no ponto 7 da oposição (“7. Em junho de 2020, foi a Requerida informada pela Autoridade Tributária que nenhum dos processos de execução fiscal que sobre ela pendiam teriam sido impugnados.”) e juntou o documento nº 1. Porém, desse documento nº 1 não decorre a demonstração de que o autor não deduziu oposição aos processos de execução fiscal. De resto, o autor respondeu a essa questão, nos pontos 5, 6 e 7 do articulado que apresentou a 22/11/2021 e impugnou que não tenha deduzidos oposição aos processos de execução fiscal instaurado contra a ré/apelante.
A esta luz, somos a concluir que não existe prova da pretendida “única” oposição aos processos de execução fiscal. Por conseguinte, não se adita o facto indicado acima na alínea b).

Quanto ao aditamento do facto indicado como alínea a).
Embora esse facto não tenha sido alegado por qualquer das partes, nem no requerimento de injunção, nem na oposição nem no articulado de resposta apresentado posteriormente pelo autor, a verdade é que resulta do teor do documento 2, respectivas fls 5 e fls 10, que a ré outorgou duas procurações forenses atribuindo poderes especiais ao autor para a representar nos referidos processos de execução fiscal.
Assim, entende-se dever considerar provado e, consequentemente aditar, o facto referido em a), com a redacção proposta, que passará a figurar como ponto 5-A:
“5-A- a)- “No dia 14 de Dezembro de 2019, nos termos do artigo 1.º al. c) do contrato de prestação de serviços jurídicos o representante legal da R. outorgou duas procurações forenses para que o A. procedesse à oposição fiscal referente aos processos n.º 3069201801263072; 3409201701300334; 3069201901023276; 3069201901047590; 306920190106961; 3069201901060970; 306920190106123; 3069201901080059; 3069201901086880 e apensos; 3069201901105213 e apensos; 3069201901140817; 3069201901144898; 3069201901174037.”
Em suma, a impugnação da matéria de facto procede parcialmente.

***
3.2- A Revogação da Sentença.

A ré/apelante pretende a revogação da sentença, argumentando, em síntese:
i)- O valor de 3.198€, pelo período correspondente a 01/11/219 e 31/12/2020 não é devido, porque dos processos de execução fiscal o autor apenas impugnou um e, mesmo deste, a ré nunca teve conhecimento e por isso não pagou a respectiva taxa de justiça o que levou ao indeferimento liminar da oposição à execução fiscal. Que nos termos do artº 424º do CC (trata-se de lapso de escrita, percebendo-se que a ré pretende referir-se ao art.º 428º do CC, relativo à excepção de não cumprimento) face ao não cumprimento pelo autor, tem direito a recusar efetuar a sua prestação.
ii)- A inexigibilidade da factura de 2 706€ referente aos meses entre a cessação do contrato, Dezembro de 2020, e o termo contratual de 30/11/2021; porque, entende,
que a cláusula 4ª, al. b) do contrato é nula, por manifestamente abusiva e contrária ao princípio da boa fé, por obrigar a ré a pagar todas as mensalidades até ao final do contrato, devendo, em consequência, ser absolvida do pagamento dessa quantia; que essa nulidade é de conhecimento oficioso.
iii)- Inobservância do prazo de 30 dias para resolução do contrato, o que implica a inexigibilidade da factura de 2.706€;
iv) – Condenação ilegal do pagamento de IVA. Porque o autor nunca entregou ao Estado o valor referente ao IVA.

Vejamos cada um destes fundamentos.

Previamente, importa qualificar o contrato celebrado entre o autor e a ré.
As partes denominaram-no como “Contrato de Prestação de Serviços Jurídicos” e estabeleceram o respectivo objecto na cláusula 1ª como:
“Patrocínio da cobrança de dívidas quer judicialmente, quer extrajudicialmente, Patrocínio em qualquer tipo de ação cível, ação crime ou ação administrativa ou fiscal;
Para os efeitos do estabelecido no parágrafo antecedente, a segunda outorgante habilitará os primeiros outorgantes com procuração bastante, incluindo a faculdade de substabelecer em advogado do seu escritório,
Consultadoria e apoio jurídico que se traduz, na prestação de serviços quer no escritório dos Primeiro ou Segundo outorgante, quer por telefone ou outro meio de comunicação regular, …
A 1º instância classificou-o como “…mandato forense previsto no art.º 67º do EOA (Lei 145/2015, de 09/09)”.
A Lei 49/2004, de 24/08, define o alcance dos actos próprios dos advogados e solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita e, no seu art.º 1º elenca-os:
“(…)
5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores:
a) O exercício do mandato forense;
b) A consulta jurídica.
6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:
a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;
b) A negociação tendente à cobrança de créditos;
c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários.
7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.
8 - Para os efeitos do disposto no número anterior, não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas.
9 - São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
10 - Nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por defensor, esta função é obrigatoriamente exercida por advogado, nos termos da lei.
No caso, o acordo de prestação de serviços não se restringe à prática de actos forenses, rectius, junto dos tribunais, visto que previa, também, a “cobrança extrajudicial de dívidas”, “Consultoria e apoio jurídico quer no escritório, quer por telefone ou outro meio de comunicação.”
Além disso, as partes estipularam que uma duração do contrato por 24 meses: início a 01/11/2019 e termo a 31/11/2021, sem prejuízo de possibilidade de prorrogação e fixaram ainda uma remuneração mensal de 200€ acrescida de IVA.
Pois bem, em face destes elementos do contrato, afigura-se-nos tratar-se de contrato de avença de serviços de advocacia.
Embora o contrato de avença não se encontre tipificado no âmbito do direito civil, é abordado no ordenamento jurídico da função pública em matéria de política de gestão dos seus recursos humanos, concretamente no art.º 17º n.ºs 3 e 4, que estabelece:
“(…)
3 - O contrato de avença caracteriza-se por ter como objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal, apenas podendo os serviços recorrer a tal tipo de contrato quando no próprio serviço não existam funcionários ou agentes com as qualificações adequadas ao exercício das funções objecto de avença.
4 - Os serviços prestados em regime de contrato de avença serão objecto de remuneração certa mensal.
(…)
Como foi mencionado no acórdão do STJ, de 30/10/2012 (Martins de Sousa) “A par das três modalidades típicas de prestação de serviços (mandato, depósito e empreitada), importa acrescentar o contrato de prestação de serviços atípico, não regulado especialmente, que abrange uma enorme variedade de vínculos jurídicos, designadamente vários contratos de prestação de serviços desempenhados por profissionais liberais, incluindo advogados. Nestes casos, aplica-se ao contrato de prestação de serviços atípico o regime do mandato, como resulta do disposto no art.º 1156.º do CC.
Relativamente ao contrato de prestação de serviços remunerado, por tempo certo, celebrado entre um advogado e uma sociedade, traduz um contrato de avença. Esse contrato não se mostra directamente contemplado na legislação civil. É, por isso, um contrato atípico. Destarte, o seu regime legal ter-se-á de procurar, em nossa opinião, relativamente àqueles aspectos que as partes não regularam especificamente e não estiver abrangido pelas normas civilísticas que regem o contrato de prestação de serviços, em especial o mandato, na demais legislação existente no ordenamento jurídico português, designadamente no regime do contrato de avença, previsto na legislação especial que controla o regime de vinculação de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, e- vi dos artºs 10.º e 11.º, este a contrario, do CC.”
Portanto, o contrato de avença é aquele que tem por objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal, com remuneração certa mensal. E destinando-se, no caso dos autos, à prática de actos próprios de advogado, trata-se de contrato de avença de serviços de advogado.

Dito isto, vejamos cada uma das questões suscitadas pela ré/apelante.

Assim:
3.2.1- O valor de 3.198€, pelo período correspondente a 01/11/219 e 31/12/2020 não é devido.
Como vimos, a ré defende que aquele valor não é devido porque, segundo ela, dos (13) processos de execução fiscal o autor apenas impugnou um e, mesmo deste, a ré nunca teve conhecimento e por isso não pagou a respectiva taxa de justiça o que levou ao indeferimento liminar da oposição à execução fiscal. Ou seja, segundo a ré, o autor não cumpriu o contrato e, por isso, nos termos do art.º 428º do CC, tem direito a recusar a sua prestação.
Será assim?
Este fundamento, de a ré para não ter de cumprir a sua prestação de pagamento das avenças mensais, desde o início do contrato até ao final do mês em que o autor lhe comunicou a “resolução”, baseiam-se, essencialmente, na pretendida alteração da matéria de facto em termos de ser aditado que b) “O A., apenas apresentou uma oposição fiscal referente ao processo nº 3069201801263072.
Ora, como acima tivemos oportunidade de verificar, não existe fundamento para aditar esse facto, do qual a ré pretendia retirar o incumprimento do contrato pelo autor. Sem a prova desse facto, fica a faltar o alicerce da pretensão de recusa de cumprimento baseada na excepção de não cumprimento do contrato. Ou seja, para que a excepção de não cumprimento pudesse proceder, isto é, para que a ré tivesse fundamento para recusar a sua prestação, teria de demonstrar, desde logo, que a contraparte não cumpriu a sua prestação. Porém a ré não demonstrou esse incumprimento.
A esta vista, e sem necessidade de outras considerações, resta concluir que esta pretensão de absolvição do pedido de pagamento da (parte) da quantia de 3.198€, pelo período correspondente a 01/11/219 e 31/12/2020, não pode proceder.

3.2.2- Condenação ilegal no pagamento de IVA.
A ré/apelante invoca esta questão, argumentando, em síntese, que por o autor não ter entregado ao Estado o valor referente ao IVA, a ré não tem de o suportar.
Ora bem, esta questão jamais foi invoca pela ré na 1ª instância e, além de pressupor que o autor não entregou ao Estado o valor referente ao IVA (facto que não foi alegado nem provado), a verdade é que “…a liquidação do IVA está sujeita às regras do CIVA e obedece a normas específicas quanto a incidência objectiva e subjectiva e a taxas aplicáveis. Dessas normas resulta desde logo que o devedor tributário é, no caso, o prestador de serviços – artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do CIVA. A relação tributária estabelece-se entre o obrigado (no caso a entidade prestadora dos serviços) e o Estado, do que resulta que as partes nesta acção são inteiramente alheias, nessa sua qualidade, à relação tributária.”  (Cf. TRL, de 09/06/2022, Ana de Azeredo Coelho). Ou, conforme foi decidido pela Relação de Évora (ac. TRE, de 12/10/2006, António Almeida Simões) “II – Tendo sido enviadas à Ré facturas onde foi incluído IVA, não pode isentar-se a Ré do seu pagamento sem que esteja demonstrado que a Administração Tributária isentou do pagamento de IVA os serviços prestados e facturados”. Veja-se ainda o acórdão do STJ (de 12/10/2017, António Joaquim Piçarra) “VI - Não se provando que o preço da empreitada era sem IVA – caso em que o imposto teria de ser suportado pela autora –, recai sobre os réus o seu pagamento, assistindo àquela o direito de o cobrar sobre a totalidade do preço já liquidado da empreitada.
No caso dos autos, o contrato previa que a cada avença mensal acrescesse IVA à taxa de 23%.
A ré, além de não ter demonstrado a “não entrega” ao Estado do IVA por banda do autor, também não demonstrou (nem sequer alegou) a isenção de IVA. Portanto, a esta luz, conclui-se que não pode proceder a pretendida isenção do pagamento do IVA.

3.2.3- Inobservância do prazo de 30 dias para resolução do contrato, o que implica a inexigibilidade da factura de 2.706€.
Nas suas alegações, a ré/apelante suscita esta questão.
Porém, da análise da oposição e dos demais articulados produzidos, bem como da sentença sob recurso, resulta que esta questão jamais foi alegada, abordada ou decidida na 1ª instância.
Trata-se, pois, de uma questão nova que apenas em sede de recurso foi suscitada.
Ora, como é sabido, em Portugal, os recursos ordinários são recursos de revisão ou de reponderação da decisão recorrida (Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, pág. 81) e visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 395). Ou seja, os recursos interpostos para a Relação visam normalmente reapreciar o pedido e as questões formulados na 1ª instância. O recurso ordinário consubstancia-se, pois, num pedido de reapreciação de uma decisão, ainda não transitada em julgado, dirigido ao tribunal hierarquicamente superior e com fundamento na ilegalidade da decisão, visando revogá-la ou substituí-la por outra mais favorável ao recorrente. Desta forma, os recursos ordinários incidem sobre ou têm por objecto o juízo ou julgamento realizado pelo tribunal recorrido
Portanto, nos recursos de reponderação, sistema que vigora em Portugal (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em processo Civil, 8ª edição, pág. 147) não é concedida às partes a possibilidade de alegação de questões novas (ius novorum). O objecto do recurso é constituído por um pedido que tem por objecto a decisão recorrida e visa a sua revogação total ou parcial. Assim sendo, a natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma importante limitação ao seu objecto decorrente do factor de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Processo Civil, 3ª edição, pág. 97).
Como se referiu, a questão da inobservância do prazo de 30 dias para comunicação da “resolução” do contrato, não foi invocada, analisada, apreciada nem decidida na 1ª instância e, por isso, enquanto questão nova está foram da possibilidade de apreciação por este tribunal de recurso.
Assim, sem outros considerandos, não se aborda a questão da inobservância do prazo de 30 dias para comunicação da cessação do contrato.

3.2.4- A inexigibilidade da factura de 2.706€ referente aos meses entre a cessação do contrato, Dezembro de 2020 e o termo contratual de 30/11/2021.
A ré/apelante entende não ser devida a quantia de 2.706€, referente às avenças que se venceriam até final do contrato porque, segundo entende, a cláusula 4ª, al. b) do contrato é nula, por manifestamente abusiva e contrária ao princípio da boa fé, por obrigar a ré a pagar todas as mensalidades até ao final do contrato, devendo, em consequência, ser absolvida do pagamento dessa quantia; que essa nulidade é de conhecimento oficioso.
Vejamos então se será assim.
Em primeiro lugar, referimos acima que o contrato em causa não se encontra tipificado no âmbito do direito civil.
Qual a disciplina jurídica aplicável a um contrato atípico?
Seguindo o entendimento de Vaz Serra (Objecto das Obrigações, a Prestação – suas Espécies, Conteúdo e Requisitos, BMJ 74, 80) sobre a hierarquia das fontes nos contratos atípicos, devem ser regidos “…sucessivamente, pelas disposições das partes, pelas disposições gerais análogas relativas a negócios afins, pelas disposições gerais das obrigações e pelas que o juiz criar de acordo com a boa fé e demais regras que o autorizam a complementar o direito.
Helena Brito (Contrato de Concessão Comercial, págs. 218 e segs) propõe, para os contratos socialmente típicos mas legalmente atípicos, a seguinte hierarquia de fontesCláusulas estipuladas pelas partes desde que lícitas, a disciplina própria do tipo social, normas e princípios estabelecidas para categorias contratuais mais amplas que o tipo, normas e princípios gerais estabelecidos para os contratos, negócios jurídicos e as obrigações, normas derivadas da boa fé contratual, vontade presumível dos contraentes.”
Portanto, à luz destes ensinamentos há que aplicar ao caso dos autos, as estipulações contratuais, desde que lícitas e as regras dos contratos análogos, as normas e princípios dos direitos dos contratos e das obrigações e as normas derivadas da boa fé.
No caso dos autos, o contrato com maior proximidade com o contrato em causa é o contrato de mandato, previsto nos art.ºs 1157º a 1184º.
Vejamos então
Ora bem, antes de mais, vejamos o que foi estipulado no contrato acerca da cessação do contrato de avença. Na cláusula 4ª, com epigrafe “Resolução”, estabeleceram as partes:
a) -O presente contrato pode ser resolvido pelas partes com comunicação 30 dias anteriores á resolução pretendida do contrato;
b)- Se o primeiro ou segundo outorgante pretender resolver o contrato ou se verificar o seu incumprimento, o segundo outorgante fica vinculado ao pagamento da totalidade das avenças mensais com IVA ainda em falta, até final do prazo do presente contrato.”
Pois bem, a linguagem utilizada é algo equívoca sobre o modo de cessação do contrato: apenas refere resolução e incumprimento.
Há que tentar explicitar a questão, lançando mão das regras do contrato de mandato e dos princípios gerais dos contratos.
Assim, a hipótese geral típica da cessação do contrato sinalagmático por iniciativa unilateral e vinculada é a resolução do contrato por incumprimento, cujo assento legal está previsto no art.º 801º nº 2 do CC. Segundo esta norma, o credor cujo direito derive de contrato bilateral pode, independentemente do direito à indemnização, resolver o contrato quando a prestação se tornar impossível por causa imputável ao devedor. Esta impossibilidade tanto abrange as situações de impossibilidade em sentido estrito, como as situações em que a prestação, sendo ainda possível, deixou de interessar ao credor. Abrange ainda as situações em que o devedor falta culposamente ao cumprimento da obrigação, isto é, quando haja não cumprimento directo, independentemente de esse incumprimento resultar da conversão da mora em incumprimento definitivo, por virtude de qualquer das vias do art.º 808º nº 1 do CC. (Cf. Januário Gomes, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, pág. 58 e segs.)
No que concerne à cessação do mandato por resolução, o Código Civil não a prevê expressamente, tendo optado por incluir na subsecção da revogação as situações de resolução, conforme decorre do art.º 1170º nº 2.
A justa causa a que se refere o nº 2 do art.º 1170º do CC assume cariz e implicações diversas da justa causa de revogação no mandato puro e simples.
A atribuição ou o reconhecimento de um direito de revogação ad libitum do mandato não absorve o meio de tutela constituído pela resolução, quando o revogante tenha justa causa. O importante não é, certamente, a utilização da fórmula resolução (ou rescisão) ou revogação: são expressões de direito, podendo sempre ser demonstrado que a manifestação corresponde a resolução ou vice-versa. (…) enquanto a resolução pode conferir a quem resolve direito a uma indemnização, na revogação o eventual titular de um direito a indemnização é a parte a quem é dirigida a declaração desvinculativa.(…) A dimensão da justa causa deve reconduzir-se ao critério geral da exigibilidade/inexigibilidade; assim, será justa causa qualquer facto situação ou circunstância em face das quais não seja exigível, segundo a boa fé, a continuação da vinculação do mandante à relação contratual. Também o mandatário pode ter justa causa para por termo à relação de mandato; simplesmente, podendo o mandatário desistir ad libitum da gestão, a sua desvinculação poderá seguir os termos e ter os efeitos ou da revogação ou da resolução.” (Cf. Januário Gomes, Contrato de Mandato, 2ª reimpressão, 2012, pág. 103 3 seg.).
Por outro lado, importa ter presente que nos termos do art.º 100º nº 1, al. e) do Estatuto da Ordem dos Advogados, um dos deveres dos advogados para com o cliente consiste em “Não cessar, sem motivo justificado, o patrocínio das questões que lhe estão cometidas.”
No caso a comunicação enviada pelo autor, mandatário, à ré, mandante, foi:


Ora bem, esta invocação de falta de pagamento das avenças desde o início do contrato, que começou a 01/11/2019, até ao dia 10/12/2020, constitui a invocação de justa causa ou motivo justificado a que se refere o art.º 100º nº 1, al. e) do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Portanto, a esta luz, somos a entender que o contrato de avença de serviços jurídicos cessou por resolução estribada em justa causa/motivo justificado.

Mas aqui chegados, coloca-se a questão de saber quais os efeitos da resolução do contrato de avença por parte do mandatário.
A obrigação de indemnizar está prevista no art.º 1172º do CC relativamente à revogação do contrato de mandato, prevendo que a parte que revogar o mandato deve indemnizar a outra do prejuízo que esta sofrer, designadamente se assim tiver sido convencionado (artº 1172º al. a)); se tiver sido estipulada a irrevogabilidade (al. b)); se a revogação provier do mandante e versar sobre mandato oneroso (al. c)); se a revogação proceder do mandatário sem a antecedência conveniente (al. d)).
Portanto, não está prevista, directamente na disciplina do contrato de mandato civil, a indemnização ao mandatário que revoga o contrato ad libitum ou que resolve o contrato por justa causa/motivo justificado.
Como solucionar a questão?
Como acima referimos, nos contratos atípicos, mas socialmente típicos, no que concerne à hierarquia das fontes, há que atender às estipulações contratuais, desde que lícitas e as regras dos contratos análogos, as normas e princípios dos direitos dos contratos e das obrigações e as normas derivadas da boa fé.
No caso dos autos, como se referiu acima, ficou a constar na cláusula 4ª al. b) do contrato que: “Se o primeiro ou segundo outorgante pretender resolver o contrato ou se verificar o seu incumprimento, o segundo outorgante fica vinculado ao pagamento da totalidade das avenças mensais com IVA ainda em falta, até final do prazo do presente contrato.”
Isto é, as partes estipularam que em caso de “resolução” do contrato por qualquer das partes ou em caso de “incumprimento” pela mandante, o mandatário teria direito à totalidade das avenças mensais, com IVA, até final do contrato.
Ou seja, acordaram que o autor/mandatário receberia o valor correspondente à totalidade das prestações no caso de cessação do contrato, por “resolução” por qualquer das partes ou por incumprimento pela mandante.
Afigura-se-nos que a cláusula em causa consubstanciará uma cláusula penal.
Analisemos, sucintamente, alguns aspectos das cláusulas penais.
Em sentido amplo, a cláusula penal é a convenção pela qual o devedor promete ao credor uma prestação para o caso de não cumprir.
Trata-se de um instrumento destinado a fazer com que o devedor cumpra a obrigação principal (cláusula penal compulsória); ou um instrumento que visa, caso o devedor não cumpra a obrigação principal, fazer com que indemnize o credor (cláusula penal indemnizatória).
Em termos simples, nas cláusulas penais indemnizatórias, o acordo das partes tem por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de incumprimento. Nas compulsórias, o acordo das partes tem por finalidade compelir o devedor ao cumprimento ou a sancionar o devedor pelo não cumprimento.
Por sua vez, as cláusulas penais compulsórias dividem-se em duas categorias: (i) cláusulas penais exclusivamente compulsórias e, (ii) cláusulas penais em sentido estrito. (Cf. Nuno Pinto Oliveira, Princípios…, cit., pág. 923 e segs.).
A função compulsivo-sancionatória poderá actuar através da fixação de uma pena que acresce ao não cumprimento ou através da fixação de uma pena que substituiu o cumprimento.
Assim, quando o credor e o devedor acordam em fixar uma pena que acresce ao não cumprimento, diz-se que convencionaram uma cláusula exclusivamente compulsória; quando o credor e o devedor acordam em fixar uma pena que substitui o cumprimento, diz-se que convencionaram uma cláusula penal em sentido estrito. (A. e ob. cit., pág. 923).
Para aferir a espécie de cláusula penal acordada, deve o tribunal apurar o escopo ou finalidade prosseguida pelos contraentes com a estipulação da pena (Cf. Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pág. 640). E isso faz-se através da ponderação de uma série de indícios que poderão ajudar a apurar essa finalidade ou intenção das partes. Desde logo a designação por que as parte se lhe referem, embora sirva de indício, não é decisiva: expressões como “multa”, “pena”, “sanção”, ou “penalidade”, poderão indiciar um escopo sancionatório, ao passo que os termos “indemnização”, “liquidação dos danos”, poderão indiciar uma intenção meramente indemnizatória (Cf. Pinto Monteiro, Clausula Penal… cit., pág. 640 e nota 1500).
Além do teor das expressões utilizadas pelas partes, interessa sobretudo, apurar o conteúdo da cláusula, designadamente se estipularam uma soma devida mesmo na ausência de qualquer dano, bem como o tipo de obrigação que sanciona, os interesses em jogo e demais circunstâncias susceptíveis de esclarecer a sua finalidade (Cf. Pinto Monteiro, idem, pág. 640). E para esse apuramento, o tribunal terá de averiguar, à luz das circunstâncias vigentes no momento em que a cláusula foi estipulada, quais os danos que era razoável prever. (Pinto Monteiro, Cláusula Penal… cit., pág. 643).
No caso em apreço, repere-se, a cláusula em questão estipula “Se o primeiro ou segundo outorgante pretender resolver o contrato ou se verificar o seu incumprimento, o segundo outorgante fica vinculado ao pagamento da totalidade das avenças mensais com IVA ainda em falta, até final do prazo do presente contrato”.
Portanto, do que foi estipulado decorre que o credor e o devedor acordam em fixar uma pena que substitui o cumprimento, fixando o pagamento da totalidade das prestações mensais até final do contrato. Trata-se, pois de uma cláusula penal em sentido estrito.
 Mas, aqui chegados, outra questão se coloca: a ré/apelante entende que essa cláusula penal é nula, por violar os princípios da boa fé contratual e, em consequência, pretende a desaplicação dessa cláusula penal.
Vejamos então.
Reitere-se o que acima foi dito acerca da hierarquia das fontes nos contratos legalmente atípicos, mas socialmente típicos: há que atender às estipulações contratuais, desde que lícitas e as regras dos contratos análogos, as normas e princípios dos direitos dos contratos e das obrigações e as normas derivadas da boa fé.
Em princípio, a estipulação de uma cláusula penal é fruto da liberdade contratual e, justamente por assim ser, está, nessa medida, sujeita a limites. Um desses limites à liberdade contratual é, justamente, o que decorre do princípio geral da boa fé (Cf. Jorge Morais Carvalho, Os Limites à Liberdade Contratual, pág. 125 e segs.). Ou seja, na concretização da disciplina dos contratos atípicos, é de primordial importância a cláusula geral da boa fé. Essa cláusula geral da boa fé tem uma componente ético-jurídica e outra de segurança do tráfego jurídico e, no que respeita às vinculações contratuais, tem a ver com o escopo do contrato. (Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 2ª edição, pág. 402).
O princípio da boa fé no âmbito da matéria de cláusulas penais tem a sua expressão máxima no art.º 812º nº 1 do CC:
A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.”
Como refere Pinto Monteiro (Cláusula Penal…cit., pág. 733 e seg.) “O artº 812º surge, assim, como uma concretização específica do dever de agir de boa fé, previsto nº 2 do artº 762º. A lei pretende evitar, repete-se, um exercício abusivo do direito à pena, ainda que ela haja sido acordada em termos razoáveis, oferece, para tal, ao devedor, um meio próprio e específico – em face da proibição geral do abuso do direito, prescrita no artº 334º - que se traduz no poder conferido ao juiz de reduzir a pena e, assim, de contrariar a pretensão abusiva do credor. Daí, numa palavra, que nos pareça ser o artº 812º expressão do dever agir de boa fé (artº 762º nº 2 e da proibição do exercício abusivo do direito (eraº 334º).” (No mesmo sentido, Nuno Pinto Oliveira, Princípios…cit., pág. 938).
Quanto à possibilidade de conhecimento, oficiosamente, pelo tribunal, da excessividade da cláusula penal, verificam-se, essencialmente, duas teses: uma que apenas admite o conhecimento da excessividade da cláusula mediante solicitação do devedor (Cf., por todos, Pinto Monteiro, Cláusula Penal…cit., pág. 734); outra que admite a possibilidade de conhecimento oficioso da excessividade da pena (veja-se Nuno Pinto Oliveira, Princípios…cit., pág. 939).
Aquela primeira tese entende que é o devedor que tem de solicitar a apreciação da excessividade da cláusula, admitindo que o possa fazer de forma indirecta ou mediata, contestando o seu valor (Pinto Monteiro, Cláusula Penal…cit., pág. 734).
Ora no caso em apreço, a ré suscitou a questão da excessividade da cláusula indemnizatória, defendendo não ser devida.
Assim, no caso em apreço, a questão do conhecimento oficioso, ou não da excessividade da cláusula, não se coloca.
Quanto aos critérios de redução da pena, deverá atender-se à gravidade da infração, ao grau de culpa do devedor, às vantagens que para este resultem do incumprimento, o interesse do credor na prestação, a situação económica de ambas as partes, a sua boa ou má fé, a índole do contrato, as condições em que foi negociado e, designadamente, eventuais contrapartidas de que haja beneficiado o devedor , entre outros factores (Pinto Monteiro, Cláusula Penal…cit., pág. 744). “O tribunal não pode deixar de ter em conta a finalidade prosseguida com a estipulação da cláusula penal a fim de averiguar, a essa luz, se existe uma adequação entre o montante da pena e o escopo visado pelos contraentes.
Assim, enquanto na pena estipulada a título indemnizatório o grau de divergência entre o dano efectivo e o montante prefixado, assume importância decisiva, o mesmo não sucede quando se trate de uma pena convencionada como sanção compulsória. Neste último caso, não será o prejuízo real o factor mais importante a considerar, antes o interesse do credor ao cumprimento. Trata-se, então, fundamentalmente, é de perguntar pelo montante necessário para estimular o devedor a cumprir, de uma ponderação de interesses que, partindo do prioritário interesse do credor ao cumprimento, para o reforço da protecção do qual a cláusula foi estipulada, se preocupe em averiguar se o montante que se convencionou era adequado, segundo juízo de razoabilidade, à eficácia da ameaça que a pena consubstancia.” (Pinto Monteiro, Cláusula Penal…cit., pág. 744 e seg.)
No caso em apreço, como vimos, trata-se de uma cláusula penal em sentido estrito: acordaram em fixar uma pena que substitui o cumprimento, fixando o pagamento da totalidade das prestações mensais até final do contrato.
Ora, como vimos, em situações como esta, não será o prejuízo real o factor a considerar, antes o interesse do credor ao cumprimento, tratando-se fundamentalmente de perguntar pelo montante necessário para estimular o devedor a cumprir, atendendo às circunstâncias do caso, mormente o tempo do contrato já decorrido e o prazo que ainda restava por cumprir à data da declaração de cessação do contrato.
Ora, atendendo os interesses em jogo e a finalidade prosseguida com aquela cláusula penal, entendemos que a pena correspondente a duas mensalidades será ajustada a convencer o devedor a cumprir o contrato.
A esta luz e à vista do que estabelece o art.º 812º nº 1 do CC, acha-se adequada a redução da cláusula 4ª al. b) do contrato fixando a pena em valor correspondente a duas mensalidades, de 200€ cada, acrescida de IVA.

Assim sendo, conclui-se que o recurso procede parcialmente.
***
III- DECISÃO.

Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
a)- Mantém a condenação da ré/apelante no pagamento das faturas correspondentes ao período compreendido entre 1 de Novembro de 2019 e 31 de Dezembro de 2020, no valor total de 3.198,00€ (três mil cento e noventa e oito euros), acrescidas de juros de mora à taxa supletiva legal para os juros civis de 4%, desde a data de vencimento de cada fatura e até integral pagamento;
b)- Reduzem o valor  a suportar pela ré/apelante previsto na cláusula 4ª, al. b) do contrato, ao montante correspondente duas mensalidades, de 200€ cada, acrescida de IVA e de juros de mora desde o trânsito em julgado desta decisão;
c)- No mais, mantém a sentença da 1ª instância.

Custas, na acção e no recurso, na proporção do decaimento que, por facilidades, se fixa em 3/5 para a ré/apelante e 2/5 para o autor/apelado.

Lisboa, 16/06/2023
Adeodato Brotas
Vera Antunes
Jorge Almeida Esteves