INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
Sumário

- a retificação de decisão visa erros materiais, não interferindo com o mérito da decisão a retificar;
- o requerente do processo de inventário não é destinatário da citação versada no n.º 1 do artigo 1104.º do CPC;
- o requerente do processo de inventário dispõe do prazo de 30 dias para apresentar reclamação à relação de bens apresentada ou completada pelo cabeça de casal;
- não pode correr termos prazo para exercício do contraditório relativamente a ato que não foi ainda praticado no processo;
- o referido prazo de 30 dias há de contar-se da notificação da apresentação da relação de bens pelo cabeça de casal.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Interessada Requerente: (…)
Recorrido / Interessado Requerido: (…)

Tendo sido decretado o divórcio, (…) apresentou requerimento inicial com vista a partilhar os bens comuns do casal, informando dever ser o Requerido nomeado cabeça de casal.
Teve lugar a citação do Requerido, na qualidade de cabeça de casal.
Por requerimento de 08/10/2021, o Requerido apresentou relação especificada dos bens comuns composta por ativo e passivo, com a indicação dos respetivos valores e o compromisso de honra do exercício das suas funções.
Do que notificou a parte contrária, conforme previsto no artigo 221.º do CPC.
A Requerente não se pronunciou.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferido o seguinte despacho:
«Notificada pelo cabeça de casal da relação de bens, conforme consta do requerimento CITIUS com ref. externa 40073896, a requerente não apresentou oposição no prazo legal.
Assim, mostra-se cristalizada a questão relativa à relação de bens.
Mostrando-se a instância regular e não havendo que apreciar e decidir quaisquer outras questões que possam influir na partilha, notifique os interessados para, em 20 dias, proporem a forma da partilha (artigo 1110.º/1-b), aplicável ex vi do artigo 1084.º/2, ambos do Código de Processo Civil), após o que se proferirá o despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo-se as quotas ideais de cada um dos interessados, e se designará o dia para a realização da conferência de interessados (artigo 1110.º/2, do Código de Processo Civil).»
A Requerida apresentou-se a requerer a retificação do referido despacho para que se ordene a citação da Interessada, nos termos do artigo 1104.º do CPC, para que possa exercer o direito que legalmente lhe assiste de apresentar Reclamação à Relação de Bens. Para tanto, invocou que desde o dia que deu entrada do requerimento para se proceder a inventário que aguarda a citação nos termos do artigo 1104.º do CPC, o que não teve lugar; se bem que o mandatário tenha sido notificado, via citius, do requerimento junto aos autos contendo a relação de bens comuns do casal, certo é que tal notificação não substitui a citação da Interessada / Requerente, (…), a que alude o artigo 1104.º do CPC, o que motivou não se ter pronunciado sobre a relação de bens apresentada.
Tal requerimento foi indeferido, declarando manter-se o anterior despacho, com fundamento no seguinte:
- apresentada a relação de bens pelo requerido cabeça de casal no inventário, não há lugar à citação do requerente;
- apresentada a relação de bens pelo requerido cabeça de casal no inventário, há lugar à notificação do requerente para, além do mais, apresentar reclamação da relação de bens;
- tendo o mandatário do cabeça de casal notificado o mandatário da requerente, nos termos do artigo 221.º/1, do CPC, da apresentação da relação de bens, não tem o Tribunal de proceder a nova notificação.

Inconformada com este despacho, a Interessada Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que ordene a notificação da Recorrente nos termos do artigo 1104.º do CPC para exercer o seu direito de reclamar da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos:
«1) O recurso de Apelação é interposto do Douto Despacho Judicial proferido em 13-04-2022 com a Referência: 93990801 que indeferiu o requerimento da Interessada (…), mantendo o despacho proferido no dia 01-01-2022;
2) O referido Despacho de 01-01-2022, determinou que, a Interessada foi notificada pelo Cabeça de Casal da relação de bens, conforme consta do requerimento CITIUS, com a ref. Externa 40073896 e que não apresentou oposição no prazo legal e consequentemente notificou a Requerente para, em 20 dias, propor a forma a da partilha (artigo 1110.º, n.º 1, alínea b)), aplicável ex vi do artigo 1084.º, n.º 2, ambos do Código Processo Civil.
3) A ora Recorrente não se pode conformar, porquanto o Meritíssimo Juiz omitiu a formalidade prevista no artigo 1104.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
4) No dia 30 de Abril de 2020, 11:51:49, com a Referência: 35452665, a ora Recorrente deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, do Requerimento de inicio de processo de Inventário para Partilha de Bens Comuns, no seguimento da decisão judicial que decretou o divórcio por mútuo consentimento entre a Requerente (…) e (…).
5) Nos termos do artigo 1100.º do CPC, foi proferido Despacho Liminar em 19-05-2020, com a Referência: 90309169, no qual foi ordenada a citação, com a advertência a que se reporta o n.º 1 do artigo 1102.º do Código Processo Civil.
6) No dia 13-07-2020, o Cabeça de Casal (…), através de Requerimento com a Referência: 36062531, solicitou prorrogação de prazo por um período não inferior a 60 dias, invocando que só tardiamente, teve acesso à citação entregue a terceira pessoa e dificuldade em aceder a qualquer serviço público ou privado por força das regras impostas pela DGS no âmbito da pandemia de Covid-19 – SARS Cov2.
7) No dia 14-07-2020, foi proferido Douto Despacho com a Referência: 90607613, o qual deferiu a prorrogação do prazo pelo período de 60 dias.
8) O referido prazo, foi sendo objeto de sucessivos pedidos de prorrogação, os quais, foram deferidos por Doutos Despachos, tendo a Relação de Bens, sido notificada ao Mandatário da Requerente em 08-10-2021, através da plataforma informática (Citius) mediante o envio do Requerimento com a Referência:
40073896 pela Ilustre Mandatária do Cabeça de Casal, Dra. (…).
9) A ora Recorrente, aguardou que, fosse notificada pelo Tribunal nos termos do artigo 1104.º do CPC, para apresentar a Reclamação à Relação de Bens, o que nunca aconteceu.
10) Tendo sido proferido Douto Despacho com a Referência: 93455897 em 01-01-2022, o qual, determinou que, a ora Recorrente tinha sido notificada pelo Cabeça de Casal da relação de bens, conforme consta do requerimento CITIUS, com a ref. Externa 40073896 e que a ora Recorrente não apresentou oposição no prazo legal.
11) Inconformada com o Douto Despacho, a Recorrente apresentou o Requerimento com o a Referência: 40877104 em 03-01-2022.
12) Em 13-04-2022, foi proferido Douto Despacho com a Referência: 93990801, do qual se recorre, o qual indeferiu a pretensão da Requerente, com os fundamentos expostos no requerimento com Referência: 40877104 de 03-01-2022.
13) Com todo o devido respeito, o M.º Juiz a quo, deveria ter verificado o cumprimento das obrigações do Cabeça de Casal e de, se fosse o caso, determinar as retificações que pudessem caber à Relação de bens apresentada e só depois de proferido Despacho em conformidade e pelo qual, a ora Recorrente aguardou, é que, o Tribunal notificaria a Interessada para reclamar da relação de bens, nos termos do artigo 1104.º do CPC.
14) Nos termos dos artigos 1097.º a 1108.º do CPC, estamos perante uma fase de articulados: o processo inicia-se tendencialmente (quando requerido por quem deva exercer as funções de cabeça de casal) por uma verdadeira petição inicial e não por um mero requerimento tabelar de instauração de inventário, como foi o caso da Requerente, dado que, não era Cabeça de Casal.
15) Após Despacho Liminar, em que, o Juiz verifica se o processo está em condições de passar à fase subsequente, inicia-se a fase seguinte, da oposição ou do contraditório, exercendo os interessados citados o direito ao contraditório, cabendo-lhes impugnar concentradamente no próprio articulado de oposição tudo o que respeite à definição da relação de bens comuns do dissolvido casal, nomeadamente, apresentando a competente reclamação à relação de bens, nos termos do artigo 1104.º, n.º 1, do CPC.
16) Nos presentes autos, não se verificou a fase da oposição ou do contraditório, dado que, a Recorrente não foi notificada pelo Tribunal nos termos do artigo 1104.º do CPC, formalidade legal que foi omitida e que, prejudica os direitos da Recorrente que, se viu privada de apresentar a Reclamação à Relação de Bens.
17) Na realidade e seguindo-se o formalismo legal, o Autor intenta a ação, o Réu é citado para contestar e a contestação é notificada ao Autor pelo Tribunal e só depois desta notificação é que, as notificações eletrónicas entre as partes efetuadas pelos Mandatários, passam a vigorar como obrigatórias e a produzir os respetivos efeitos legais, nos termos do artigo 221.º, n.º 1, do CPC, que na prática é a posição do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de29-09-2016, relatado por Cristina Cerdeira, proc. n.º 250/06.6TBBCL-D.G2, onde se baseia o Douto Despacho recorrido.
18) No presente processo de inventário, a Relação de Bens apresentada pelo Cabeça de Casal, equivale à Contestação, a qual deveria ter sido notificada pelo Tribunal à ora Recorrente para que esta, pudesse apresentar a reclamação no prazo de 30 dias, prevista no artigo 1104.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, do CPC e após esta fase, as notificações eletrónicas já seriam efetuadas entre Mandatários.
19) Assim sendo, o Despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz, viola as disposições legais previstas no artigo 1104.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, do CPC, o qual, deve ser substituído por outro, que determine a notificação da ora Recorrente para exercer o seu direito de Reclamação da Relação de Bens apresentada pelo Cabeça de Casal.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar se existe fundamento para alterar a decisão recorrida, ou seja, se deve ter lugar a retificação do despacho anteriormente proferido que deu como notificada a Requerente do inventário da relação de bens, determinando-se, antes, a respetiva citação para os efeitos previstos no artigo 1104.º do CPC.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os supramencionados.

B – O Direito
O despacho do qual é interposto recurso é aquele que indeferiu o pedido de retificação do despacho anterior. A questão que se coloca é, pois, a de saber se devia ter sido deferido o pedido de retificação.
A retificação de despachos encontra-se regulada no artigo 614.º do CPC, ex vi do artigo 613.º, n.º 3, do CPC. Nos termos do n.º 1 do citado preceito, se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
Tal como se colhe da epígrafe da norma, a retificação visa erros materiais, não interferindo com o mérito da decisão a retificar. Na verdade,
“a) Proferida a decisão, e, em consequência, esgotado o poder jurisdicional do julgador é lícita – para alem da aclaração, do suprimento de nulidades e da reforma quanto a custas e multa – a sua retificação ou a sua reforma.
b) A retificação pressupõe um erro material, a reforma um lapso manifesto, aquele não comprometendo o mérito e esta tendo o perfil substancial do recurso por implicar uma reapreciação do julgado.
c) Há erro material quando se verifica inexatidão na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, sendo que a divergência entre a vontade real e a declarada não deve suscitar fundadas dúvidas, antes ser patente, através de outros elementos da decisão, ou, até, do processo. É o equivalente ao erro-obstáculo tratado no direito substantivo.
d) Não ocorrendo erro material mas lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na desconsideração de documentos ou de outros elementos constantes do processo, o incidente de reapreciação desse segmento do julgado é a reforma da decisão.
e) Como faculdade excecional que é, deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão “manifesto lapso”, reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa.
f) O lapso manifesto tem a ver com uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter na base o desconhecimento.
g) O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar “error in judicando” (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou “aberratio legis”, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal” – Ac. STJ de 12/02/2009 (Sebastião Póvoas).”
Por outro lado, o pedido de retificação de erros materiais não interfere com o prazo de interposição de recurso da decisão a retificar. Assim,
“não deixa de ser significativo que, quer o Código de Processo Civil de 1939, quer o de 1961, este na sua versão inicial, tal como decorria dos artigos 686.º, § 2.º e 667.º do primeiro e 667.º e 686.º do segundo, consagrassem o princípio de que o prazo para a interposição de recurso, quando tivesse sido pedida a retificação da sentença, só começava a correr depois de notificada a decisão proferida sobre esse requerimento, e que esse regime tenha sido abandonado posteriormente.
Na verdade, a revisão do Código de Processo Civil de 1961 decorrente do Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, pôs fim àquele regime, conforme decorre da nova redação dada aos artigos 667.º, 669.º e 680.º e 685.º daquele Código, deixando tais incidentes de retardar a subida do processo.
A extensão do prazo para a interposição de recurso pretendida pelas reclamantes, motivada na apresentação de um pedido de retificação da sentença apresentada pela parte contrária, carece de qualquer fundamento legal” – Ac. STJ de 12/10/2017 (Leones Dantas).
No caso em apreço, a Interessada Requerente, notificada do despacho que a considerou notificada pelo cabeça de casal da relação de bens, que atestou a falta de oposição no prazo legal e deu como cristalizada a questão relativa à relação de bens, dele não interpôs recurso. Antes se apresentou a requerer a respetiva retificação, de molde a ser ordenada a sua citação, nos termos do artigo 1104.º do CPC, para que possa apresentar reclamação à relação de bens, invocando que, desde o dia que deu entrada do requerimento para se proceder a inventário, aguarda a citação nos termos do artigo 1104.º do CPC, que não teve lugar, e que a notificação da relação de bens efetuada pelo mandatário do cabeça de casal não substitui a sua citação.
Estes fundamentos não evidenciam ter-se incorrido em erro material, nomeadamente em inexatidão devida a lapso manifesto. O que se pretende é antes impugnar a decisão que considerou regular a notificação da Interessada Requerente da relação de bens junta aos autos.
Não se vislumbra, assim, motivo para retificação de erro material do anterior despacho.
Sempre se dirá que se acompanha o que ficou exarado na decisão recorrida. A saber:
A citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa – artigo 210.º, n.º 1, do CPC. A notificação serva para, em quaisquer outros casos, chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto – artigo 219.º, n.º 2, do CPC. Por conseguinte, se a Interessada (…) figura no processo como Requerente do mesmo, não é suscetível de ser destinatária de ato de citação.
É certo que o artigo 1104.º, n.º 2, do CPC prevê que a reclamação à relação de bens seja exercida, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário no prazo de 30 dias contado da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º – normativo que prevê a notificação do Requerente que exerça o cargo de cabeça de casal do despacho que ordene as citações dos interessados na partilha ou do cabeça de casal, caso não seja o requerente – cfr. n.º 2 do artigo 1104.º. Vem sendo entendido que a notificação versada no n.º 3 do artigo 1100.º do CPC deve ser feita também ao requerente que não exerça o cargo de cabeça de casal, contando-se dessa notificação o prazo de 30 dias para deduzir os meios de defesa que se ajustarem à sua posição.[1]
No entanto, da notificação ao requerente do despacho que ordene a citação do cabeça de casal não pode começar a correr o prazo de 30 dias para apresentar reclamação à relação de bens que o cabeça de casal, uma vez citado, há de apresentar no prazo de 30 dias – cfr. artigo 1102.º do CPC. Não pode estar a correr prazo para exercício do contraditório relativamente a ato que não foi ainda praticado no processo. Daí que o n.º 2 do artigo 1104.º do CPC preveja o exercício das faculdades referidas no n.º 1 com as necessárias adaptações.
Atenta a manifesta inviabilidade de exercício do contraditório relativamente à relação de bens no prazo de 30 dias a contar da notificação do despacho que ordenou a citação do cabeça de casal, o prazo de 30 dias previsto no artigo 1104.º, n.º 1, do CPC há-de correr, relativamente ao requerente do inventário, da notificação da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal.

Termos em que improcede o recurso, inexistindo fundamento para retificar o despacho que antecede o despacho recorrido, que não enferma de erro material.

As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
*
Évora, 25 de maio de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
(assinatura digital)
Maria Domingas Simões

Ana Margarida Leite
(assinatura digital)

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[1] Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. II, pág. 564, nota 7.