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INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
LITISPENDÊNCIA
Sumário
1 – O processo de incumprimento do exercício de responsabilidades parentais constitui uma instância incidental, relativamente ao processo principal (de regulação dessas responsabilidades), destinada à verificação de uma situação de incumprimento culposo/censurável de obrigações decorrentes de regime parental (provisório ou definitivo) estabelecido. 2 – Encontrando-se em curso um incidente de incumprimento com o mesmíssimo objecto, não se torna necessária a existência de dois procedimentos distintos para alcançar um resultado único e conciliante, devendo o segundo processo ser arquivado, seja pela via da litispendência, da falta de interesse em agir ou da inutilidade superveniente da lide. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Processo n.º 3349/16.7T8FAR-H.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro – J2
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Recurso com efeito e regime de subida adequados.
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Decisão nos termos dos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil:
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I – Relatório:
Por apenso aos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais relativos aos menores (…) e (…), em que é requerida (…), (…) veio apresentar requerimento que visava que fossem ordenadas as diligências indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão. Proferida decisão, que julgou a inutilidade da lide, o requerente veio interpor recurso.
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O requerente pretendia que fosse notificada a Policia de Segurança Pública da Esquadra de (…) para recolher e entregar ao requerente todos os documentos de identificação de que os menores são portadores, com vista compelir que a requerida se abstivesse de impedir a execução da efectiva da decisão constante da sentença homologatória do acordo celebrado pelos progenitores constante da acta da audiência de discussão e julgamento realizada em 19 de Outubro de 2021 no processo de alteração das responsabilidades parentais.
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A parte contrária deduziu oposição, afirmando que os menores andam acompanhados de fotocópia do passaporte, documento de utente do serviço nacional de saúde e do cartão de autorização de residência de cada um.
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No apenso F junto do processo principal, foi acordado entre os progenitores e homologado por sentença datada de 19/10/2021, que:
“4. Cada um dos progenitores para viajar com as crianças, quando as tiver a seu cargo, para fora do espaço Schengen (incluindo o Reino Unido e os Estados Unidos, onde pai e mãe, respectivamente, têm família e amigos), caso não tenham autorização do outro progenitor, tem de se dirigir ao tribunal e formular um pedido de suprimento do consentimento do outro cônjuge, solicitando logo que seja atribuída natureza urgente ao pedido, atento o tempo limitado que cada um dos pais tem nas férias para estar com os seus filhos.
5. Na mudança de agregado familiar, devem as crianças fazer-se acompanhar dos documentos de identificação (incluindo boletim de vacinas e cartão de seguro de saúde se existir) e entregando-os ao progenitor com quem estão na altura, devendo este, quando entregar os filhos ao outro progenitor entregar também os documentos dos filhos”.
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Em 11/07/2022, o requerente (…) intentou outro procedimento cautelar (apenso G), sobre o qual recaiu o despacho datado de 12/07/2022 (ref. Citius 125637488) que aqui se transcreve: “Resulta do teor do requerimento que foi junto com o formulário, que a questão levantada pelo progenitor não é dirimida através de um procedimento cautelar comum, mas sim através de um incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, previsto nos artigos 42.º e seguintes do RGPTC.
Assim sendo, antes de mais determina-se que o requerimento em análise deixe de ser tido como uma providência cautelar comum e passe a ser um incidente de incumprimento, nos termos acima aludidos.
Assim, não se percebe porque razão o Requerente insiste em propor incidentes sucessivos, sem que os anteriores estejam resolvidos, e sobretudo, não se entende porque razão não faz uso do Incidente de Incumprimento previsto no artigo 41.º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro, que aprovou o Regime Geral do Processo Tutelar Cível»
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No incidente G em apenso foi decidido que as crianças deviam fazer-se acompanhar dos documentos de identificação.
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O Requerente (…) não deu resposta ao despacho proferido no Apenso G no qual foi notificado para informar o Tribunal sobre o período de férias em que pretendia viajar com os filhos, de forma a que fosse garantido que os seus filhos trocassem de agregado familiar com a documentação necessária.
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Em 23/08/22 (ref. Citius 125299070), no presente apenso, o Juízo de Família e de Menores de Faro prolatou o seguinte despacho: «Não obstante a admissão liminar do presente procedimento cautelar (por despacho de 03.08.2022), certo é que o seu objecto é idêntico ao do apenso G, no qual foi determinada a convolação do mesmo para um incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, assim como desde logo concedidas autorizações e impostas obrigações ao(s) progenitor(es), de modo a garantir em tempo útil os efeitos pretendidos pelo requerente».
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Antes de proferir a decisão recorrida, o Tribunal notificou o apelante para se pronunciar quanto à identidade do objecto dos apensos G e H. *
Após a descrição da cronologia processual, na parte que releva para a impugnação por via recursal, a decisão recorrida tem o seguinte conteúdo: «do exposto se retira que a questão das viagens e dos documentos já se encontra decidida e que o Requerente (…) em vez de dar entrada de sucessivos requerimentos que têm vindo a ser autuados como Procedimentos Urgentes, deveria ter dado cumprimento ao ordenado no despacho proferido em 12.7.2022 no Apenso G e informado o tribunal das datas do período de férias pretendido.
Efectivamente, como se transcreve, nesse despacho “decide-se desde já, reafirmando que se desconhece se a progenitora iria levantar alguma questão quanto à realização da viagem, que o Tribunal autoriza o progenitor (…) a viajar para o Reino Unido, com os seus filhos, (…) e (…), pelo tempo máximo de 15 (quinze) dias, a ter lugar num dos períodos de 15 dias que tem os filhos consigo durante as férias de Verão, informando as datas de ida e de regresso e a localização certa (país, cidade e morada) onde pretendem ficar.”
Nestes termos não resta senão indeferir liminarmente o presente incidente em que o Requerente pretende que o tribunal ordene à PSP a recolher todos os documentos de identificação de que “menores são portadores para entrega imediata aos menores seus portadores” sem que antes dê cumprimento ao ordenado no Apenso G, sob pena desse Incidente findar por deserção da instância.
Em face do exposto, indefiro liminarmente os autos por manifestamente improcedentes, atenta a inutilidade da lide, nos termos do artigo 41.º do RGPTC».
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e as alegações continham as seguintes conclusões, aliás extensas e prolixas na relação de proporcionalidade com o corpo do recurso apresentado e com repetições sucessivas do mesmo argumentário[1][2][3][4][5]:
«A. À luz do que se alegou no requerimento inicial acima transcrito, conjugando-se com o teor do despacho proferido no citado Apenso G datado de 12 de Julho de 2022, e a que a decisão recorrida alude, omite-se deliberadamente a parte do despacho que faz depender da prestação de informação pelo Recorrente, do cumprimento da obrigação de serem permitidos aos menores irem para junto de seu pai com os documentos de identificação, e o que decorre deste paragrafo sublinhado, invalida toda a construção do despacho recorrido formulado contra o Recorrente, em clara violação do artigo 28.º, n.º 1, do RGPTC e do artigo.
B. Pois, o despacho recorrido não ignora que toda e qualquer prestação de informação das partes solicitada pelos autos, para marcação de viagem, nem era o que estava em causa, pois o que estava em causa era o facto dos menores virem desacompanhados dos documentos de identificação para junto do Recorrente em férias judiciais.
C. Porém uma coisa dependia da outra: Sem o acesso aos documentos dos menores, não havia reserva ou marcação de viagem de férias, e sem reserva ou marcação de viagem de férias, não período de viagem a ser reportado aos autos. É simples, mas foi apresentado como transcendental para se visar o Recorrente no despacho recorrido.
D. O despacho recorrido tem perfeito conhecimento que o desfecho do apenso G dependia sempre de serem tomadas medidas indispensáveis para assegurar a decisão que homologou o exercício de responsabilidades parentais em vigor.
E. O despacho recorrido tem obrigação de conhecer e aplicar o artigo 28.º, n.º 1, do RGPTC sob a forma de Lei, que prevê que em qualquer estado da causa, a requerimento o tribunal pode ordenar diligências que se tornem indispensáveis para a execução efetiva da decisão.
F. Entendeu-se na decisão recorrida afastar o previsto expressamente no artigo 28.º, n.º 1, do RGPTC, para o Recorrente se submeter ao previsto no artigo 41.º do RGPTC, quando o despacho recorrido bem sabe que o recurso ao incidente de incumprimento previsto no artigo 41.º do RGPTC não iria ser despachado em férias judiciais.
G. E por isso não teria qualquer aplicabilidade prática, porque só iria ser despachado em Setembro de 2022 depois das férias terem decorrido, é isto que não se quis ver, e ainda se critica o Recorrente por procurar meios processuais que dessem resposta à ineficácia do artigo 41.º do RGPTC em período de férias judiciais, omitindo a decisão recorrida que a providência ora em causa foi interposta em período de férias judiciais.
H. Férias judiciais, a que correspondia período de vigência de férias escolares dos menores alternado entre progenitores, por períodos repartidos, sendo os períodos de férias do Recorrente postos em causa, porque nem sequer podia em tempo útil marcar qualquer viagem ou estadia porque não tinha os documentos.
I. Quando o apenso G não tinha feito a Recorrida arrepiar caminho e cumprir com a obrigação de munir, os menores titulares dos respetivos documentos de identificação, com os mesmos quando vinham para junto de seu pai nos períodos quinzenais de férias deste Verão passado.
J. Antes já o apenso G tinha culminado na advertência que o despacho recorrido omite, numa decisão de um procedimento diferente e anterior, o despacho de 12 de Julho de 2022, mas como já se transcreveu e analisou, este despacho, para além de determinar que passasse o apenso G a incidente de incumprimento, advertiu e mandou notificar a Requerida para cumprir.
K. Estamos a falar do período de férias judiciais, os incidentes de Incumprimento por norma não são despachados em férias. Neste período de férias sem os documentos dos menores, não se pode fazer reservas e marcações, sem reserva, não pode indicar período de férias, porque não está assegurada viagem e estadia, é isto que é lógico, mas que o despacho recorrido para puder criticar e condenar de forma preconceituosa o ora Recorrente.
L. Apesar do previsto no artigo 28.º, n.º 1, do RGPTC acima transcrito, o tribunal e o despacho ora recorridos, violaram-no completamente, porque não se mandou produzir qualquer prova sumária, não se tomaram medidas para cumprir com as medidas peticionadas.
M. Esta operação material a ser executada pelos órgãos de policia criminal, na recolha de documentos de identificação aos seus legítimos titulares, menores de idade, era adequada, proporcional e necessária.
N. Acima de tudo necessária, perante o que já havia sucedido no período de férias anterior , referente aos quinze dias anteriores de Julho de 2022, em que a Requerida já havia retido indevidamente os documentos dos menores, culminando na referida advertência constante do despacho proferido no apenso G datado de 12 de Julho de 2022 e citado pela decisão recorrida.
O. Em 3 de Agosto de 2022, a reconstituição das opções do ora Recorrente explanada pelo despacho recorrido, no sentido de fazer uso de um procedimento que se sabe que só iria ser tramitado em Setembro de 2022, salvo o devido respeito, não se afigura curial. Muito menos para vilipendiar o Recorrente. Foi o tribunal recorrido que violou a Lei, ínsita no artigo 28.º do RGPTC. Fê-lo ao não determinar quaisquer medidas para o mero facto de recolha dos documentos de identificação dos menores junto de quem os retinha, a Recorrida, e a entrega ao Recorrente.
P. Sem documentos não há reserva ou marcação de viagem ou estadia. Sem reserva ou marcação de estadia não há viagem. Não há viagem nem estadia não há indicação para ser dada ao tribunal Não há indicação de período de férias, o que a decisão recorrida queria era que se interpusesse procedimento para ser tramitado depois das férias terem acabado.
Q. Todas as férias de Verão, em todos os períodos quinzenais, ambos os menores vieram indocumentados para junto do seu pai e ora Recorrente.
R. Se a Lei prevê o artigo 28.º do RGPTC, o tribunal recorrido está obrigado a aplicá-lo, e seu incumprimento constitui o incumprimento de Lei escrita por um tribunal, reitera-se o Tribunal recorrido nada fez, nem mesmo em sede de procedimento cautelar. E a decisão recorrida ainda vem projetar esta violação na pessoa do Recorrente. Com isto o tribunal recorrido logrou normalizar e sanar o incumprimento em férias judiciais da Recorrida.
S. O incidente de incumprimento apresentado como cenário ideal na decisão recorrida, nem sequer seria considerado antes de Setembro como o tribunal recorrido bem sabe, mas deliberadamente omite-o, no afã de criticar quem ainda acredita e pensa que deve recorrer aos tribunais e que estes decidem conforme a Justiça.
T. A correcta aplicação do artigo 28.º do RGPTC impunha o decretamento da produção prova sumária e tomada da providência em tempo útil. Nada se fez e agora culpa-se o Recorrente.
U. Ora à luz do que se alegou no requerimento inicial acima transcrito, conjugando-se com o teor do despacho proferido no citado Apenso G datado de 12 de Julho de 2022, e a que a decisão recorrida alude, decorre que do último parágrafo sublinhado resulta invalidada toda a construção do despacho recorrido formulado contra o Recorrente, em clara violação do artigo 28.º, n.º 1, do RGPTC e do artigo.
V. O recurso ao incidente de incumprimento previsto no artigo 41.º do RGPTC não iria ser despachado em férias judiciais, e por isso não teria qualquer aplicabilidade prática, porque só iria ser despachada em Setembro de 2022 depois das férias terem decorrido, é isto que não se quis ver e ainda se critica o Recorrente por procurar meios processuais que dessem resposta à ineficácia do artigo 41.º do RGPTC em período de férias judiciais.
W. Omitindo a decisão recorrida que a providência ora em causa foi interposta em período de férias judiciais. a que correspondia período de vigência de férias escolares dos menores alternado entre progenitores, por períodos repartidos, sendo os períodos de férias do Recorrente postos em causa, porque nem sequer podia em tempo útil marcar qualquer viagem ou estadia porque não tinha os documentos, quando o apenso G não tinha feito a Recorrida arrepiar caminho e cumprir com a obrigação de munir, os menores titulares dos respetivos documentos de identificação, com os mesmos quando vinham para junto de seu pai nos períodos quinzenais de férias deste Verão passado.
X. Pelo que o artigo 41.º do RGPTC não tinha efeito útil algum in casu, ao se violar o artigo 28.º, n.º 1, do RGPTC, nos termos expostos e adiante desenvolvidos viola-se o artigo 536.º, n.º 3, do CPC porque custas nunca poderiam de decididas que ficassem a cargo do Requerente.
Nestes termos e nos melhores de Direito, roga-se a V. Exas. que decretem a procedência do presente recurso, e em consequência mais se roga a V. Exas. que determinem a revogação do despacho ora recorrido, decidindo admitir o presente procedimento e seguindo-se os ulteriores termos, porque a necessidade de execução perdura até hoje e projectar-se-á no período de férias de Natal, ou subsidiariamente que determinem a autuação como apenso de incumprimento seguindo assim os ulteriores termos até final, fazendo V. Exas. a costumada Justiça!».
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A progenitora do menor contra-alegou defendendo a bondade da decisão recorrida.
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O Ministério Público respondeu às alegações de recurso e pugnou pela improcedência do recurso.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de erro na apreciação do direito.
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III – Da factualidade com interesse para a justa decisão da causa:
Os factos com interesse para a justa decisão da causa são aqueles que constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Da natureza e conteúdo das responsabilidades parentais:
Antes de mais, é o momento de atender ao conteúdo das responsabilidades parentais, fixado no artigo 1878.º do Código Civil. Nos termos deste dispositivo compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
A função motriz das responsabilidades parentais assenta actualmente na ideia do cuidado paternal[6] e este conceito de responsabilidades parentais é fortemente inspirado no conceito resultante da Recomendação n.º R (84) sobre as Responsabilidades Parentais, aprovada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, em 28 de Setembro de 1984, que se apoia em estudos elaborados sobre a evolução da realidade social e jurídica dos diferentes Estados Europeus. Nesta recomendação emitida a propósito das responsabilidades parentais, estas emergem como «o conjunto dos poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e material do filho, designadamente tomando conta da sua pessoa, mantendo relações pessoais com ele, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e a administração dos seus bens»[7].
As responsabilidades parentais surgem-nos como uma situação jurídica complexa, onde avultam poderes e deveres de natureza funcional e daí resulta que as mesmas não sejam entendidas como «um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e exercício livre, mas de faculdades de conteúdo altruísta, que devem ser exercidas primariamente no interesse do menor (e não dos pais), de exercício vinculado»[8].
Na leitura de Armando Leandro estamos perante não um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos titulares, mas um conjunto de faculdades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral[9].
É neste contexto que o interesse do menor nos surge actualmente como o critério fundamental e decisivo a ter em conta em qualquer decisão que lhe diga respeito, conceito esse que evidencia a própria evolução das relações sociais no domínio familiar e maximiza a ideia da criança enquanto titular de direitos individuais e de interveniente activo da definição de poderes/deveres no núcleo familiar.
Este conjunto de vinculações referem-se quer à pessoa, quer aos bens dos filhos. O objectivo do processo de regulação das responsabilidades parentais é a fixação do regime de exercício das funções parentais por ambos os progenitores, em resultado da dissolução da estrutura familiar. Usualmente este processo abrange três questões fundamentais que se prendem com a guarda dos filhos, o direito de visita e a obrigação de alimentos.
Em caso de ruptura de vida em comum dos progenitores, a prossecução do interesse do menor tem sido entendida em estrita conexão com a garantia das condições materiais, sociais, psicológicas e morais que possibilitem o seu desenvolvimento saudável, equilibrado e estável do menor, o qual deve ser colocado à margem da conflituosidade que ocorra no relacionamento entre os pais.
Como primeira síntese intercalar, cumpre sublinhar que, em qualquer providência tutelar cível, o superior interesse dos menores e as responsabilidades parentais devem ser encaradas como um conjunto de poderes-deveres de direcção, cuidado, educação e segurança dos filhos.
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4.2 – Do incumprimento da obrigação de os filhos menores se fazerem acompanhar dos documentos de identificação:
De acordo com o teor vinculativo da sentença homologatória do acordo celebrado pelos progenitores constante da acta da audiência de discussão e julgamento realizada em 19 de Outubro de 2021, na mudança de residência, os menores deveriam fazer-se acompanhar dos documentos de identificação, entregando-os ao progenitor com quem estivessem na altura, devendo este, quando devolvesse os filhos ao outro progenitor, transferir também os documentos das crianças.
O recorrente entende que esta obrigação tem sido incumprida e pretendeu assim que o Tribunal ordenasse as diligências que se tornassem indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão, ao abrigo do disposto no artigo 28.º[10] do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
A parte contrária nega esta versão, mas, no plano efectivo, a decisão recorrida não incide sobre esta substância, mas apena versa sobre a idoneidade do meio processual escolhido pelo requerente e a possibilidade da pretensão ser decidida noutro apenso instaurado.
Na verdade, a Meritíssima Juíza de Direito titular do processo indeferiu liminarmente os autos por manifestamente improcedentes, atenta a inutilidade da lide, nos termos do artigo 41.º[11] do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
O recorrente pugna que seja revogada a decisão recorrida e que o presente apenso prossiga os seus ulteriores trâmites. Em contraponto, a recorrida e o Ministério Público têm um entendimento contrário e adoptam uma posição concordante com o sentido da decisão recorrida.
Na presente hipótese, os dissídios prolongam-se mais e num grau superior àquilo que seria normalmente admissível ou expectável, tal como é atestado pela letra do apenso (apenso H) e tal revela uma incompreensão mútua dos progenitores quanto à dimensão das suas obrigações parentais e existe aqui um nível de toxicidade no relacionamento pós-ruptura que, voluntária ou inconscientemente, irá causar necessariamente problemas no bem-estar e felicidade dos menores, se este caminho de litigância e de incompreensão não cessar.
No entanto, a questão matricial e decisiva está resolvida, pois o Tribunal autorizou o progenitor (…) a viajar para o Reino Unido, com os seus filhos, (…) e (…). E esse é o tema essencial nesta parte específica da regulação das responsabilidades parentais.
Isto é, neste momento, trata-se mais um conflito retórico do que um problema real. E, sem derrogar a obrigação inscrita na sentença homologatória, a qual se mantém válida, se existem dificuldades na marcação de viagens ou na concretização de outros objectivos em que seja necessária a exibição de documentação pessoal, independentemente do recurso sucessivo às autoridades policiais – basta um esquecimento para retornar o conflito e ser novamente exigida a intervenção da força pública –, o problema é facilmente solucionável através do bom senso.
Para tanto, quando os menores não estejam munidos dos referenciados documentos, basta que o progenitor pai fique com cópias dessa documentação para resolver esses problemas logísticos (nos tempos que correm a generalidade destes embaraços é dirimido com uma simples fotografia da documentação pessoal). Efectivamente, apenas em ocasiões de saída do país ou outra de igual relevância é que, numa lógica de normalidade e de prevalência do interesse dos filhos, é que é necessária a posse física dos documentos originais.
Aliás, numa tentativa de desjudicializar o conflito e de diminuir os níveis de desconfiança existentes, facilitando igualmente a regularização da relação parental pós-ruptura e evitando a produção de prova sobre matérias marginais, caso as partes não o consigam fazer pelos próprios meios, qualquer um dos mandatários – que, no domínio do direito dos menores, devem igualmente assumir um papel de mediadores e actuar de forma pedagógica na prevenção de incidentes – ou uma pessoa de confiança de ambos os progenitores pode, com a toda a facilidade, digitalizar a controvertida documentação e entregá-la ao procriador não guardião, resolvendo assim, em grande escala, esta parte do conflito. A simplificação de processos é aliada da eficiência e do bom senso.
Retornando à matéria da idoneidade do meio e à (des)necessidade de replicar a pretensão, como bem acentua o Ministério Público, existe coincidência de pedido, causa de pedir e de sua motivação com aquilo que foi pedido no apenso G e, neste particular, o pedido anterior foi convolado para um incidente de incumprimento.
Recentrando a questão nos seus justos limites procedimentais, é inequívoco que, encontrando-se em curso um incidente de incumprimento com o mesmíssimo objecto, aquilo que é incontestável é que não se torna necessária existência de dois procedimentos distintos para alcançar um resultado único e conciliante. E, como tal, embora não se trate stricto sensu de um indeferimento liminar[12], importa assim que estes autos sejam arquivados seja pela via da litispendência, da inutilidade superveniente da lide ou da falta de interesse em agir e que o apenso G prossiga os seus termos, se for caso disso.
E se ali se comprovar que houve uma falha intencional da parte contrária, que possa ter inviabilizado o convívio de férias entre pai e filhos, é nesse outro apenso que, numa dimensão substantiva, a questão deve ser solucionada de acordo com as sanções precipitadas no texto do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Para além de se tratar de uma petição de princípio indemonstrada, também falece a razão ao recorrente quando sublinha que o incidente de incumprimento previsto no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível não iria ser despachado em férias judiciais, face à estatuição constante do artigo 13.º[13] do mesmo diploma, porquanto o gozo de férias com qualquer progenitor encontra-se na esfera de protecção da norma em causa.
Quanto à questão das custas, não existe qualquer erro na determinação do Tribunal, à luz das disposições conjugadas dos artigos 527.º[14] e 536.º[15], nºs 2 e 3, ambos do Código de Processo Civil, por a repetição do incidente não se ficar a dever a motivo imputável à parte contrária, dado que a parte poderia ter utilizado o apenso G para satisfazer a sua reivindicação.
Assim, não existe qualquer argumento recursivo com a virtualidade de permitir a revogação da decisão recorrida, mantendo-se o anteriormente decidido.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, julga-se improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 31/05/2023
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
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[1] Artigo 639.º (Ónus de alegar e formular conclusões):
1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.
[2] Na visão de Abrantes Geral, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 130, «as conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados».
[3] No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 137/97, de 11/03/1997, processo n.º 28/95, in www.tribunalconstitucional.pt é dito que «A concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso e não como um entrave burocrático à realização da justiça».
[4] O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt assume que «o recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida)».
[5] No caso concreto, não se ordena a correcção das conclusões ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil por que, na hipótese vertente, tal solução apenas implicaria um prolongamento artificial da lide e, infelizmente, no plano prático, a actuação processual subsequente constitui na generalidade dos processos uma mera operação de estética processual que não se adequa aos objectivos do legislador e do julgador.
[6] Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Família e das Sucessões, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 1997, págs. 370; António H. L. Farinha e Conceição Lavadinho, Mediação Familiar e Responsabilidades Parentais, Coimbra, Almedina, págs. 47, António H.L. Farinha, Relação entre os Processos Judiciais, Infância e Juventude, nº 2/99, Abril - Junho, 1999, pág. 69, e Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício do Poder Parental nos Casos de Divórcio, 4ª edição, revista, aumentada e actualizada, Coimbra, Almedina, 2002, pág. 15.
[7] O Princípio 2 do Anexo à Recomendação n.º R (84) 4 estabelece que «qualquer decisão da autoridade competente relativa à atribuição das responsabilidades parentais ou ao modo como essas responsabilidades são exercidas, deve basear-se, antes de mais, no interesse dos filhos».
[8] Castro Mendes, Direito da Família, AAFDL, 1978-1979, pág. 243.
[9] Armando Leandro, Poder Paternal: Natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária, pág. 119.
[10] Artigo 28.º (Decisões provisórias e cautelares):
1 - Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão.
2 - Podem também ser provisoriamente alteradas as decisões já tomadas a título definitivo.
3 - Para efeitos do disposto no presente artigo, o tribunal procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes.
4 - O tribunal ouve as partes, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
5 - Quando as partes não tiverem sido ouvidas antes do decretamento da providência, é-lhes lícito, em alternativa, na sequência da notificação da decisão que a decretou:
a) Recorrer, nos termos gerais, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;
b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução.
[11] Artigo 41.º (Incumprimento):
1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.
2 - Se o acordo tiver sido homologado pelo tribunal ou este tiver proferido a decisão, o requerimento é autuado por apenso ao processo onde se realizou o acordo ou foi proferida decisão, para o que será requisitado ao respetivo tribunal, se, segundo as regras da competência, for outro o tribunal competente para conhecer do incumprimento.
3 - Autuado o requerimento, ou apenso este ao processo, o juiz convoca os pais para uma conferência ou, excecionalmente, manda notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.
4 - Na conferência, os pais podem acordar na alteração do que se encontra fixado quanto ao exercício das responsabilidades parentais, tendo em conta o interesse da criança.
5 - Não comparecendo na conferência nem havendo alegações do requerido, ou sendo estas manifestamente improcedentes, no incumprimento do regime de visitas e para efetivação deste, pode ser ordenada a entrega da criança acautelando-se os termos e local em que a mesma se deva efetuar, presidindo à diligência a assessoria técnica ao tribunal.
6 - Para efeitos do disposto no número anterior e sem prejuízo do procedimento criminal que ao caso caiba, o requerido é notificado para proceder à entrega da criança pela forma determinada, sob pena de multa.
7 - Não tendo sido convocada a conferência ou quando nesta os pais não chegarem a acordo, o juiz manda proceder nos termos do artigo 38.º e seguintes e, por fim, decide.
8 - Se tiver havido condenação em multa e esta não for paga no prazo de 10 dias, há lugar à execução por apenso ao respetivo processo, nos termos legalmente previstos.
[12] Por despacho de 03/08/2022 foi admitida liminarmente a presente providência cautelar e os autos prosseguiram sucessivamente com o exercício do contraditório.
[13] Artigo 13.º (Processos urgentes):
Correm durante as férias judiciais os processos tutelares cíveis cuja demora possa causar prejuízo aos interesses da criança.
[14] Artigo 527.º (Regra geral em matéria de custas):
1 - A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
2 - Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
3 - No caso de condenação por obrigação solidária, a solidariedade estende-se às custas.
[15] Artigo 536.º (Repartição das custas):
1 - Quando a demanda do autor ou requerente ou a oposição do réu ou requerido eram fundadas no momento em que foram intentadas ou deduzidas e deixaram de o ser por circunstâncias supervenientes a estes não imputáveis, as custas são repartidas entre aqueles em partes iguais.
2 - Considera-se que ocorreu uma alteração das circunstâncias não imputável às partes quando:
a) A pretensão do autor ou requerido ou oposição do réu ou requerente se houverem fundado em disposição legal entretanto alterada ou revogada;
b) Quando ocorra uma reversão de jurisprudência constante em que se haja fundado a pretensão do autor ou requerente ou oposição do réu ou requerido;
c) Quando ocorra, no decurso do processo, prescrição ou amnistia;
d) Quando, em processo de execução, o património que serviria de garantia aos credores se tiver dissipado por facto não imputável ao executado;
e) Quando se trate de ação tendente à satisfação de obrigações pecuniárias e venha a ocorrer a declaração de insolvência do réu ou executado, desde que, à data da propositura da ação, não fosse previsível para o autor a referida insolvência.
3 - Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas.
4 - Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas.