I – As declarações para memória futura visam evitar uma segunda confrontação da vítima com os factos e os efeitos de revitimização que potencia, tanto quanto preservar a prova contra a eventualidade de ulterior perda ou adulteração.
II – A nova prestação de declarações em audiência das vítimas de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis é excepcional, como resulta dos artigos 33.º, n.º 7, da Lei 112/2009 e 17º, n.º 2, e 24º, n.º 6, do Estatuto da Vítima, devendo ocorrer apenas se “for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar”.
III – Daqui não resulta uma inviabilidade de princípio da prestação de novas declarações, tanto nos casos expressamente previstos, de indispensabilidade para a descoberta da verdade, como naqueles em que a própria testemunha/vítima as quer prestar, caso em que não pode ser privada de tal direito.
IV – Mesmo entendendo-se que a nova prestação de declarações em audiência das vítimas de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis fora dos casos previstos na lei é ilegal, a situação configurará irregularidade ou nulidade, a arguir nos termos dos art. 123.º, n.º 1, ou 120.º, n.º 1 e 3, al. a), do C.P.P.
V – O facto de as declarações para memória futura prestadas nos autos não terem sido indicadas na acusação entre as provas a produzir não impede o tribunal de as valorar, ao abrigo do artigo 340.º, n.º 1 e 2, do C.P.P., se as tiver como necessárias para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
VI – Pode reputar-se de falta de interesse em agir, e um venire contra factum proprium, a circunstância de o Ministério Público se insurgir contra a convocatória de uma testemunha para ser ouvida em julgamento, quando esta foi por si arrolada na acusação com esse objectivo
I – Relatório
1. … o arguido
AA, …
foi absolvido do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), e 2, al. a), do Código Penal (CP), que na acusação lhe vinha imputado.
2. Contra essa sentença interpõe recurso o Ministério Público (MP), sustentando ser a mesma nula. Das motivações de recurso formula o que diz serem conclusões, nos termos seguintes:
« I – A questão subjacente ao presente recurso é a seguinte:
Estamos perante crime de violência doméstica, em que a vítima foi cônjuge do arguido e prestou declarações para memória futura em inquérito.
Deve a vítima ser chamada a depor, em sede de audiência de julgamento, para declarar se pretende manter o seu depoimento ou recusá-lo, ao abrigo do art. 134.º, do Código de Processo Penal (CPP)?
E caso se recuse, tal invalida a valoração das declarações para memória futura já prestadas, ao abrigo do art. 356.º, n.º 6, do CPP?
II – A Mm.ª juiz do tribunal a quo decidiu no sentido afirmativo em ambas as questões, não valorando as declarações para memória futura prestadas pela vítima. Estribou o seu entendimento, no essencial, na argumentação constante do Ac. TRL de 15/09/2021.
III – Nos presentes autos, o tribunal decidiu absolver o arguido por não ter sido efetuada prova cabal dos factos pelos quais havia sido acusado.
IV – Tal decisão decorre do facto de não terem sido valoradas as declarações para memória futura que a vítima prestou em sede de inquérito.
V – No tribunal a quo, em sede de julgamento, a Mm.ª juiz decidiu chamar a ofendida a depor como testemunha e questioná-la se nos termos do art. 134.º, do CPP, pretenderia prestar declarações nesse momento. Uma vez que a vítima referiu não pretender prestar declarações, considerou o tribunal que, por tal motivo, não poderia valorar as declarações para memória futura já prestadas.
VI – Discordamos, por um lado, que a vítima, que já prestou declarações para memória futura sequer possa ser chamada, sem fundamento, a prestar declarações em julgamento.
VII – Não concordamos que tenha ou deva ser novamente questionada nos termos do art. 134.º, do CPP. E também se discorda que a recusa de prestar depoimento possa invalidar as declarações para memória futura já prestadas.
VIII – Com os art. 271.º, do CPP, e 24.º, da Lei 130/2015, de 04/09, pretende-se, por um lado, acautelar a prestação de depoimentos de testemunhas cruciais para a boa decisão da causa, …
IX – Por outro lado, proteger vítimas mais sensíveis, …
…
XII – Acresce que, as declarações para memória futura oferecem as mesmas garantias de defesa do arguido e de análise e produção da prova. …
XIII – Realça-se ainda que, nos termos do n.º 6, a testemunha é sempre questionada ao abrigo do artigo 134.º, do CPP, sobre se pretende prestar depoimento. Caso as declarações para memória futura sejam prestadas sem que o juiz de instrução criminal tenha feito a advertência a que se refere o artigo 134.º, então, nesse caso, justifica-se que a testemunha seja chamada a audiência de discussão e julgamento para suprir tal falta. Caso tenha sido efectuada, como impõe a lei, não se compreende a necessidade de repetir tal advertência.
XIV – Questionamos, então, qual seria o entendimento, segundo tal teoria, sobre como proceder caso a testemunha viesse a falecer, se ausentasse para morada desconhecida ou ficasse incapaz de prestar depoimento em razão de doença ou da idade? Ficam anuladas as declarações para memória futura já prestadas???
XV – E caso a testemunha, em sede de audiência de discussão e julgamento, seja persuadida pelo arguido ou pelo seu defensor a não prestar depoimento?? O tribunal deve então ignorar as declarações para memória futura e optar por seguir uma interpretação legalista e presa à letra da lei em detrimento da justiça e da boa decisão da causa??
XVI – Realça-se que foi, exactamente, o que aconteceu nos presentes autos. Após recusar a prestação de depoimento, no final da audiência de discussão e julgamento, a vítima declarou que havia sido aconselhada pela ilustre defensora do arguido a perdoá-lo, uma vez que este se encontra gravemente doente. A ofendida expôs tal situação por escrito em requerimento de 17/02/2023, que se encontra junto aos autos, com ref. 9486049.
…
3. Respondeu o arguido, pugnando pela rejeição do recurso ou, não sendo o caso, por ser-lhe integralmente negado provimento, de toda a maneira com manutenção do decidido nos seus precisos termos. …
4. Subidos os autos, a Sr.ª procuradora-geral adjunta emitiu parecer em que, no essencial acompanhando as razões do recorrente, que ainda assim desenvolve, e manifestando o entendimento de não haver vício da apresentação do recurso, por isso não cabendo a sua rejeição, conclui afinal pela respectiva procedência.
5. Cumprido que foi o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou, …
II – Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
1.1. …
1.2. … pode sem mais apontar-se como única questão por ele suscitada a de saber se a sentença recorrida enferma de nulidade; em concreto se a não valoração, em audiência, das declarações para memória futura prestadas pela vítima em inquérito, sendo indevida, como o recorrente argumenta ser, se repercute em qualquer nulidade da sentença. Isto, claro está, sem prejuízo, como se disse, da eventualidade de verificação de alguma outra nulidade que, mesmo não vindo arguida, importasse conhecimento oficioso, nem, bem assim, de eventuais vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, que nela se detectassem.
1.3. …
2. A decisão recorrida
A boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, importa que se faça aqui presente, a despeito da extensão que isso imporá a esta peça, não apenas o essencial da decisão em matéria de facto (incluindo os factos provados, não provados e a motivação), como ainda a fundamentação de direito (por ter sido nesta última que o tribunal recorrido expõe as razões de não ter valorado as declarações para memória futura prestadas pela vítima), ainda que procurando de tudo isso cingir a transcrição ao que verdadeiramente possa tanger com o que no recurso está em causa. Assim delimitado, é o seguinte o teor respectivo:
« (…)
II – Fundamentação
A) Factos provados
(…)
1. O arguido e a vítima BB casaram civilmente no dia .../.../2003,
…
16. A relação entre o arguido e a ofendida foi-se degradando, ficando restringida, desde há alguns anos, à partilha do espaço habitacional e à economia comum.
17. De acordo com o referido pela ofendida e pela enteada do arguido, este revelou-se possessivo e ciumento, pretendendo controlar todos os aspetos da vida da ofendida, acusando-a de manter outros relacionamentos.
18. Tal quadro, associado a essas características pessoais do arguido, bem como à sua fragilidade psicoemocional e falta de capacidade de resistência às frustrações, tornou a relação conflituosa e quezilenta, com discussões frequentes.
19. Arguido e ofendida viriam a separar-se, por iniciativa desta, passando a residir em habitações distintas.
20. A ofendida, contudo, manteve-se presente na vida do arguido, assegurando apoio na preparação de refeições e tratamento de roupas e demais atividades de índole doméstica.
21. Viriam a reatar e a interromper por algumas vezes o relacionamento, registando-se alguns incidentes, com comportamentos desajustados por parte do arguido, em regra de caráter reativo face à opção da ofendida em não querer manter a relação matrimonial entre ambos.
22. Os processos acima referenciados reportam-se a condutas delituosas de violência doméstica no contexto do termo do relacionamento, o qual nunca foi aceite e interiorizado pelo arguido.
…
B) Factos não provados
Não se provou que:
…
7. O arguido sabia que devia tratar sempre a vítima com respeito e dignidade, uma vez que a mesma é sua esposa, devendo abster-se das condutas como aquelas que assumiu.
8. Não obstante estar ciente disso tudo o arguido agiu como acima descrito, o que fez com o objetivo conseguido de magoar a vítima física e psiquicamente e de a humilhar enquanto pessoa, de lhe causar medo, diminuí-la na sua pessoa e na sua liberdade de determinação no âmbito da relação de ambos enquanto casal, tendo orientado a sua ação para a concretização dessa vontade e aproveitando-se do temor que causava na mesma, conseguindo causar à vítima instabilidade emocional, como forma de sobrepor a sua vontade à dela e de a levar a agir de acordo com aquilo que ele queria.
9. O arguido agiu sempre de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por Lei penal.
C) Motivação da matéria de facto
…
A audiência de julgamento teve lugar na ausência do arguido que, por razões de saúde devidamente comprovadas nos autos padece, presentemente, de elevadas dificuldades de locomoção, tendo requerido, neste contexto, que a audiência de julgamento decorresse na sua ausência, o que foi deferido.
A ofendida, não obstante tivesse prestado declarações para memória futura perante do JIC em fase de inquérito e na data de 27/07/2022, ouvida em audiência de julgamento recusou-se a prestar quaisquer declarações, usando da prerrogativa legal que lhe assiste e que se encontra contida no art. 134.º, n.º 1, al. a), do CPP.
Esclarecida sobre as consequências desta sua posição processual, a mesma referiu, de forma expressa, que não pretendia prestar quaisquer declarações em julgamento.
A convicção quanto à relação conjugal mantida entre arguido e ofendida foi obtida pelo exame do teor da certidão do assento de nascimento do arguido, constante de fls. 25 e ss., da qual consta o averbamento do casamento civil com a ofendida na data acima assinalada.
No que se refere aos factos constantes da acusação verifica-se, assim, que nenhuma prova acerca dos mesmos foi concretizada em audiência de julgamento.
Em face da ausência do arguido que, como tal, não prestou quaisquer declarações e da decisão da ofendida em não prestar declarações em audiência de julgamento, ficam invalidadas as declarações que a mesma havia prestado anteriormente para memória futura, não podendo as mesmas, não obstante o seu teor, ser valoradas como prova em audiência de julgamento.
Foram, ainda assim, inquiridas as testemunhas arroladas pela acusação, … resultando dos seus depoimentos que nada conheciam acerca dos factos constantes da acusação não conhecendo, ainda, o teor e contexto da relação mantida entre arguido e ofendida. …
Foram, por fim, inquiridas as testemunhas arroladas pela defesa, … sendo que as mesmas nada conheciam acerca da dinâmica e vivência do casal, pelo que nenhum contributo trouxeram aos autos para a matéria dos mesmos constantes. Nestes termos, foi apenas valorado o depoimento prestado na parte em que se pronunciaram sobre o caráter e personalidade do arguido, tendo-o descrito com as características acima assinaladas.
…
D) Enquadramento jurídico-penal
O arguido vem acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), e 2, al. a), do CP.
(…)
Examinada a matéria de facto relatada nos autos, não se nos colocam dúvidas de que os comportamentos do arguido são suscetíveis de enquadrar-se neste conceito.
Porém, importa referir que tais factos não resultam demonstrados na prova que se produziu.
Efetivamente e conforme resulta da narração dos factos no despacho de acusação, os factos pelos quais o arguido vem acusado apenas foram presenciados pelo próprio e pela ofendida, pelo que a respetiva demonstração da sua verificação apenas poderia extrair-se através do confronto das declarações que, validamente, prestassem em audiência de julgamento.
O arguido, dado o seu estado de saúde, não compareceu em julgamento e requereu que a produção de prova decorresse na sua ausência, assim renunciando ao direito a prestar declarações acerca dos factos, direito que a lei lhe confere.
A ofendida, por seu lado e pese embora tivesse prestado declarações para memória futura, em audiência de julgamento usou da prerrogativa legal de não prestar declarações, mesmo após esclarecida sobre esta sua opção e instada a esclarecer se apenas não pretendia voltar a relatar os factos ou se pretendia, efetivamente, não prestar quaisquer declarações acerca dos mesmos tendo, de forma livre e esclarecida, reiterado não pretender prestar quaisquer declarações.
Conforme decorre do disposto no art. 33.º, n.º 7, da Lei 112/2009, de 16/09, a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Ora, decorre da conjugação deste normativo legal com as regras processuais penais da produção de prova em audiência de julgamento, que a circunstância de a vítima ter sido anteriormente ouvida para declarações em memória futura, não obsta a que a mesma seja convocada para a audiência de julgamento para ali prestar depoimento que, neste caso e optando por o efectivar, poderá ser feito por remissão para as declarações que anteriormente prestou, uma vez que estas têm validade como prova em julgamento.
Todavia, no caso vertente, a ofendida inverteu a sua posição anterior …
Acerca desta questão a nossa jurisprudência é ainda pobre, apenas se detetando um único aresto que se debruçou sobre a questão, concretamente, o Ac. TRL de 15/09/2021, relatado no processo n.º 20/21.1 SXLSB.L1-3 e disponível in www.dgsi.pt (já que no Ac. TRL de 20/04/2022, proferido no processo n.º 37/21.SXLSB.L1-3, a situação é inversa, porquanto a vítima que tinha prestado declarações para memória futura em fase de inquérito, inquirida em julgamento referiu não pretender voltar a falar sobre aquele assunto, já tendo relatado tudo o que lhe competia acerca do mesmo o que, conforme se decidiu no Ac. STJ de 22/09/2022 e relatado no processo identificado, disponível in www.dgsi.pt, constitui situação de facto distinta daquele).
Reza tal aresto, no seu sumário, o seguinte:
“A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vítima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor ou queira depor, ainda que, sendo apenas ofendida, seja ouvida como testemunha.
É o que resulta do disposto no n.º 6 do artigo 356.º do CPP e do artº 134º nº 1 a) e b) CPP.
O artº 356º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.
Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.
Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a impedir que essa prova seja valorada.
Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no artº 271º nº 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento.
E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência dando lugar como que a uma inutilidade superveniente das mesmas declarações, que o próprio anula retirando-as do âmbito da apreciação da prova.
Ou seja, apenas dos meios de prova permitidos e, as declarações para memória futura, após a recusa a depor em audiência, já não podem ser consideradas meios de prova.
O Tribunal não tem de as referir na sua fundamentação, nem pode fazê-lo.”
Ora, conforme se decidiu … o direito pessoal à recusa em prestar depoimento, tem de prevalecer face à valoração das provas obtidas nos autos, i.e., se a testemunha (ainda que ofendida e ainda que em causa esteja o crime de que a própria é vítima) se recusa, legitimamente, a depor, em audiência de julgamento, não pode essa recusa ser substituída pela leitura ou reprodução das declarações que prestou em fase anterior do processo nem, tão-pouco, estas mesmas declarações serem valoradas como prova, ao arrepio da sua intenção, desde que expressa e esclarecida, de não se pronunciar acerca dos factos constantes dos autos.
Decidiu-se em tal acórdão que
“O artigo 356º nº6 determina que “é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.”
Da letra da lei não resulta que não podem ser tidas em conta tais declarações para memória futura aquando da análise da prova pelo Tribunal. Resulta apenas que, não podem em caso algum ser lidas em audiência, não podem ser lidas, ainda que tivessem sido recolhidas para serem tidas em conta em julgamento. Ora como já vimos, a razão de recolha de tais declarações para memória futura, prende-se com a proteção á vítima, o evitar de repetições e a recolha de depoimento sem perda de factos.
Na interpretação da lei o intérprete, atribui-lhe um significado, determina o seu sentido a fim de se entender a sua correta aplicação a cada caso concreto. O interprete socorre-se pois, em primeiro lugar do elemento literal, da letra da lei, das palavras empregues pelo legislador, e também do elemento histórico, racional e teleológico.
A letra da lei tem duas funções: a negativa (ou de exclusão) e positiva (ou de seleção). A primeira afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); a segunda privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.
Mas além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica.
Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias: a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada];
b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema;
c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objetivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).
Vejamos então como interpretar o artº 356º nº 6 CPP. Se as declarações para memória futura são recolhidas a fim de proteger a vítima vulnerável da influência do arguido, da sujeição a vários interrogatórios, da exposição da vítima a audiências sucessivas e a contraditórios por vezes atentatórios da sua dignidade, as mesmas declarações têm em vista a impossibilidade de quem as presta de estar presente em audiência e ainda, por fim, a recolha de factos/prova, no auge dos acontecimentos.
Podem as mesmas ser usadas aquando da fase de julgamento e devem ser tidas em conta pelo Juiz que a ele preside, sem necessidade a nosso ver de serem lidas em audiência.
Vejamos agora qual o objetivo do legislador com a determinação do artigo 134.º do CPP que consagra o depoimento de parentes e afins e deve ser conjugado com as declarações da vítima, neste caso concreto, vítima de violência doméstica e companheira do arguido.
Determina o legislador neste seu artigo que
1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas: a) (...) b) Quem tiver sido cônjuge do arguido, ou quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
2 (...)
O Juiz, sob pena de nulidade, deve advertir o depoente de que pode recusar-se a depor. O legislador o que nos diz com este dispositivo legal é que a prova não pode ser obtida a qualquer preço e que, há situações que devem ser tidas em conta já que os laços que se estabelecem entre quem é julgado e quem depõe, são de tal forma que podem levar até a um depoimento menos transparente, o que contribuirá em nada para a descoberta da verdade dos factos.
O legislador deu prevalência à relação especial da pessoa em relação ao arguido e não propriamente ao seu estatuto processual, enquanto interveniente processual. Diz-nos o Professor Figueiredo Dias que, “não obstante a descoberta da verdade material ser uma finalidade do processo penal não pode ela ser admitida a todo o custo, antes havendo que exigir da decisão que ela tenha sido lograda de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêm envolvidas”. O privilégio familiar constitui uma derrogação ao dever de declarar. É obrigado a responder, e a responder com verdade, a não ser que se queira recusar a depor por ter vivido com o arguido uma relação igual ou semelhante à dos cônjuges.
Nessa medida, o reconhecimento do direito de recusa em depor representa uma forte limitação à obtenção da prova e à administração da Justiça que, contudo, é compreensível e justificada. É evidente que quando o parente ou familiar do arguido, não obstante ter conhecimento dos factos e de o seu depoimento se poder revelar de extrema importância para a descoberta da verdade, se remete ao silêncio, recusando-se a depor, o arguido pode ser favorecido pelo silêncio. Mas esta é a consequência e não o fundamento da recusa de depor por parte dos familiares do arguido.”
E, mais à frente, acrescenta que “Assim, o despacho recorrido, e nesta linha de interpretação do elemento sistemático conjugado com os restantes elementos de interpretação, remetendo para o artigo 356º nº 6 no despacho em audiência, afastou de raiz qualquer possibilidade de ter em conta as declarações para memória futura e deu por decidida a questão. “ é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.” É pois, este, o sentido do dispositivo legal em causa. Sendo proibida, em qualquer caso, a leitura das declarações prestadas em inquérito ou instrução, onde se incluem as declarações para memória futura, tendo em conta que quem as presta pode vir a retratar-se e a desistir até de queixa, quando o legislador impede esta leitura, impede-a com o intuito firme de que as mesmas não possam servir de prova, nem serem consideradas porque assim não o quer o autor das mesmas.”
Por fim, refere ainda que “Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.
Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, e que sendo há que ficar a constar da ata a razão pelo que o foram, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a permitir que essa prova não seja valorada, aliás, está a impedir que essa prova seja valorada.
Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no artº 271º nº 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar, ou seja, não é necessário lê-las, mas não impede que se leiam.
E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência e, se as declarações para memória futura são para ser utilizadas em audiência, como prova (no caso de quem as prestou não poder comparecer ou não puder prestar declarações), estando o seu autor presente e recusando-se a depor, há como que uma inutilidade superveniente das mesmas que o próprio anula retirando-se as mesmas do âmbito da apreciação da prova.
Há que não esquecer que, como diz o Sr. Conselheiro Carlos Almeida no seu Ac. da Rel. de Lisboa de 11-1-2012, ainda como Desembargador, no proc. n. 689/11.5PBPDL–3 as revisões de 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) e de 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto) alteraram a natureza meramente cautelar do art.º 271.º do CPP que passaram a ter também o fim de proteção da vítima evitando repetições de depoimentos normalmente dolorosas e em condições constrangedoras de obrigação de reviver factos que se querem, ao fim de uns tempos, apagados da memória e da partilha com outrem.
Para além disso a decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vitima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor, ainda que, sendo apenas ofendida seja ouvida como testemunha.
É o que resulta do disposto no n.º 6 do artigo 356.º do CPP e do artº 134º nº 1 a) e b) CPP.”
Ora, considerando o acabado de expor e a situação em exame nos autos, constata-se que é, precisamente, este o caso ocorrido nos presentes autos: a ofendida prestou declarações para memória futura em fase de inquérito e, em fase de julgamento, exerceu o seu direito legal de não prestar declarações, assim revogando a manifestação de vontade anteriormente expressada.
Ao não pretender, mais, prestar declarações sobre os factos – e efetuando-se uma interpretação sistemática deste direito legal – a ofendida manifestou a sua vontade de não valoração do que anteriormente havia declarado (caso assim não se entendesse nunca poderia aceitar-se uma desistência de queixa nos casos em que o ofendido anteriormente houvesse descrito os factos) e, tal manifestação de vontade, porque foi aparentemente livre e das respetivas consequências de âmbito, foi por nós esclarecida em audiência de julgamento, tem de ser relevada como o uso de um direito que a lei lhe confere e, como tal, de tal uso se retirar a devida consequência legal da não valoração das declarações anteriormente prestadas.
Assim, e atento o exposto, impõe-se considerar que não se provou qualquer facto subsumível ao elemento objetivo do tipo de crime de que o arguido vem acusado, assim se impondo a sua absolvição.
(…) »
3. Enfim apreciando
3.1. Nos termos em que nos vem trazida para apreciação, a causa de recurso suscita perplexidades diversas, as quais, embora não tangendo afinal com a solução que se imporá, carecem de alguns esclarecimentos, a fim de evitar que a obnubilem. Disso cuidaremos adiante, mas por agora, e para não passar simplesmente por alto a argumentação que o recorrente alinha, diremos que a questão do efeito sobre o valor das declarações para memória futura da válida recusa a depor, em audiência, por quem as tenha prestado, tem já sido abordada na jurisprudência. Não será esforço demasiado ocioso, e quando menos terá valor ilustrativo, fazer uma breve resenha dessa jurisprudência, como se localiza por breve consulta apenas da base de dados jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e de Equipamentos da Justiça (www.dgsi.pt), e ordenada temporalmente, tentando sintetizar as soluções nela propostas:
a) Ac. TRL 15/09/2021, processo 20/21.1SXLSB.L1-3 (Adelina Barradas de Oliveira)
Sumário
A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vítima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor ou queira depor, ainda que, sendo apenas ofendida, seja ouvida como testemunha. É o que resulta do disposto no n.º 6 do art. 356.º do CPP e do art. 134.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP.
O art. 356.º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.
Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.
Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a impedir que essa prova seja valorada.
Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no art. 271.º, n.º 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento.
E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência dando lugar como que a uma inutilidade superveniente das mesmas declarações, que o próprio anula retirando-as do âmbito da apreciação da prova.
Ou seja, apenas dos meios de prova permitidos e, as declarações para memória futura, após a recusa a depor em audiência, já não podem ser consideradas meios de prova.
O tribunal não tem de as referir na sua fundamentação, nem pode fazê-lo.
b) Ac. TRL 23/03/2022, processo 150/21.0PALSB.L1-3 (Ana Paula Grandvaux)
Sumário
I - Num processo tendo por objecto a prática de crime de violência doméstica, em que a ofendida se recusa em audiência de julgamento a prestar declarações sobre esse mesmo objecto, não pode ser valorado o seu depoimento anteriormente prestado nos autos, mesmo aquele prestado para memória futura, no decurso do inquérito ou da instrução – porque assim o exige o preceituado no art. 356.º/6, do CPP.
II - Com efeito, nada tendo sido estabelecido legalmente em sentido contrário, deve prevalecer o disposto no art. 356.º/6, do CPP, porquanto deve triunfar a autonomia da testemunha e os valores que subjazem ao seu direito de recusar prestar depoimento em julgamento, que lhe é conferido legalmente, em detrimento da procura da verdade.
c) Ac. TRL 20/04/2022, processo 37/21.6SXLSB.L1-3 (Maria Perquilhas)
Sumário
A tomada de declarações para memória futura nos termos do art. 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente.
O art. 24.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima, regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art. 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
O art. 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.
O art. 356.º, não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art. 24.º do Estatuto da Vítima.
Por força do disposto no art. 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art. 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).
As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
Uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.
Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.
As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).
O art. 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art. 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.
d) Ac. TRC de 09/11/2022, processo 712/21.5PCAMD.C1 (José Eduardo Martins) [curiosamente, um processo decidido em primeira instância no mesmo juízo local criminal de Caldas da Rainha, ainda que no J...]
Sumário
I - Só após a produção da prova em audiência de julgamento deve o tribunal ponderar a necessidade de ouvir quem antes prestou declarações para memória futura, porquanto estas constituem prova pré-constituída, visando, justamente, evitar que a vítima volte a ser inquirida.
II - Se a vítima comparece em audiência e se, legalmente, recusa a prestação de depoimento, fica vedada a valoração do que antes dissera em sede de declarações para memória futura.
e) Ac. TRP de 14/12/2022, processo 82/21.1GBOAZ.P1 (Paulo Costa)
Sumário
I - A produção antecipada da prova de julgamento, embora derrogue o princípio da imediação, previsto no art. 355.º, do CPP, é obrigatória nos casos dos crimes contra a liberdade e de autodeterminação sexual de menor (cfr. art. 271.º, n.º 2, do mesmo Código), desde as alterações produzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, e sob impulso nos demais casos em que poderão estar em causa vitimas especialmente vulneráveis; é um ato sempre presidido por um juiz e segue trâmites próprios de um julgamento, quer quanto à gravação, quer quanto à liberdade para querer depor, embora não inviabilize a repetição do depoimento em audiência, se este for possível e não tiver contraindicações de natureza física ou psicológica por parte do declarante, não sendo obrigatória a sua reprodução em audiência, uma vez que se trata de prova pré constituída que tem livre acesso à consulta, estando na disponibilidade de todos os intervenientes, que assim se podem defender, ficando cumprido o contraditório.
II - Nos crimes contra a autodeterminação sexual de menor e também de violência doméstica, a prestação de declarações radica numa “opção protetora” do ordenamento jurídico justificada pela especial vulnerabilidade do ofendido; com efeito, visa-se não só assegurar a genuinidade e a credibilidade das declarações prestadas, mas também, no quadro das recomendações do direito europeu sobre a matéria, mitigar o efeito de vitimização secundária que a repetição das inquirições inelutavelmente comporta.
III - Mesmo que em audiência a vítima exerça o seu direito ao silêncio ou preste declarações em sentido contrário ao anteriormente declarado, tal não inviabiliza nem retira a possibilidade e o dever de o julgador as apreciar, de forma conjugada com a restante prova, e as valorar de harmonia com as regras da experiência e da lógica.
(…)
Sumário
I - Por força do disposto no art. 356º/2-a), é permitida a leitura de declarações tomadas ao abrigo da referida norma, desde que prestadas perante um Juiz.
II - O n.º 6 da norma declara a proibição da leitura do depoimento prestado nos termos supra descritos, relativo a testemunha que se tenha validamente recusado a depor.
III - Em processos de violência doméstica, por força do estatuto de vítima especialmente vulnerável, a que se reportam os art. 87-A/1-b), do CPP, e 2º-b), da Lei 112/2009, de 16/9, é aplicável o regime especial decorrente dos art. 21º/2- d) e 24º/6, da Lei 130/ 2015 de 04/09 (Estatuto da Vítima), relativo à prestação de declarações para memória futura, segundo o qual as vítimas só deverão prestar depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a respectiva saúde física ou psíquica.
IV - As normas invocadas configuram um regime especial em natureza dos crimes acusados, por se tratar de normas contidas em lei especial com vigência posterior à lei geral, e portanto revogadora desta última no âmbito da respectiva previsão normativa (art. 7º/2, do Código Civil).
V - Nos termos da legislação aplicável a inquirição de vítimas de violência doméstica, em sede de audiência de julgamento, apenas é legalmente admitida em caso de necessidade, devidamente justificada por despacho prévio que justifique a diligência, sob pena de ser cometida uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado.
VI - A recusa a depor por parte vítima deste tipo de crime, que prestou declarações para memória futura, e, sem justificação, foi chamada a depor em audiência, está subtraída ao regime do nº 6 do art. 356º, do CPP, porque ao inquiri-la o tribunal praticou uma irregularidade relevante, que afecta os termos subsequentes à mesma, ou seja, a validade da recusa em depor.
3.2. O Ac. TRL referido supra em c) foi ainda objecto de recurso para o STJ, com vista à uniformização de jurisprudência e tendo como acórdão fundamento o referido supra em a), sucedendo porém que no seu Ac. de 22/09/2022 (Maria do Carmo Silva Dias) foi por aquele STJ recusada decisão de uniformização, por se entender não estarem integralmente verificados os pressupostos respectivos. Dito isto, e desconsiderando tanto as incidências laterais que em cada um relevam quanto a minúcia dos argumentos concitados, o exame dos arestos referidos permite identificar a formação, nas relações, de duas correntes opostas. Uma, sustenta essencialmente que em a testemunha/assistente, tendo prestado declarações para memória futura, depois em audiência legitimamente se recusando a depor, designadamente ao abrigo do disposto pelo art. 134.º, n.º 1, al. b), do CPP (como aqui foi o caso), inviabiliza a valoração das primeiras, directamente por força do art. 356.º, n.º 6, do CPP, isso o impondo a efectiva tutela do direito a recusar-se a depor e assim não contribuir para a eventual condenação do arguido com quem tenha vinculação familiar (que é a razão da outorga dessa faculdade); a outra defende, também essencialmente, que uma vez prestadas as declarações para memória futura, e desde que no correspondente acto tenham sido feitas ao declarante as advertências devidas, renunciando à faculdade de não depor e com efeito prestando-as, então o facto de em audiência para que seja convocado inverter a posição e manifestar uma tal recusa não pode já apagar o valor da prova que com aquelas primeiras ficara validamente constituída e que, assim, deve ser ponderada em conjugação com a restante prova e segundo os critérios da lógica e da experiência comum.
3.3. Obviamente, nos termos em que o recorrente a coloca, a questão dependeria da posição que na matéria tomássemos. Seguir os moldes gerais da primeira das referidas correntes, levar-nos-ia à conclusão de bem ter decidido o tribunal recorrido em não valorar aquelas declarações para memória futura e, sendo inquestionavelmente essa única prova, mesmo em abstracto, susceptível de suportar os factos potencialmente relevantes do crime imputado e que na sentença se deram como não provados, o resultado seria inevitavelmente esse: dá-los como não provados, com as inerentes consequências. Seguir pelo contrário a segunda das ditas orientações, conduzir-nos-ia à conclusão de aquelas declarações deverem ter sido ponderadas e, por aí, à eventualidade de um erro de julgamento, na medida em que pudesse dizer-se serem prova cuja valoração, à luz das regras da experiência comum (art. 127.º, do CPP), impusesse (art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP) ao tribunal recorrido ter dado aqueles factos como provados. E contudo, a verdade, agora sim chegando às perplexidades a que logo de início fizemos referência, é que o problema vem no caso a ser despiciendo, servindo as linhas que antecedem somente para melhor ilustrar a correcta colocação da causa no âmbito da impugnação da decisão em matéria de facto; aspecto que como veremos é decisivo.
3.4. Quanto às ditas perplexidades, mal se percebe desde logo, e salvo o devido respeito, que o recorrente branda a suposta natureza indevida da convocatória da testemunha/vítima para depor em audiência. Não cabe discutir que as declarações para memória futura que prestara visam precisamente evitar essa segunda confrontação com os factos e os efeitos de revitimização que potencia, tanto quanto preservar a prova contra eventualidade de ulterior perda ou adulteração, e que no caso particular das vítimas de violência doméstica, especialmente vulneráveis (art. 1.º, al. j), e 67.º-A, n.º 1, al. b) e 3, do CPP, 20.º, n.º 1, e 21.º, n.º 2, al. d), do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015, de 04/09, e 2.º, als. a) e b), e 14.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16/09), resulta até dos art. 33.º, n.º 7, da dita Lei 112/2009, de 16/09, e 17.º, n.º 2, e 24.º, n.º 6, daquele Estatuto da Vítima, em especial deste último, mais incisivo do que o primeiro (que meramente retoma o art. 271.º, n.º 8, do CPP), uma excepcionalidade dessa nova prestação de declarações em audiência (nos termos da norma, apenas se “for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar” – destaques nossos). O que contudo e como é evidente não resulta, de modo nenhum, é uma inviabilidade de princípio dessas novas declarações, e tanto no caso expressamente previsto, de indispensabilidade para a descoberta da verdade, quanto, desde logo, de a própria testemunha/vítima as querer prestar, na medida em que não poderia ser privada de um tal direito (art. 67.º-A, n.º 4 e 5, do CPP), e certamente não em nome de uma protecção contra a vitimização secundária a que ela mesma estaria com essa vontade a renunciar.
3.5. E deste modo assente que apesar de tudo pode ter lugar, mesmo nos casos de procedimento por crime de violência doméstica, a audição, em julgamento, de vítima que prestara já declarações para memória futura, no caso sucede que nem mesmo se mostra relevante saber exactamente porque haveria de ter lugar, i.e., se era ou não fundado convocá-la para isso. É que, importa enfatizá-lo, foi o próprio MP, agora recorrente, quem com a acusação de 22/09/2022 (cfr. doc. ref. 101281861, dessa data), a arrolou como testemunha para ser ouvida em audiência, de resto nem mesmo indicando como prova as declarações para memória futura que antes a mesma prestara, em 27/07/2022 (cfr. doc. ref. 101051911)! Foi por isso, porque o MP a arrolou entre as mais testemunhas (e o arguido arrolou as mesmas da acusação), que o tribunal convocou a vítima. Já em audiência, a 17/02/2023, e como se colhe da acta respectiva (cfr. doc. ref. 102934242, com aquela data), procurou o MP que a audição não tivesse lugar, então sim apelando à disponibilidade daquelas declarações prestadas para memória futura, mas em face da oposição da defesa a que as mesmas fossem consideradas, precisamente porque não tinham sido com a acusação indicadas e sob invocação do art. 283.º, n.º 3, al. g), do CPP, acrescendo requerer aquela audição, a Sr.ª juiz proferiu despacho em que, afinal, determinou a audição a fim de inquirir a vítima sobre se pretenderia ou não exercer o direito de não depor (não obstante a pertinente advertência lhe tivesse sido logo feita aquando das declarações para memória futura e já então a mesma tivesse pretendido declarar, tudo como igualmente consta da correspondente acta…).
3.6. Pois bem, independentemente da posição que se tome, de entre as que atrás expusemos e das matizes delas cogitáveis, quanto à repercussão da recusa da vítima a depor, em audiência e ao abrigo do art. 134.º, n.º 1, al. b), do CPP, sobre a viabilidade ou não de valoração das declarações antes prestadas para memória futura, o que sem dúvida se mostra com efeito algo esdrúxulo é o modo como se chegou àquela segunda inquirição. Todavia, e já nem falando do que poderia reputar-se de falta de interesse em agir do MP na parte em que se insurge, em autêntico e censurável venire contra factum proprium (sem prejuízo do devido respeito), contra a convocatória de uma testemunha que ele próprio arrolara, o decisivo é que nada então arguiu contra aquela decisão, com que assim se conformou. Entendendo que a mesma importasse irregularidade ou mesmo nulidade (art. 118.º, n.º 1 e 2, do CPP), o que lhe cabia, estando presente como estava, teria sido de imediato argui-la, nos termos dos art. 123.º, n.º 1, ou 120.º, n.º 1 e 3, al. a), do CPP. Se o tivesse feito, e a Sr.ª juiz tivesse entendido não reconhecer o vício e repará-lo, do que poderia caber recurso seria dessa decisão; não o tendo feito, ficou precludida a possibilidade de arguição, que como é óbvio não pode ser retomada já em recurso contra a subsequente decisão final (sentença). É bom de ver que a isto nada altera o que quer que seja que a testemunha em questão possa ter manifestado após a audiência, e a isso somando que manifestamente não estaria em causa nulidade que insanável fosse (coisa que não se poderia arrimar nem ao art. 119.º, do CPP, nem a outra qualquer norma legal), sobra que uma tal decisão (de nova inquirição da vítima em audiência) é já inatacável.
3.7. De resto, e esta é a perplexidade maior das geradas pelo recurso, o que de tudo quanto argumenta o recorrente tira, é a conclusão de a própria sentença recorrida se fazer nula, coisa que afirma a despeito de em parte alguma, nas conclusões ou nas motivações que fosse, se dar sequer ao cuidado de normativamente sedear esse suposto vício. É claro que em enfermando a própria sentença de nulidade, esse sim seria um vício arguível directamente em recurso contra a mesma interposto, como resulta explícito do art. 379.º, n.º 2, do CPP, e cabendo até notar que nos contamos entre os que entendem tratar-se, aí, de nulidades a conhecer oficiosamente; todavia, simplesmente não é possível ver, na decisão de não valorar a prova em causa (as declarações para memória futura) e com as razões para isso aduzidas pelo tribunal recorrido, qualquer preenchimento de alguma das als. do n.º 1 daquele art. 379.º, do CPP, que é onde se elencam as nulidades da sentença – podendo aliás porventura entender-se a dita omissão de qualquer específica referência normativa, essa ou outra, como índice semiótico de que o recorrente terá afinal tido consciência de a arguição de nulidade da sentença que empreendeu não ter suporte legal. Breve, é manifestamente improcedente a dita arguição, não se verificando, a título algum, a dita nulidade.
3.8. Embora já algo lateralmente, não deixamos de referir outra matéria que, brandida esta pelo recorrido, importa igualmente alguma perplexidade e, por isso e na linha do atrás referido, merece um esclarecimento. É que o facto de as declarações para memória futura não terem sido com a acusação indicadas entre as provas a produzir, como nos termos da al. g) do n.º 3 do art. 283.º do CPP deveriam, em si mesmo não impediria que o tribunal as tivesse valorado, ao contrário do que o recorrido procura sustentar. Na verdade, e ao abrigo do art. 340.º, n.º 1 e 2, do CPP, entendendo-as necessárias para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (o que nas concretas circunstâncias facilmente se admitiria, para mais em face da legítima recusa da testemunha a depor em audiência), o tribunal, no caso de entendê-las passíveis de valoração, sempre poderia oficiosamente tomá-las em conta. E se não tomou, não foi porque a indicação delas como prova não constasse da acusação, mas sim por ter concluído que disso o impedia aquela recusa a depor, manifestada já em audiência e abrigada pelo art. 134.º, n.º 1, al. b), do CPP. O que enfim, e já começando a tentar completar este algo longo circuito de considerações, nos traz de novo à afirmação já deixada: a adequada sede do problema, da insurgência do recorrente contra o decidido, teria sido a impugnação da decisão em matéria de facto.
3.9. Ora, a decisão da matéria de facto pode em sede de recurso sindicar-se por duas vias: (1) no âmbito dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, a que se convenciona chamar de impugnação restrita (que concita a chamada revista alargada e que a proceder reclama, para correcção do decidido, um novo julgamento, total ou parcial, apenas excepcionalmente a podendo fazer o próprio tribunal superior – nos termos dos art. 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do CPP); ou (2) com a designada impugnação ampla, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, também do CPP (neste caso implicando a eventual procedência a correcção do decidido pelo tribunal superior – art. 431.º, al. b), do CPP). Da primeira via, e segundo os explícitos termos literais da lei, apenas podem relevar os vícios decisórios que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que vale por dizer que têm de ser uns tais que se revelem por escrutínio que, armado daqueles critérios da experiência comum (é dizer: da lógica, da razão, enfim, do conhecimento científico), se limite à decisão em crise, sem recurso a elementos que lhe sejam externos, designadamente probatórios e mesmo que produzidos em julgamento. Já na segunda, aí sim, versa-se a decisão em confronto com a prova e o respectivo reexame, na medida do necessário e à luz dos pertinentes critérios legais (o art. 127.º do CPP, com os seus limites).
3.10. Correlativamente, tema da primeira (1) podem ser (e aliás até em conhecimento oficioso): (a) a insuficiência dos factos provados para suportar a decisão de direito (coisa que se não pode confundir com a insuficiência das provas para a decisão sobre os factos); (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (i.e., entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma); e enfim (c), o erro notório na apreciação da prova (patente às capacidades mínimas comuns de qualquer destinatário a partir da análise dela feita na decisão) – tudo conforme, respectivamente, as als. a), b) e c), do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Tema da segunda (2), por seu lado, são as eventuais vicissitudes do próprio processo e resultado de formação de convicção sobre a prova: a respectiva suficiência ou insuficiência, a capacidade e segurança de convencimento que proporcione à luz dos critérios legais da avaliação dela pelo julgador, designadamente dos limites da liberdade de apreciação que é a regra (art. 127.º do CPP), sejam os decorrentes das regras da experiência comum, sejam os impostos pelas previsões excepcionais sobre prova vinculada, e mesmo, no que aqui pode importar, a observância ou não de regras relativas à admissibilidade ou proibição de provas. Na verdade, a primeira (1), embora versando em derradeira análise a decisão de facto, directamente implica, em bom rigor, e nos moldes restritos em que a respectiva impugnação se consente, um escrutínio isso sim da sentença; e a segunda (2), com a amplitude que lhe é característica, versando directamente o juízo decisório em cotejo com a prova, é que em sentido próprio dá corpo ao recurso em matéria de facto.
3.11. Por outro lado, não pode perder-se de vista que do que se cura, no contexto desta última (da impugnação ampla da decisão de facto, nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP), não é e nem pode ser de um novo julgamento da causa, sobreposto ao da primeira instância e para mais sem os benefícios da oralidade e imediação de que esta usufruiu. A impugnação visa, e só isso cabe que vise e pode lograr, a cirúrgica correcção de potenciais erros de julgamento; e mesmo que potencialmente muitos, é sempre e apenas isso. Dito de outro jeito, e de resto com mais exactidão, não está e nem pode estar em causa a sobreposição, pelo tribunal de recurso, da sua compreensão da prova e das conclusões que viabiliza (ou já agora da dos recorrentes), àquela que o tribunal recorrido formou e exprimiu em sentença, no uso da respectiva liberdade, outorgada pelo dito art. 127.º, do CPP, e naturalmente desde que com respeito pelos correspondentes limites. Isto é uma implicação necessária de a potencial alteração do decidido em matéria de facto pela primeira instância, só justamente ser viável lá onde a prova impusesse decisão diversa, como resulta directamente do art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP, e é aliás doutrina e jurisprudência comuns. Para que fiquem afastadas quaisquer incompreensões: não basta configurar hipóteses decisórias alternativas ainda mais ou menos compagináveis com a prova produzida (ou com a insuficiência dela), é dizer, nela também em tese suportáveis (ou em tese não suficientemente suportáveis).
3.12. Necessário será, ainda, que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta apreciação alternativa, a prova que foi produzida, de algum modo imponham como conclusão lógica uma decisão diversa e em concreto aquela a que nas argumentações de recurso se chega – daqui decorrendo o duplo ónus processual, imposto pelo art. 412.º, n.º 3, als. a) e b), e 4, do CPP, de os recorrentes indicarem por um lado os concretos pontos de facto que considerem incorrectamente julgados e, por outro, as concretas provas (ou falta delas) que no seu entender teriam imposto naquela matéria decisão diversa da tomada – além disso incluindo-se nesse cumprimento, necessariamente e como decorrência lógica daquelas obrigações, ainda as de ligar as provas aos factos em crise (com menção de que provas ou falta delas o impõem e quanto a que factos) e de explicitar argumentativamente as razões (más ou boas) de considerarem que as mesmas impõem a reclamada decisão diversa, é dizer, explicarem o porquê disso, em termos susceptíveis de alcance e acolhimento pela racionalidade intersubjectiva suposta na comunidade destinatária das decisões judiciais.
3.13. Este esboço dos parâmetros das impugnações, algo esquemático e linear que seja, é amplamente suficiente para o que aqui nos importa, e começamos por notar que a mais de nenhum ser expressamente arguido, nem mesmo a norma sendo de qualquer jeito invocada, também se não verifica a partir do texto da sentença, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, qualquer dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP. Nada consente afirmar (a) insuficiência da matéria de facto provada para a decisão tomada (que aliás foi de absolvição, precisamente por não se terem considerado provados os factos integrantes do tipo de crime imputado!), nem (b) se detecta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, muito menos insanável, fosse dos factos provados e não provados uns com os outros ou entre si, ou ainda com a motivação, ou desta com o afinal decidido, e nem enfim (c) se pode falar de erro notório na apreciação de prova quando precisamente o problema está em não ter sido sequer valorada/apreciada prova e isso em função de explícita decisão, má ou boa, sobre a respectiva inadmissibilidade. Breve, não é a título algum sustentável qualquer vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, o que enfim nos deixa em mãos com a eventual aproveitabilidade do recurso como impugnação ampla da decisão em matéria de facto.
3.14. Aquilo com que o recorrente se manifesta inconformado, é afinal com não terem sido dados por provados os factos que, imputados na acusação, davam corpo ao preenchimento, pelo arguido, do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), e 2, al. a), por que naquela vinha acusado; e, na sua tese, essa decisão importaria erro de julgamento por isso que existe prova (as declarações para memória futura), que a ter sido valorada, como em seu entender deveria ter sido, imporia dá-los como provados. E assim com efeito se poderia configurar, em abstracto, o cerne da impugnação. O tribunal de recurso, na hipótese de discrepar do entendimento do tribunal recorrido sobre a admissibilidade da valoração respectiva, e então reexaminando essa prova (art. 412.º, n.º 3, al. b), e 6, do CPP), caso por último concluísse que na verdade e à luz da lógica, da razão, dos critérios de conhecimento científico, enfim, das regras da experiência comum (art. 127.º, do CPP), a mesma impunha a prova dos factos em causa, modificaria a decisão em conformidade (art. 431.º, n.al. b), do CPP). Acontece que os próprios termos do recurso não consentem esse aproveitamento, de tal sorte que nem mesmo cabe aqui tomar posição sobre aquela admissibilidade da valoração das declarações para memória futura em face da recusa da vítima/testemunhas que as prestara a depor em audiência e ao abrigo do art. 134.º, n.º 1, al. b), do CPP.
3.15. Como exercício de raciocínio, concedamos na eventualidade de com mais ou menos matizes assumirmos posição no sentido dessa admissibilidade (do que pelo menos caberia duvidar); ainda assim, inultrapassável seria sempre que, a mais de nem mesmo vir em parte alguma do recurso (motivações ou conclusões) invocada a norma (art. 412.º, n.º 3, do CPP) ou sequer verbalizado o intuito de impugnação, sobretudo não se dá nele cumprimento mínimo às já referidas obrigações processuais correspondentes: não vem feita especificada indicação dos concretos factos que o recorrente considerasse mal julgados (al. a) do n.º 3 daquele art. 412.º); e não são especificadas as concretas provas que putativamente imporiam decisão diversa sobre tais factos (al. b) do n.º 3 e n.º 4 do mesmo art. 412.º). E ainda admitindo, o que seria já demasiado, que se aceitasse uma indicação meramente implícita dos factos tidos por incorrectamente julgados (que assim se identificariam com, de entre os não provados, os que relevassem do preenchimento do crime – é dizer, os assim enumerados sob 2 a 9, no todo ou em parte), o que já de modo nenhum poderia aceitar-se era, como especificação da prova, a mera indicação, em bloco, das declarações para memória futura (que assim o tribunal de recurso haveria de integralmente escrutinar e valorar, ao jeito de quem fizesse a partir daí um novo e autónomo julgamento, em vez de limitar-se à eventual correcção de erros do que fez o tribunal recorrido…).
3.16. Acresce que, não fazendo aquela especificação das provas que impusessem decisão diversa sobre os factos, abstendo-se de indicação das concretas passagens da gravação das declarações para memória futura de que em bloco se louva, e por isso, o recorrente muito menos estabelece ou sequer procura estabelecer qualquer correspondência entre elas e cada um daqueles factos, e nem ainda expõe o mecanismo racional de chegar à conclusão que defende, limitando-se à apodíctica assunção de que delas (de tais declarações) aquela conclusão resultaria… Constata-se, deste modo, que como impugnação ampla da decisão em matéria de facto o recurso não cumpre o ónus da especificação exigido pelo art. 412.º, n.º 3, als. a) e b), e 4, do CPP, cabendo ainda dizer que também nesse plano não teria cabido, nos termos do art. 417.º, n.º 3, do CPP, um convite ao recorrente para corrigir as conclusões de modo a satisfazê-lo. É que além de o dito ónus não ter sido nas conclusões cumprido, também o não foi nas motivações (nas alegações), em parte alguma, de jeito que semelhante convite desbordaria, em absoluto, dos limites da referida norma – e aliás conduziria a uma potencial aporia, uma vez que só se cogitaria que pudesse ser correspondido em contravenção com a disposição do n.º 4 do mesmo art. 417.º, a qual veda ao aperfeiçoamento das conclusões qualquer modificação do âmbito do recurso como fixado na motivação. Por outras palavras, não seria verdadeiramente um convite a corrigir as conclusões, mas a uma inadmissível alteração do âmbito do recurso.
3.17. Encontra-se pois este tribunal de recurso impedido de apreciar e porventura corrigir, nos quadros da impugnação ampla da decisão em matéria de facto, hipotéticos erros de julgamento de que enfermasse a sentença recorrida e que em concreto, patenteados no resultado da apreciação da prova, decorreriam da indevida desconsideração de parte dela, isto é, do processo de apreciação; mesmo a entender a pretensão do recorrente como configuradora de uma tal impugnação, ela teria de ser rejeitada. A isso se juntando que, como já vimos, não se verifica nulidade da sentença e não podem imputar-se-lhe vícios dos previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, e ainda que, a haver algum vício, ele não seria da sentença, antes e potencialmente da decisão de inquirir a testemunha/vítima em audiência de julgamento (a despeito de ter já prestado declarações para memória futura), mas em todo o caso não foi devidamente arguido, então a conclusão não pode ser outra senão a da negação de provimento ao recurso, com manutenção integral da decisão recorrida.
III – Decisão
À luz do exposto, decide-se negar provimento ao recurso do Ministério Público, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Sem custas, por ser delas isento o recorrente.
Notifique
Jorge Jacob (1.º adjunto)
Maria Pilar de Oliveira (2.ª adjunta)