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CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO
PANDEMIA
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
PRINCÍPIO DO PEDIDO
Sumário
I - Contrato de transporte aéreo: no contexto pandémico que impediu passageiros de viajar, tendo a transportadora, não obstante, realizado a viagem, não se verifica incumprimento do contrato nem impossibilidade de cumprimento, pois os passageiros cumpriram a obrigação que sobre si recaiu de pagamento do preço e a transportadora aérea realizou o voo. II - Se a não realização da prestação – no caso, o transporte dos passageiros – ou a sua mora forem devidas à falta de colaboração do credor que, por razões a que é alheio, esteve impedido de receber a prestação ou de colaborar na execução da mesma, o risco corre por conta deste último, pois o risco da utilização recai, em princípio, sobre o credor da prestação (no caso, uma prestação de serviços). III - Todavia, a pandemia e as restrições que dela resultaram foi um facto relevante que a doutrina qualifica como grande alteração das circunstâncias ou grande base do negócio, o que justifica a sua subsunção nos quadros do art. 437.º CC, normativo que permite a resolução ou modificação equitativa do contrato. IV - Estes dois remédios (resolução ou adaptação do negócio) encontram-se numa relação de subsidiariedade, de modo que o contraente prejudicado só terá direito à resolução quando a modificação for inadequada ou insuficiente para que a relação negocial não seja gravemente injusta. V - Não viola o princípio processual do pedido o tribunal que, perante um ou outro dos pedidos (resolução ou modificação), decide pelo que mais se adequa ao regime do art. 437.º. Ao modificar ou resolver o contrato, em termos diferentes dos pretendidos pela parte prejudicada, o tribunal estará (ainda) a conformar-se com o pedido de que o contrato seja interpretado e/ou integrado. VI - Por via dessa modificação equitativa do contrato, justifica-se a redução para metade do preço dos bilhetes aéreos quando os passageiros não puderam embarcar em razão das restrições legais impostas pela pandemia, embora a companhia aérea tenha efetuado a viagem. A solução justa e equitativa é que, perante a anormal situação pandémica, tendo a companhia aérea realizado o voo, mas não tendo os passageiros podido viajar, suportem ambas as partes o prejuízo decorrente da não concretização do fim contratual.
Texto Integral
Processo n.º 15604/21.0T8PRT.P1
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
AUTORA: A..., Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., ..., Sala ..., ... Porto,
RÉ: B... Company, com sede na Irlanda, em ..., .... ..., Dublin e B... Company Sucursal Portugal, com escritório na Rua ..., ... – 6º, ... Lisboa.
Por via da presente ação declarativa, pretende a A. obter a condenação da Ré na quantia de € 10.850, 58, com juros legais de mora, vencidos e vincendos até integral pagamento.
Para tanto alegou que, na sua atividade de promoção e divulgação de programas de estudos e agência de viagens, foi contactada por uma escola para realizar uma viagem de estudo a Londres, para 67 alunos, acompanhados de cinco professores.
A A. adquiriu à Ré 72 bilhetes, de ida e volta, do Porto para Londres (...), para viagem por avião, a realizar a 20.3.2020 (ida) e 23.3.2020 (volta).
Todavia, com o estado de emergência decretado a 18.3.2020 e o confinamento imposto mercê do Covid, ficou interdita a possibilidade de deslocação, não podendo os 72 deslocar-se.
A Ré recusava o reembolso do valor das passagens, no total de € 10.441,44, pretendendo a A. também comissões e taxas (€ 409,14).
Contestou a Ré, defendendo-se por exceção dilatória de ilegitimidade, julgada improcedente no despacho saneador.
Admitiu ter-lhe a A. adquirido e pago 72 bilhetes para as deslocações nos referidos dias, tendo estes voos sido operados pela Ré, sem constrangimentos, pois o decreto presidencial que decretou o estado de emergência não interditou o direito de deslocação dos cidadãos para o Reino Unido e vice-versa.
Foi exercido contraditório pela A.
Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 8.1.2023, a qual julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Foram aí dados como provados os seguintes factos: 1. A Ré constituiu uma sociedade comercial com sede na Irlanda e com sucursal em Portugal, cuja atividade empresarial desenvolvida é o transporte aéreo de passageiros. 2. A Autora dedica-se às atividades de promoção e divulgação de programas de estudos, de intercâmbio e de geminação internacional e atividades de agência de viagens. 3. O agrupamento de Escolas Básica e Secundário ... tem um Clube de Estudos Europeus que desenvolve atividades no âmbito da união europeia, com destaque para a aprendizagem dos idiomas de inglês e francês, dos objetivos da cidadania europeia e outras questões relativas à união europeia. 4. No âmbito da sua atividade, deliberou promover com os alunos e professores do 9º, 10º, 11º e 12º ano uma viagem de estudo, para o que contactou a Autora no sentido de apresentar propostas de visitas de estudo. 5. A Autora foi contactada pela presidente do Clube de Estudos Europeus no sentido de elaborar duas propostas de programa para realização de uma visita de estudos a Paris e a Londres de 4 dias para 30 alunos. 6. Essa visita de estudo foi programada para os dias 20 a 23 de março de 2020. 7. Participariam nessa visita de estudo os alunos que se inscrevessem no programa e professores do agrupamento de escolas selecionados para acompanhar os alunos. 8. Após a análise dos dois programas pelos membros do clube europeu e pelo conselho pedagógico da escola, foi feita a opção pelo programa Londres. 9. Na sequência do acordo de prestação de serviços que a Autora celebrou com os encarregados de educação dos alunos e professores, membros do clube europeu inscritos na viagem, a Autora procedeu junto da Ré em 04.12.2019 e 11.01.2020 à aquisição de 72 viagens de ida e volta, com partida do Porto e destino Londres (...) para os passageiros, correspondendo 67 bilhetes aos alunos e 5 bilhetes aos professores acompanhantes. 10. A partida do voo do Porto, com a referência ... encontrava-se prevista para o dia 20 de março de 2020, pelas 06:30 horas e a chegada a Londres (...) para as 09:00 horas. 11. O regresso de Londres, com destino ao Porto, com a referência ..., encontrava-se previsto para o dia 23 de março de 2020, com partida, pelas 16:45 horas e a chegada ao Porto pelas as 19:05 horas. 12. Os 72 passageiros não compareceram no aeroporto 1... no dia 20 de março de 2020, pelas 06:30 horas, para tomarem o voo com destino a Londres. 13. Os 72 passageiros não compareceram no aeroporto ... no dia 23 de março de 2020, pelas 16:45 horas, para tomarem o voo com destino ao Porto. 14. A Autora solicitou junto da Ré o reembolso do preço por si pago relativo aos 72 bilhetes de ida e volta adquiridos à Ré. 15. A Ré recusou o reembolso das quantias pagas, com fundamento em que os bilhetes não eram reembolsáveis. 16. A Autora reembolsou os encarregados de educação e professores pela quantia relativa ao custo dos bilhetes de avião pagos por cada um dos participantes na viagem. 17. A Autora pagou à Ré pelos bilhetes de ida e volta adquiridos a quantia global de € 10.441.44. 18. Em resultado da não comparência dos 72 passageiros nos voos de ida e regresso, em comissões e taxas, resultante da emissão do documento comprovativo da não comparência nos voos, a Ré debitou a Autora o montante global de € 409,14. 19. Os voos ... e ..., foram realizados e operados pela Ré.
Desta sentença recorre a A., tendo em vista a condenação, argumentando em síntese: A) O regime de extinção de relações instantâneas, para contratos cuja execução ainda não ocorreu, coloca, com acuidade, a verificação de alterações das circunstâncias, como sucede com os contratos de transporte com os bilhetes adquiridos para uma viagem de ida e de regresso, ou com bilhetes para espetáculos. B) Mesmo em situações em que não se verificam os pressupostos para a aplicação do regime da alteração das circunstâncias, é possível resolver os contratos com prestações permanentes ou instantâneas, na medida em que não se pode impor às partes a manutenção de um vínculo contratual. C) A denúncia pode ser imotivada ou ad nutum e pode aplicar-se em situações relacionadas com a ponderação da ocorrência de determinadas circunstâncias imprevistas como a decorrente do Covid 19. D) No contrato de transporte aéreo e de ensino, porque estamos no âmbito de uma visita de estudo organizada por um agrupamento de escolas, surgiu uma impossibilidade de prestar imposta por legislação excecional, com a determinação de encerramento das escolas, a qual não foi acompanhada, de outras previsões legislativas, designadamente no que respeita ao cumprimento da contraprestação, ou seja, como poderiam os alunos impedidos de realizar a visita de estudo nesse ano letivo e que depois mudavam de escola ou deixavam de estudar, e deixavam de ter algum interesse em realizar a viagem de estudo num outro momento temporal poderiam solucionar o seu problema, quando já tivessem adquirido os bilhetes para os voos para Londres e de regresso e a companhia aérea mantivesse o voo. E) Os estabelecimentos de ensino, por força da lei, têm prestações principais de ensino e de guarda e outras prestações acessórias. Com o encerramento, os estabelecimentos de ensino ficaram numa situação de impossibilidade não culposa de cumprir as prestações a que estavam obrigados por força da lei. F) Neste caso concreto, não pode deixar de se aplicar a solução prevista no artigo 790º, nº 1, do Código Civil, por via da qual os credores (encarregados de educação/pais e alunos) ficam desonerados de contra prestar, i.e., de realizar a viagem e a visita de estudo, tendo direito ao seu reembolso. G) Ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida não se deve imputar o risco à esfera jurídica do devedor. A situação impeditiva tem reflexos em ambas as esferas, tanto a do credor, como a do devedor, mas mais acentuadamente na esfera do devedor, uma vez que as atividades letivas e não letivas foram impedidas por lei. H) Nos contratos bilaterais, o risco distribui-se pelas partes: o credor vê desaparecer o seu direito pela impossibilitação da prestação, mas exonera-se da contraprestação, tendo a faculdade, se já a houver realizado, de a reaver, nos termos do enriquecimento sem causa – artigo 795º, nº 1. I) Não há dúvidas que a pandemia representou uma alteração das circunstâncias e que integra, em abstrato, o quadro legal do artigo 437º do Código Civil e ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, a A. não tinha que pedir o reagendamento da viagem, na medida em que a realização da visita de estudo depois de terminada o ano letivo deixou definitivamente de ter interesse para os alunos e professores e por esse motivo a A. reembolsou todos os alunos do preço dos voos adquiridos na Ré e não realizados em resultado da proibição legal. J) Deverá, assim, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a condenação da Ré no pagamento à A. das 72 passagens aérea compradas pela A. junto da Ré e não utilizadas pelos 72 passageiros e aos mesmos reembolsadas pela A., com fundamento na impossibilidade legal de puderem viajar, acrescida da quantia de € 409,14 relativa às comissões e taxas, cobradas pela emissão dos documentos comprovativos da não comparência dos 72 passageiros nos voos, e dos juros de mora.
Opõe-se a Ré à procedência do recurso, assim objetando: A. A Recorrente pretende a condenação da Recorrida no pagamento das 72 passagens aéreas não utilizadas, com fundamento no (alegado) impedimento imposto aos passageiros em causa de puderem viajar. B. Os referidos voos realizaram-se, sem qualquer restrição ou condicionante, não tendo os passageiros comparecido nos aeroportos em causa por motivos totalmente alheios à Recorrida. C. A 18.03.2020 é promulgado o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 que declara o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, com início às 0:00 horas do dia 19.03.2020, abrangendo todo o território nacional. D. O aludido Decreto, para além de declarar o estado de emergência, estabeleceu algumas diretrizes para os 15 dias subsequentes. E. Nas diversas alíneas do artigo 4.º do Decreto em causa, respeitante a diversos direitos dos cidadãos, há um denominador comum: “pode/m ser”. F. A alínea d) do mencionado normativo, refere que, no que diz respeito à circulação internacional, que “podem ser estabelecidos pelas autoridades públicas competentes, em articulação com as autoridades europeias e em estrito respeito pelos Tratados da União Europeia, controlos fronteiriços de pessoas e bens, incluindo controlos sanitários em portos e aeroportos, com a finalidade de impedir a entrada em território nacional ou de condicionar essa entrada à observância das condições necessárias a evitar o risco de propagação da epidemia ou de sobrecarga dos recursos afetos ao seu combate, designadamente impondo o confinamento compulsivo de pessoas. Podem igualmente ser tomadas as medidas necessárias a assegurar a circulação internacional de bens e serviços essenciais;”; G. Pelo que não foi interditado o direito de deslocação de Portugal para o Reino Unido, razão pela qual a Recorrida operou os referidos voos, transportando passageiros de um local para outro, pois não existia qualquer restrição legal que impedisse os passageiros mencionados pela Recorrente de viajar e comparecerem nos referidos voos. H. Que no mesmo dia 18.03.2020, é publicado o Despacho n.º 3427-A/2020, o qual tinha como o seguinte sumário: “Interdita o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para países que não integram a União Europeia, com determinadas exceções.”; I. O artigo 1.º do mencionado despacho determinava o seguinte: “1 - Interditar o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para países que não integram a União Europeia, com exceção: (…) c) O Reino Unido, os Estados Unidos da América, a Venezuela, o Canadá e a África do Sul, dada a presença de importantes comunidades portuguesas.”; J. No dia 24.03.2020, um dia depois do voo n.º ... operado pela Recorrida, viria a ser publicado o Despacho n.º 3659-A/2020, com o intuito de determinar procedimentos de controlo de fronteira por parte do SEF, o qual determinava que era autorizada a entrada de passageiros pelo SEF em Portugal, sempre que cumpridas as obrigações impostas pela Direção-Geral de Saúde, entre outros, “ii) Aos passageiros dos voos provenientes dos países de língua oficial portuguesa, da África do Sul, do Canadá, dos Estados Unidos da América, do Reino Unido e da Venezuela, autorizados nos termos do n.º 1 do Despacho n.º 3427-A/2020, de 18 de março, e desde que esteja assegurada a reciprocidade de tratamento nos países referidos aos cidadãos portugueses”. K. Pelo que, no dia seguinte ao do regresso dos passageiros que contrataram a alegada viagem a Londres, era ainda permitido viajar do Reino Unido para Portugal. L. Alega a Recorrente uma impossibilidade da prestação, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 790.º do Código Civil. M. Nos termos do disposto do n.º 1 do artigo 406.º do CC, sob a epígrafe “Eficácia dos Contratos”, os contratos devem ser pontualmente cumpridos. N. Dispõe o artigo 798.º do CC que “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”. O. Sendo assim, são quatro os pressupostos de que depende a obrigação de indemnização: (i) facto ilícito; (i) culpa; (iii) dano; e (iv) nexo de causalidade. P. De toda a factualidade provada, resulta evidente que nenhum dos quatro requisitos descritos se podem verificar, não sendo suscetível de gerar qualquer responsabilidade da Recorrida em virtude de um incumprimento do contrato de transporte que celebrara com a Recorrente. Q. Pois que a Recorrida não incumpriu o contrato celebrado com a Recorrente, pois operou os voos tal e qual como previamente agendados. R. Tendo em consideração que as partes cumpriram as prestações às quais estavam obrigadas mediante o contrato de transporte celebrado, pois a Recorrente pagou o preço dos bilhetes à Recorrida e por sua vez, a Recorrida, operou os voos ... e ... tal e qual o programado. S. Não se verificou qualquer incumprimento, de parte a parte, nem tão pouco de impossibilidade em qualquer uma das prestações. T. Pois para além da Recorrida nada mais ter feito do que cumprir com as suas obrigações contratuais, tendo ficado demonstrado que não existia qualquer impedimento legal sobre os passageiros. U. A alteração anormal das circunstâncias (cfr. artigo 437.º do Código Civil) verifica-se sempre que exista uma modificação insólita ou inabitual da base negocial – objetiva e simultânea a ambos os contraentes – em que as partes fundaram a celebração do contrato. V. Essa alteração tem de ser significativa, assumindo proporções tais que subvertam a própria economia do contrato, provocando um dano para uma das partes que consubstancie uma grave afetação dos princípios da boa-fé. W. A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende, portanto, da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: - (i) que haja uma alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal e que; - (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afete gravemente os princípios da boa-fé contratual, não estando cobertos pelos riscos do próprio negócio. X. A impossibilidade objetiva da prestação, como causa de extinção da obrigação (art.790 CC), pressupõe uma impossibilidade superveniente, efetiva, absoluta e definitiva, total ou parcial, não bastando o agravamento da prestação; Y. Da declaração do Estado de Emergência, de 18.03.2020, não decorre nenhum impedimento, nem a realização das viagens aéreas para e do Reino Unido foram interditadas, pelo que, não se verifica qualquer impossibilidade objetiva da prestação, nos termos e para os efeitos do aludido normativo. Z. Concretamente no que diz respeito ao dano patrimonial, aquele mede-se pela diferença entre a situação real atual do lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a lesão. AA. A Recorrida não infringiu qualquer direito da Recorrente, nem tão pouco provocou qualquer dano. BB. A obrigação de indemnizar supõe ainda que exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano, no sentido do primeiro se considerar causa do último. CC. Nesta sede predomina a doutrina da causalidade adequada, de acordo com a qual considera-se causa de um prejuízo a condição que, em abstrato, se mostra adequada a produzi-lo”, defendendo-se que, na responsabilidade por factos ilícitos culposos, contratuais ou extracontratuais, será aconselhável uma formulação mais ampla, nos termos da qual “o facto que atua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido unicamente em consequência de circunstâncias anómalas ou excecionais. DD. No caso concreto, inequívoco é que os alegados prejuízos que a Recorrente sofreu na sua esfera patrimonial, não foram causados de maneira alguma pela Recorrida. EE. A Recorrida não incumpriu o contrato celebrado com a Recorrente, não estando obviamente preenchido qualquer pressuposto da responsabilidade civil contratual, não lhe podendo ser imputável qualquer não execução da sua “prestação”. Assim, EE. A Recorrida não incumpriu o contrato celebrado com a Recorrente, não estando obviamente preenchido qualquer pressuposto da responsabilidade civil contratual, não lhe podendo ser imputável qualquer não execução da sua “prestação”.
Objeto do recurso:
Da resolução/modificação do contrato de transporte aéreo.
FUNDAMENTAÇÃO Fundamentos de facto
Os factos a considerar para a decisão do recurso são os fixados em primeira instância e acima transcritos.
Fundamentos de direito
Entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviços (art. 1154.º CC) relativo ao transporte de pessoas e bagagens, por via aérea, desde Portugal para o Reino Unido e regresso.
O contrato de transporte aéreo pode ser definido como “o acordo em que convergem duas vontades opostas mas harmonizáveis celebrado entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou de terceiro, ou coisa certa de um lugar para o outro utilizando a via aérea e aquele que, de forma onerosa ou gratuita, aceita encarregar-se dessa condução” (Neves de Almeida, Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, p. 21).
«Trata-se de um contrato consensual (pois não se exige forma específica), embora seja real no caso do transporte de mercadorias (pois que se exige a traditio das mercadorias para a sua constituição); não necessariamente oneroso (embora o seja, por natureza, quando a remuneração é seu elemento essencial, como ocorre no transporte aéreo comercial); eventualmente sinalagmático (mesmo quando celebrado a título gratuito), embora de forma imperfeita (porque assistem ao passageiro diversos deveres que são obrigações secundárias, embora não acessórias, como o dever de observar o horário de partida do voo previsto no bilhete); de execução duradoura, ainda que efémera (o que implica especiais obrigações para o transportador no que se refere à assistência e proteção do passageiro); e, finalmente, típico e especial; podendo ainda acrescentar-se que pode estar em causa um contrato de adesão (quando o transportador tenha adotado condições gerais particulares no âmbito dos seus serviços e que não são passíveis de alteração nos casos concretos)« (Daniel de Bettencourt Rodrigues Silva Morais, Recusa de embarque injustificada no transporte aéreo internacional de passageiros: (des)equilíbrio dos interesses em presença?, www.revistadedireitocomercial.com 2017-11-02, p. 480-481).
A regulamentação jurídica do contrato de transporte aéreo encontra-se dispersa por diversas fontes de direito: instrumentos normativos internacionais, como as convenções entre Estados sobre a responsabilidade das transportadoras aéreas; autorregulação, os acordos entre companhias aéreas; as fontes comunitárias, diretivas e regulamentos.
Em regra, estão aí em causa as obrigações a cargo da transportadora, nomeadamente em caso de acidente, cancelamento ou atraso no voo.
No caso que observamos, porém, não se questiona a responsabilidade da transportadora por incumprimento da respetiva prestação principal, uma vez que os voos para os quais a A. adquiriu bilhetes foram efetuados, tendo sucedido que os passageiros para os quais os bilhetes se destinaram não procederam ao embarque por força da entrada em vigor das regras excecionais relativas à pandemia Covid-19.
Tais passageiros, alunos de uma escola, a 20.3.2020, deslocar-se-iam ao Reino Unido, no âmbito de uma visita de estudo, acompanhados por professores.
Estes passageiros não embarcaram, pois não compareceram no aeroporto no dia e hora agendados para a viagem invocando a situação de emergência que se se vivia na época.
É facto notório ter a doença causada pelo Virus Sars-cov 2 sido considerada pandémica pela OMS, a 11.3.2020.
Por força disso, através do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, o Governo estabeleceu medidas excecionais e temporárias relativas às mais diversas atividades, nomeadamente às atividades letivas que, nos termos do seu art. 9.º, suspendeu de imediato, proibindo o art. 11.º a realização de viagens de finalistas ou similares e obrigando as agências ou entidades organizadoras ao seu reagendamento.
Pelo Despacho n.º 3427-A/2020, de 18.3, foi interditado o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal, com exceção do tráfego destinado a alguns países, como o Reino Unido.
A 18.3.2020, o Presidente da República declarou o estado de emergência no país, mediante o decreto 14-A/2020, de 18.3, destinado a vigorar no território nacional, durante 15 dias, com possíveis renovações, e prevendo a possibilidade de restrições à liberdade de circulação.
A 19.3.2020, a AR, pela Lei n.º 1-A/2020, retificou o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.
A 20.3.2020, o Decreto n.º 2-A/2020, procedeu à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, estabelecendo, entre o mais, o dever geral de recolhimento domiciliário, a partir das 00:00 do dia 22 de março de 2020.
No que tange às viagens organizadas por agências de viagens, foram estabelecidas medidas excecionais e temporárias, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, através do DL n.º 17/2020, de 23 de abril.
Nos termos do art. 3.º deste diploma: 1 — As viagens organizadas por agências de viagens e turismo, cuja data de realização tenha lugar entre o período de 13 de março de 2020 a 30 de setembro de 2020, que não sejam efetuadas ou que sejam canceladas por facto imputável ao surto da pandemia da doença COVID -19, conferem, excecional e temporariamente, para efeitos do cumprimento do disposto nos n.os 4 e 5 do artigo 25.º e no n.º 4 do artigo 27.º do Decreto -Lei n.º 17/2018, de 8 de março[1], o direito aos viajantes de optar: a) Pela emissão de um vale de igual valor ao pagamento efetuado pelo viajante e válido até 31 de dezembro de 2021; ou b) Pelo reagendamento da viagem até 31 de dezembro de 2021. 2 — O vale referido na alínea a) do número anterior: a) É emitido à ordem do portador e é transmissível por mera tradição; b) Caso seja utilizado para a realização da mesma viagem, ainda que em data diferente, mantém-se o seguro que tiver sido contratado no momento da aquisição do serviço de viagem; e c) Se não for utilizado até 31 de dezembro de 2021, o viajante tem direito ao reembolso a efetuar no prazo de 14 dias. 3 — Caso o reagendamento previsto na alínea b) do n.º 1 não seja efetuado até 31 de dezembro de 2021, o viajante tem direito ao reembolso, a efetuar no prazo de 14 dias. 4 — No caso das viagens de finalistas ou similares, previstas no artigo 11.º do Decreto Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, os viajantes podem optar por qualquer uma das modalidades previstas no n.º 1 do presente artigo, aplicando-se a estes o regime previsto nos números anteriores. 5 — O incumprimento imputável às agências de viagens e turismo do disposto nos números anteriores permite aos viajantes acionar o fundo de garantia de viagens e turismo, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março. 6 — Até ao dia 30 de setembro de 2020, os viajantes que se encontrem em situação de desemprego podem pedir o reembolso da totalidade do valor despendido, a efetuar no prazo de 14 dias.
Aqui chegados, verificamos terem as partes cumprido as prestações principais que do contrato de transporte aéreo resultava para cada uma delas:
- a A. procedeu ao pagamento dos preços dos bilhetes adquiridos à Ré;
- a Ré realizou as viagens em apreço.
Ora, os passageiros para os quais a A. havia organizado a viagem relativa à visita de estudo não puderam comparecer no aeroporto e embarcar no dia agendado para a ida (20.3.2020) e, por conseguinte, também não puderem realizar o voo de regresso.
Essa impossibilidade de usufruir da viagem já paga resultou das regras excecionais do Covid, não porque tivesse sido proibida a realização dos voos em causa, mas porque a deslocação se inscrevia no âmbito das atividades letivas e estas ficaram suspensas a 13.3.2020.
Também ficaram proibidas as viagens de finalistas e similares, não podendo deixar de se compreender aqui as viagens que, destinando-se a estudantes e professores, tinham em vista complementos curriculares realizados fora do espaço escolar e tendo como objetivo facilitar o desenvolvimento de competências relacionadas com o currículo e a sociabilização dos alunos.
Neste caso, o diploma de 13 de março de 2020 (DL 10-A/2020) alude ao reagendamento das viagens e, em conformidade, o DL n.º 17/2020, de 23 de abril, relativamente às viagens cuja data de realização tenha tido lugar entre o período de 13 de março de 2020 a 30 de setembro de 2020, e que não tenham sido efetuadas por força da pandemia, estabelece que cabe aos alunos o direito a receber um vale de igual valor ao pagamento efetuado e válido até 31 de dezembro de 2021; ou o reagendamento da viagem até 31 de dezembro de 2021.
Quer isto dizer que está em causa o motivo de força maior que impediu os passageiros de viajar.
Na verdade, não o podiam fazer porque impedidos por lei.
Porém, nesta situação, a lei estabeleceu apenas regras para as agências de viagens em caso de não realização das viagens organizadas para alunos.
Já quanto aos contratos de transporte aéreo não foram estabelecidas quaisquer normas transitórias que obriguem ao reagendamento ou ao reembolso do valor dos bilhetes, caso a viagem tenha sido efetuada, como o foi.
Neste contexto, a União Europeia reconheceu expressamente que a resolução da questão depende do tipo de bilhete adquirido, ou seja, do tipo de contrato de transporte celebrado.
Como se refere no ponto 2.2, do AVISO DA COMISSÃO - Orientações para a interpretação dos regulamentos da UE em matéria de direitos dos passageiros no contexto do desenvolvimento da situação da Covid-19 (2020/C 89 I/01), de 18.3.2020, Jornal Oficial da União Europeia C 89 I/1, Os regulamentos da UE em matéria de direitos dos passageiros não contemplam situações em que os passageiros não podem viajar ou pretendem anular uma viagem por sua própria iniciativa. O reembolso do passageiro nesses casos depende do tipo de bilhete (reembolsável, possibilidade de alteração da reserva), tal como especificado nos termos e condições do transportador.
Assim, no contexto da pandemia que impediu os passageiros de viajarem, tendo a transportadora, não obstante, realizado a viagem, não existe qualquer incumprimento do contrato nem impossibilidade de cumprimento: os passageiros cumpriram a obrigação que sobre si recaiu de pagamento do preço e a transportadora aérea realizou o voo.
Nestas circunstâncias, o contrato foi perfetibilizado, pois cada uma das partes cumpriu a obrigação que sobre si impendia.
Por essa razão, à primeira vista, não há que aludir aqui às regras relativas ao incumprimento do contrato, como a invocada pela recorrente, extraída do art. 790.º, n.º 1, CC, segundo a qual a obrigação se extingue quando a prestação se torne impossível por causa não imputável ao devedor, pois as obrigações principais, de pagamento do preço e de realização do voo, foram cumpridas.
Impossível para os passageiros foi a comparência no aeroporto, no dia e hora agendados para a viagem, por fatores que se lhe não imputam, fatores esses impeditivos e externos, que resultam da aplicação da lei vigente no país ao tempo.
O art. 790.º, n.º 1, CC, alude à extinção da prestação quando a mesma se torne impossível. No caso, essa prestação impossível não foi a de pagamento do preço, logo não é essa obrigação – a de pagamento do preço – que se extingue, como pretende a recorrente.
Todavia, a prestação a cargo da B... pode ser perspetivada não apenas como prestação de conduta (a realização do voo), mas também de resultado (a de proporcionar a viagem aos passageiros que compraram o bilhete).
Ora, a situação dos autos – o não embarque em viagem adquirida antes da pandemia, por efeito das normas que, mercê desta, impediram a realização da viagem – é assimilável aos exemplos prefigurados por Baptista Machado, Em Risco Contratual e Mora do Credor (Obra Dispersa, Vol. I, p. 258 e ss.), designadamente à situação da reserva num cruzeiro turístico que não pôde ser usufruído porque o viajante sofreu um acidente e não pôde partir.
Neste caso, diz o jurista que se verifica “perda do valor-utilidade ou do rendimento de uma prestação”, suscitando-se uma solução semelhante à que resulta do art. 795.º para os contratos bilaterais e do 815.º, n.º 2, embora estes não sejam diretamente convocáveis para solucionar as hipóteses em apreço.
Sendo assim, há que fazer apelo a um conceito lato de prestação no sentido de ali incluir não apenas a atividade que pode exigir-se à parte, mas também o resultado que se visa com essa prestação, isto é, o proporcionar ao outro o gozo da prestação, de modo que a prestação só se cumpre - e o cumprimento só se verifica - quando esse gozo ocorre. Assim, se qualquer circunstância impede a produção de tal resultado, pode dizer-se existir impossibilidade de incumprimento.
Baptista Machado alude assim aos casos em que “o mesmo resultado não seja possível porque o objecto da prestação, quando concretamente individualizado, ainda que existente e sem quaisquer vícios que lhe sejam inerentes, é insusceptível de proporcionar a utilidade que lhe é própria, por circunstâncias que não têm a ver com o objecto em si mesmo mas com o ambiente espácio-temporal e jurídico que o envolve” (p. 266).
Nestas situações, não pode aludir-se a impossibilidade da prestação (por parte da B...), mas de impossibilidade de efetivação do resultado da prestação, caso em que é possível a prestação (a realização do voo), mas não o cumprimento (a efetivação em concreto da prestação de gozo), por uma qualquer circunstância que não depende do devedor (da B...). “Esta impossibilidade de concreta efectivação da prestação como «cumprimento» interessa desde logo para aquelas hipóteses em que se concretiza um «risco de cooperação» do credor [no contrato de transporte aéreo, a comparência do credor-passageiro no dia e hora do voo], isto é, quando o credor entra em mora ou se vê impedido por uma contingência da sua vida ou da sua empresa de receber a prestação ou de prestar outra colaboração necessária para a concreta efectivação desta” (p. 270 e 271).
Aqui chegados, o problema centra-se na justiça na distribuição do risco contratual.
Ora, como argumenta aquele autor, as duas grandes regras sobre a distribuição do risco contratual dizem-nos que o devedor corre o risco da prestação e o credor corre o risco da utilização. Deste modo, “quando o plano obrigacional venha a falhar por contigência que atinja a prestação (em si, como conduta ou processo, ou no seu objecto), temos um «risco da prestação», que é risco do devedor; quando o mesmo plano se frustre ou venha a falhar por contigências relacionadas com o uso da prestação pelo credor, ou com a esfera de vida ou com a empresa deste (atinentes, portanto, à participação deste na concreta execução da prestação), temos um «risco de utilização» (ou de cooperação), que é risco do credor (p. 274), donde resulta que “o devedor, quando a efectivação da prestação a que está adstrito (e a sua consequente exoneração pelo cumprimento) dependa de recepção ou de outra forma de cooperação por parte do credor, conta e pode legitimamente contar com esta programada cooperação do credor – não devendo, pois, sofrer os prejuízos eventualmente resultantes desta falta de cooperação oportuna, qualquer que seja a sua causa”(p. 275).
Nestes casos, a solução passa pela aplicação dos referidos arts. 795.º, n.º 2, e 815.º, n.º 2, ou seja, se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor (ainda que não procedendo de culpa sua), este não fica desonerado da contraprestação, apenas sendo descontado o benefício do devedor, se este extraiu algum benefício com a exoneração.
O mesmo resulta do n.º 2 do art. 815.º: no contrato bilateral, a mora do credor que perde o seu crédito por impossibilidade superveniente da prestação não o exonera da sua prestação, apenas se devendo descontar o valor do benefício tido pelo devedor, se este tirar algum benefício da extinção da sua obrigação.
Na situação dos autos, a falta de comparência dos passageiros é um facto que resulta da sua própria esfera – não compareceram, assim impedindo a transportadora de lhes proporcionar o resultado da prestação – ainda que por causas que lhes foram alheias.
Essa mora tornou impossivelmente definitiva a prestação (art. 792.º, n.º 2 CC), uma vez que se tratava de viagem de estudo a realizar num determinado ano letivo e, nesse ano, não puderam os alunos efetuá-la, atento o encerramento das atividades letivas presenciais.
Ora, se a não realização da prestação – no caso, o transporte dos passageiros – ou a sua mora forem devidas à falta de colaboração do credor que, por razões a que é alheio, esteve impedido de receber a prestação ou de colaborar na execução da mesma, o risco corre por sua conta, pois o risco da utilização recai, em princípio, sobre o credor da prestação (no caso, uma prestação de serviços), como sucede com o credor que, por greve dos transportes, está impedido de ir levantar a mercadoria encomendada e tem de pagar a armazenagem, ou o locatário internado com um cancro que tem de pagar a renda.
E é assim, porque o devedor (a B...) “não tem de proporcionar ao credor (os passageiros) um resultado concretizado num proveito efectivo do mesmo credor, mas apenas a concreta possibilidade desse proveito, cabendo a este fazer o aproveitamento da prestação” (p. 297).
Assim se compreende o aviso da Comissão de 18.3.2020 que remete para o tipo de bilhete adquirido a possibilidade ou não do reembolso no caso de os passageiros não poderem embarcar mercê da situação pandémica.
Ora, a Ré anuncia na sua página oficial o tipo de bilhetes que vende e que se regem por cláusulas contratuais gerais (Condições Gerais de Transporte de Passageiros e Bagagem[2]) aceites pelos compradores ao efetuarem as reservas. Nos termos dessas regras, os bilhetes não são reembolsáveis[3], a não ser eventualmente, em situações pontuais, como em caso de falecimento de um membro da família próxima [cônjuge, companheiro civil, mãe, pai (incluindo padrasto/madrasta), irmão, irmã (incluindo meios-irmãos), filho (incluindo enteados), avós ou netos)] num dos 28 dias anteriores à viagem prevista.
Do exposto resulta não assistir à A., em função dos reembolsos efetuados, o direito à exoneração da prestação de pagamento dos bilhetes por si adquiridos por aplicação das regras da distribuição do risco nos contratos bilaterais.
Porém, o tribunal a quo e a recorrente ainda enquadram o litígio sob outro enfoque.
A questão residiria na aparente injustiça que resulta do facto de os passageiros terem pago um serviço de que não puderam usufruir por circunstâncias ulteriores que lhes não são imputáveis e que não defluem de um risco normal (como sucede com a doença súbita ou o decesso de familiares) – este a correr por conta do credor – mas de um risco excecional.
E, assim, estaremos caídos no âmbito de aplicação do disposto no art. 437.º CC, relativo à resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias.
O normativo em apreço alude a uma discrepância entre a base negocial ao tempo do negócio e a realidade atual ou futura, estabelecendo a possibilidade de resolução ou modificação dos contratos em caso de alteração anormal, em virtude de factos supervenientes, extraordinários e graves, não cobertos pelos riscos próprios do contrato.
Esta imprevisibilidade que altera o equilíbrio negocial inicial de forma injusta pode alterar a noção de segurança e certeza jurídicas mercê da noção rebus sic stantubus.
Se, em princípio, os negócios não podem ser alterados em função de uma qualquer modificação da realidade, o conceito de boa-fé subjacente ao art. 437.º CC impõe o abandono do princípio pacta sunt servanda quando a flutuação das circunstâncias decorre de exigências de justiça.
E quando poderá afirmar-se que um princípio jusnaturalista pode afastar a lei privada contratual formulada pelo encontro de vontades negociais?
Manuel de Andrade considera que “a pressuposição deficiente só é relevante, quando for conhecida ou cognoscível para a outra parte no momento da conclusão do negócio e desde que esta, se lhe tivesse sido proposto o condicionamento do negócio à verificação da circunstância pressuposta, teria aceitado tal pretensão ou deveria ter aceitado segundo a boa-fé” (citado por M. Pinto, Teoria Geral de Direito Civil, 3.ª Ed., p. 601).
Para Manuel de Andrade, é anormal a circunstância que causa turbação da equivalência, isto é, quando em consequência de eventos imprevisíveis (por ex., acontecimentos políticos) as relações entre as partes se tornaram numa grosseira não relação, de modo que o contrato não satisfaz já o seu sentido como contrato de troca.
Exemplos de pressuposição alterada são, segundo Mota Pinto, os casos de locação para um determinado fim, o qual em virtude de proibição, recusa de concessão oficial, etc…, se tornou inalcançável (Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Ed., p. 598), de que são exemplo os chamados coronation cases.
Já P. de Lima e A. Varela elencam entre as alterações anormais das circunstâncias, por exemplo, a falta ou encarecimento inesperado de certas matérias-primas no fabrico de determinados artigos, o aparecimento de um substituto do produto muito mais económico, a publicação de uma lei destinada a ampliar ou diminuir a capacidade habitacional de um imóvel, etc… (Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., p. 414/415).
A jurisprudência não tem deixado de refletir sobre o tema.
Vejam-se, v.g., Ac. STJ, de 27.1.2015, Proc. 816/12.9TBBNV-A.L1.S1: A possibilidade de alteração dos contratos com apelo ao art. 437º, nº1, do Código Civil, confronta dialecticamente dois princípios; o da autonomia privada, que impõe o cumprimento pontual do contrato que mais não é que a execução do programa negocial, e o princípio da boa fé, que visa assegurar o equilíbrio das prestações de modo a que a uma das partes não seja imposta uma desvantagem desproporcionada que favoreça a contraparte. Ao que se atende, como ponto de partida é à base do negócio, ao circunstancialismo em que as partes assentaram a decisão de contratar, o que pressupõe um consenso negocial recíproco sem o qual não teriam celebrado certo negócio jurídico, ou não o teriam celebrado nos termos em que o fizeram. Na execução do contrato podem surgir factores que afectem, de maneira anómala, imprevista, aquela base negocial e que tornem intolerável a manutenção do contrato, tal como foi inicialmente querido e gizado pelos contraentes, por ser patente o desequilíbrio das prestações, sendo agora excessivamente onerada uma parte e mantendo a outra a situação inicial, como se nada tivesse ocorrido.
Ac. RC, de 13.5.2014, Proc. 1097/12.6TBMGR.C1: A alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema económico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes[4].
A resolução ou modificação dos contratos nessas situações visa preservar ou restaurar a justiça do contrato quando ocorra alteração anormal das circunstâncias, o que se impõe até por razões de ordem pública que expõem patamares de justiça contratual mínima, de tal sorte que o regime do art. 437.º é inderrogável por vontade das partes, sendo o disposto neste normativo de natureza imperativa (Carneiro da Frada, Autonomia Privada e Justiça Contratual, Duas questões, nos anos 50 do Código Civil, Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Coord. Elsa Vaz Sequeira e Fernando Oliveira e Sá, p. 243).
Não há dúvida de que a pandemia se tratou de um facto relevante que a doutrina qualifica como “grande alteração das circunstâncias” ou “grande base do negócio”, como refere Carneiro da Frada, em A Alteração das Circunstâncias à Luz do Covid-19, Teses e reflexões para um diálogo, Revista da Ordem dos Advogados, ano 80, p. 153 e ss., disponível em Layout 1 (oa.pt) e explica Menezes Cordeiro, em anotação ao art. 437.º, em Novo Coronavirus e Crise Contratual, Anotação ao Código Civil, Coord. Catarina Monteiro Pires, 2020, p. 66, onde o autor refere que o impacto da pandemia sobre os contratos celebrados depende de quando os mesmos foram celebrados. Se o foram antes da eclosão da crise, nomeadamente das normas que impediram um cumprimento justo dos negócios, verifica-se o elemento de imprevisibilidade conatural à aplicação deste regime. Neste caso – salienta – a não cobertura deste risco (ocorrência da pandemia e seus efeitos) nos contratos de prestação de serviços é um requisito que dificilmente se terá por não verificado.
No caso que nos ocupa, a celebração dos contratos e o pagamento do preço ocorreram antes do início da pandemia e antes da proibição de realização presencial das atividades letivas, onde se incluem, naturalmente, as viagens de estudo.
Todavia, a prestação de transporte e a colaboração dos credores (passageiros) – comparecendo no dia e hora agendados para a viagem – já deveriam suceder depois daquela situação anormal ter eclodido. Ou seja, o fim contratual teria lugar em plena crise pandémica.
Nestas situações, admite-se a aplicabilidade do regime do art. 437.º desde que a ideia de boa fé, tendo em conta a situação no seu conjunto, surja gravemente afetada, i.é, “da alteração tem de resultar um desequilíbrio no programa contratual em detrimento de uma das partes ou, até, a inviabilidade para esta de obter a completa satisfação do interesse que o contrato era apto a proporcionar-lhe” (Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, anotação 4 ao art. 437.º).
E, na verdade, este desequilíbrio sucedeu em concreto visto que os passageiros não usufruíram da totalidade da prestação da Ré.
Neste caso, a lei prevê a resolução do contrato ou a sua modificação segundo juízos de equidade por banda da parte negocial que viu frustrado o fim negocial por via das condições excecionais.
Na petição inicial, a A. não invocou expressamente esta figura, aludindo, tão-só, às regras do cumprimento contratual e da impossibilidade de cumprimento que, como vimos, lhe não concedem a pretensão que esgrime, mercê das regras da distribuição do risco normal, regras essas que correm por conta dos passageiros.
Porém, o tribunal a quo invocou o disposto no art. 437.º CC, o que é discutível em nome do princípio da autonomia privada (art. 405.º CC): a parte que pretende resolver ou modificar o contrato com base em circunstâncias excecionais não pressupostas deveria, em princípio, invocar este regime, embora setores da doutrina o considerem de conhecimento oficioso (Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, p. 587).
O passo que o tribunal recorrido não deu foi outro: tendo sido pedida a resolução e não a modificação do contrato, entendeu não poder conhecer desta última solução.
A questão da aplicação do regime do art. 437.º CC é objeto do recurso e deve ser conhecida e, neste tocante, cumpre apreciar se, tendo sido pedida uma coisa (a resolução) o tribunal pode ordenar outra (a modificação), uma vez que se verificou, de facto, alteração anormal das circunstâncias que criou grave desequilíbrio contratual.
Neste tocante, P. de Lima e A. Varela parecem considerar que, tendo sido pedida a resolução, a modificação só deverá ser decretada se a contraparte declara aceitar a modificação do contrato segundo juízos de equidade (n.º 2 do art. 437.º CC) – cfr. Código Civil Anotado, 4.ª Ed., Vol. I, p. 414.
Todavia, cremos ser de aceitar a prioridade da adaptação ou da modificação do contrato sobre a sua resolução, realizando o princípio da fidelidade ao contrato e introduzindo na equação o disposto no art. 239.º CC, pela consideração de que a alteração das circunstâncias constitui uma lacuna superveniente que carece de regulação (assim, Vaz Serra, RLJ, 111, p. 348, e Nuno Pinto de Oliveira, Em tema de alteração das circunstâncias: a prioridade da adaptação/modificação sobre a resolução do contrato, Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil já citada, p. 287 e ss.).
Assim, “deve rejeitar-se a extinção do contrato, designadamente através da sua resolução, desde que da extinção decorra uma injustiça de gravidade igual ou superior à injustiça da continuação do contrato”. (…) Como na resolução do contrato, a parte originariamente prejudicada, por ser devedora da prestação que se tornou desproporcionada ou excessivamente onerosa, tende a deixar de o ser (a não perder nada), e parte originariamente não prejudicada, por ser credora da prestação que se tornou excessivamente onerosa, tende a perder tudo (…)” (Nuno Oliveira, Em tema…, p. 290).
Vistos os dois remédios em relação de subsidiariedade, o contraente prejudicado só terá direito à resolução quando a modificação for inadequada ou insuficiente para que a relação negocial não seja gravemente injusta e, sendo assim, não viola o princípio processual do pedido o tribunal que, perante um ou outro dos pedidos (resolução ou modificação), decide pelo que mais se adequa ao regime do art. 437.º, pois “os princípios de direito material e de direito processual – incluindo o princípio do pedido – exigem que o tribunal opte pela melhor solução. O tribunal, ao modificar ou resolver o contrato, em termos diferentes dos pretendidos pela parte prejudicada, estará (ainda) a conformar-se com o pedido de que o contrato seja interpretado e/ou integrado” (Nuno Pinto de Oliveira, cit., p. 300).
Quer isto dizer que, a pretensão da A. de se ver reembolsada da totalidade do preço dos bilhetes que adquiriu à Ré, por via da extinção do negócio, se nos afigura tão desajustada quanto o pagamento integral dos bilhetes, não tendo os passageiros podido embarcar por força da pandemia. É que a Ré, na altura ainda não proibida de efetuar os voos, realizou as viagens em apreço e, por isso, efetuou os dispêndios próprios com pessoal, combustível, etc…
A solução justa e equitativa é que, perante a anormal situação pandémica, tendo a companhia aérea realizado o voo, mas não tendo os passageiros podido viajar, suportem ambas as partes o prejuízo decorrente da não concretização do fim contratual.
Sendo assim, o preço dos bilhetes deverá ser reduzido para metade, cabendo à Ré restituir metade de € 10.441, 44, isto é, € 5.220, 72.
Já não cabe na modificação (nem na extinção) do contrato de transporte a pretensão de indemnização ou reembolso no valor de € 409, 14, por comissões e taxas cobradas pela Ré pela emissão dos documentos de não comparência dos passageiros, uma vez que a emissão destes documentos não resulta da prestação a cargo da Ré e os documentos não eram sequer essenciais à salvaguarda da posição da A.
Deste modo, mercê da verificação dos pressupostos do art. 437.º CC, opera-se a modificação do contrato, reduzindo-se o preço dos bilhetes para metade, devendo a Ré reembolsar a A. desse valor.
Dispositivo
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a Ré a pagar à A. a quantia de € 5.220, 72, com juros legais moratórios vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.
Custas por ambas as partes na proporção do decaimento.
Porto, 8.5.2023
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Augusto de Carvalho
________________ [1] Diploma que estabelece o regime de acesso e de exercício da atividade das agências de viagens e turismo, transpondo a Diretiva (UE) 2015/2302, dispondo o art. 25.º o seguinte: 4 - O viajante tem direito a rescindir o contrato de viagem antes do início da mesma sem pagar qualquer taxa de rescisão, caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da mesma ou o transporte dos passageiros para o destino. 5 - A rescisão do contrato de viagem nos termos do número anterior confere ao viajante o direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados, sem direito a indemnização adicional, sendo a agência de viagens e turismo organizadora responsável por esse reembolso. Dispondo o art. 27.º: 1 - A agência de viagens e turismo pode rescindir o contrato nos casos seguintes: a) O número de pessoas inscritas na viagem for inferior ao número mínimo indicado no contrato; ou b) A agência de viagens e turismo for impedida de executar o contrato devido a circunstâncias inevitáveis e excecionais. 2 - No caso previsto na alínea a) do número anterior, a agência de viagens e turismo deve notificar o viajante da rescisão do contrato dentro do prazo fixado no mesmo e o mais tardar: a) 20 dias antes do início da viagem organizada, no caso de viagens com duração superior a seis dias; b) 7 dias antes do início da viagem organizada, no caso de viagens com duração de dois a seis dias; c) 48 horas antes do início da viagem organizada, no caso de viagens com duração inferior a dois dias. 3 - No caso previsto da alínea b) do n.º 1, a agência de viagens e turismo deve notificar o viajante da rescisão do contrato, sem demora injustificada, antes do início da viagem organizada. 4 - A rescisão do contrato de viagem nos termos do n.º 1, e cumpridas as obrigações previstas nos n.os 2 e 3, confere ao viajante o direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados, mas não o direito a uma indemnização adicional. [2] Termos e condições (B....com) [3] Cláusula 10.1: Excepto nos casos indicados nos Artigos 4.2, 10.2 e 10.3 dos presentes Termos e Condições, todas as quantias pagas por voos operados por nós (incluído todos os montantes pagos pelos serviços opcionais fornecidos por nós), não são reembolsáveis. [4] Lê-se neste acórdão: No caso dos autos não oferece dúvida que o objecto mediato do contrato promessa de compra e venda celebrado entre o R., como promitente vendedor, e a A., como promitente compradora, eram dois lotes de terreno para construção, onde seriam erigidos edifícios com mais de uma dezena de apartamentos cada, prevendo a A. encetar e concluir a construção – e vender os apartamentos – até cerca de um ano e meio após a realização da escritura pública de compra e venda. Tendo em conta a matéria de facto provada, nomeadamente que no último trimestre de 2005 se verificava uma forte expansão das vendas na área da construção civil na cidade de Coimbra, a A. tinha fundadas razões para crer que, permitindo o teor do contrato a expectativa de a escritura definitiva ser celebrada até fins de Março de 2006, os apartamentos estariam construídos e vendidos durante o ano de 2007.Contudo, essa expectativa não se concretizou. E, como se encontra provado, de forma totalmente imprevisível para as partes, em 2008 ocorreu o rebentamento da bolha imobiliária nos Estados Unidos e, a partir de então, o mercado imobiliário entrou em crise, traduzida em acesso ao crédito mais difícil e mais caro; queda do sector bancário; recurso, por parte de entidades bancárias, ao denominado Fundo de Recapitalização da Banca; aumento da dívida pública dos países periféricos da zona euro (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), com aumentos dos juros que implicaram que a Troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) procedesse ao resgate financeiro de alguns desses países, com subida de impostos e redução da despesa pública e da actividade económica e com consequente redução do consumo e aumento do desemprego; aumento da emigração portuguesa; aumento das insolvências; redução de salários; incumprimentos, por muitas famílias portuguesas, dos contratos de crédito para aquisição de casa; diminuição da procura de casas para aquisição. Nas actuais circunstâncias, assim imprevisível, anormal e relevantemente alteradas pela crise económico-financeira, a previsão da A., de encetar e concluir a construção dos apartamentos – e, sobretudo, de vendê-los – até cerca de um ano e meio após a realização da prometida escritura pública, deixou de ter fundamento.