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PROVIDÊNCIA CAUTELAR INOMINADA
INDEFERIMENTO LIMINAR
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO
REQUISITOS DE PROCEDÊNCIA
Sumário
I. Face ao momento precoce em que o julgamento antecipado do mérito da causa é realizado, o despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão do autor deve ser reservado para situações em que seja evidente e inequívoco que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça da lei em vigor - tendo nomeadamente em conta os diferentes contributos da doutrina e da jurisprudência -, ou a sua concreta aplicação ao caso sub judice. II. Só pode ser mandado aperfeiçoar aquilo que seja pré-existente, isto é, uma prévia alegação de factos essenciais, ainda que insuficiente ou imprecisa; e, por isso, se essa perfunctória ou ambígua alegação não chegou sequer a existir, a petição inicial é inepta, com a consequente nulidade de todo o processo. III. Sendo complexa causa de pedir do procedimento cautelar inominado, impõe-se que, relativamente a cada um dos respectivos requisitos de procedência, sejam alegados factos essenciais idóneos ao seu preenchimento; e, falecendo essa alegação quanto a um, ou a alguns deles, deverá o mesmo ser liminarmente indeferido, por manifesta improcedência.
Texto Integral
ACÓRDÃO
I - RELATÓRIO
1.1.Decisão impugnada 1.1.1. AA e mulher, BB (aqui Requerentes e Recorrentes), residentes na Rua ..., em ..., ..., propuseram o presente procedimento cautelar comum, contra a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD - representada pelos seus Herdeiros, que identificaram - (aqui Requerida e Recorrida),pedindo que:
· se ordenasse aos Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) que, relativamente à parte de cima de um prédio misto propriedade deles próprios, e ainda que esporadicamente, se abstivessem de nele passarem, limparem e roçarem mato, ou o que quer que fosse, sem a sua prévia autorização;
· se ordenasse aos Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) que respeitassem os limites da propriedade deles próprios, tal como por si descritos e se encontravam antes da actuação daqueles;
· se condenasse os Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) em multa, de valor não inferior a € 5.000,00, por cada vez que passassem pela parte de cima do seu terreno e os impedissem de a fecharem, e de fazerem um uso pleno daquilo que é seu.
Alegaram para o efeito, e em síntese, que, sendo proprietários de um prédio misto e de um prédio rústico (que identificaram), ser a Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) proprietária de um outro prédio, rústico, situado no meio daqueles dois primeiros.
Mais alegaram que, estando o prédio rústico da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) encravado, beneficia de uma indiscutida servidão de passagem pela parte inferior do seu próprio prédio misto, reclamando, porém, abusivamente a mesma a existência de uma outra servidão de passagem, esta pela parte superior daquele mesmo prédio.
Alegaram ainda que, tendo logo em 2015, quando adquiriram o dito prédio misto, tentado fechar a sua parte de cima - com uma parede baixa de cimento, rede e um portão -, foram impedidos de o fazer pelos Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD), acção que reiteraram em 24 de Abril de 2021, quando - por meio de injúrias e da força - deitaram abaixo o dito portão (permanecendo o mesmo ainda hoje no chão, a enferrujar).
Por fim, os Requerentes (AA e mulher, BB) alegaram que os Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) passam e roçam mato na parte de cima do prédio misto deles próprios, sem o seu conhecimento e autorização (conforme fizeram em 07 de Novembro de 2022) impedindo-os de o usarem de forma plena.
Concluíram, por tudo, que «têm o justo receio de continuarem a ser perturbados e esbulhados na posse e no seu direito de propriedade que têm relativamente ao prédio em causa, nos termos do art. 1276º do CC». 1.1.2. Foi proferido despacho de indeferimentoliminar do procedimento cautelar comum, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Lida e analisada a peça processual apresentada e em face de todo o exposto é forçoso reconhecer que os requerentes não alegaram factos que preencham um dos requisitos que temos vindo a falar: “periculum in mora”. Os requerentes invocaram comportamentos por parte dos requeridos que, na sua perspectiva, constituem violações do seu direito de propriedade, limitando-se a alegar, de forma vaga, que os requeridos provocaram danos pelos quais deverão ser responsabilizados, como é o caso do portão que se encontra no chão a enferrujar e a apodrecer pelo que deve cada um dos requeridos que lá passar ser condenados em multa, por cada acto que pratiquem e que limite o pleno uso do imóvel por parte dos requerentes. Mais alegam ter justo receio de continuarem a ser perturbados e esbulhados na posse e no seu direito de propriedade. Nesta parte os factos são alegados de uma forma vaga e abstracta e não traduzem o periculum in mora, nos termos acima definidos. Ainda que resultasse provada toda a matéria alegada no articulado inicial, não teríamos elementos suficientes para afirmar que a situação narrada causa uma lesão grave e dificilmente reparável ao direito dos requerentes, carecendo de ser alegado, em concreto, em que se traduz tal lesão. Em suma, os requerentes não trouxeram aos autos factos que traduzam um prejuízo concreto, integrador do requisito legal “lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito”. Em conclusão, tendo presente toda a factualidade relatada nos autos e em face da falta de alegação de factos que traduzam o periculum in mora, o presente procedimento terá, forçosamente, de ser indeferido.
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Pelos motivos acima expostos e ao abrigo do preceituado nos artigos mencionados e dos artigos 226º, nº 4, alínea b) e 590º, nº 1, do C.P.C., o Tribunal decide indeferir liminarmente o presente requerimento inicial de procedimento cautelar comum.
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Valor da acção - € 5.000,01.
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Custas pelos Requerentes. Notifique. (…)»
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1.2. Recurso 1.2.1. Fundamentos
Inconformados com esta decisão, os Requerentes (AA e mulher, BB) interpuseram recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se revogasse a decisão recorrida, sendo substituída por decisão a convidar ao aperfeiçoamento do requerimento inicial.
Concluíram as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):
1 - O tribunal a quo indeferiu liminarmente o RI.
2 - O indeferimento liminar, neste caso do RI, só deve ocorrer quando o pedido é manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente (artigo 590º nº1 CPC), o que não é o caso.
3 - Perante a insuficiência da matéria de facto alegada, nomeadamente, do requisito legal da providência cautelar não especificada, periculum in mora, devia o tribunal a quo ter proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento.
4 - Neste sentido, analisem-se os acórdãos do TRL, datado de 24-01-2019, cujo relator foi Manuel Rodrigues, no processo nº 573/18.1T8SXL.L1-6; do TRP, datado de 30/04/2020, cujo relator foi Joaquim Moura, no processo nº 639/18.8T8PRD.P1; do TRE, datado de 13/01/2021, cujo relator foi Tomás de Carvalho, no processo nº 20/19.1T8LGA-E.E1-A; do TRG, datado de 28/10/2021, cuja relatora foi Maria dos Anjos Nogueira, no processo nº 315/20.1T8PTB.G1; e datado de 21/10/2021, cuja relatora foi Alexandra Viana Lopes, no processo nº 3112/21.3T8BRG.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
5 - A sentença recorrida violou os artigos 6º, 7º e 590º nº 2 b), 3 e 4 do CPC.
6 - O tribunal a quo devia ter interpretado e aplicado as normas jurídicas referidas no sentido de ter proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento.
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1.2.2. Contra-alegações
Citados para o efeito, os Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) não apresentaram contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR
2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:
· Questão Única - Errou o Tribunal a quo na interpretação e aplicação das normas legaisque deveria considerar, ao indeferir liminarmente o procedimento cautelar comum (por alegadamente os Requerentes não terem alegado factos suficientes para preencherem os pressupostos do seu decretamento),devendo antes ter proferido um despacho de aperfeiçoamento (permitindo aos Requerentes o suprimento da sua anterior falta de alegação de factos, nomeadamente susceptíveis de preencherem o requisito do periculum in mora) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Procedimento cautelar comum 4.1.1.Pressupostos de decretamento 4.1.1.1. Pressupostos próprios
Lê-se no art. 362.º, do CPC, que: sempre «que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado» (n.º 1); o «interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor» (n.º 2); e não «são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte» (n.º 3).
Mais se lê, art. 368.º, do CPC, que a «providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão» (n.º 1); e «pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar» (n.º 2).
Logo, quem instaure em juízo uma providência cautelar não especificada terá que alegar os factos que consubstanciem os seguintes requisitos, cumulativos[3], de procedência:
a) a probabilidade séria da existência de um direito (fumus boni iuris), isto é, não que o mesmo é certo ou indiscutível (prova que ficará reservada para a acção principal), mas sim que há grandes probabilidades de ele existir, e por isso bastando que a existência do direito se apresente como verosímil [4].
Logo, exige-se aqui um juízo de mera probabilidade e de verosimilhança da existência do direito subjectivo (v.g. de personalidade singular, patrimonial, familiar, real ou obrigacional) invocado, um «”meio termo” entre a certeza - que apenas será estabelecida na acção principal - e a incerteza que se encontra na base do processo judicial» (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2106, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2016, págs. 185-6).
b) o suficientemente fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora).
Com efeito, qualquer processo cautelar destina-se a remover o periculum in mora, «isto é, o perigo resultante da demora a que está sujeito um processo (o processo principal) ou, por outras palavras, o perigo derivado do caminho, mais ou menos longo, que o processo principal tem de percorrer até à decisão definitiva, para se dar satisfação à necessidade impreterível de justiça, à necessidade de que o julgamento final ofereça garantias de ponderação e acerto» (Alberto dos Reis, BMJ, n.º 3, págs. 31 a 34).
Dito, e precisando o carácter «fundado» do receio, não basta um mero juízo de probabilidade, um receio correspondente a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, de simples ou meras dúvidas, desconfianças e conjecturas, subjectivas e precipitadas, um receio porventura conjecturado e exagerado. Exige-se, se não um juízo de realidade ou de certeza, pelo menos um receio assente em factos objectivos (concretos e positivos) e avaliados num juízo distanciado (de prudente apreciação), tornando-se por isso convincentes [5].
Contudo, será o mesmo variável em função das circunstâncias próprias da providência em causa, podendo justificar-se uma maior ou menor exigência na sua demonstração.
Precisando agora os requisitos da «gravidade» e da «dificuldade da reparação», sendo os mesmos «cumulativos», «ficam afastadas da tutela cautelar as lesões que sejam facilmente reparáveis ou que, apesar de serem irreparáveis ou de difícil reparação, não revistam uma gravidade suficientemente forte que justifique o recurso à tutela cautelar» (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2106, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2016, pág. 203).
Tradicionalmente, a jurisprudência apela a um duplo critério - subjectivo e objectivo - para aferir do carácter grave e irreparável, ou dificilmente reparável, da lesão: subjectivo, quando «atende às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente»; e objectivo, quando atende ao «tipo de lesão que a situação de perigo pode vir a provocar na esfera jurídica do requerente, o que significa que dependerá da natureza do direito alvo dessa lesão sendo admissível o recurso à tutela cautelar, sempre que a reparação da lesão possa implicar a chamada reparação por sucedâneo» (Marco Carvalho Gonçalves, op. cit., pág. 215).
Compreende-se, por isso, que «especialmente quanto aos prejuízos materiais, o critério deva ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva» (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 5. Procedimento Cautelar Comum, Almedina, Abril de 1998, pág. 85).
Isto pressupõe, é claro, que o titular do direito se encontra perante simples ameaças; se a lesão já está consumada, a providência não tem razão de ser, uma vez que já não há prejuízo a evitar ou a acautelar. Contudo, se a violação cometida for índice de que outras se seguirão, o titular do direito pode invocar a lesão efectuada como fundamento de justo receio de outras lesões idênticas, mantendo-se a actualidade do fundado receio [6].
c) a adequação da providência requerida para evitar a lesão, isto é‚ a natureza do perigo determina a natureza da providência, devendo a mesma ser idónea para assegurar a conservação do stato quo de facto e de direito relativamente a uma situação da qual resultam interesses que o direito protege [7].
Isto significa igualmente que a providência cautelar requerida não pode estar abrangida por qualquer dos outros processos cautelares especificados, do Capítulo II, do Título IV, do Livro II, do CPC, só assim se mostrando assegurado o seu carácter subsidiário.
d) e não ser o prejuízo resultante da concessão da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar, isto é, na presença de dois interesses em conflito deve o julgador sacrificar o interesse menor em benefício do interesse maior [8].
Contudo, a lei basta-se aqui com uma mera superioridade, não exigindo que a mesma revista qualquer grau (v.g. excesso considerável).
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4.1.1.2. Pressuposto geral
Lê-se no art. 364.º, n.º 1, do CPC, que, excepto «se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva».
Logo, num juízo sobre a (in)viabilidade do procedimento, haverá ainda que atentar no respectivo carácter instrumental, face à acção principal.
Precisando-o, significa o mesmo que o procedimento cautelar «é um instrumento ao serviço da acção judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respectiva decisão. Daqui decorre que a acção cautelar não constitui um fim em si mesma. Constitui apenas um meio, um instrumento, que permite alcançar a utilidade da decisão, objecto de outro processo, a que se encontra acoplada» (Rita Lynce de Faria, A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, 2003, págs. 34-35, com bold apócrifo).
Assim, e «uma vez que o processo cautelar nasce para ser posto ao serviço dum processo principal, a fim de dar ensejo a que este processo siga o seu curso normal sem o risco da decisão final chegar tarde e ser, por isso, ineficaz, vê-se claramente que a função do processo cautelar é nitidamente instrumental; o processo cautelar é um instrumento apto a assegurar o pleno rendimento do processo definitivo ou principal. Não satisfaz, por isso mesmo, o interesse da justiça; não resolve definitivamente o litígio; limita-se a preparar o terreno, a tomar precauções para que o processo possa realizar completamente o seu fim» (Alberto dos Reis, BMJ, n.º 3, págs. 31 a 34, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que: as providências cautelares não constituem meio adequado para se criarem e definirem direitos, visando tão só acautelar e proteger os que já existem [9]; e, a não ser assim, a providência substituir-se-ia à acção adequada para obter tal efeito [10].
A referida instrumentalidade perante a acção principal ocorre: quer quanto ao objecto, na medida em que o juiz não pode «alocar ao requerente uma vantagem excedente dos limites do que, a título principal, lhe poderia ser acordado»; quer quanto à sua utilidade, porquanto não se pode retirar, por esvaziamento, utilidade à decisão final ou atacar esta, ou seja, a medida cautelar não pode antecipar a medida final: o tribunal deve decretar a medida sem pré-julgar o fundo da questão (Rui Pinto, A questão de mérito na tutela cautelar, Coimbra Editora, 2009, págs. 235-236, com bold apócrifo). Se o efeito útil que o autor (requerente do procedimento) pretende se revelasse autonomamente cumprido por via do procedimento cautelar, este desenvolveria uma função substitutiva e não de garantia do processo principal [11].
Deste modo, constitui jurisprudência reiterada que uma providência cautelar em regra (isto é, fora dos casos excepcionais - expressa e recentemente - admitidos por lei para o efeito) não pode substituir o efeito jurídico que dimanará da acção principal: terá sempre efeitos provisórios, cuja subsistência exige a confirmação daquilo que sumariamente se apure relativamente aos requisitos específicos das providências cautelares. De outro modo, estaria descoberto o sistema de, por esta via, dar imediata e directa realização ao direito substancial e alcançar-se a satisfação desse direito que só através da respectiva acção principal se deve concretizar [12].
Lê-se no art. 590.º, n.º 1, do CPC, que nos «casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente».
Pretende-se, deste modo, salvaguardar o princípio da economia processual, defendendo-se simultaneamente o réu: não «vale a pena prosseguir com a acção, sujeitando o réu a incómodos e a despesas, se pela simples leitura da petição o juiz se persuadir (…) que a pretensão do autor não pode prosperar» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 258).
Contudo, face ao momento precoce em este julgamento antecipado de lide é feito (em que o réu ainda nem sequer foi autorizado a contraditar a pretensão do autor, ao contrário do que sucede com o conhecimento imediato do mérito da causa em sede de despacho saneador) [13], o mesmo apenas se justifica quando seja evidente - manifesta - a inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior, isto é: quando seja inequívoco (indiscutível) que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça da lei em vigor (tendo nomeadamente em conta os diferentes contributos da doutrina e da jurisprudência) [14],ou a sua concreta aplicação ao caso sub judice (por insuprível falta alegação de factos necessários para a preenchimento dos requisitos de procedência da acção) [15].
Com efeito, estando nomeadamente omissa a alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir [16], a petição ou o requerimento inicial serão ineptos, determinando a nulidade de todo o processo (arts. 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), do CPC).
Compreende-se, por isso, que se afirme que os «casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios formais ou substanciais de tal modo graves que permitem prever, logo nesta fase, que jamais o processo assim iniciado terminará com uma decisão de mérito ou que é inequívoca a inviabilidade da pretensão apresentada pelo autor» (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da reforma de processo civil, I Volume, Coimbra, Almedina, 1997, Tomo I, págs. 225-227).
Ficarão, assim, de fora do indeferimento liminar todas aquelas situações em que as deficiências notadas sejam estritamente formais ou de natureza secundária, já que, perante o seu suprimento, não se corre o risco de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou impugnação e dos termos em que assentam (conforme art. 590.º, n.º 6, do CPC [17], e art. 265.º, do mesmo diploma [18]).
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Mais se lê, no art. 226.º, n.º 4, al. b), do CPC, que a «citação depende (…) de prévio despacho judicial» nos «procedimentos cautelares».
Defende-se, por isso, pacificamente que nesta sede é possível o indeferimento liminar da pretensão naqueles ínsita, por manifesta improcedência, nos termos discriminados supra [19].
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4.1.3.Despacho de aperfeiçoamento
Lê-se no art. 552.º, n.º 1, al. d), do CPC, que «na petição, com que propõe a acção, deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção».
Mais se lê, no art. 572.º, als. b) e c), do CPC, que, na «contestação deve o réu expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor», e «expor os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respectivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação». Deverá ainda «tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor» (art. 574.º, n.º 1, do CPC).
Lê-se ainda, no art. 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do CPC, que, findos «os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados», nomeadamente convidando «as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido».
Precisando o que sejam articulados insuficientes ou imprecisos, são aqueles que, reunindo em termos de exposição de facto os requisitos mínimos - e, por isso, não sendo ineptos (v.g. por falta de alegação de factos essenciais e estruturantes que consubstanciem a causa de pedir, ainda que complexa[20]) -, não permitem porém a procedência da acção, por insuficiência, deficiência ou imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência, da respectiva matéria de facto.
Com efeito, só pode ser mandado aperfeiçoar aquilo que seja pré-existente, isto é, uma prévia alegação de factos essenciais, ainda que insuficiente ou imprecisa. Se, pelo contrário, essa perfunctória ou ambígua alegação não chegou sequer a existir, a petição inicial é inepta (sendo os factos essenciais, a falta de um deles implica a incompletude da causa de pedir, já que esta falta e aquela essencialidade comprometem o conhecimento do mérito da causa), com a consequente nulidade de todo o processo (nos termos do art. 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), do CPC); e, por isso, está excluída qualquer possibilidade de prolação de um despacho de aperfeiçoamento [21].
Precisa-se ainda que este despacho de aperfeiçoamento, quando justificado, consubstancia um poder-dever do juiz, e não uma mera faculdade que possa, discricionariamente, exercer ou não exercer (assim se justificando a redação do art. 590.º, n.º 4, do actual CPC - «incumbe ao juiz convidar as partes» - , face à redacção do art. 508.º, n.º 3, do anterior CPC - «pode o juiz convidar as partes») [22].
Logo, a omissão da devida prolação consubstancia uma nulidade, nos termos do art. 195.º, n.º 1, do CPC (sendo, porém, discutível se apenas do processo ou da própria decisão que se profira de seguida); e, em regra, tida como de conhecimento não oficioso, tendo de ser arguida pela parte a quem aproveita.
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Defende-se, em sede de procedimentos cautelares, que também aqui é admissível a prolação de um despacho de aperfeiçoamento [23].
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4.2.Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável) 4.2.1.Falta absoluta de alegação de factos essenciais 4.2.1.1.«Probabilidade séria da existência de direito»
Concretizando, verifica-se que, tendo os Requerentes (AA e mulher, BB) proposto o presente procedimento cautelar comum contra a Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD), pediram no mesmo que fosse ordenado aos Herdeiros daquela que se abstivessem de uma série de acções sobre um prédio misto deles próprios (nomeadamente, de nele passarem, de o limparem, ou de nele roçarem mato), por desse modo os privarem «de usar plenamente aquilo que é seu».
Alegaram para o efeito terem-no adquirido por compra, e mostrar-se o mesmo registado em seu nome.
Dir-se-á, por isso, que, sendo indubitável que os Requerentes (AA e mulher, BB) pretendem aqui a tutela do seu direito de propriedade, alegaram factos essenciais susceptíveis de, uma vez provados, demonstrarem a probabilidade séria da sua existência (primeiro requisito de procedência da presente providência cautelar inominada).
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4.2.1.2.«Fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável»
Concretizando novamente, verifica-se que os Requerentes (AA e mulher, BB) invocaram como dano que lhes está a ser causado, desde o momento em que adquiriram o prédio misto em causa (ano de 2015), o verem-se impedidos pelos Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD), de fechá-lo na sua parte superior (nomeadamente, com uma parede baixa de cimente, rede e um portão).
Melhor precisaram que: em 24 de Abril de 2021, por meio da força e de injúrias, aqueles «deitaram o portão ao chão», onde «ainda se encontra no chão da parte de cima do terreno do seu prédio, cheio de ferrugem»; mais «recentemente, no dia 07 de Novembro de 2022, o cabeça de casal (…) procedeu à destruição de mato que havia no terreno da propriedade do requerente, (…) sem a autorização e/ou conhecimento do requerente, mesmo depois de já saber que não estava autorizado para tal e contra a sua vontade»; e «os requeridos ou parte deles, (…) só depois que ele comprou o prédio misto em causa nos autos, é que começaram lá a passar», sob a falsa invocação de ali existir uma segunda servidão de passagem.
Concluíram, por isso, afirmando que os «requeridos provocam, além do mais, danos pelos quais deverão ser responsabilizados, como é o caso do portão que se encontra prostrado no chão a enferrujar e a apodrecer, pelo que deve cada um dos requeridos que lá passar, roçar mato ou impeça os requerentes de fecharem o seu terreno, ser condenado em multa».
Dir-se-á, assim, que ser inegável que houve uma alegação idónea a caracterizar os danos resultantes da violação do direito de propriedade dos Requerentes (o passarem os Herdeiros da Requerida, de forma não autorizada, pela sua propriedade, de nela roçarem mato e de os impedirem de a vedarem).
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não houve a simultânea e necessária alegação de que tais danos são graves e dificilmente reparáveis, isto é, que a natural demora de uma acção definitiva (de que o presente procedimento cautelar comum será necessariamente dependente) poderá inviabilizar a sua reparação, ou total reparação.
Com efeito, e atenta a natureza do dano (numa parte susceptível de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural, e na outra por indemnização substitutiva), nada foi alegado, ainda que perfunctoriamente, quanto: às consequências nefastas que a passagem, ou o roçar mato, pelos dos Herdeiros da Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD) provoca no prédio dos Requerentes (AA e mulher, BB); à insusceptibilidade de se vir a recuperar o primitivo portão, ou a adquirir e colocar um idêntico; ou às consequências nefastas que a falta de vedação do prédio, naquele concreto local, implica.
Da mesma forma, nada foi alegado quanto às possibilidades concretas daRequerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD), uma vez condenada em acção definitiva, para suportar economicamente uma eventual reparação do direito dos Requerentes (AA e mulher, BB).
Dir-se-á, por isso, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que os Requerentes (AA e mulher, BB) não alegaram factos essenciais susceptíveis de, uma vez provados, demonstrarem o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparáveldo direito de propriedade invocado (segundo requisito de procedência da presente providência cautelar inominada).
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4.2.2.Insusceptibilidade de suprimento (aperfeiçoamento) da falta absoluta de alegação de factos essenciais
Concretizando uma derradeira vez, vieram, porém, os mesmos defender que, perante «a insuficiência da matéria de facto alegada, nomeadamente, do requisito legal da providência cautelar não especificada, periculum in mora, devia o tribunal a quo ter proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento».
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não lhes assiste razão.
Com efeito, sendo complexa a causa de pedir do presente procedimento cautelar inominado, impunha-se que, relativamente a cada um dos respectivos requisitos de procedência, os Requerentes (AA e mulher, BB) tivessem alegado factos essenciais idóneos ao respectivo preenchimento, o que, como eles próprios reconhecem nos autos, não fizeram.
Sendo assim, e quanto aos concretos requisitos em falta, não se trataria de mandar aperfeiçoar uma inicial alegação insuficiente ou ambígua, mas sim de suprir a sua total ausência; e, para esta, a consequência legal imperativa é de manifesta improcedência.
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Importa, pois, decidir em conformidade, pela improcedência do recurso de apelação interposto pelos Requerentes (AA e mulher, BB), relativo ao despacho de indeferimento liminar, proferido pelo Tribunal a quo, do procedimento cautelar comum que intentaram.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelos Requerentes (AA e mulher, BB), e, em consequência, em:
· Confirmar integralmente a decisão recorrida, que indeferiu liminarmente a presente providência cautelar inominada por eles intentada contra a Requerida (Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de CC e DD).
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Custas pelos Requerentes apelantes (art. 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
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Guimarães, 25 de Maio de 2023.
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos
Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos; 1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias; 2.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.
[1] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - inwww.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). [2]Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido». [3]Sendo requisitos cumulativos, não se encontrando alegados todos os factos necessários e suficientes para a verificação de qualquer um deles, a providência não poderá proceder, ficando assim prejudicado o conhecimento da verificação dos demais, nos termos do art. 608.º, n.º 2, do CPC. [4] Neste sentido, Alberto dos Reis, BMJ, n.º 3, pág. 51. [5]Neste sentido: Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição reimpressão, Coimbra 1982, pág. 684 e 685; António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 5. Procedimento Cautelar Comum, Almedina, Abril de 1998, pág. 87; ou Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2016, págs. 210 a 215. [6] Neste sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição reimpressão, Coimbra 1982, pág. 684. [7] Neste sentido, L. P. Moitinho de Almeida, Providências Cautelares Não Especificadas, Coimbra Editora, Limitada, 1981, pág. 19. [8]Neste sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição reimpressão, Coimbra 1982, pág. 678. [9]Neste sentido, Ac. do STJ, de 21.04.1953, RLJ, 86, pág. 111 [10] Neste sentido, Ac. do STJ, de 14.06.1957, BMJ, n.º 68, pág. 542. [11] Neste sentido, Lucinda D. Dias da Silva, Processo Cautelar Comum, Princípio do contraditório e dispensa de audição prévia do requerido, Coimbra Editora, 2009, pág. 135. [12] Neste sentido: Ac. da RL, de 26.06.2008, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 5235/2008; Ac. da RL, de 01.10.2009, Ferreira de Almeida, Processo n.º 83/09; ou Ac. da RL, de 02.02.2010, Maria Rosário Barbosa, Processo n.º 1214/09. [13] Enfatizando esta circunstância, Decisão Sumária, de 16.12.2015, José Eduardo Sapateiro, Processo n.º 20345/15.4T8LSB.L1-4, onde se lê que, «face à interpretação que é feita pela nossa melhor doutrina e jurisprudência relativamente à “manifesta improcedência do pedido” enquanto fundamento do despacho de indeferimento liminar que pode ser proferido no âmbito da ação declarativa com processo comum ou especial», há que ter bem presente que é prolatado «de forma unilateral e sem ter ouvido a parte contrária», antecipando um «julgamento final e definitivo do pleito», no momento em que o «julgador (…), em regra, se defronta pela primeira vez com as pretensões e correspondente causa ou causas de pedir que as sustentam e em que, numa apreciação necessária limitada e perfunctória (digamos assim), pondera acerca da verificação das condições de ação e pressupostos processuais reclamados pelo caso concreto, assim como da viabilidade de tais pedidos e fundamentos factuais e jurídicos». [14] No mesmo sentido, na doutrina: . António Santos Abrantes Geraldes, Temas da reforma de processo civil, III Volume, Coimbra, Almedina, 1998, pág. 154, onde se lê, que o «juiz deve reservar esta decisão apenas para os casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidade de ser acolhida perante a lei em vigor e a interpretação que dela faça a doutrina e a jurisprudência». . José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 56, nota 44, onde se lê que a «simples interpretação ou aplicação duma norma de direito que possa, nomeadamente segundo a doutrina ou a jurisprudência, ter mais de um entendimento não deve levar nunca ao indeferimento liminar».
Na jurisprudência: Ac. do STJ, de 05.03.1987, BMJ, n.º 365, pág. 562, onde se lê que o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será possível de proferir «quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais, ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais». [15]Neste sentido,Ac. da RE, de 02.10,1986, CJ, Tomo IV, pág. 283, onde se lê onde se lê que o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será possível de proferir quando «não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido». [16]Entende-se por causa de pedir o «facto jurídico» de onde procede a pretensão dos autos (art. 581.º, n.º 4 do CPC).
Precisa-se, porém, que «quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal». Logo, «há que repelir antes do mais a ideia de que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte», já que a «acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal» (Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1985, págs. 121 a 124, com bold apócrifo).
Precisa-se, ainda, que na causa se pedir contêm apenas os factos essenciais (tal como definidos no art. 5.º, n.º 1, do CPC). [17]Lê-se no art. 590.º, n.º 6, do CPC que as «alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu». [18]Lê-se no art. 265.º, do CPC, que: na «falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação» (n.º 1); o «autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo» (n.º 2); e é «permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida» (n.º 6). [19] Neste sentido, na jurisprudência: Ac. do TC, de 22.04.1987, BMJ, nº 366, p. 234, onde se lê que o indeferimento liminar de providência cautelar não especificada depende da constatação de que, «face aos factos alegados pelo requerente, de modo algum pudesse ser atendida». [20]Uma causa de pedir complexa é aquela em que a previsão da norma jurídica substantiva cuja tutela se pretende exige a alegação de um conjunto de factos jurídicos concretos, todos eles imprescindíveis para consubstanciarem a relação material controvertida invocada (e dos quais procede o efeito jurídico pretendido).
Assim, e nomeadamente: na acção de reivindicação ter-se-á que alegar o facto jurídico de onde nasce o direito de propriedade de que o autor se arrogue e, cumulativamente, a concreta ou histórica ofensa desse direito; e numa acção de indemnização por responsabilidade civil por acidente de viação ter-se-á que alegar, não apenas os factos jurídicos caracterizadores da dinâmica do acidente e os danos dele resultantes, como ainda todos aqueles que permitem a qualificação do facto lesivo como ilícito, e a sua imputação ao agente (ou em termos de culpa, ou em termos de risco). [21] Neste sentido, pacífico (quer na doutrina, quer na jurisprudência), Ac. da RG, de 15.11.2018, Jorge Teixeira, Processo n.º 7144/16.T8BRG-I.G1, onde se lê que «o poder de mandar aperfeiçoar os articulados para serem supridas insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada (art. 590º, nº4 do NCPC) tem de ser entendido em rigorosos limites, e isto porque este convite se realiza apenas quando existam as apontadas insuficiências ou imprecisões que possam ser resolvidas com esclarecimentos, aditamentos ou correcções, ou seja, anomalias que não ponham em causa, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito mas que possam facilitar que este conhecimento e decisão sejam realizados de forma mais eficaz.
Por decorrência, não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590 nºs 2 al. b), 3 e 4 do CPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186 do mesmo diploma uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo».
Ainda: Ac. da RG, de 01.03.2018, José Flores, Processo n.º 850/16.6T8VCT.G1; Ac. da RL, de 07.11.2019, Manuel Rodrigues, Processo n.º 14013/17.0T8LSB.L1-6; Ac. da RP, de 21.11.2019, Paulo Duarte Teixeira, Processo n.º 20935/18.3T8PRT.P1; Ac. da RP, de 30.04.2020, Joaquim Moura, Processo n.º 639/18.8T8PRD.P1; Ac. da RG, de 28.10.2021, Maria dos Anjos Nogueira, Processo n.º 315/20.1T8PTB.G1; ou Ac. do STJ, de 07.06.2022, Manuel Capelo, Processo n.º 3786/16.7T8BRG.L1.S3. [22]Neste sentido (embora nem sempre coincidindo quanto à concreta consequência da não emissão - quando devida - do despacho de aperfeiçoamento): .na doutrina - Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, Almedina, Outubro de 2013, págs. 480-481; Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, págs. 47 e 48; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, págs. 635 e 636; ou António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Setembro de 2018, págs. 681 a 683. .na jurisprudência - Ac. da RL, de 20.03.2014, Isoleta Almeida Costa, Processo n.º 710/11.7TCFUN.L1-8; Ac. da RL, de 15.05.2014, Ezaguy Martins, Processo n.º 26903/13.4T2SNT.L1-2; Ac. da RG, de 19.06.2014, Isabel Rocha, Processo n.º 3552/12.7TBBCL.G1; Ac. da RP, de 26.02.2015, Pedro Martins, Processo n.º 5807/13.6TBMTS.P1; Ac. da RG, de 23.06.2016, António Beça Pereira, Processo n.º 713/14.0T8VRL.G1; Ac. da RG, de 26.01.2017, António Figueiredo de Almeida, Processo n.º 1927/14.8TBGMR.G1; Ac. da RE, de 26.10.2017, Ana Margarida Leite, Processo n.º 2929/15.2T8STR-A.E1; Ac. da RL, de 27.11.2018, Diogo Ravara, Processo n.º 1660/14.0T8OER-E.L1-7; ou Ac. da RP, de 11.01.2021, Mendes Coelho, Processo n.º 3163/19.8T8OAZ.P1. [23] Neste sentido, para normas idênticas do anterior CPC, Ac. da RE, de 07.10.2009, Mata Ribeiro, CJ, 2009, Tomo IV, págs. 247-249, onde se lê que, «tendo em conta o alcançar dos objectivos preconizados pela reforma processual civil de 1996, o julgador deve usar da possibilidade que lhe foi conferida do convite ao aperfeiçoamento, em consonância com o disposto no arts. 265º nº 2 e 508º nº 2 e 3 do CPC, que muito embora sejam normas de carácter geral e não específicas das providências cautelares, estas não excluíam esta intervenção judicial, plenamente justificada pela necessidade de se assegurarem eficazmente os objectivos que através deles se pretendiam alcançar, sem quebra de determinados requisitos de ordem substancial ou formal».