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SEGUNDA PERÍCIA
Sumário
I - A segunda perícia destina-se a corrigir uma eventual inexactidão do resultado da primeira. II - Para tal e sendo a mesma requerida por uma das partes, cabe-lhe alegar “fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”, o que significa indicar, de forma concreta, as inexatidões, incoerências ou insuficiências em que incorre o relatório pericial, em que medida ou de que forma influenciam o resultado final e indicar as correções a introduzir, seja no que respeita aos elementos de facto a considerar, seja no que respeita a uma distinta apreciação técnica. III - As referidas razões, consideradas objectivamente, terão de ser aptas a criar no julgador médio um estado de dúvida sobre se a perícia efectuada não padecerá dos vícios que o requerente lhe assaca e que, caso venham a ser demonstrados, levam a que seja alcançado um resultado distinto do da primeira.
Texto Integral
Recorrente - AA
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES 1. Relatório
AA intentou acção declarativa de condenação com processo comum contra ... – Companhia de Seguros, SA, pedindo fosse condenada: a) a reconhecer que a A. está afectada de invalidez total e permanente com incapacidade de 72%; b) a indemnizar a A. no valor correspondente ao capital seguro de € 23.434,52, acrescido de juros legais contados desde 16/01/2020; c) na sanção pecuniária compulsória a que alude o n.º 2 do art. 365º do CPC.
Alegou para tanto
Em 2007 subscreveu um contrato de seguro com a Ré, então denominada B... – Companhia de Seguros, SA, com as coberturas de morte, invalidez total e permanente e doenças graves, com o capital de € 23.434,52.
Desde 16 de janeiro de 2020 que a A. apresenta uma incapacidade permanente global de 72%, pois padece de: a) limitação na mobilidade (rigidez) da coluna, com limitações a nível da flexão, da extensão, no plano frontal (da inclinação lateral) e transversal (rotação); b) limitação conjugada da mobilidade do ombro e cotovelo de ambos os membros superiores, com limitação das rotações internas e externas, encontrando-se impedida de levar as mãos à nuca, ao ombro oposto e à região lombar; c) paralisia do nervo mediano (nos punhos); d) nevralgias e radiculalgias persistentes, que lhe causam impotência funcional; e) doença hipertensiva ventricular, arteríolas estreitas; f) a nível psiquiátrico padece de perturbações funcionais com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional.
A incapacidade de que a A. padece tem carácter definitivo e irreversível e impede a A., de forma permanente, de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade lucrativa de acordo com os seus conhecimento e aptidões.
Acionou o seguro, mas a Ré não procedeu ao pagamento da quantia titulada pelo contrato.
A Ré contestou impugnando os factos alegados e requereu a realização de prova pericial a realizar pelo INMLCF para prova da matéria constante dos art.s 12º a 16º da contestação.
Foi proferido despacho saneador em que, além do mais ficou consignado como tema da prova “Saber qual a incapacidade/invalidez que a autora padece, desde quando, doenças associadas à autora e limitações inerentes, consequências a nível profissional”, foi considerado que a prova pericial requerida pela Ré não era impertinente e ordenada a notificação da A., que nada disse.
Entretanto foi proferido despacho a ordenar a notificação da Ré para apresentar quesitos, o que a mesma fez.
Foi então proferido despacho com o seguinte teor:
«Oficie ao GML competente solicitando a realização da perícia em conformidade com o supra exposto (requerimento referência citius ...54), remetendo para cópia da petição inicial e contestação, acompanhados dos respetivos documentos, bem como do presente despacho e do requerimento referência citius ...54».
A 31/08/2021 o GMLF do ... solicitou elementos documentais.
A 06/12/2021 solicitou, além do mais, a realização de exame da especialidade de psiquiatria forense.
A 18/04/2022 foi junto aos autos o Relatório da especial de psiquiatria forense que apresenta as seguintes: «Conclusões da perícia: Após a consulta de todos os elementos processuais disponíveis e tendo em conta a observação directa (realizada 08/02/2022), conclui-se que não se encontram elementos clínicos que possam comprovar a existência de patologia psiquiátrica permanente de carácter incapacitante».
Notificada do referido Relatório veio a A. dizer:
1. Veio a perita médica concluir que “Após a consulta de todos os elementos processuais disponíveis e tendo em conta a observação direta (realizada 08/02/2022), conclui-se que não se encontram elementos clínicos que possam comprovar a existência de patologia psiquiátrica permanente de carácter incapacitante.”
2. Acresce que, da discussão consta o seguinte: “Apesar de ser referido pela examinada, não existe qualquer registo médico de que tenha sido seguida em consulta de Psiquiatria, quer a nível hospitalar quer em clínica privada, existindo apenas um único registo de consulta, ocorrido a 7/12/2011 onde vem referido “Síndrome depressivo ligeiro reativo”. Não tem qualquer evidência clínica da existência de perturbação psiquiátrica significativa de carácter incapacitante ou com impacto no nível de eficiência pessoal e profissional.”
3. Ora, a sinistrada compareceu perante a Exma. Senhora Perita Médica que a avaliou,
4. Além da medicação descrita pela médica perita, a sinistrada fez-se acompanhar da medicação que toma diariamente: escitalopram zentiva 10 Mg e diazepam 10 Mg.
5. Ora, tal medicação não foi tida em consideração pela perita médica,
6. Nem tomou em consideração a história clínica da sinistrada,
7. Acresce que, do atestado médico de incapacidade multiuso consta que a A. padece de sequelas psiquiátricas, tendo as mesmas sido devidamente valorizadas em função do acompanhamento médico e medicação diária,
8. Nessa medida, sem prejuízo de se vir a requerer segunda perícia, requer desde já a V/Exa. se digne ordenar a notificação da Exma. Senhora Perita para vir aos autos retificar o relatório médico apresentado em função da medicação diária que a A. toma escitalopram zentiva 10 Mg e diazepam 10 Mg e do acompanhamento clínico que lhe é prestado a fim de lhe ser administrada tal medicação.
9. Devendo Exma. Senhora Perita esclarecer, em função do supra mencionado, qual a incapacidade que advém para a sinistrada da referida situação clinica.”
Foi proferido despacho a ordenar que a Sra. Perita prestasse os esclarecimentos.
A 18 de Julho de 2022 a Sra. Perita da especialidade de Psiquiatria forense veio dizer: «A perita esclarece: Toda a história médica e clínico-psiquiátrica da examinada, quer a fornecida por ela própria, quer a registada na documentação clínica, sintomas, consultas médicas, datas, identificação de especialidades, acompanhamento clínico, medicações, identificação de fármacos (como os que vêm mencionados) e estado mental actual, tudo foi tido em conta e devidamente plasmado no relatório pericial de Psiquiatria Forense (ver segmento História Médica). Em relação ao Atestado Médico de Incapacidade Multiusos de 16/1/2020, a perícia colegial que o atribui é constituída por médicos especialistas de Saúde Pública. Esta avaliação pericial complementar na especialidade de Psiquiatria é subscrita por médica especialista Consultora em Psiquiatria, especialista em Medicina do Trabalho, especialista em Psiquiatria Forense, com a Competência de Avaliação de Dano Corporal, com a Competência de Medicina da Segurança Social, inscrita de pleno direito em todos estes Colégios e Competências da Ordem dos Médicos, fundamentando a sua avaliação no conhecimento clínico e científico adquirido ao longo da sua carreira e na sua longa experiência de avaliação médico-legal e de referenciação e uso da TNI nos diversos âmbitos da sua utilização. Na avaliação psiquiátrica forense não verifica a existência de situação clínica psiquiátrica de carácter incapacitante ou com algum impacto no nível de eficiência pessoal e profissional, pelo que não se encontra justificação para rectificar o relatório pericial».
Veio a A. dizer:
1. Veio a perita médica concluir que “Após a consulta de todos os elementos processuais disponíveis e tendo em conta a observação direta (realizada 15/03/2022), conclui-se que não se encontram elementos clínicos que possam comprovar a existência de patologia psiquiátrica permanente de carácter incapacitante.”
2. Pela A. foi apresentada reclamação, onde requereu que, de acordo a história clínica e com a medicação que lhe foi prescrita, fossem prestados os devidos esclarecimentos sobre a incapacidade que advém para a sinistrada da referida situação clínica.
3. Contudo, voltou a concluir que “não verifica a existência de situação clínica psiquiátrica de carácter incapacitante ou com algum impacto no nível de eficiência pessoal e profissional, pelo que não se encontra justificação para retificar o relatório pericial”.
4. Ora, da discussão presente no relatório datado de 18 de abril de 2022 consta que “Apesar de ser referido pela examinada, não existe qualquer registo médico de que tenha sido seguida em consulta de Psiquiatria, quer a nível hospitalar quer em clínica privada, existindo apenas um único registo de consulta, ocorrido a 7/12/2011 onde vem referido “Síndrome depressivo ligeiro reativo”. Não tem qualquer evidência clínica da existência de perturbação psiquiátrica significativa de carácter incapacitante ou com impacto no nível de eficiência pessoal e profissional.”
5. Certo é que a sinistrada compareceu perante a Exma. Senhora Perita Médica que a avaliou,
6. Além da medicação descrita pela médica perita, a sinistrada fez-se acompanhar da medicação que toma diariamente: escitalopram zentiva 10 Mg e diazepam 10 Mg.
7. Ora, tal medicação não foi tida em consideração pela perita médica, nem no relatório que apresentou, nem nos esclarecimentos que prestou.
8. Também não foi tida em consideração a história clínica da sinistrada,
9. Acresce que, do atestado médico de incapacidade multiuso (elaborado por médicos credenciados para o efeito e imparciais) consta que a A. padece de sequelas
psiquiátricas, tendo as mesmas sido devidamente valorizadas em função do acompanhamento médico e medicação diária,
10. E nada do que foi apreciado por aqueles médicos e que consta do atestado médico de incapacidade multiuso foi tido em consideração pela Exma. Senhora Perita
Médica, justificando a mesma que aqueles médicos são especialistas de saúde pública,
11. Contudo, certamente com capacidade para proceder à avaliação do atestado médico de incapacidade multiuso (que se trata de um documento totalmente imparcial e onde constam apenas as incapacidades devidamente avaliadas e documentadas).
12. Pelo que, requer a realização de segunda perícia, a qual deve ser singular e a realizar por novo perito (nos termos do artigo 488.º, alínea a) do CPC).
Foi então proferido o seguinte despacho:
«A Sra. Perita já respondeu aos esclarecimentos solicitados pela Autora, pelo que, nessa sequência, veio esta requerer a realização de uma segunda perícia médica, por considerar, no essencial, que aquela não teve em consideração a medicação por si tomada diariamente e por considerar que existe uma discrepância entre as conclusões da Sra. Perita (inexistência por parte da Autora de situação clínica psiquiátrica incapacitante) e o atestado de incapacidade multiuso junto aos autos (que conclui no sentido de que a Autora padecer de sequelas psiquiátricas), alegando ainda que aquela não teve em consideração este atestado.
Ora, efetivamente nos termos do disposto no artigo 487.º, nº 1, do CPC, qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, e o Tribunal pode, se julgar necessário ao apuramento da verdade, deferir o pedido ou até ordená-la oficiosamente.
No entanto, no caso em concreto, afigura-se desnecessária a realização da segunda perícia, porquanto conforme resulta do relatório de avaliação psiquiátrica forense a examinanda referiu à Sra. Perita a toma da medicação em causa, que foi tida em conta por esta, tal como resulta dos seus esclarecimentos.
Ademais, a Sra. Perita também esclareceu o motivo pelo qual pode existir uma desconformidade entre o que resulta do atestado de incapacidade multiuso (o qual é constituído por médicos de saúde pública e não por médicos da especialidade como aconteceu no caso) e o que resulta do seu relatório, sendo que mesmo naquele atestado a taxa de desvalorização atribuída à Autora relativa à psiquiatria é quase residual.
Desta feita, e por se considerar que a avaliação psiquiátrica levada a cabo pela Sra. Perita teve em conta toda a informação que lhe foi feita chegar pela Autora (incluindo de medicação tomada), assim como toda a informação clínica disponível, sendo ainda comparada a avaliação por aquela feita e a que se encontra vertida no atestado de incapacidade multiuso (tal como foi referido em sede de esclarecimentos), indefere-se a 2.ª perícia requerida».
Interpôs a A. recurso do referido despacho, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. A Recorrente não se conforma com o despacho recorrido, porquanto no mesmo não foi feita a melhor aplicação do Direito.
B. A Recorrente não tem qualquer interesse em protelar a ação, mas antes em convocar para o processo o maior número de elementos probatórios que permitam concluir pela sua situação clínica (física e psicológica), bem como concluir do seu concreto grau de incapacidade.
C. De facto, a diligência requerida, realização de segunda perícia, não só é útil como é essencial à descoberta da verdade e à justa composição do litígio.
D. Ao afirmar que a diligência requerida é desnecessária e inútil, o Tribunal a quo está a impedir que se realizem diligências probatórias essenciais à descoberta da verdade e à justa composição do litígio conforme lhe incumbe pelo princípio do inquisitório, vertido no art. 411.º do CPC.
E. De facto, deve o Juiz dirigir ativamente o processo, cabendo-lhe nomeadamente o dever de realizar, ou ordenar oficiosamente, todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade material relativamente aos factos alegados.
F.O novo processo civil confere ao juiz poderes instrutórios para que se possa aproximar o mais possível da verdade material, ou seja, um poder-dever de realizar as diligências probatórias necessárias à realização da justiça.
G. Pelo que, não deve rejeitar a realização de prova pericial, salvo manifestamente desnecessário – que não é – e também não se pode considerar que já esteja suficientemente esclarecido, tanto que a Sra. Perita, nos seus esclarecimentos, apenas remete para o seu relatório pericial outrora formulado que suscitaram inúmeras dúvidas na A./Recorrente,
H. Que urgem esclarecer.
I. Pelo que, revela-se essencial à descoberta da verdade material a realização de segunda perícia!
J.Ora, o juiz apenas deve indeferir o requerimento de prova pericial em caso de impertinência – se a perícia não é reportada aos factos da causa – ou caráter dilatório.
K. É impertinente ou dilatória a perícia que não respeita a factos condicionantes da decisão final ou que, embora a eles respeitando, o respetivo apuramento não dependa de prova pericial, por não estarem em causa os conhecimentos especiais (cfr. art. 388º, do Código Civil).
L.O que, salvo melhor entendimento, não é o caso dos presentes autos.
M. Sendo que, fora desse expediente dilatório, não deve ser impedido o direito das partes à prova lícita, ainda que de obtenção difícil, morosa ou dispendiosa, por estar em causa o direito, constitucionalmente garantido, de acesso ao direito e aos tribunais, com tutela jurisdicional efetiva, designadamente na vertente da proibição da indefesa, e como manifestação da exigência de um processo justo e equitativo, como consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
N. Nessa senda, andou mal o Tribunal, s.d.r., ao indeferir a prova requerida, não cumprindo com o seu poder-dever, violando, entre outos, o disposto nos arts. 5.º, 411.º e 436.º do CPC.
O. Pelo que, ante o supra alegado, é de admitir a realização de 2.ª perícia requerida pela recorrente, porquanto, daí nenhum prejuízo deriva, sequer, para qualquer dos intervenientes, nem mesmo para o regular andamento dos autos,
P. Revelando-se, aliás totalmente essencial ao apuramento da verdade material e para a correta composição do litígio.
Q. Ora, sendo patente que a factualidade alegada pela Recorrente não é indiferente à boa decisão da causa, deve dar-se a possibilidade à Recorrente de usar de todos os meios de prova legalmente admissíveis para cumprir o seu ónus probatório e assim salvaguardar de forma plena os seus legítimos interesses.
R. Pelo que, ante os argumentos aduzidos, desde já deverá este Tribunal determinar a realização da 2.ª perícia médica requerida, revogando o despacho proferido.
S. O certo é que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou os princípios do inquisitório, do ónus de alegação das partes e do contraditório (entre os quais, 5.º, 411.º e 436.º CPC e art. 342º, n.º 3 do CC, bem como o art. 20° da Constituição da República Portuguesa).
T. Não contribuindo para a pacificação do conflito e, pelo contrário, manteve-o em aberto agravando-o.
U. Pelo que, deverá o despacho recorrido ser revogado, substituindo-se por outro que, com base nos elementos constantes do processo, defira a realização de segunda perícia médica à Recorrente, que deverá levar em consideração toda a prova documental junta aos autos e que responda objetiva e fundamentadamente aos quesitos, para que, em conformidade, atribua à Recorrente a sua efetiva/real incapacidade.
Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações
2. Questões a decidir
O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
A única questão que cabe apreciar é se a segunda perícia requerida pela A. devia ter sido deferida.
3. Fundamentação de facto
As incidências fácticas relevantes para a decisão são as indicadas no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidas. 4. Fundamentação de direito 4.1. Enquadramento jurídico
O regime jurídico da segunda perícia está pasmado nos art.ºs 487º a 489º do CPC, cuja violação a recorrente não invoca nas suas conclusões, não tendo aqui relevância o disposto no art.º 5º do CPC – que apenas diz respeito ao ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal – o princípio do inquisitório plasmado no art.º 411º do CPC – não está em causa qualquer actividade oficiosa do tribunal -, o disposto no art.º 20º da CRP – relativo ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva – o disposto no art.º 436º do CPC – que diz respeito à requisição de documentos – e o disposto no art.º 342º n.º 3 do CC – que dispõe que em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Dispõe o artigo 487.º do CPC, cuja epígrafe é “Realização de segunda perícia” que (sublinhado nosso) qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
E dispõe o n.º 3 que a segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª edição, Almedina, 2019, p. 342, referem: “ A segunda perícia não constitui uma instância de recurso. Visa, sim, fornecer ao tribunal novos elementos relativamente aos factos que foram objeto da primeira, cuja indagação técnica por outros peritos (art.488º-a) pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial. (…) Quando a iniciativa [da segunda perícia] é da parte, não lhe basta requerê-la: é-lhe exigido que explicite os pontos em que se manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com apresentação das razões por que entende que esse resultado devia ser diferente. Não era assim anteriormente à revisão de 1995-1996 do CPC de 1961: a parte não tinha de apresentar qualquer justificação e dificilmente a repetição da diligência podia ser considerada impertinente ou dilatória. (…) o requerente tem de apresentar razões sérias e concludentes para a sua realização, (…) que o juiz deve ordenar desde que, a verificarem-se, possam conduzir a um resultado pericial diverso (…)”
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2ª ed., p. 567, referem: “A exigência de fundamentação das razões de discordância tem por objectivo evitar segundas perícias dilatórias, exigindo-se à parte que concretize os pontos de facto que não foram suficientemente esclarecidos na primeira perícia, enunciando as razões por que entende que o resultado da perícia deveria ser. A expressão fundadamente significa que as razões de discordância têm de ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia (STJ 25/11/2004, CJ ,T.III,p.124). A parte tem de indicar os pontos de discordância (as inexatidões a corrigir) e justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica. (…) Embora o requerente não tenha de demonstrar a procedência da argumentação, os motivos de discordância terão de ser aptos, do ponto de vista objectivo e atentas as circunstâncias do caso concreto, a criar um estado de dúvida no julgador médio sobre se a perícia efectuada não padecerá dos vícios que o requerente lhe assaca e que, caso venham a ser demonstrados, levam a que seja alcançado um resultado distinto do da primeira (RG 4-10-2018, 3621/17)”.
Em síntese:
- a segunda perícia destina-se a corrigir uma eventual inexactidão do resultado da primeira;
- para tal e sendo a mesma requerida por uma das partes, cabe-lhe alegar “fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado” o que significa indicar, de forma concreta, as inexatidões, incoerências ou insuficiências em que incorre o relatório pericial, em que medida ou de que forma influenciam o resultado final e indicar as correções a introduzir, seja no que respeita aos elementos de facto a considerar, seja no que respeita a uma distinta apreciação técnica;
- as referidas razões, consideradas objectivamente, terão de ser aptas, a criar no julgador médio um estado de dúvida sobre se a perícia efectuada não padecerá dos vícios que o requerente lhe assaca e que, caso venham a ser demonstrados, levam a que seja alcançado um resultado distinto do da primeira.
4.2. Em concreto
Está em causa, única e exclusivamente, a perícia na especialidade de psiquiatria forense.
Antes de apreciar concretamente a pretensão da recorrente, impõe-se enquadrar a questão no desenvolvimento dos autos.
Assim, a A. alegou na petição inicial que desde 16 de janeiro de 2020 que apresenta uma incapacidade permanente global de 72%, pois, nomeadamente e no que releva à economia do recurso, a nível psiquiátrico padece de perturbações funcionais com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional.
Estamos perante uma alegação genérica, pois a A. não concretiza a doença ou doenças do foro psiquiátrico de que padece.
As perturbações funcionais são a manifestação ou consequência de uma ou mais do que uma doença.
Além disso, não concretizou a forma ou modo como tais “perturbações funcionais” se manifestam “na eficiência pessoal e profissional “.
Finalmente, a A., quando notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 476º n.º 2 do CPC, nada disse ou requereu.
Notificada do Relatório da perícia em referência, apresentou reclamação em que invocando a medicação que toma, a sua “história clínica” e o “atestado médico de incapacidade multiuso”, requereu fosse ordenado à Sra. Perita para “retificar o relatório médico apresentado em função da medicação diária que a A. toma… e do acompanhamento clínico que lhe é prestado a fim de lhe ser administrada tal medicação.”
Notificada para “prestar esclarecimentos“ a Sra. Perita veio dizer:
«Toda a história médica e clínico-psiquiátrica da examinada, quer a fornecida por ela própria, quer a registada na documentação clínica, sintomas, consultas médicas, datas, identificação de especialidades, acompanhamento clínico, medicações, identificação de fármacos (como os que vêm mencionados) e estado mental actual, tudo foi tido em conta e devidamente plasmado no relatório pericial de Psiquiatria Forense (ver segmento História Médica). Em relação ao Atestado Médico de Incapacidade Multiusos de 16/1/2020, a perícia colegial que o atribui é constituída por médicos especialistas de Saúde Pública. Esta avaliação pericial complementar na especialidade de Psiquiatria é subscrita por médica especialista Consultora em Psiquiatria, especialista em Medicina do Trabalho, especialista em Psiquiatria Forense, com a Competência de Avaliação de Dano Corporal, com a Competência de Medicina da Segurança Social, inscrita de pleno direito em todos estes Colégios e Competências da Ordem dos Médicos, fundamentando a sua avaliação no conhecimento clínico e científico adquirido ao longo da sua carreira e na sua longa experiência de avaliação médico-legal e de referenciação e uso da TNI nos diversos âmbitos da sua utilização. Na avaliação psiquiátrica forense não verifica a existência de situação clínica psiquiátrica de carácter incapacitante ou com algum impacto no nível de eficiência pessoal e profissional, pelo que não se encontra justificação para rectificar o relatório pericial».
A A. veio requerer a realização de uma segunda perícia.
Porém, quando procuramos as “razões” por que entende que esse resultado devia ser diferente, a A. limita-se a invocar, como já havia feito na ”reclamação”, a medicação que toma, a sua “história clínica” e o “atestado médico de incapacidade multiuso”.
Em primeiro lugar, verifica-se que a A. nada de novo alegou relativamente ao que já havia feito constar da sua reclamação.
Em segundo lugar, na sequência da reclamação da A., a Sra. Perita esclareceu que a medicação que a A. toma e a sua história médica e clínico-psiquiátrica, quer a fornecida por ela própria, quer a registada na documentação clínica e estado mental actual, foram tidas em conta e devidamente plasmadas no relatório pericial de Psiquiatria Forense.
E efectivamente assim é, como consta das partes do referido Relatório intituladas “Metodologia” e “História Médica”
Em terceiro lugar a A. não explica em que medida ou de que forma a medicação que toma ou a alegação genérica da sua “história clínica“ fazem incorrer o Relatório pericial em inexatidões, incoerências ou insuficiências com influência no resultado final, ou seja, não explicita em que medida ou de que forma é que tais elementos seriam aptos a obter um resultado pericial diferente.
Em quarto lugar e quanto ao “atestado médico de incapacidade multiuso” a Sra. Perita também se pronunciou dizendo que não é elaborado por um médico com competências próprias na especialidade de psiquiatria e concretamente em psiquiatria forense, como sucede com a Sra. Perita.
Com todo o respeito pelos seus autores, quando colocado o referido atestado em confronto com o facto de a perícia dos autos ter um objecto específico e ter sido realizada por um perito com competências próprias na especialidade de psiquiatria forense, o mesmo não é de molde a criar uma dúvida fundada sobre a eventualidade da perícia realizada padecer de inexactidões, incoerência ou insuficiências que pudessem ser verificadas e corrigidas numa segunda perícia.
Em conclusão: -
- a pura e simples invocação da medicação que toma, da sua “história clínica“ e do “atestado médico de incapacidade multiuso” não traduzem, isolada ou conjugadamente, a alegação, concreta, de inexatidões, incoerências ou insuficiências do relatório pericial;
- ainda que pudessem ser consideradas “razões”, nos termos e para os efeitos disposto no art.º 487º n.º 1 do CPC, consideradas objectivamente, não permitem criar no julgador médio um estado de dúvida sobre se a perícia efectuada não padecerá de inexatidões, incoerências ou insuficiências.
Em face de tudo o exposto não estão reunidos os pressupostos de realização de uma segunda perícia, pelo que, ainda que por razões diversas, a decisão recorrida deve manter-se e o recurso ser julgado improcedente.
5. Decisão
Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida e, em consequência, julgar improcedente o recurso.
*
Custas pela recorrente – art.º 527º n.º 1 do CPC
*
Notifique-se
*
Guimarães, 25/05/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
Relator: José Carlos Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Morais
Maria João Matos