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REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REQUISITOS GERAIS
ACÇÃO DE DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Sumário
1. Numa ação especial de revisão de sentença estrangeira, proferida na ..., em matéria de divórcio e partilha: 1.1. Aplica-se o regime dos arts.980º ss do C. P. Civil e da Convenção de Haia sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de Pessoas de 1 de junho de 1979. 1.2. A sentença estrangeira não pode ser revista de mérito (art. 6.º da Convenção). 1.3. Constituem: requisitos gerais para a revisão os previstos no art.980º do C. P. Civil; fundamentos de impugnação pela parte os previstos no art.983º do C. P. Civil; fundamentos de revisão oficiosa os previstos no art.984º do C. P. Civil (a verificação das als. a) e f) deve ser aferida positivamente pelo Tribunal e a verificação sobre os requisitos das als. b), c), d) e e) do art.980º do C. P. Civil depende de se apurar que faltam os requisitos em causa) e, nomeadamente, os previstos nos arts.8º e 10º da Convenção. 2. Não se considera que não tenham sido assegurados no processo onde foi proferida a sentença «os princípios do contraditório e da igualdade das partes» (al. e) do art.980º do C. P. Civil), nem « as diligências adequadas para que o demandado fosse informado do pedido de divórcio ou de separação de pessoas ou (…) condições de fazer valer os seus direitos» (art.8º da Convenção), quando: as partes apresentaram acordo no Tribunal; foi-lhes concedido apoio judiciário, no qual o aqui requerido não diligenciou por pedir advogado, omissão que só ao mesmo se pode imputar; foi-lhes disponibilizado de intérprete. 3. Considerara-se que a sentença não contém «decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.» (al. f) do art.980º do C. P. Civil e art.10º da Convenção), nem ocorre o fundamento de defesa do nº2 do art.983º do C. P. Civil, uma vez que: a) Não é possível conhecer num processo de revisão de sentença estrangeira, de forma a poder ser recusada a revisão, o fundamento de defesa que o requerido agiu em erro por o valor de € 90 000, 00 atribuído ao imóvel não corresponder ao valor real e o valor real do imóvel corresponder ao valor de € 160 000, 00, b) A apreciação conjugada de todo o acordo integrado na sentença não permite concluir, sobretudo de forma manifesta, que não foi observada a regra da divisão do património comum do casal com a salvaguarda de metade para cada um dos cônjuges (arts.1721º ss, 1730º e 1689º do C. Civil), com violação do direito de propriedade do oponente (art.62º da CRP), tendo em conta que, através do mesmo acordo: foi adjudicado ao cônjuge mulher um imóvel no valor de mercado acordado de € 90 000, 00 mas que estava onerado com a hipoteca que garantia o pagamento da dívida de € 40 000, 00, dívida esta que foi assumida integralmente pelo cônjuge mulher; foi adjudicado ao cônjuge marido um veículo de valor não indicado e foi-lhe permitido reter pensões acumuladas no casamento em valor também não indicado, mas que se presumem bem comum do casal nos termos dos arts.1724º e 1725º do C. Civil, face à renúncia de receção do seu crédito a este título pelo cônjuge mulher, e como compensação da adjudicação exclusiva do imóvel ao mesmo/requerente desta ação; foi permitido a ambos os cônjuges reter bens que possuíam (sem discriminação, nem indicação de valor), o que pode, também, introduzir uma correção ou compensação de benefícios, em termos não conhecidos.
Texto Integral
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte ACÓRDÃO I. Relatório:
AA intentou contra BB, ambos identificados nos autos, a presente ação especial de revisão de sentença estrangeira, ação na qual: 1. A autora: 1.1. Pediu que se revisse e confirmasse a sentença proferida pelo Tribunal ... – 10.ª Divisão – Tribunal Singular, que decretou o divórcio entre autora e réu, e aprovou o acordo celebrado entre ambos a 18.11.2021, designadamente, quanto à partilha do bem imóvel sito em Portugal, Rua ..., ..., ..., e demais obrigações. 1.2. Alegou, como fundamento dos pedidos:
«1. Autora e Réu casaram catolicamente a 19 de Agosto de 1999, na freguesia ..., do concelho ..., sem precedência de convenção antenupcial (…).
2. Por sentença judicial proferida em 22.02.2022, pelo Tribunal ... – 10.ª Divisão – Tribunal Singular, foi: decretado o divórcio entre Autora e Réu,
3. e, homologado o acordo de .../.../2021, da Autora e do Réu relativo ao divórcio, cujo teor é transcrito na própria sentença revidenda (…).
4. Neste acordo, homologado pela sentença revidenda, Autora e Réu acordaram, além do mais, quanto à partilha dos bens comuns do casal – (…), nos seguintes moldes:
5. Partilha de um imóvel, sito em Portugal, na Rua ..., ..., ...,
6. acordando ambos, que tal imóvel, fica a pertencer à Autora, sendo transferido o registo de propriedade para o nome desta, sendo que até à efectivação da transferência do registo de propriedade, a Autora utiliza o imóvel sozinha.
7. O aqui Réu acordou e comprometeu-se a realizar, no prazo de seis meses a contar da notificação da sentença, todos os actos jurídicos necessários para a efectivação da transferência do registo de propriedade para o nome da Autora.
8. Como compensação ao Réu pela transferência do registo de propriedade deste imóvel para a propriedade exclusiva da Autora, esta prescindiu da compensação dos direitos de pensão acumulados durante o casamento,
9. e ainda, cedeu ao Réu, o veículo automóvel da marca ... E ..0, matricula ZH ..9 ..3, ficando o Réu a ser o único proprietário do veículo.
10. Para tanto, Autora e Réu acordaram que o valor actual de mercado a atribuir ao imóvel sito em Portugal, na Rua ..., ..., ..., é de € 90.000,00.
11. E que o mesmo está sujeito a hipoteca ao banco “Banco 1...” do valor actual de € 40.000,00.
12. A Autora acordou assumir, como devedora única, o pagamento da hipoteca, isentando o Réu de qualquer responsabilidade decorrente desta.
13. Mais acordou a Autora assumir todos os encargos relacionados com o referido imóvel, nomeadamente, juros hipotecários, amortização, manutenção.
14. Ainda neste acordo Autora e Réu prescindiram mutuamente de alimentos; e no demais, estipularam que cada um retém o que possui e o que está em seu nome.
15. Com efeito, estão preenchidas as exigências legais plasmadas na al. e), do artigo 980.º do C.P.C. - citação regular do Réu para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido assegurados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
16. “In casu” o Réu esteve presente no acto, beneficiou de intérprete, sendo que apresentou uma petição conjunta de divórcio e partilha de bens com a aqui Autora,
17. tal sentença foi proferida no âmbito de um processo requerido por ambos os cônjuges em “apresentação final conjunta” – “vide” a respectivasentença a folhas 2 supra.
18. Sendo certo que a mesma já transitou em julgado, porquanto, ambas as partes estando presentes foram notificadas, e posteriormente não apresentaram recurso,
19. tal como se colhe a folhas quatro infra da sentença, onde é atestado pelo Tribunal ... que a mesma se tornou definitiva e exequível a 29 de Março de 2022, estando pois respeitados os termos da al.b), do artigo 980.º do C.P.C.
20. Com efeito, a sentença estrangeira que aqui se pretende revista e confirmada, constitui uma decisão sobre direitos privados, que a Autora, enquanto cidadã portuguesa, tem interesse em que seja eficaz em território nacional.
21. Dúvidas não restam quanto à autenticidade das certidões juntas e respectiva tradução, assim como quanto à inteligibilidade da decisão, artigo980.º, al. a), do C.P.C.
22. Tal-qualmente, inexiste dúvida quanto à competência do Tribunal ... – 10.ª Divisão, como sendo o foro competente para apreciar a causa, desde logo, por ter jurisdição sobre o território onde ambas as partes residiam, pelo que nos termos da al. c) do citado preceito legal não houve fraude à lei em matéria de competência.
23. Ademais, a sentença não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
24. Sem que, paralelamente, ocorra, qualquer uma das excepções previstas na al. d), do artigo 980.º do C.P.C.
25. Nesta senda, vemos que a decisão proferida em nada contraria ou ofende as disposições de direito privado português, muito pelo contrário, posto que a factualidade apurada no âmbito do processo aqui em apreço: divórcio e homologação do acordo das partes, ora Autora e Réu, conduziria, em face da nossa legislação, à mesma solução, pelo que o seu reconhecimento não é de todo, manifestamente, incompatível, com os princípios da ordem pública internacional do estado português (al. f) docitado preceito).
26. Estão assim preenchidos, todos os requisitos contidos e exigidos no artigo 980.º do Código de Processo Civil,
27. Finalmente, o tribunal da Relação de Guimarães é o competente para conhecer da presente acção nos termos do plasmado no artigo 979.ºcom remissão para o artigo 80.º, ambos do Código de Processo Civil.». 2. O requerido deduziu oposição, na qual aceitou a revisão da sentença quanto ao divórcio e opôs-se à revisão da mesma quanto à partilha, mediante a impugnação de todos os factos alegados de 3 a 8 e de 10 a 25 do articulado referido em I-1 supra e a defesa da falta de verificação dos requisitos do art.980º do C. P. Civil (sobretudo als. a) e f) da norma) e da verificação da previsão do nº2 do art.983º do C. P. Civil, nos seguintes termos:
«3. O Requerido impugna o alcance probatório que a Requerente pretende obter do documento n.º ... junto com a petição inicial.
4. É efetivamente verdade que, por sentença judicial proferida em 22.02.2022 pelo Tribunal ..., foi decretado o divórcio entre a Requerente e o Requerido.
5. Porém, não pode o Recorrido aceitar o vertido no acordo de .../.../2021 quanto à partilha dos bens comuns do casal.
6. Na situação concreta o Recorrido insurge-se contra a existência de fundamento legal para a revisão e confirmação da sentença revidenda relativamente ao segmento decisório da partilha dos bens comuns do casal,
7. Quer devido à falta de observância dos requisitos previstos no artigo 980.º do CPC, nomeadamente as alíneas e) e f), quer devido ao disposto no n.º 2 do artigo 983.º do CPC, – conforme infra se demonstrará – e ainda porque aquele não exprime a real vontade das partes.
8. Para um melhor entendimento, transcreve-se o mencionado acordo na parte que aqui importa:
“É reconhecido: (…) 2. Pensão de alimentos entre cônjuges As partes concordam que não há direito a pensão de alimentos entre os cônjuges. 3. Compensação dos direitos a pensões As partes, estando conscientes da situação legal, prescindem mutuamente da compensação dos direitos a pensões acumulados durante o casamento. 4. Partilha de bens Relativamente à partilha de bens, as partes acordam o seguinte: A requerente cede ao requerente o carro registado em seu nome da marca ... E ..0,ZH ..9 ..3, passando o requerente a ser o proprietário do carro. As partes são co-proprietárias de uma propriedade na Rua ..., ... ... em Portugal. Concordam que o valor de mercado atual do imóvel é deaproximadamente 90.000 euros. O imóvel está sujeito a uma hipoteca com o Banco 1... deatualmente 40’000 EUROS. As partes concordam em passar o registo de propriedade para o nome da requerente. Orequerente compromete-se a realizar, no prazo de seis meses a contar da notificação, todos osatos jurídicos necessários, para que seja transferido o registo de propriedade para o nome darequerente. A requerente assume a hipoteca restante como devedora única, ou seja, isenta orequerente de qualquer responsabilidade referente à hipoteca. (…) Como compensação pela transferência do registo de propriedade para a propriedade exclusiva da requerente, como já referido anteriormente, a requerente prescinde da compensação dos direitos de pensão acumulados durante o casamento” (negrito e sublinhado nosso).
9. Resulta, em síntese, do aludido acordo:
i. que a propriedade do imóvel – bem comum do casal – sito na Rua ..., ... ... em Portugal, ao qual foi atribuído o valor de “aproximadamente 90.000,00€”, será transferida para a Requerente;
ii. e como contrapartida daquela transferência a Requerente prescindiu da compensação dos direitos de pensão acumulados durante o casamento.
10. Ora, tal acordo, como se verá, e sem prejuízo da falta de observância dos requisitos previstos no artigo 980.º do CPC, viola de forma ostensiva a “regra da metade” ínsita no art. 1730.º do CCiv..
VEJAMOS:
11. O património comum do casal era constituído pelos seguintes bens:
Activo:
a) um imóvel ao qual foi atribuído no momento daquele acordo o valor aproximado de 90.000,00€;
b) um veículo automóvel da marca ..., modelo ..., do ano de 2009;
c) os direitos de pensão acumulados durante o casamento de cada um dos cônjuges, em valores similares. Passivo:
a) dívida ao Banco 1... no valor de 40.000,00€ constituída para aquisição do imóvel referido na al. a) do activo;
i. quanto ao valor real do prédio urbano:
12. Na sentença revidenda é referido que o imóvel tem o valor aproximado de 90.000,00€.
13. Ora, tal não é, de todo, verdade, tendo sido esse o valor indicado por ser o valor aproximado pelo qual Requerente e Requerido adquiriram o imóvel em 29.07.2003.
14. Com efeito, em 29.07.2002, Requerente e Requerido adquiriram o aludido imóvel pelo preço de 87.290,00€ (oitenta e sete mil, duzentos e noventa euros) (cfr. escritura de compra e venda que ora se junta como doc. n.º ... e cujo teor se dá por integramente reproduzido).
15. Ora, como é bom de ver, quase 20 anos mais tarde, o valor do imóvel é necessariamente muito superior.
16. Efectuada a competente estudo de mercado, apuramos que o valor do imóvel rondará os 160.000,00€ (cento e sessenta mil euros) (cfr. estudo de mercado que se junta como doc. n.º ... e cujo teor se
dá por integramente reproduzido).
17. Deste modo, como é bom de ver, no âmbito da partilha não foi atendido o valor real do imóvel,
sendo absolutamente certo que o seu valor de mercado era, à época, como é hoje, manifestamente superior ao declarado.
ii. quanto ao veículo automóvel:
18. O veículo automóvel acima identificado tinha um valor de mercado de 3.500,00 Francos, cujo valor em euros corresponde a 3.521,28€ (três mil quinhentos e vinte e um euros e vinte e oito cêntimos),
19. Montante pelo qual o mesmo foi vendido pela Requerente pouco tempo depois do divórcio (cfr. comprovativo de transferência do valor da venda que se junta como doc. n.º ... e cujo teor se dá por integramente reproduzido).
iii. Direito a pensões acumulados durante o casamento:
20. Importa começar por esclarecer que a Requerente já tinha prescindido dos ditos direitos previamente ao divórcio (cfr. documento que se protesta juntar).
21. Acresce que, no ponto 3. da sentença em causa, antes da partilha de bens e em ponto autónomo daquela sentença designado por “Compensação dos direitos a pensões”, tanto a Requerente como o Requerido prescindiram mutuamente da compensação dos direitos a pensões acumulados durante o casamento.
22. Daqui resulta, por um lado, que tanto a Requerente como o Requerido tinham pensões acumuladas durante o casamento,
23. E, por outro lado, que decidiram reciprocamente prescindir das mesmas.
24. Deste modo, é de todo incompreensível que o facto de a Requerente estar a abdicar da pensão do Requerido sirva de qualquer compensação para efeitos de partilha, mais precisamente para a transferência do imóvel.
25. Então, pergunta-se: e qual foi – ou é – a compensação para o Requerido por ter prescindido da pensão da Requerente?
26. A verdade, cristalinamente reflectida naquele ponto 3 da sentença, é que as pensões se compensavam em si mesmas,
27. Não integrando a partilha de bens do ponto 4 da sentença.
iv. Do resultado da “partilha” e da situação do Requerido:
28. Conforma acima se viu, o património comum a partilhar era composto pelos seguintes bens: Activo:
a) um imóvel no valor de 160.000,00€ (cento e sessenta mi euros);
b) um veículo automóvel da marca ..., modelo ..., do ano de 2009, no valor de 3.521,28€ (três mil quinhentos e vinte e um euros e vinte e oito cêntimos); Passivo:
a) dívida ao Banco 1... no valor de 40.000,00€ constituída para aquisição do imóvel referido na al. a) do activo;
29. Ou seja, o valor do activo era de 163.521,28€ e o do passivo de 40.000,00€,
30. Pelo que o quinhão de cada um dos ex-cônjuges era de 61.760,64€ ([163.521,28€ - 40.000,00€] / 2).
31. Ora, da sentença revidenda resulta que à Requerente é adjudicado o imóvel, ficando responsável
pelo passivo;
32. E ao Requerido é adjudicado o veículo automóvel.
33. Efetuados os devidos cálculos, a Requerente integrou no seu património bens no valor de 120.000,00€ e o Requerido no valor de 3.521,28€, pelo que existe uma óbvia desproporção que não foi atendida na partilha.
34. Reitera-se que, é falso, ou no mínimo, falacioso, o argumento de que existe uma compensação pela transferência da propriedade do imóvel para a Requerente com o facto da Requerente prescindir do direito à pensão acumulada pelo Requerido.
35. Na verdade: 1] os direitos a pensões acumulados foram reciprocamente prescindidos; 2] a Requerente integra no seu património um valor de 120.000,00€; 3] o Requerido integra no seu património um valor de 3.521,28€.
36. Ou seja: a Requerente leva a mais 116.478,72€ !!
37. O aludido acordo não corresponde, de forma alguma, à vontade real e informada do aqui Requerido.
38. Importa igualmente referir que, ao contrário da Requerente, o Requerido não foi assistido por advogado, encontrando-se desacompanhado em todo o processo,
39. O que não lhe permitiu que lhe fosse assegurada uma defesa adequada, não tendo podido fazer valer os seus direitos e ter um cabal entendimento daquilo que outorgou.
POSTO ISTO:
40. Para que a sentença seja revista e confirmada é necessário que tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos da al. e) do artigo 980.º do CPC.
41. O que não sucedeu no caso concreto!
42. A Requerente estava representada por advogado, o que desde logo significa que estavam em causa interesses contrapostos ou em litígio, inexistindo consenso sobre a vontade relativa à dissolução conjugal e à liquidação do regime matrimonial.
43. Deste modo, a sentença revidenda violou o artigo 8º da Convenção de Haia sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de pessoas.
44. Relativamente ao requisito da alínea f) do artigo 980º do CPC, para que a sentença seja confirmada é necessário “que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português”,
45. Este preceito surge em consonância com o artigo 22.º do Código Civil, que obsta à aplicação da lei estrangeira “quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português”.
46. O conceito de ordem pública internacional é um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística.
47. Nas palavras de Ferrer Correia in Lições de Direito Internacional Privado é um conceito “que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sociojurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la” (cfr. Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2000, 410).
48. Como vem sendo sistematicamente afirmado, a restrição é imposta em função de princípios de ordem pública internacional, e não de ordem pública interna.
49. Sendo que “A ordem pública distingue-se em interna ou internacional conforme a função que desempenha. A primeira determina a nulidade do negócio jurídico que a contrarie (...). A segunda determina a inaplicabilidade do preceito ou preceitos da lei estrangeira que a ofendam, constituindo um limite à competência dessa lei para que remete a norma de conflitos” (cfr. Galvão Telles, in Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 11ª edição (Reimpressão) Coimbra Editora, 2001, p.310).
50. Deste modo, o que releva não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto,
51. Ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.
52. Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser obrigatoriamente aferido pelo resultado do reconhecimento, o que implica uma apreciação global.
53. No caso concreto, a Requerente e o Requerido, ambos de nacionalidade portuguesa, casaram no dia 19.08.1999, sem precedência de convenção antenupcial, ou seja, no regime supletivo da comunhão de bens adquiridos.
54. O mencionado regime traduz-se na participação de ambos os cônjuges, na proporção de metade, em todos os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento (cfr. arts. 1717.º,
1724.º e 1725.º todos do Código Civil).
55. Nos termos do artigo 1730.º do Código Civil “Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.” e o artigo 1790.º do mesmo diploma legal estatui: “Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.”
56. Por sua vez, o n.º 1 do artigo 1714.º do Código Civil consagra o princípio da imutabilidade do regime de bens, o qual implica uma proibição indirecta de alteração do regime de bens, estando os cônjuges impedidos de praticar qualquer acto jurídico que altere a composição das massas patrimoniais.
57. Ora, tratando-se de uma norma imperativa verifica-se inequivocamente que a sentença revidenda viola a ordem pública interna nacional,
58. Pois, por força da imutabilidade, não podem os bens comuns ser atribuídos em propriedade exclusiva a qualquer um dos cônjuges.
59. Além disso, a sentença revidenda afronta também a ordem pública internacional.
60. Nas palavras do Conselheiro QUIRINO SOARES a norma do artigo 1714.º do CC é “porta-voz de um princípio de ordem pública internacional do Estado português” (cfr. in “Lex Familiae”, ano 3, n.º 5,
101).
61. Ora, a mencionada sentença afirma a contitularidade do imóvel por parte de ambos os cônjuges.
62. E, na verdade, sendo eles casados em regime de bens adquiridos e uma vez que o imóvel foi comprado na constância do matrimónio, trata-se de um bem comum, o qual faz parte do acervo patrimonial do casal.
63. Assim, pertencendo o bem a ambos os cônjuges, a deslocação compulsiva da transferência do direito do Requerido para a Requerente, sem qualquer contrapartida, viola a ordem pública internacional do Estado Português.
64. Salvo melhor entendimento esta situação reconduz-se à violação do direito de propriedade – previsto no artigo 62.º da CRP –, que compreende o direito de não ser privado dela, impondo a lei a indemnização para a hipótese de expropriação.
65. Veja-se que o facto de a Requerente ficar proprietária exclusiva do imóvel, sem qualquer pagamento e/ou indemnização ao Requerido, evidencia um enriquecimento injustificado desta à custa do Requerido.
66. Face ao vertido, o reconhecimento da sentença revidenda, no segmento decisório relativo à partilha dos bens do casal, conduz a um resultado não permitido pelos princípios fundamentais do Estado de Direito, já que fere a igualação na partilha.
67. Neste sentido, o Acórdão do TRE, de 03.11.2016, Processo n.º 155/14.7TREVR: “1. Na ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português é aferido pelo resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto.
2. A partilha feita em ação de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, bens comum do casal (dois bens imóveis, um sito em ... e outro em Porto ..., Portugal, e um automóvel), viola a ordem pública internacional do Estado Português.
3. E isto, porque segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido, visto que por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo os bens, sendo comuns jamais poderiam ser atribuídos em propriedade exclusiva à requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas).” (disponível em www.dgsi.pt).
68. Mercê do exposto, o reconhecimento da partilha no termos acima referidos conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, atendendo à desproporcionalidade da partilha, o que está em desconformidade com a regra vigente no nosso ordenamento jurídico segundo a qual os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.
69. Caso assim não se entenda – o que não se admite e apenas se equaciona por mero dever de patrocínio – sempre se dirá que obsta ao reconhecimento da sentença revidenda o fundamento adicional de impugnação, previsto no n.º 2 do artigo 983.º do CPC.
70. O referido preceito radica no denominado “privilégio da nacionalidade portuguesa” que tem como fim a defesa dos interesses dos portugueses contra as sentenças proferidas no estrangeiro que contenham decisão menos favorável do que aquela a que conduziria a aplicação do direito material português.
71. Como bem ensina o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.12.2020, Processo n.º 1068/20....: “ São três os requisitos decorrentes do normativo em apreço:
i. a sentença revidenda tem de ser proferida contra pessoa de nacionalidade portuguesa;
ii. a aplicação do direito material português ser competente atentas as regras do direito internacional português;
iii. o resultado da acção teria sido mais favorável à pessoa de nacionalidade portuguesa se o tribunal tivesse sido aplicado o direito material português.”
72. Nesta situação a confirmação e revisão da sentença revidenda está submetida a um controlo de mérito, embora restringindo à decisão de direito e não de facto, encontrando-se o tribunal da revisão sujeito à decisão de facto apurada pelo tribunal estrangeiro.
73. In casu ambos os cônjuges são de nacionalidade portuguesa, está em causa uma acção de divórcio e a partilha do património conjugal, pelo que as normas de conflitos portuguesas dos artigos 52.º,
55.º, n.º 1 e 57.º do Código Civil, remetem para a lei nacional comum, ou seja, a lei portuguesa.
74. Por outro lado, a substância e efeitos do regime legal de bens são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo do casamento de acordo com o artigo 53.º, nº 1 do CC.
75. Posto isto, facilmente se constata que, segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao Requerido.
76. É que, por força do já referido princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade,
77. Logo o imóvel sito na ..., sendo um bem comum, jamais poderia ser atribuído em propriedade exclusiva à Requerente sem qualquer contrapartida económica para o Requerido, ficando aquela com um benefício de 116.478,72€.
78. Face ao exposto, torna-se evidente a discrepância dos valores dos bens objeto de partilha, sendo absolutamente certo que a aplicação da lei nacional teria conduzido a um resultado mais favorável para o Requerido,
79. Pelo que está, assim, cabalmente demonstrada a excepção do privilégio da nacionalidade, prevista no n.º 2 do art. 983º do CPC.
80. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03.03.2009, Processo n.º 237/07.1YRCBR: “3. A partilha feita em acção de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, um bem imóvel, situado em Portugal, comum do casal, viola a ordem pública internacional do Estado Português. 4. Porque segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido, visto que por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o imóvel, sendo bem comum, jamais poderia ser atribuído em propriedade exclusiva à requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas), existe obstáculo ao reconhecimento com fundamento no privilégio da nacionalidade.” (disponível em www.dgsi.pt)
81. Ora, e mesmo que se entenda que no caso em apreço a decisão revidenda apenas se limitou a conferir a alegada “vontade dos cônjuges” e a ratificar o que dele consta,
82. Também à luz do direito nacional impor-se-ia ao juiz nacional aferir se o acordo alcançado entre os cônjuges acautela os interesses de algum deles ou dos filhos, nos termos do artigo 1778º-A do Código Civil.
83. O que redundaria na mesma conclusão!». 3. A requerente respondeu à oposição, defendendo:
«1. O Requerido no seu douto articulado vem impugnar a partilha constante na sentença revidenda, mas ao que parece tão-somente, quanto a um único bem comum do casal, qual seja, o imóvel sito na Rua ..., ..., ....
2. Porquanto, diz o Requerido, a partilha deste bem “não exprime areal vontade das partes”,
3. ora a Requerida assevera que a sentença revidenda exprime “toutcour” a sua real vontade, e bem assim, também quanto à partilha dos bens comuns do casal nos exactos termos aí exarados.
4. Tal como expressou a então vontade do Requerido, estranhando-se a postura deste, vindo agora afirmar o contrário!
5. Recorde-se que o Requerido intentou uma petição conjunta de divórcio e partilha de bens juntamente com a Requerida - – acordo de .../.../2021.
6. Sendo a sentença revidenda proferida no âmbito de um processo requerido por ambos os cônjuges em “apresentação final conjunta” – como se extrai da própria sentença a fls. 2 supra – Cfr. documento n.º ... junto com aP.I.
7. Acresce que o Requerido esteve presente na diligência de 22.02.2022, que procedeu à homologação do acordo apresentado também pelo próprio Requerido,
8. Não só esteve presente no próprio acto, como nesse acto beneficiou de intérprete – Cfr. a fls. 3, ponto 4.
9. Ademais, os Requerentes receberam apoio judiciário gratuito (Cfr. a fls 2, ponto 1 da sentença estrangeira),
10. ambas as partes, Requerido e Requerente, solicitaram a concessão de apoio jurídico gratuito, sendo que neste âmbito a Requerente solicitou ainda a nomeação de um advogado – Cfr. a fls. 3, ponto 6, da sentençarevidenda.
11. Ao passo que o Requerido não solicitou a nomeação de um advogado, tal como fez a Requerente, porque não quis.
12. Não obstante ser gratuito, pois, beneficiou de apoio judiciário gratuito, repete-se tal como a Requerente.
13. Ou seja, tinha o Requerido a prerrogativa da atribuição de advogado, gratuito, e prescindiu por “motu proprio”, do mesmo.
14. E vem agora, arrogar-se do desacompanhamento de um advogado, para inquinar o acordo, também da sua autoria, de partilha do imóvel?
15. O Requerido prescindiu voluntariamente do acompanhamento de um assessor jurídico (advogado), a que tinha direito gratuitamente.
16. O Requerido não quis estar acompanhado de advogado, gozando no entanto de acompanhamento de intérprete durante todo o processo judicial.
17. Assim, reitera-se, o Requerido formulou conjuntamente com a Requerente um acordo quanto à partilha dos bens comuns do casal,
18. este acordo, datado de 18 novembro de 2021, foi submetido ao tribunal regional competente de ..., e foi prévio à sentença de divórcio -sentença revidenda de 22 fevereiro 2022.
19. Este acordo exprimiu a vontade livre, esclarecida e informada do Requerido.
20. A sentença revidenda, após analise de toda a documentação que instruía o processo, procedeu à homologação do acordo das partes – Cfr.sentença revidenda a fls 2 supra.
21. Ou o Requerido quer agora dizer que foi coagido, de alguma forma, à celebração dos exactos termos do acordo e concretização do mesmo!
22. O que dizer de tal postura do Requerido….No mínimo roça a charneira da má-fé!
23. Mas, continuemos a relembrar o Requerido daquilo que foi da sua livre vontade e tomada de decisão consciente e informada.
24. Ambas as partes acordaram atribuir ao imóvel, bem comum do casal, sito na Rua ..., ..., o valor de 90.000,00 € (noventa e nove mil euros),
25. em conformidade com o valor mutuado, no contrato de escritura de compra e venda, no montante de € 87.290,00 (oitenta e sete mil duzentos e noventa euros).
26. E ainda com base no valor patrimonial tributário actual constante na certidão matricial do prédio (€ 55.419,00) – Cfr. documento que ora sejunta sob o n.º 1.
27. Este valor de 90.000,00 (noventa mil euros), foi atribuído ao dito prédio, de comum acordo por Requerido e Requerente.
28. Não se concebe nem se alcança qual o desiderato do Requerido, ao impugnar o valor que decidiu atribuir ao prédio, aquando do acordo de 18 novembro 2021, acordo que propôs a homologação do Tribunal Estrangeiro e que emitiu a sentença ora revidenda.
29. A não ser que o propósito do Requerido seja o de receber na íntegra o valor “tout cour” do prédio.
30. E para o efeito, apropria-se do valor de 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), como sendo valor de mercado do imóvel, apresentando um valor indicado por uma imobiliária, isto é, um agente comercial não imparcial e isento, uma vez que veio à colação por banda do próprio – “Vide” doc. n.º ... junto com a oposição.
31. Com efeito, na sequência do acordo de Requerido e Requerente, datado de novembro de 2021, homologado pela sentença revidenda, a Requerente, desde então, paga na íntegra, e exclusivamente sozinha, a prestação mensal do valor de € 400,09 (quatrocentos euros e nove cêntimos), referente ao empréstimo bancário pelo contrato de mútuo ao Banco 1..., pela compra e venda do aludido imóvel – Cfr. com o doc. n.º ... que se junta.
32. Dívida a esta instituição bancária que ascende a 40.000,00€ (quarenta mil euros), valor definido e aceite por ambos.
33. Bem sabendo o Requerido que desde aquela data é a Requerente a pagar as prestações do crédito bancário relativo à compra do imóvel, o que a Requerente faz desde então até à presente.
34. Ademais, é de esclarecimento cabal que a compensação do Requerido advém da não compensação à Requerente da metade dos “fundos” daquele, como se demonstrará:
35. Atente-se nos documentos juntos sob o n.º 3 que constituem a comunicação e informação ao Tribunal ..., designados por “...” e “Apolice de livre passagem ...”, relativos aos direitos da previdência profissional adquiridos pelo Requerido durante o casamento até ao momento do início do processo de divórcio – vulgarmente designados por “fundos”,
36. Pode ler-se quanto à “prestação de saída a ser dividido devido adivórcio” no documento “...”, com o carimbo
21: “cálculo Prestação de saída 09.06.2021 - CHF 69 317.75”;
37. no documento “Apolice de livre passagem ...”, com o carimbo 22: “o cálculo Prestação de saída 09.06.2021 – CHF17 403.80”.
38. O que perfaz o valor global de CHF 86 721.55, dos “fundos” do Requerido.
39. Deste valor, a Requerente tinha direito a ser compensada, em metade, para igualar os fundos desta, ou seja, cerca de CHF 43 360,77.
40. Já o Requerido, relativamente aos fundos da Requerente, pelo divórcio e referente à compensação das pensões, nada podia receber, vejamos:
41. O documento que se junta sob o n. 4, carimbo da “...”, da Requerente, datado de 19.08.2021, no ponto “Dados de base” refere à “Prestação de saída na altura do início do processo de divórcio: 49 211.60”.
42. Deste valor o Requerido não pode ser compensado em metade,
43. porquanto, os “fundos” da Requerente, o valor destes, é inferior ao montante dos fundos do Requerido (CHF 86 721.55:2).
44. Mais se lê, neste doc. n.º ..., relativo precisamente a “Informaçõessobre divórcio referente a compensações das pensões .../.../2021” da Requerente, a “Prestação de saída por casamento e Juros por prestaçãode saída até ao início do processo de divórcio”, são ambas de montante “0.00”.
45. Daqui resulta que os direitos de pensão acumulados durante o casamento da Requerente e do Requerido, não possuem valores similares, como afirma o Requerido em 11 do seu articulado!
46. Pelo contrário, destes documentos n.ºs ... e ... ora juntos, é manifesto que os valores de pensão acumulados são distintos,
47. sendo para a Requerente de 49 211.60 (doc. n.º ...), e para o Requerido de 86 721.55 (doc. n.º ...), isto é, os “fundos” da Requerente são inferiores aos “fundos” do Requerido.
48. Logo os valores de pensão acumulados por Requerente e Requerido não são similares, sendo os da Requerente inferiores aos do Requerido.
49. Com efeito, os “fundos” de previdência profissional, não fazem parte dos bens adquiridos (perante a lei ...), e por norma têm de ser divididos, isto é, ajustados entre as partes, quando um cônjuge acumulou mais do que o outro durante o casamento.
50. As partes podem desviar-se desta regra do ajuste dos “fundos”/compensação dos “fundos”, se a parte que acumulou menos receber uma compensação num valor adequado, equivalente.
51. Mas, este acordo tem de ser aprovado pelo Tribunal competente.
52. “In casu”, obrigatoriamente teria de se efectuar um ajuste dos “fundos” do cônjuge marido para os fundos do cônjuge mulher, pois, como se constata dos documentos. n.ºs 3 e 4 juntos, o cônjuge marido/Requerido acumulou durante o casamento um valor superior aos fundos do cônjuge mulher/Requerente.
53. Por força desta imposição legal, Requerente e Requerido acordaram que o ajuste de “fundos” não seria feito, veja-se: “estando conscientes dasituação legal” – vertido no ponto 3., a fls 2, da sentença revidenda,
54. E para isso, para não efectuarem o ajuste dos fundos foi necessário compensar o cônjuge mulher/Requerente, com a transferência da propriedade exclusiva do imóvel.
55. Na situação presente, o valor do ajuste do fundo do cônjuge marido para o fundo do cônjuge mulher, correspondeu com o valor que a Requerente/cônjuge mulher teria de pagar em tornas ao Requerido para adquirir o imóvel.
56. E isto foi o que as partes acordaram, livre e voluntariamente, de forma esclarecida e informada
57. O Tribunal ... mediante apreciação das contas aprovou este acordo sob o ponto 2 do dispositivo da sentença estrangeira – a fls. 2.
58. E esta foi a vontade expressa do Requerido, que sempre afirmou à Requerente: “tu nos meus fundos não tocas”.
59. Aqui chegados, constata-se de forma clara, que a compensação para o Requerido, é o embolsar da globalidade dos seus “fundos” (CHF 86 721.55),
60. não partilhando com a Requerente nenhum deste valor, valor este, que a Requerente tinha direito e prescindiu – Cfr. ponto 3, fls. 2 e ponto 4 –último parágrafo – fls. 3 da sentença revidenda.
61. Assim, o Requerido ficou compensado no valor global de mais de € 90.242,83 (CHF 86 721.55/fundos+ € 3.521.28/veículo automóvel),
62. Diz-se mais de € 90.242,83, por simplificação de cálculo, somamos o valor em francos suíços dos fundos do Requerido, com o valor em euros do veículo automóvel, sabendo-se que à data e actualmente o franco ... tem cotação em valor superior ao euro.
63. Destarte, não há violação da ordem jurídica nacional, mormente, a “regra da metade”, ínsita no artigo 1730.º do C.C.64. e muito menos, há violação do artigo 980.º, al.f), do C.P.C., ou da Convenção de Haia.
65. Pois que, quanto à Requerente esta integra na sua metade, pela partilha dos bens comuns do casal, o passivo de € 40.000,00 referente ao crédito bancário da hipoteca do imóvel, 66. e o activo do valor de € 50.000,00 (€90.000,00/valor imóvel – € 40.000,00/hipoteca).
67. Nesta senda, aporta a jurisprudência, veja-se o Acórdão n.º94/11.3YRGMR, de 04-12-2012, salientando que o sistema português é meramente formal ou de deliberação em matéria de revisão de sentenças estrangeiras, limitando-se o tribunal a verificar a obediência da sentença aos requisitos de forma (…). E que não constitui “reserva de competência exclusivados tribunais portugueses, por se não integrar na alínea a) do artº. 65º.-A doC.P.Civil, a partilha dos bens imóveis do património comum do casal numa acção dedivórcio, já que ela não tem por finalidade determinar quem é o titular do direito depropriedade ou de outro direito real sobre esses bens nem assegurar a respectivatitularidade. Para concluir que “Não ofende a ordem jurídica portuguesa, nemos princípios que lhe estão subjacentes, incluindo os constitucionais, aatribuição a um dos cônjuges, da propriedade exclusiva dos bens imóveiscomuns, contra o pagamento de uma importância ao outro conjuge, fixadana mesma sentença que decretou o divórcio”.
68. E assim também na situação “sub judice”, o acordo de partilha dos bens comuns do casal, homologado pela sentença revidenda, não ofende a ordem jurídica portuguesa, nem os princípios que lhe estão subjacentes, máxime os constitucionais,
69. porquanto, as partes acordaram transferir para a propriedade exclusiva da Requerente, o imóvel, contra o “pagamento” ao outro cônjuge, o aqui Requerido, do valor dos “fundos” a que a Requerente/cônjuge mulher, tinha direito, mais o veículo automóvel como se escalpelizou.
70. Em suma, respondendo à questão de saber qual a compensação para o Requerido com a partilha dos bens comuns do casal homologada na sentença revidenda:
71. O Requerido integrou no seu património o valor global dos seus direitos de previdência profissional adquiridos durante o casamento, do valor global de mais de € 90 242,83 (CHF 86 721.55, + o valor de € 3.521.28 do veículo automóvel).». 4. Cumprido o art.982º/1 do C. P. Civil, foram apresentadas alegações, nas quais: 4.1. A requerente defendeu que se procedesse à revisão da sentença, nos termos já pedidos. 4.2. O requerido defendeu que se procedesse à revisão da sentença estrangeira com a exceção do segmento da partilha. 4.3. O Ministério Público defendeu a revisão da sentença, por na mesma não poder proceder a apreciação de mérito. 5. A 6 de abril de 2023 proferiu-se decisão sumária, que decidiu:
«Pelo exposto, concede-se a revisão e confirma-se a sentença revidenda de 22.02.2022, transitada em julgado a 29.03.2022, que decretou o divórcio entre as partes e a partilha de bens, para todos os efeitos legais em Portugal.» 6. O requerido reclamou para a conferência, reiterando argumentos já aduzidos e concluindo:
«27. Atento o predito e procedendo-se ao exame da mencionada sentença, verifica-se que:
a) Na ação não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
b) Contém decisão cujo reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública interncional do Estado Português;
c) O resultado da ação teria sido mais favorável ao Requerido se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
28. Nesta conformidade, deve a presente reclamação ser recebida e, por conseguinte, ser proferido um acórdão que confirme a sentença proferida em 22.02.2022 pelo Tribunal ..., na parte que dissolveu o casamento, por divórcio, entre a Requerente e o Requerido, exceptuando-se da confirmação o segmento decisório relativo à partilha dos bens do casal, tal como já explanado na oposição e nas alegações dos presentes autos.
Termos em que deve admitir-se a presente reclamação para a conferência e, a final, que seja proferido acórdão que confirme a sentença decretada em 22.02.2022 pelo Tribunal ..., na parte que dissolveu o casamento, por divórcio, entre a Requerente e Requerido, exceptuando-se da confirmação o segmento decisório relativo à partilha dos bens do casal». 7. A requerente opôs-se à reclamação e defendeu a revisão e confirmação declaradas na decisão sumária reclamada, nos termos de argumentos já defendidos na resposta à oposição. 8. Colheram-se os vistos e sujeitou-se o processo à conferência.
II. Questões a decidir:
Impõe-se decidir: se estão ou não verificados os requisitos do art.980º do C. P. Civil; se se verifica ou não a previsão da impugnação do nº2 do art.983º do C. P. Civil.
III. Fundamentação:
1. Matéria de facto provada (por força probatória plena do assento de casamento e da certidão apostilhada da sentença estrangeira e tradução): 1.1. BB e CC, ambos com naturalidade e nacionalidade portuguesa, celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial, a 19 de agosto de 1999, na igreja da paróquia de ..., 1.2. No Tribunal ..., no processo com referência nº...74... de BB e CC, a 22 de fevereiro de 2022 foi proferida sentença final sobre acordo das partes de .../.../2021, sentença que se tornou definitiva a 29 de março de 2022, na qual consta:
«Apresentação final conjunta:
(act.17, mutatis mutandis)
Que se proceda à dissolução, por divórcio, do casamento das partes e que seja aprovado o acordo do dia .../.../2021.
É decretado:
1. Ambos os requerentes receberão apoio judicial gratuito. À requerente é nomeado conselheiro jurídico gratuito, o assessor jurídico, (ass. ....) ....
2. Notificação escrita aos candidatos com o seguinte parecer.
É reconhecido:
1. O casamento das partes será dissolvido por divórcio.
2. O acordo das partes de .../.../2021 relativo ao divórcio é aprovado. A sua leitura é a seguinte.
1. Divórcio
As partes pedem conjuntamente ao tribunal o divórcio.
2. Pensão de alimentos entre cônjuges
As partes concordam que não há direito a pensão de alimentos entre os cônjuges.
3. Compensação dos direitos a pensões
As partes, estando conscientes da situação legal, prescindem mutuamente da compensação dos direitos a pensões acumulados durante o casamento.
4. Partilha de bens
Relativamente à partilha de bens, as partes acordam o seguinte:
A requerente cede ao requerente o carro registado em seu nome da marca ... E ..0,ZH ..9 ..3, passando o requerente a ser o proprietário do carro.
As partes são co-proprietárias de uma propriedade na Rua ..., ... ... em Portugal. Concordam que o valor de mercado atual do imóvel é deaproximadamente 90.000 euros. O imóvel está sujeito a uma hipoteca com o Banco 1... deatualmente 40’000 EUROS.
As partes concordam em passar o registo de propriedade para o nome da requerente. Orequerente compromete-se a realizar, no prazo de seis meses a contar da notificação, todos osatos jurídicos necessários, para que seja transferido o registo de propriedade para o nome darequerente. A requerente assume a hipoteca restante como devedora única, ou seja, isenta orequerente de qualquer responsabilidade referente à hipoteca.
Até à transferência do registo de propriedade a requerente utiliza a propriedade sozinha e assume todos os encargos relacionados com a propriedade em Portugal (juros hipotecários, amortização, manutenção, etc). Como compensação pela transferência do registo de propriedade para a propriedade exclusiva da requerente, como já referido anteriormente, a requerente prescinde da compensação dos direitos de pensão acumulados durante o casamento. Em todos os outros aspetos, cada parte retém o que atualmente possui ou o que está em seu nome.
5. Cláusula Final
Com a execução deste acordo, as partes estão completamente separadas em termos de direito matrimonial, divórcio e propriedade.
6. Consequências dos custos e compensações
Ambas as partes solicitam a concessão de apoio judiciário gratuito, a requerente solicita ainda a nomeação de um consultor jurídico gratuito. Com referência aos seus pedidos de proteção jurídica (UP/URB), cada uma das partes suporta metade dos custos judiciais e renuncia mutuamente à compensação das partes. Se uma das partes solicitar uma exposição dos motivos do acórdão de divórcio, suportará os custos adicionais incorridos sozinha.
3. Não há compensação de pensões.
4. As custas serão fixadas em:
CHF 3, 600.- as outras custas judiciais ascendem a
CHF 300.- intérprete
Se as partes prescindem do direito de fundamentação da decisão, as custas judiciais são reduzidas para dois terços.
5. Os custos da decisão infundada serão imputados aos requerentes em partes iguais, no entanto, após a concessão do apoio jurídico serão, por enquanto, suportados pela caixa do tribunal. Os requerentes serão informados sobre a obrigação de regularização de custos nos termos do artigo 123º do Código de Processo Civil (ZPO).».
2. Apreciação jurídica do objeto do processo: 2.1. Enquadramento jurídico: 2.1.1. Requisitos legais necessários à confirmação da sentença estrangeira: 2.1.1.1. Em geral:
O regime português da revisão das sentenças estrangeiras define (art.978º/1 do C. P. Civil) que «Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.».
Os requisitos gerais necessários de que depende o provimento do pedido de confirmação da sentença estrangeira encontram-se definidos pelo legislador no art.980º do C. P. Civil, que prescreve:
«Para que a sentença seja confirmada é necessário: a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.».
A Convenção sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de Pessoas de 1 de junho de 1979, que vincula Portugal e a ...[i] prevê também condições de reconhecimento e não reconhecimento por um Estado de uma sentença de divórcio proferida noutro Estado- Membro.
Por um lado, no art. 6.º da Convenção, que proíbe a revisão de mérito das sentenças estrangeiras, prevê-se:
«Se o demandado tiver intervindo no processo, as autoridades do Estado onde for invocado o reconhecimento de um divórcio ou de uma separação de pessoas ficarão vinculadas pela matéria de facto sobre a qual se estabeleceu a competência. O reconhecimento do divórcio ou da separação de pessoas não pode ser recusado: a) Quer pelo motivo de a lei interna do Estado onde tal reconhecimento é invocado não permitir, conforme os casos, o divórcio ou a separação de pessoas pelos mesmos factos; b) Quer por se ter aplicado uma lei diferente daquela que seria aplicável segundo as regras de direito internacional privado desse Estado. Sem prejuízo do que for necessário para a aplicação de outras disposições da presente Convenção, as autoridades do Estado onde o reconhecimento de um divórcio ou de uma separação de pessoas for invocado não poderão proceder a qualquer exame relativo ao mérito da decisão.».
Por outro lado, prevêem-se nos arts.8º e 10º da Convenção, entre as situações de recusa de reconhecimento:
«Pode ser recusado o reconhecimento do divórcio ou da separação de pessoas se, tendo em conta o conjunto de circunstâncias, não foram realizadas as diligências adequadas para que o demandado fosse informado do pedido de divórcio ou de separação de pessoas ou se ao mesmo demandado não foram asseguradas condições de fazer valer os seus direitos» (art.8º).
«Qualquer Estado contratante pode recusar o reconhecimento de um divórcio ou de uma separação de pessoas, se for manifestamente incompatível com a sua ordem pública.» (art. 10.º). 2.1.1.2. Em relação ao da al. f) do art.980º do C. P. Civil:
Entre estes requisitos referidos em III- 2.1.1.1. supra, e face às questões suscitadas na oposição, importa averiguar, em relação à previsão da al. f) do art.980º do C. P. Civil e ao art.10º da Convenção, quais os contornos desta exigência.
O que se compreende por ordem pública internacional do Estado Português? E o que compreende esta em relação ao direito familiar?
Por um lado, verifica-se que a cláusula da ordem pública internacional, indicada quer no art.22º do C. Civil, quer no art.981º/f) do C. P. Civil, quer no art. 10º da Convenção referida em III- 2.1.1.1. supra, não se encontra definida na lei e deve ser concretizada na doutrina e na jurisprudência.
Entre a Jurisprudência, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.09.2017, proferido no processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1, relatado por Alexandre Reis, define a ordem jurídica internacional pelo caráter fundamental dos princípios e das normas que a integram e a sua violação pela característica de intolerabilidade, referindo:
«(…) está pacificamente adquirido que a cláusula geral da ordem pública internacional veicula princípios e normas fundamentais em que se baseia a ordem jurídica, económica, social e ética da comunidade (do foro), fazendo actuar os valores aos mesmos imanentes de modo a impedir a consagração de uma determinada decisão arbitral.
Contudo, não sendo possível determinar, a priori, o conteúdo dessa cláusula, manifestam-se algumas nuances na formulação do conjunto de regras que a delimitam, assim como em relação à interpretação sobre o grau de contrariedade do que resultaria da “ratificação” da decisão arbitral à ordem pública internacional do Estado impetrado, até porque, como se disse, só perante as concretas circunstâncias do caso se poderá aferir a intolerabilidade da violação de um determinado princípio ou norma fundamental. E, realmente, tratando-se de um conceito abstracto, a avaliação a incidir sobre tais princípios e normas fundamentais deve centrar-se mais na sensibilidade axiológica do que na tentativa da sua evidenciação positiva.
De todo o modo, é latamente consensual a ideia de que o conteúdo dessa cláusula é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado, como já anotámos supra.
O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária quanto de fonte nacional. (…).
E é esse o sentido interpretativo que, de um modo ou outro, vinha e vem sendo apontado, em geral, pela jurisprudência e pela doutrina. Para além dos que já foram sendo referenciados, vejamos alguns outros exemplos:
Baptista Machado: «resultado intolerável [traduzido, no plano psicológico, por uma reacção fortemente desaprovadora do seu espírito de jurista, formado no estudo do direito interno], “quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico ('bons costumes'), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema” [Cfr. FERRER CORREIA, Anteprojecto de 1951, nota ao art. 34.° («Boletim do Min. da Justiça», nº 24)]».
Ferrer Correia: «(…) produziria um resultado absolutamente intolerável para o sentimento ético-jurídico dominante, ou lesaria gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local»; «(…) um resultado intolerável».
Oliveira Ascensão: [princípio que] «aos olhos da comunidade nacional será considerado como essencial para a vida colectiva (…) valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira».
Robin de Andrade: «(…) se essa violação for patente, ou aparente, na própria sentença»[ii].» (sublinhados apostos nesta decisão).
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em síntese de posições tomadas pela doutrina e pela jurisprudência que citam, anotam:
«8. (…) É mister cindir a ordem pública internacional da ordem pública interna, abrangendo esta os princípios e normas imperativas que limitam a autonomia privada (art.280º, nº2, do CC), enquanto aquela “exprime um conjunto de princípios nacionais que vedam a aceitação interna de decisões estrangeiras, por contrariedade a valores muito significativos” e profundos do direito interno (art.22º do CC; cf. Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, pp. 445- 446). (…)».
Por outro lado, no âmbito de direito familiar é controverso juridicamente se regras da imutabilidade das convenções antenupciais (art.1714º do C. Civil) e de divisão do património no divórcio a metade (arts.1689º, 1721º ss, maxime, art. 1730º do C. Civil) integram a ordem pública internacional.
Numa perspetiva constitucional, verifica-se que a Constituição da República Portuguesa define: no art.36º. no âmbito dos direitos fundamentais, como direitos liberdades e garantias pessoais no âmbito da família, casamento e filiação, que «1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade. 2. A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração. 3. Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos. 4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objeto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação. 5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos. 6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial. 7. A adoção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respetiva tramitação.» (sublinhado aposto nesta decisão); no art.62º, no âmbito dos direitos e deveres económicos sociais relativos ao direito de propriedade privada, que «1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.».
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, referem, a este propósito, que
«11. Na área do direito da família, integram a ordem pública internacional do Estado Português as normas jurídicas estruturantes das relações de família que refletem a consideração dos direitos absolutos ou essenciais dos elementos da família e os princípios básicos do nosso ordenamento (v.g. normas que assegurem a liberdade de constituição da família, igualdade dos cônjuges, a manutenção do regime pessoal dos cônjuges, a estabilidade das relações patrimoniais fixadas, a não descriminação dos filhos nascidos fora do casamento), mas já não as normas que regulam aspetos acessórios da relação de família, do divórcio, da organização do poder paternal ou dos modos de substituição deste (RP 7-12-17, CJ t.V, p.187)»[iii].
Entre a Jurisprudência, no que se refere aos direitos do cônjuge face ao património ou à herança, encontram-se posições divergentes:
_ O Ac. RC de 03.03.2009, proferido no processo nº237/07.1YRCBR, relatado por Jorge Arcanjo, entendeu e sumariou:
«III – A partilha de bens comuns do casal, feita em acção de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, um bem imóvel comum situado em Portugal, viola a ordem pública internacional do Estado Português. IV – Porque, segundo o direito substantivo português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido [visto que, por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o imóvel, sendo bem comum, jamais poderia ser atribuído em propriedade exclusiva à requerente sem qualquer contrapartida económica (tornas)], existe obstáculo ao reconhecimento com fundamento no privilégio da nacionalidade.».
_ Todavia, o Ac. RL de 19.11.2019, proferido no processo nº28325/17.9T8LSB.L1-7, relatado por Micaela Sousa entendeu, quanto à questão substantiva de fundo (ainda que em processo distinto da revisão de sentença estrangeira):
«XI- A protecção do ordenamento jurídico português relativamente à vocação sucessória do cônjuge tem vindo a ser alargada, mas, ainda assim, não deve ser tida como um elemento essencial ou nuclear do ordenamento jurídico- constitucional português, tanto mais que a Constituição da República Portuguesa remete a regulação dos efeitos da morte no casamento para a lei ordinária (cf. artigo 36º, nº2 da Constituição), permitindo a consagração de várias soluções, sendo a inclusão do cônjuge no elenco dos herdeiros legitimários uma opção recente.»[iv].
Em qualquer caso, ainda para quem defenda a posição jurisprudencial do acórdão da Relação de Coimbra de 03.03.2009, a aferição da verificação ou não do requisito do art.980º/f) do C. Civil, exige que a inexistência ou existência de incompatibilidade do resultado da sentença com a ordem pública internacional seja manifesta (ostensivamente clara, flagrante e grosseira). 2.1.2. Fundamentos legais de impugnação do pedido de revisão:
A impugnação pela parte contrária do pedido de confirmação da sentença estrangeira pode ser feita nos termos e com algum dos fundamentos prescritos no art.983º do C.P. Civil, que define:
«1 - O pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 696.º. 2 - Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.».
Por um lado, face a este regime, a impugnação pode ocorrer quando faltar o preenchimento de algum dos requisitos do art.980º do C. P. Civil (referidos em III- 2.1.1. supra).
Por outro lado, também, a impugnação pode ocorrer quando se preencher qualquer uma das seguintes previsões legislativas que permitiriam deduzir um recurso extraordinário de revisão: quando «a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;» (art.696º/a) do C. P. Civil); quando «c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;» (art.696º/c) do C. P. Civil); quando «g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude;» (art.696º/g) do C. P. Civil), poder este que se refere à previsão que define que «Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes.» (art.612º do C. P. Civil), sendo que a simulação substantiva aponta para o «acordo de entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros», com «divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante» (art.240º do C. Civil) e o fim proibido aponta para as normas que ferem de nulidade os negócios contra lei imperativa (art.294º do C. Civil) ou sobre objeto ou fim contrário à lei (arts.280º e 281º do C. Civil).
Por fim, a impugnação pode ocorrer ainda quando: a sentença seja proferida contra nacional português; seja aplicável o direito material português de acordo com o direito de conflitos; o resultado da ação poder ter sido mais favorável se o tribunal tivesse aplicado o direito material português.
No acórdão do STJ de 24.04.2018, proferido no processo nº137/17.7YRPRT.S1, relatado por José Rainho, foi entendido e sumariado:
«IX. Para efeitos do nº2 do art.983º do CPCivil interessa atender quer à decisão tomada quer aos seus fundamentos, o que equivale a dizer que se trata aqui de uma revisão de mérito, e não apenas externa e formal; mas não compete ao juiz controlar a regularidade, proficiência ou suficiência da decisão revidenda quanto à matéria de facto.» [v]. 2.1.3.Atividade oficiosa do Tribunal:
A atividade oficiosa do Tribunal, face aos requisitos referidos em III-2.1.1. supra, encontra-se, por sua vez, prescrita no art.984º do C. P. Civil, que define que «O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.».
Este regime legal distingue o conhecimento oficioso que deve ser feito dos requisitos das als. a) e f) (cuja verificação deve ser aferida positivamente pelo Tribunal) daquela que pode ser feita sobre os requisitos das als. b), c), d) e e) do art.980º do C. P. Civil (cuja verificação depende de se apurar que faltam os requisitos em causa).
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em síntese de posições citadas tomadas pela doutrina e pela jurisprudência, anotam também esta diferença de conhecimento dos requisitos, nos seguintes termos:
«1. Pela sua importância e essencialidade, a lei impõe que o Trib. da Relação verifique oficiosamente se estão preenchidos os requisitos das als. a) e f) do art.980º.
2. Quanto aos demais requisitos do art.980º (als. b) a e)), o requerente está dispensado de fazer prova dos mesmos. Se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a falta dos mesmos, presume-se que existem, não podendo ser recusada a confirmação por falta de elementos (STJ 21-2-06, 05B4168). A prova de que não se verificam os requisitos das als. b) a e) do art.980º compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerar-se preenchidos. Por conseguinte, nestes casos, a intervenção do tribunal que aprecia a revisão é de natureza puramente formal.»[vi].
No Ac. STJ de 21.02.2006, proferido no processo nº05B4168, relatado por Oliveira Barros, defendeu-se e sumariou-se no mesmo sentido referido (sendo que o art.1096º do C. P. Civil de 1961 corresponde ao art.980º do C. P. Civil de 2013):
«I - A acção com processo especial de revisão e confirmação de sentença é uma uma acção declarativa de simples apreciação em que apenas se verifica se a decisão estrangeira está em condições de produzir efeitos em Portugal, e, assim, tão-somente se averigua se se verificam, ou não, os requisitos para tanto necessários, taxativamente indicados no art.1096º, conforme art.1100º, nº1º, 1ª parte, CPC.
II - Fundado no princípio da estabilidade das relações jurídicas internacionais, está instituído no nosso País sistema de simples revisão formal das sentenças estrangeiras, de que a fundamentação da sentença revidenda não constitui pressuposto, não estando abrangida em qualquer das alíneas do art.1096º CPC.
III - Nesse sistema, o princípio do reconhecimento das sentenças estrangeiras reside na aceitação da competência do tribunal de origem, pelo que, como regra, a revisão de mérito está dele excluída.
IV - Como resulta da 2ª parte do art.1101º CPC é sobre a parte requerida que recai o ónus da prova da não verificação dos requisitos da confirmação estabelecidos nas als.b) a e) do art.1096º, que a lei presume que existem.
V - Assim, o requerente está dispensado de fazer prova directa e positiva desses requisitos, posto que se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a falta dos mesmos, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não.
VI - É, por conseguinte, à parte requerida que incumbe provar a inexistência de trânsito em julgado segundo a lei do país em que a sentença revidenda foi proferida - al.b), a incompetência do tribunal sentenciador, nos termos indicados na al.c), a litispendência - al.d), e a inobservância do princípio do contraditório e da igualdade das partes no processo que levou à decisão em causa - al. e), tendo-se esses requisitos por verificados em caso de dúvida a esse respeito.
VII - A excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al.f) do art.1096º CPC só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com, e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos, princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende.
VIII - Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, e que opera em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira.
IX - O cabimento da reserva de ordem pública só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência.»[vii]. 2.2. Apreciação da situação em análise:
Impõe-se apreciar se estão ou não verificados os requisitos de que depende a revisão da sentença estrangeira (referidos em III-2.1.1.1. supra, com diferença de controlo referido em III-2.1.3. supra) ou se ocorre algum dos fundamentos de impugnação que hajam sido deduzidos pelo requerido (com regime referido em III-2.1.2. supra). 2.2.1. Numa primeira abordagem, apreciando os factos provados e as previsões do art.980º do C.P. Civil, em relação às quais o requerido afirmou genericamente não estarem verificadas e afirmou apenas motivadamente não estarem preenchidas as als. e) e f) do art.980º do C. P. Civil, verifica-se:
a) Está preenchida a previsão da al. a) do art.980º do C. P. Civil, pois não há quaisquer dúvidas sobre «a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão».
De facto, apesar do requerido ter declarado impugnar o alcance probatório da certidão de sentença estrangeira (apostilhada de acordo com Convenção de Haia Relativa à Supressão da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros, de 5 de outubro de 1961, aplicável a Portugal (em que a aprovação para ratificação foi feita pelo DL nº48.450, de 24.06.1968, com ratificação em 06.12.1968) e à ...[viii]) e de factos nesta lavrados, o requerido não atacou a autenticidade de documento estrangeiro lavrado pelo Tribunal ..., mediante a arguição da sua falsidade (arts. 370º e 372º do C. Civil).
Assim, este documento estrangeiro autêntico faz prova como faria o mesmo documento da mesma natureza exarado em Portugal (art.365º/1 do C. Civil), regime este no qual se prevê que os «documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.» (art.371º/1 do C. Civil).
b) Está preenchida a previsão da al. b) do art.980º do C. P. Civil, uma vez que, para além de se presumir o trânsito em julgado, a certidão documenta que a sentença transitou «em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;».
c) Está preenchida a previsão da al. c) do art.980º do C. P. Civil, uma vez que, para além de se presumir este requisito da sentença provir «de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei» e de não versar «sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses», verifica-se que a sentença proveio de Tribunal da área da residência das partes em ... (não contestada nesta ação) e o divórcio e os seus efeitos patrimoniais não estão integrados nas previsões de competência exclusiva dos tribunais portugueses indicadas no art.63º do C. P. Civil.
d) Está preenchida a previsão da al. d) do art.980º do C. P. Civil, uma vez que, para além de se presumir «Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;», o requerido não invocou a exceção de litispendência ou caso julgado prevista na norma.
e) Está preenchida a previsão da al. e) do art.980º do C. P. Civil- «Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;», na parte aplicável (segunda parte), uma vez que o réu não ilidiu a presunção.
De facto, apesar do requerido defender que não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, uma vez que, no seu entender, a requerente estava representada por advogado no processo (o que indica a falta de consenso sobre a dissolução conjugal, a liquidação do regime matrimonial, tal como a existência de interesses contrapostos ou em litígio)e ele não estava representado por advogado, que o acordo não correspondeu à sua vontade real e informada e não pôde fazer valer os seus direitos de forma adequada (nº37 a 42 da sua oposição), o documento estrangeiro apostilhado, com força probatória plena em relação aos factos realizados e percecionados pelo Tribunal, comprova, conforme consta de III-1.2. supra: que ambos os cônjuges/partes receberam apoio judicial gratuito e que apenas a requerente/cônjuge mulher solicitou a nomeação de um consultor jurídico gratuito, que lhe foi nomeado (pontos 1 sob a epígrafe «É decretado»; pontos 2-6 e 5 sob a epígrafe «É reconhecido»); que as partes beneficiaram de intérprete no ato (ponto 4, sob a epígrafe «É reconhecido»); que o Juiz do processo apreciou um acordo das partes (ponto da «Apresentação final conjunta»; ponto 2-1 a 6 sob a epígrafe «É reconhecido»).
Ora, para além do requerido não ter ilidido a presunção da verificação destes requisitos, a apresentação pelas partes de um acordo no Tribunal ..., a concessão de apoio judiciário (no qual o aqui requerido não diligenciou por pedir advogado, omissão que só ao mesmo se pode imputar) e a disponibilização de intérprete não permitiriam considerar que no processo onde foi proferida a sentença não foram assegurados «os princípios do contraditório e da igualdade das partes» a que se refere a al. e) do art.980º do C. P. Civil, nem que «não foram realizadas as diligências adequadas para que o demandado fosse informado do pedido de divórcio ou de separação de pessoas ou se ao mesmo demandado não foram asseguradas condições de fazer valer os seus direitos» a que se refere o art.8º da Convenção sobre o Reconhecimento dos Divórcios e das Separações de Pessoas de 1 de junho de 1979.
f) Está preenchida a previsão da al. f) do art.980º do C. P. Civil- que prevê «Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.», uma vez que o contexto de todo o acordo não permite concluir, ainda que se entendesse que as regras da divisão a metade do património dos cônjuges, casados sob um dos regimes da comunhão, integravam a ordem pública internacional, que o mesmo viola manifestamente estas regras.
De facto, face ao acordo das partes percecionado pelo Tribunal, sobre o qual incidiu a sentença revidenda, verifica-se que as partes acordaram: na adjudicação ao cônjuge mulher do imóvel com o valor de mercado atual de € 90 000, 00 e na adjudicação ao cônjuge marido de veículo ... em valor não indicado; na assunção exclusiva do cônjuge mulher da dívida comum de € 40 000, 00 garantida por hipoteca sobre o imóvel, como devedora única; na renúncia do cônjuge mulher dos direitos de pensão acumulados durante o casamento (com valores não definidos pelas partes), expressamente indicado como sendo a compensação pela adjudicação exclusiva do imóvel; na retenção por cada uma das partes do que atualmente possuíam e estava em seu nome (bens de cada um que não foram indicados pelas partes).
Examinando este acordo integrado na sentença revidenda, em confronto com o regime legal, verifica-se que não existem fundamentos para recusar a revisão com base na al. f) do art.980º do C. P. Civil.
Por um lado, perante o acordo das partes que o imóvel comum tinha o valor de mercado atualizado de € 90 000,00 (ponto 2-4, sob a epígrafe «É reconhecido») o requerido invocou apenas que agiu em erro por falta de entendimento cabal daquilo que outorgou, que esse valor de € 90 000, 00 não correspondia ao valor real e que o valor real do imóvel corresponderia ao valor de € 160 000, 00.
Todavia, o vício de vontade da declaração no acordo por erro, em qualquer uma das modalidades em que este se possa compreender (arts.247º, 250º a 252º do C. Civil) e a discussão sobre o valor de mercado real do prédio contrário àquele acordado pelas partes que fundamentou a sentença revidenda, não correspondem a fundamentos que possam ser apreciados num processo de revisão de sentença estrangeira e que possam determinar a recusa de revisão.
Por outro lado, a apreciação conjugada de todo o acordo integrado na sentença não permite concluir, sobretudo de forma manifesta, que não foi observada a regra da divisão do património comum do casal com a salvaguarda de metade para cada um dos cônjuges (arts.1721º ss, 1730º e 1689º do C. Civil), com violação do direito de propriedade do oponente (art.62º da CRP). uma vez que, através do mesmo acordo:
a) Foi adjudicado ao cônjuge mulher um imóvel no valor de mercado acordado de € 90 000, 00 mas que estava onerado com a hipoteca que garantia o pagamento da dívida de € 40 000, 00, dívida esta que foi assumida integralmente pelo cônjuge mulher.
b) Foi adjudicado ao cônjuge marido um veículo (com valor não indicado pelas partes) e foi-lhe permitido reter pensões acumuladas no casamento (em valor também não indicado, mas que se presumem bem comum do casal nos termos dos arts.1724º e 1725º do C. Civil), face à renúncia de receção do seu crédito a este título pelo cônjuge mulher (o que faz presumir judicialmente que seria o cônjuge mulher o credor de pensões ou do seu excesso) e como compensação da adjudicação exclusiva do imóvel ao mesmo/requerente desta ação.
c) Foi permitido a ambos os cônjuges reter bens que possuíam (sem discriminação, nem indicação de valor), o que pode, também, introduzir uma correção ou compensação de benefícios, em termos não conhecidos.
Desta forma, para além de não se poder concluir que a sentença que decretou o divórcio determina uma partilha acordada pelas partes em termos que violem o direito português, não se pode concluir, de forma nenhuma, que a sentença viole de forma manifesta a ordem pública internacional do Estado Português.
Assim, considera-se, ainda, preenchido o requisito do art.980º/f) do C. P. Civil, pela constatação que a sentença revidenda não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. 2.2.2. Numa segunda abordagem, em relação aos fundamentos de impugnação invocados pelo requerido em relação ao art.983º do C. P. Civil, verifica-se que não são apreciáveis os fundamentos que não foram invocados pelo requerido e que não se pode reconhecer o fundamento de impugnação invocado.
Por um lado, o requerido não arguiu a verificação de qualquer uma das previsões das als. a), c) e g) do art. 696º do C. P. Civil, ex vi do nº1 do art.983º do C. P. Civil.
Por outro lado, o requerido defendeu a verificação da previsão do nº2 do art.983º do C. P. Civil, por considerar que se o Tribunal ... tivesse aplicado da lei substantiva portuguesa à partilha do património comum conjugal, de acordo com nacionalidade dos cônjuges e as normas de conflito da lei portuguesa, essa aplicação lhe teria sido mais favorável.
Todavia, não se pode reconhecer esta impugnação. De facto, ainda que o Tribunal ... tenha feito a apreciação de acordo com a lei ..., não se poderia concluir que, se tivesse aplicado a lei nacional portuguesa, nos termos da norma de conflitos portuguesa do art.52º/1, ex vi do art.55º/1 do C. Civil, teria chegado a um resultado mais favorável para o cônjuge marido, uma vez que o conteúdo global do acordo não permite concluir que este cônjuge recebeu na partilha valor inferior à metade que lhe cabia, nos termos apreciados em III- 2.2.1.-f) supra.
Desta forma, improcede a reclamação à decisão sumária e deve conceder-se, por acórdão, a revisão à sentença revidenda.
IV. Decisão:
Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, não atendendo à reclamação da decisão sumária, concedem a revisão e confirmam a sentença revidenda de 22.02.2022, transitada em julgado a 29.03.2022, que decretou o divórcio entre as partes e a partilha de bens, para todos os efeitos legais em Portugal.
*
Custas pelo réu (art.527º/1 do C. P. Civil).
Valor da causa: € 30 000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), considerando o disposto no art. 44º/1 da Lei 62/2013, de 26/08 e art. 303º/1 do C. P. Civil.
Registe e notifique.
Oportunamente, comunique a revisão da sentença de divórcio à Conservatória de Registo Civil, com certidão da sentença revinda e tradução, da certidão do assento de casamento e desta sentença.
*
Guimarães, 25.05.2023
Assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta
Alexandra M. Viana P. Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade
[i]https://www.hcch.net/en/instruments/conventions/status-table/print/?cid=80 [ii] O Ac. STJ de 26.09.2017, proferido no processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1, relatado por Alexandre Reis, encontra-se disponível in dgsi.pt. [iii] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, 2021, Reimpressão, pág. 428 ss. [iv] O Ac. RC de 03.03.2009, proferido no processo nº237/07.1YRCBR, e o Ac. RL de 19.11.2019, proferido no processo nº28325/17.9T8LSB.L1-7, encontram-se disponíveis no dgsi.pt. [v] O Ac. STJ de 24.04.2018, proferido no processo nº137/17.7YRPRT.S1, encontra-se disponível na dgsi.pt. [vi] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in obra citada, pág.433. [vii] O Ac. STJ de 21.02.2006, proferido no processo nº05B4168, relatado por Oliveira Barros, encontra-se disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/859fdd5a758304cf8025712d003d9664?OpenDocument [viii]https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/status-table/?cid=41