CRIME CONTINUADO
BEM JURÍDICO EMINENTEMENTE PESSOAL
Sumário

I. Da matéria de facto assente resulta que a arguida praticou factos reiterados relativamente ao ofendido, isto é, ações sucessivamente adequadas no seu conjunto a produzir o resultado, entendendo-se que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido relativamente ao ofendido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social e que, portanto, consubstancia oito crimes de injúria e um crime de difamação.
II. Não subsistem dúvidas de que a recorrente agiu sempre de forma homogénea, todavia não resulta a existência de um condicionalismo exterior que tivesse facilitado a ação daquela, bem como a repetição da atividade criminosa e que, por isso, diminua a sua culpa.
III. Verifica-se, assim, que, no caso, as circunstâncias foram conscientemente procuradas e criadas pela recorrente para concretizar a sua intenção criminosa, sendo que não há unidade temporal e não há circunstância exterior, mas sim uma predisposição anterior do agente e a simples reiteração de comportamentos não é suficiente para diminuir a culpa.
IV. Com efeito, a redução substancial da culpa teria de resultar da criação de um ambiente propício à realização plúrima da conduta, com a necessária aquisição de um grau de confiança primordial, que daria ao agente a possibilidade e a oportunidade de repetir os factos de forma homogénea e reiterada, em obediência a uma linha psicológica constante. Mas este quadro não está aqui presente, pelo que não nos confrontamos com a prática de crime continuado.
V. Mais se dirá que “I - Com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP, operada com a Lei 40/2010, de 03-09, em que foi suprimida a expressão final “salvo tratando-se da mesma vítima”, resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos atos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independemente de haver uma ou mais vítimas.” (cfr.Ac. STJ de 25-11-2015, Relator RAUL BORGES, in www.dgsi.pt) “ (…) tratando-se de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como indiscutivelmente é a honra, por força do disposto no n.º 3 do art. 30º do Código Penal não seria o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Tomar, foi a arguida AA submetida a julgamento em Processo Comum (Tribunal Singular), tendo o Tribunal, por sentença de 9 de novembro de 2022 decidido:

- condenar a arguida AA pela autoria material de um crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180º nº 1 e oito crimes de injuria p.p. pelo art. 181º nº1 do Código Penal numa pena de 40 (quarenta) dias de multa por cada um deles e, efectuado o cumulo, condena-la na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis Euros).

- Julgar procedente por provado o pedido de indemnização civil formulado por BB contra a mesma arguida por danos não patrimoniais, e condenar esta a pagar-lhe o montante de 2.000€ (dois mil Euros) acrescidos de juros à taxa legal desde a notificação para contestar.

*

Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

a) – A arguida em vez de ser condenada pela prática de oito crimes de injúria p. p. pelo artigo 181º nº 1 do C. Penal devia ter sido condenada num único crime de injúrias.

b) – E isto porque a conduta injuriosa da arguida concretizada na prática destes oito crimes, está contida na previsão legal da figura jurídica do crime continuado colhido no Código Penal e daqui

c) – Que a douta sentença ao não o aplicar, tivesse violado o disposto no art.º 30º nº 2 do C. Penal

Nestes termos e nos melhores de direito deve em conformidade com o disposto no citado art.º 30º nº 2 do C. Penal condenar-se a arguida na prática de um único crime de injúrias em vez dos dois aplicados, reduzindo-se, assim, substancialmente a pena aplicada, assim se fazendo a costumada J U S T I Ç A.

*

O assistente BB respondeu ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência, e formulando as seguintes conclusões:

A – A Recorrente junta um documento no seu recurso, que não foi analisado em sede de audiência de julgamento, que, por isso, é inadmissível e extemporâneo, por força do disposto no art. 165º, nº 1 do CPP.

B – Ao contrário do que vem alegar a Recorrente, não estamos perante qualquer crime continuado, mas sim perante oito resoluções criminosas da Recorrente, já que, não ocorreram de forma homogénea e no quadro de uma mesma situação exterior.

C – Ademais, os crimes foram praticados contra a honra, dignidade e consideração do assistente, ou seja, bens eminentemente pessoais, pelo que, nos termos do nº 3 do art. 30º do Cód. Penal, nunca poderia tipificar as condutas como um crime continuado.

Nos termos expostos e nos mais de Direito aplicáveis, que VV. Exas. não deixarão de suprir, deve, doutamente:

A. – Negar-se provimento ao recurso interposto pela arguida e, consequentemente,

B. – Deve confirmar-se, na íntegra, a douta sentença recorrida,

C. – Com todas as consequências legais.

Deste modo e doutamente, se decidindo, se fará a ACOSTUMADA JUSTIÇA!

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O Ministério Público também respondeu ao recurso interposto nos seguintes termos:

“ (…), o objecto do recurso é o de saber se, face aos factos dados como provados, a recorrente praticou um crime continuado ou oito crimes de injúrias.

Do crime continuado:

A arguida/recorrente conformou-se com a fixação da matéria de facto provada e não provada efectuada pelo tribunal recorrido e também se conformou com a tipificação efectuada no sentido em que concorda que praticou os crimes de difamação e injúria.

Porém, discorda da condenação por oito crimes de injúria, entendendo que praticou um só crime continuado.

Afigura-se, porém, que não lhe assiste razão.

(…)

Para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atende-se ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime.

E haverá unidade de resolução quando se puder concluir que os vários actos são resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação.

Assim sendo e tendo-se em conta a factualidade provada no presente caso, pode-se concluir que não se verificam os pressupostos da unidade de resolução, designadamente, o quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a sua culpa.

E isto porque, para que essa solicitação possa relevar, terá de ser de um grau considerável, a ponto que constitua quase que um estímulo, face ao sucesso anterior, para a repetição da actividade criminosa, e tornando, por isso, cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente.

Sucede que, face à factualidade provada, necessariamente se terá que concluir que a cada uma das condutas da recorrente correspondeu uma diversa resolução criminosa sem que nada, exteriormente, tenha facilitado a repetição da actividade criminosa.

Ou seja, essas resoluções foram autónomas entre si e não estiveram numa relação de continuidade e interdependência, pois não se inseriram numa rotina de procedimentos, facilitada pelo mesmo circunstancialismo externo.

No caso concreto, as condutas ilícitas que determinaram a condenação da recorrente iniciaram-se em 05.04.2020 e prolongaram-se até 13.09.2020, tendo o seu padrão de comportamento consistido em dirigir ao ofendido palavras e expressões ofensivas da sua honra e consideração e que são as que constam dos factos provados.

Tendo a actuação da recorrente ocorrido em datas diferentes, o que lhe conferia a possibilidade de poder avaliar a sua anterior conduta, distanciando-se dela e abstendo-se de a repetir, necessariamente se terá que concluir que subjacentes à sua actuação estiveram resoluções criminosas distintas a revelar a inexistência de uma culpa sensivelmente diminuída.

Nem se diga, como pretende o recorrente, que os factos foram motivados pelo estado de revolta e indignação causados pelo comportamento do assistente relativamente a uma questão de servidões.

Isto porque, mesmo a admitir a existência dessa situação, tal não poderá legitimar a actuação da recorrente nem de tal se pode concluir que aquela actuação foi levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, antes manifesta um elevado grau de culpa por parte do mesmo dada a sua reiteração.

Não existe, in casu, qualquer situação exterior, estranha à vontade da recorrente, que a tenha determinado à prática daqueles factos ilícitos e que tenha a virtualidade de diminuir a sua culpa, muito menos de modo considerável, como exige a lei.

Estamos assim, perante uma pluralidade de resoluções criminosas e uma realização plúrima de tipos de crime que protegem o mesmo bem jurídico, mas os mesmos não foram executados por forma essencialmente homogénea, no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior, pelo que não se mostram preenchidos todos os pressupostos da tipicidade do crime continuado, tal como vem previsto no nº 2 do artº 30º do CP.

Pelos motivos expostos se conclui que:

- os factos dados como provados integram a prática pela recorrente, em concurso real, de um crime de difamação e de oito crimes de injúria pelos quais foi condenada;

- estamos perante uma pluralidade de resoluções criminosas e de uma realização plúrima de tipo de crime que protege o mesmo bem jurídico, mas os mesmos não foram executados por forma essencialmente homogénea, no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior, pelo que não se mostram preenchidos todos os pressupostos da tipicidade do crime continuado, tal como vem previsto no nº 2 do artº 30º do CP.

- não existe, in casu, qualquer situação exterior, estranha à vontade da recorrente, que a tenha determinado à prática daqueles factos ilícitos e que tenha a virtualidade de diminuir a sua culpa, muito menos de modo considerável, como exige a lei.

- deve ser negado provimento ao recurso e a douta sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos.

*

No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

*

Cumpre decidir

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada pela recorrente traduz-se em saber se, relativamente aos crimes de injúria, se verifica, ou não, crime continuado, devendo em conformidade com o disposto no citado art.º 30º nº 2 do C. Penal, condenar-se, ou não, a arguida na prática de um único crime de injúrias.

*

Da sentença recorrida – Factos e Motivação (transcrição)

“FACTOS PROVADOS:

A arguida é irmã do assistente.

O assistente é pai de CC e de DD.

No dia 9 de Novembro de 2019, cerca das 10h/ 11 horas, no lugar de (…), a arguida proferiu, em voz alta e publicamente, para CC e DD as seguintes palavras: « O vosso pai é um ladrão, roubou-me a terra, fez vigarice com as escrituras, com os advogados, não tem nada que passar naquilo que é meu. »

Todas as expressões e palavras indicadas referiam-se ao ora assistente.

Também, no dia 5 de Abril de 2020, cerca das 15 h , no lugar de (…), a arguida, colocou uma missiva na caixa do correio do denunciante, sita no lugar de (…), a qual dirigiu ao denunciante e na qual, sempre dirigindo-se ao denunciante, diz: « ...decidiste uma coisa sem minha autorização, isso é ordinário, porco e sujo, é tirar o que é meu ou seja roubar... pessoas porcas são capaz de tudo... porco sujo... gentinha sem educação e respeito são todos baixos como a lama... Para esta família que só sabe pizar os outros e mexer no que não deve. » ( documentos já junto aos autos ).

No dia 29 de Maio de 2020, pelas 20 horas, junto ao portão de entrada para o imóvel do denunciante, sito no lugar de (…), a arguida, dirigindo-se ao denunciante, proferiu, em voz alta e publicamente, as seguintes expressões : « tens que tirar a caixa do correio, não podes passar no que é meu, tens a mania que é tudo teu, ladrão, vigarista

O que repetiu várias vezes, sempre dirigindo-se ao denunciante.

No dia 4 de Julho de 2020, cerca das 11 horas, junto ao portão de entrada para o imóvel do assistente, sito no lugar de (…), a denunciada, dirigindo-se ao assistente, proferiu em voz alta e publicamente as seguintes expressões : « ladrão, vigarista », que repetiu por diversas vezes;

No dia 5 de Julho de 2020, desde as 11 horas até ás 12 horas, junto ao portão de entrada para o imóvel do denunciante, sito no lugar de (…), a arguida, dirigindo-se ao assistente, proferiu em voz alta e publicamente as seguintes expressões : « ladrão, vigarista, bandido, filhos da puta », que repetiu por diversas vezes;

No dia 5 de Julho de 2020 , desde as 17 h até às 17 h40, junto ao portão de entrada para o imóvel do assistente, sito no lugar de (…), a denunciada, dirigindo-se ao denunciante, proferiu em voz alta e publicamente as seguintes expressões : « ladrão, vigarista, filhos da puta, cabrões, putas », que repetiu por diversas vezes;

Também no dia 7 de Agosto de 2020, cerca das 20h30m, junto ao portão de entrada para o imóvel do denunciante, sito no lugar de (…), a arguida, dirigindo-se ao denunciante, proferiu em voz alta e publicamente de : ladrão, vigarista, a tua família é só putas e ladrões, és um vigarista, tens que me pagar o que me roubaste »

A arguida esteve a proferir tais expressões, em voz alta, durante cerca de uma hora.

No dia 8 de Agosto de 2020, cerca das 8 horas, junto ao portão de entrada para o imóvel do denunciante, sito no lugar (…), a arguida, dirigindo-se ao denunciante, proferiu em voz alta e publicamente de « ladrão, vigarista, bandido, tens a mania que isto é tudo teu, vou chamar a policia, vai ser aqui uma vergonha, és um ladrão e a tua família também».

Expressões que esteve a proferir durante cerca de dez minutos.

No dia 13 de Setembro de 2020, desde as 18 h às 19 horas, junto ao portão de entrada para o imóvel do denunciante, sito no lugar de (…), a arguida, dirigindo-se ao assistente, proferiu em voz alta e publicamente, as seguintes expressões : « ladrão, vigarista, tiras tudo às pessoas, cabras, filhos da puta, ladrões vigaristas »

Expressões estas que foi proferindo, durante cerca de uma hora, dirigindo-se sempre ao denunciante.

Mas, para lá das situações atrás descritas nos autos, a arguida, sempre que se desloca ao lugar de (…), refere por inúmeras vezes, para toda a gente, que o queixoso é um ladrão, um vigarista, que lhe roubou a terra.

A arguida, sistematicamente, refere-se ao irmão, ora assistente, apelidando-o de ladrão.

Todas as expressões e palavras foram e são ditas pela arguida, referindo-se ao queixoso, em voz alta e pubicamente,

Todas as expressões foram e são ditas pela arguida, no intuito de denegrir a imagem do denunciante,

E de ofender a sua honra e consideração.

Ao actuar como o fez, sabia a arguida que estava a dirigir ao assistente palavras ofensivas da sua honra ou consideração.

Que ofenderam gravemente a honra, dignidade e consideração do queixoso.

Todas as expressões e semelhantes imputações são ofensivas da honra, do bom nome, da consideração, da dignidade e do respeito sociais de que o ofendido goza, Tanto mais que, foram e são proferidas, publicamente,.

A arguida agiu sempre deliberada, livre, conscientemente e com o intuito de ofender a honra, o bom nome e a considerações sociais que o ofendido goza.

Ao actuar como o fez, sabia a arguida que estava a dirigir ao assistente palavras ofensivas da sua honra ou consideração.

Que ofenderam gravemente a honra, dignidade e consideração do assistente.

Em virtude da difamação e injúrias proferidas pela arguida, o demandante ficou muito abalada psicologicamente,

Tanto mais que a arguida é sua irmã,

E que todas as expressões foram proferidas na rua, publicamente e foram presenciadas por diversas pessoas.

Ademais, nunca ninguém havia proferido, para a demandante, semelhantes expressões.

Além disso, o demandante sempre foi uma pessoa muito séria, educada, honesta, respeitada e respeitadora dos outros.

Não estando habituado a ouvir semelhantes imputações.

Ora, as imputações em causa levaram, a que o demandante se sinta muito triste e magoado

Tanto mais que as imputações foram proferidas na presença de outras pessoas.

Assim, o demandante sentiu muita tristeza, vergonha, humilhação e angústia, por ter sido injuriado e difamado.

A arguida não tem antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Nenhuns.

Motivação:

Para a formação da convicção do Tribunal foi determinante a conjugação de toda a prova produzida em julgamento, analisada criticamente, à luz das regras de experiência comum, da livre convicção e do basilar princípio in dúbio pro reo.

A arguida negou ter proferido parte das frases constantes da acusação, todavia ao longo do julgamento foi alterando a sua posição, dizendo que afinal até disso algumas frases mas que não se destinavam ao assistente, revelando ao longo da audiência para além de tais contradições e incoerências, uma personalidade temperamental e desafiadora, com reduzido autocontrole, totalmente consonante com os factos que lhe são imputados, sendo cabal a prova da acusação, quer pelas credíveis declarações do assistente, que relatou com rigor os factos descritos na acusação, quer pelos depoimentos das testemunhas arroladas, presenciais que os atestaram, tendo ainda tais testemunhas descrito os danos não patrimoniais invocados no PIC.

Ora, face ao conjunto da prova produzida, entende este Tribunal poder concluir, por não subsistir qualquer dúvida que possa reputar-se razoável, pelo cometimento pela arguida Processo Comum (Tribunal Singular)

dos factos que lhe são imputados, bem como dos danos não patrimoniais invocados, que assim foram considerados provados. “

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Apreciando

-

Questão prévia

Com a motivação do recurso, a arguida junta um documento.

Ora, nos termos do disposto no artigo 165º, nº1, do CPP “o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou de instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência”.

A junção de documentos apenas pode, pois, ser feita até ao final da audiência de julgamento e apenas se antes não tiver sido possível, isto é, enquanto decorre a fase de investigação e julgamento e não em qualquer fase de recurso (cfr. Ac. do STJ de 30/10/2001, Proc. 1645/01, in M.M Gonçalves, CPP Anot. Pág.392).

Assim, o documento ora junto em sede de recurso com a motivação para instruir este, é extemporaneamente apresentado.

Pelo exposto, não se admite a junção do documento apresentado com a motivação do recurso pela arguida, ordenando-se o seu oportuno desentranhamento e devolução ao apresentante.

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- Do crime continuado

Alega a recorrente que estão verificados os pressupostos para que o tribunal considere que os crimes de injúria pelos quais foi condenada foram praticados de forma continuada.

Ora, dispõe o artigo 30º do Código Penal sob a epígrafe “Concurso de crimes e crime continuado”:

“1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.”

Vejamos, então, os pressupostos da continuação criminosa.

Os requisitos indicados no artigo 30º do Código Penal são cumulativos. Não basta o agente ter praticado um crime e, depois, ter “continuado” a praticar outros de idêntica natureza, executados de forma essencialmente homogénea. É necessário que haja uma “disposição exterior das coisas para o facto. (…) Ou seja, “a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” – Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, tomo II, pag. 209.

No crime continuado encontramo-nos diante de uma pluralidade de factos a que, por força da lei, corresponde uma unidade de ação e portanto um único crime, podendo entender-se como uma pluralidade de ações semelhantes objetiva e subjetivamente, que são objeto de valoração jurídica unitária.

É na busca do lado subjetivo da infração que se procura, nesta situação, enraizar a essência do crime continuado. A via seria procurar na unidade da determinação da vontade, o elemento unificador da continuação criminosa.

O que se prevê com o crime continuado, quanto à resolução criminosa, é que decisões posteriores apareçam como emanação daquela determinação comum e compreendida sob sua influência. E, não bastará este elemento subjetivo, se não que se integrarem, necessariamente, elementos objetivos.

Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de ações homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade delitiva.

Uma coisa é a utilização de um meio por este corresponder às mesmas condições exógenas, outra é usar um meio que já se experimentou e se sabe eficaz; a opção da unidade do meio para eleger o crime como continuado, conduziria a admitir-se que a prática, a educação para o crime, a experiência comprovada seriam de premiar.

O cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).

A solicitação exterior deve resultar de uma correspondência psicológico-naturalística; assim, a diminuição considerável da culpa do agente deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que o arrastam para o crime. Esta situação exterior pressupõe uma facilitação da execução, uma conexão temporal, uma uniformidade no processo de execução.

Só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente atue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê.

Sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes.

Ora, no caso vertente, a arguida vem acusada e foi condenada pela prática, em autoria material, de oito crimes de injúria e um crime de difamação.

O bem jurídico protegido por estes tipos legais de crime é a honra ( bem jurídico eminentemente pessoal ) entendido como juízo que cada pessoa faz de si mesma ( sentido subjectivo ) e representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente ( sentido objectivo ).

E da matéria de facto assente, resulta que a arguida praticou factos reiterados relativamente ao ofendido, isto é, ações sucessivamente adequadas no seu conjunto a produzir o resultado, entendendo-se que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido relativamente ao ofendido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social e que, portanto, consubstancia oito crimes de injúria e um crime de difamação.

Não subsistem dúvidas de que a recorrente agiu sempre de forma homogénea, todavia não resulta a existência de um condicionalismo exterior que tivesse facilitado a ação daquela, bem como a repetição da atividade criminosa e que, por isso, diminua a sua culpa.

Verifica-se, assim, que, no caso, as circunstâncias foram conscientemente procuradas e criadas pela recorrente para concretizar a sua intenção criminosa, sendo que não há unidade temporal e não há circunstância exterior, mas sim uma predisposição anterior do agente e a simples reiteração de comportamentos não é suficiente para diminuir a culpa.

Com efeito, a já mencionada redução substancial da culpa teria de resultar da criação de um ambiente propício à realização plúrima da conduta, com a necessária aquisição de um grau de confiança primordial, que daria ao agente a possibilidade e a oportunidade de repetir os factos de forma homogénea e reiterada, em obediência a uma linha psicológica constante.

Mas este quadro não está aqui presente, pelo que não nos confrontamos com a prática de crime continuado.

Mais se dirá que “I - Com a alteração ao n.º 3 do art. 30.º do CP, operada com a Lei 40/2010, de 03-09, em que foi suprimida a expressão final “salvo tratando-se da mesma vítima”, resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independemente de haver uma ou mais vítimas.” (cfr.Ac. STJ de 25-11-2015, Relator RAUL BORGES, in www.dgsi.pt)

“ (…) tratando-se de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como indiscutivelmente é a honra, por força do disposto no n.º 3 do art. 30º do Código Penal não seria o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado.

Com efeito, a Lei n.º 40/2010, de 03 de setembro, que operou a 26ª alteração ao Código Penal, alterou a redação desse n.º 3, que passou a estabelecer o seguinte: “3 - O disposto no número anterior [onde se prevê o crime continuado] não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”.

Como refere Paulo Pinto Albuquerque [10]:

«Nos crimes que tutelam bens jurídicos pessoais, sejam dolosos, negligentes, cometidos por ação ou omissão, a ponderação do bem jurídico implica necessariamente a consideração da pluralidade de vítimas, (…).

A Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, proibiu claramente a aplicação do regime do crime continuado no tocante aos crimes relativos aos bens eminentemente pessoais, mesmo quando haja apenas uma vítima” (…).

Com a alteração foi suprimida a expressão final “salvo tratando-se da mesma vítima”, do que resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos atos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica, pois, restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas (…).

No caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, deve punir-se as condutas do agente em concurso efetivo. Esta é precisamente a consequência prática da supressão da benesse do crime continuado contra bens eminentemente pessoais. Foi este o resultado prático pretendido pelo legislador. (…)».

Também M. Miguez Garcia e Castela Rio [11] afirmam: «Tratando-se de bens eminentemente pessoais (vida, integridade física, liberdade, honra), exclui-se a forma continuada. A lei é agora decisiva. Com a redação dada ao art. 30.º/3 pela Lei n.º 40/2010, de 12-10, “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.”».

Aliás, já Eduardo Correia [12] afirmava que «Sem esquecer que de o mesmo bem jurídico se não pode falar quando se esteja perante tipos legais que protejam bens iminentemente pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará excluída toda a possibilidade de se falar em continuação criminosa».

No mesmo sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente nos acórdãos de 10-05-2017, 04-05-2017, 05-04-2017, 17-09-2014 e 14-03-2013 [13]. (…)” (cfr. Ac. TRG, de 22-10-2018, relator Jorge Bispo, in www.dgsi.pt).

Assim, considerando que os crimes de injúria e difamação protegem bens jurídicos eminentemente pessoais e que o legislador, com a referida alteração ao n.º 3 do art. 30º do Código Penal, operada pela Lei n.º 40/2010, afastou o crime continuado quando estejam em causa bens jurídicos pessoais, independentemente do número de sujeitos atingidos, conclui-se que, no caso vertente, a conduta da recorrente não se pode integrar na figura do crime continuado, como a mesma pretendia, sendo antes o número de crimes por ele cometidos determinado pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido (art. 30º, n.º 1, do Código Penal), ou seja, oito crimes de injuria e um crime de difamação.

Termos em que improcede o recurso.

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Decisão

Face a tudo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Negar provimento ao recurso interposto pela arguida, mantendo a sentença recorrida.

- Condenar a recorrente em custas, fixando-se em 3 Uc a taxa de justiça .

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 25 de maio de 2023


Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares

J. F. Moreira das Neves