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ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário
I - De acordo com o artigo 344, n.2 do Código Civil, para que haja inversão do ónus da prova, é necessário: a) que a prova de determinada factualidade se tenha tornado impossível de fazer, por acção (comissiva ou omissiva) da parte contrária; e b) que tal comportamento lhe seja imputável a título culposo. II - Não há lugar à inversão do ónus da prova quando o autor (motorista de pesados) alegando ter prestado trabalho suplementar, não remunerado nem descriminado nas folhas de remunerações, requereu, para prova do trabalho suplementar, a junção pela ré de vários documentos, tendo esta junto apenas as cópias das remunerações remetidas à Segurança Social, esclarecendo que inexistia registo do trabalho suplementar, por o autor beneficiar de um regime de isenção de horário de trabalho. III - Se a ré não logrou demonstrar que o A. beneficiava de um regime de isenção de horário de trabalho, mas ficou demonstrado que a ré não fixou ao A. um período normal de trabalho, resultando claro da p.i. a inexistência de um horário de trabalho, tal indicia uma situação de facto de "isenção de horário de trabalho".
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
1. B.......... intentou a presente acção, com processo comum, contra C.......... pedindo o pagamento, para além de € 15.000,00, de indemnização por danos não patrimoniais, da indemnização legal de antiguidade (3 meses de vencimento), das férias e subsídios respectivos, vencidos em 1.1.03, e (em parte) dos vencidos em 2001 e 2002, e das remunerações em falta e a que tem direito das horas para além do horário normal, os almoços ou ceia, tudo acrescido de 3 %, no ano de 2002.
Alegou, em síntese, que, tendo sido admitido em Maio/01 sob a autoridade e direcção da Ré, e tendo as partes celebrado em 31 de Maio/01 o contrato de trabalho a termo certo de 6 meses, junto aos autos a fls. 18, do qual não consta o motivo especificado justificativo do termo, exercendo o A. as funções de motorista de "pesados", auferindo então a retribuição de 102.000$00, o A. rescindiu o contrato em 3 de Janeiro de 2003, sob invocação de justa causa.
Mais alega que, considerando o salário colectivamente convencionado de 110.550$00/mês e o horário de trabalho diário que descrimina, e considerando que, perante a dificuldade sentida em descriminar com rigor os valores em dívida, procederá à alteração do pedido em conformidade com a prova que a Ré vier a fazer.
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Contestou a Ré, por impugnação e excepcionando o pagamento do trabalho suplementar e das refeições com a quantia média mensal de 85.000$00 que o A. aceita ter-lhe sido paga sob a designação de ajudas de custo, pelo que conclui pela sua absolvição.
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Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova produzida, foi, posteriormente, proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a R. dos pedidos.
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Inconformado com esta decisão, dela recorreu o A., formulando as seguintes conclusões:
1º- Porque as partes estão obrigadas ao dever de cooperação no sentido de se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio - cfr. arts. 266º e 266º-A do CPC.
- Torna-se impensável que o Tribunal não tenha logrado apurar qual o numero de horas extra e período em que foram praticadas quando é certo que o inerente registo constitui obrigação da entidade patronal que foi notificada para o juntar aos autos, antes do encerramento da Audiência.
2º- Porque a actuação da Ré, nesse particular, e pelo menos no que aos registos de horas suplementares e escalas de serviço em que integrou o Apelante, constitui manifesta recusa.
- Verifica-se a inversão do ónus da prova, como preceitua o nº 2 do art. 344º do Cód. Civil, aplicável face ao estatuído no nº 2 do art. 519º do CPC.
3º- Porque a Ré, com a sua abstenção de juntar os documentos requisitados, pese embora a ordem emanada do Tribunal, colocou o A. na impossibilidade de produzir prova sobre os factos alegados, sobre essa matéria, na petição inicial, e
4º- Porque competindo à entidade patronal tudo o que respeita à execução e disciplina do trabalho, essa competência envolve também a fixação do horário de trabalho cujo exercício deverá observar os limites estabelecidos na lei, como muito bem decidiu esta Relação, por Acórdão de 22-01-2001, in JTRP00030365 e,
5º- Porque, no caso vertente, ficou provado que a entidade patronal não fixou ao apelante o seu horário normal de trabalho e,
6º- Porque ficou demonstrado que o Apelante excedeu semanalmente 40 horas de trabalho,
- pela inversão do ónus de prova, assistia à ré o encargo de demonstrar qualquer eventual inexactidão constante da petição inicial a este respeito e, não o tendo feito, tal matéria não poderia deixar de ser julgada como provada
7º- Porque é à entidade empregadora que assiste organizar a actividade de transporte, possuindo meios de controlo sobre a actividade do motorista, a começar pelo tacógrafo (e escala de serviços) o que lhe permite ter domínio, também de facto, sobre a forma de trabalhar dos seus subordinados
- é a ela entidade patronal que por ser seu facto pessoal e porque está obrigada a conservar tais registos que assiste o ónus de demonstrar qual o efectivo horário que fixou ao Apelante e, não o tendo feito, não pode deixar de ser dado como provado tudo o que a esse respeito alegado foi na petição.
8º- Porque do organigrama do serviço a Santarém junto pelo Apelante e não impugnado pela Ré resulta que só nesse serviço diariamente eram praticados, pelo menos, 9h45 de trabalho
A recusa da ré em juntar aos autos os documentos solicitados não pode deixar de ser interpretado de outra forma que não seja a de se considerar provada a matéria alegada na petição inicial
9º- Porque o registo de trabalho suplementar e os discos de tacógrafo não se destinam apenas à aplicação de coimas sobre qualquer "capa" de moralização do mercado
- Tal-qualmente acontece nos autos de Transgressão, esses elementos são os únicos possíveis para prova do trabalho efectivamente desenvolvido e a apreciar em processo comum de contrato de trabalho e, assim, também por esse motivo se verifica a inversão do ónus da prova a que alude o nº 2 do art. 344º do Cód Civil
10º- Porque o nº de horas constantes da petição inicial, a sua sequência, sábados, Domingos e feriados permitem concluir que não é humanamente possível manter esse ritmo alucinante, constituindo verdadeiro perigo para o demais tráfego,
- Verifica-se que o Apelante se despediu com justa causa, sendo credor da Ré, além do mais, pelos danos morais peticionados e que foram calculados com manifesta parcimónia.
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Não houve contra-alegações.
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Nesta Relação, a Ex.ma Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu o seu douto parecer no sentido do provimento parcial do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Factos provados (na 1ª instância):
1º - Por contrato de trabalho escrito, a termo certo de 6 meses, junto aos autos a fls. 18, celebrado em 31.5.01, o A. foi admitido ao serviço da Ré, sob a autoridade e direcção desta, como motorista.
2º - Auferindo a retribuição-base mensal de 102.000$00, sendo de € 535, a partir de 1.1.02.
3º - O A. auferia ainda 85.000$00 de média mensal, designada de ajudas de custo, mas que na realidade se destinavam a remunerar o trabalho prestado de noite e na parte que excedia as 40 horas semanais.
4° - A Ré não fixou ao A. o período normal de trabalho.
5º - A Ré excedeu semanalmente 40 horas de trabalho, em número de horas indeterminado, mas não inferior às que a referida quantia de 85.000$00 visava retribuir.
6º - Nesta quantia, a Ré deduziu 300.000$00 correspondentes a danos em veículos causados em acidentes de viação.
7º - O A. entrou de baixa médica a partir de 9.12.02.
8º - Em 3.1.03, por carta junta aos autos a fls. 19, o A. rescindiu o contrato sob alegação de justa causa.
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Fixação da matéria de facto:
Nesta sede, pretende o recorrente que o comportamento da R. impõe a inversão do ónus de prova, nos termos dos arts. 519º, nº 2, do CPC, e 344º, nº 2, do CC, pelo que se têm de considerar provados os factos por si alegados no art. 21º da petição inicial, referentes às horas extras de trabalho por si efectuadas.
Vejamos.
Dispõe o art. 344º, nº 2, do C.Civil que “há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações".
Deste normativo logo se constata que este instituto exige a verificação de dois pressupostos:
a) que a prova de determinada factualidade, por acção - comissiva ou omissiva - da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer;
b) que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título culposo.
A "inversão do ónus da prova" surge, assim, como uma forma de sanção civil, punitiva de uma ilicitude civil, que, inclusive, pode revestir enquadramento penal, sob a tipificação dos crimes de desobediência ou de falsas declarações.
O princípio violado é o do dever de cooperação para a descoberta da verdade que, visando uma sã administração da justiça e a obtenção de uma decisão de mérito, o mais possível correspondente, em termos judiciários, à verdade material subjacente, vincula todas as pessoas e que se encontra explicitado no art. 519º, nº1 do CPC, nos seguintes termos:
“Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestara sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que foram determinados”.
Por sua vez, a 2ª parte do nº 2 do art. 519º sugere a mesma ideia da culpa na violação de tal dever de cooperação por quem seja parte.
Na verdade, dispõe tal normativo processual:
"Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344º do Código Civil".
A este propósito, segundo Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, pág. 185, há inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344º do C Civil, “quando, por exemplo, o condutor do automóvel destrói, após a colisão, os indícios da sua culpa no acidente de viação, quando uma das partes impede a testemunha oferecida pela outra de se deslocar ao tribunal, quando a parte notificada para apresentar um documento não o apresenta (art. 529) ou declara que não o possui, tendo-o já possuído e não provando que ele desapareceu ou foi destruído sem culpa sua (art. 530-2), quando o réu em acção de investigação de paternidade se recusa a permitir o exame do seu sangue e quando, duma maneira geral, a parte recusa colaborar para a descoberta da verdade (art. 519-2).
Ora, no caso "sub judice", apenas se nos evidencia como factualismo em que se pode assentar, para tal parte do objecto da apelação, que o A e ora apelante, alegando trabalhar para a R., como motorista de pesados, tendo prestado trabalho suplementar não remunerado e não discriminado nos recibos das remunerações que auferia, requereu, para prova do trabalho suplementar que alegava ter prestado, que a R fosse notificada para juntar aos autos os docs. id. a fls. 16 e 17, sob as alíneas a) a h), a saber, cópias das folhas de remunerações remetidas à Segurança Social, do mapa de pessoal, da escala de serviço, do livro de registo de trabalho suplementar, dos mapas de férias, dos mapas de cálculo das ajudas de custo, dos registos de tacógrafo das viaturas por si conduzidas.
Por despacho de fls. 61, foi ordenada a notificação da R., como o A peticionava.
A R., por requerimento de fls. 63, veio juntar apenas as cópias das folhas das remunerações remetidas à Segurança Social e 55 registos de tacógrafo, dizendo não poder juntar mais nenhum documento, por os não possuir.
Como o A. tivesse respondido a este requerimento, reafirmando que a não junção pela R. dos documentos solicitados devia implicar a inversão do ónus de prova, veio a R., novamente, esclarecer que inexistia registo do trabalho suplementar por, tal como alegado na contestação, ter o A. beneficiado de um regime de isenção de horário de trabalho.
Nesta parte, se é certo que a R. não logrou demonstrar que o A. beneficiava de um regime de isenção de horário de trabalho, não menos certo é que ficou provado que a R. não fixou ao A. um período normal de trabalho e, do próprio art. 21º da petição inicial, resulta claro inexistir um horário de trabalho, tal como está previsto no art. 11º, nº 2, do DL nº 409/71, de 27.09.
Ou seja: o factualismo apurado indicia mais uma situação de facto de isenção de horário de trabalho, tal como era alegado pela Ré.
Noutra vertente, é factualismo também assente que o A. além deste tipo de prova, havia oferecido a prova testemunhal (com um rol de quatro testemunhas) com o objectivo, também óbvio, de fazer a mesma comprovação fáctica, sendo certo que, destas, compareceram duas, que foram inquiridas, tendo o A. prescindido das restantes.
Finalmente, é também claro que o A. não requereu o depoimento de parte do legal representante da Ré, nos termos do art. 552º do CPC, por forma a obter uma eventual confissão dos mesmos factos alegados.
Isto significa, assim o entendemos:
- não só não há qualquer indício que permita concluir que a R. se recusou a colaborar com o tribunal;
- como inexiste o nexo de causalidade entre a actuação processual da R. e a impossibilidade de o A. fazer a mesma prova através da via testemunhal por si seguramente arrolada com esse mesmo preciso objectivo ou através da prova por confissão que tão pouco requereu.
Em consequência, o comportamento da R. não impõe a inversão do ónus de prova, nos termos dos arts. 519º, nº 2, do CPC, e 344º, nº 2, do CC, pelo que improcede a pretensão do recorrente nesta sede, mantendo-se, pois, a decisão de facto da 1ª instância.
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3. Do mérito.
Nesta sede, as conclusões da apelação, pressupondo a alteração reclamada da matéria de facto, no sentido de ser dada como provada toda a alegada na petição, visavam a condenação da R. no pedido, assim abrangendo:
- os créditos salariais peticionados;
- a existência de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho;
- indemnização por danos morais.
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A improcedência da pretensão do recorrente para alteração da matéria de facto apurada conduz necessariamente à improcedência das demais pretensões do recorrente, por dela dependentes.
Só ao A., ora recorrente, incumbia, segundo as regras gerais, o ónus de provar os factos alegados como fundamento do seu direito à rescisão com justa causa do contrato de trabalho e do seu direito aos créditos salariais invocados, nomeadamente por trabalho suplementar.
Assim, não se vislumbrando violação das disposições legais invocadas pelo recorrente, ou de quaisquer outras, todas as conclusões do recurso têm de improceder.
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4. Atento o exposto, e decidindo:
Acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Porto, 21 de Fevereiro de 2005
José Carlos Dinis Machado da Silva
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa